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ITENS CLARICEANOS-ESPECÍFICOS EM THE COMPLETE STORIES: UMA ANÁLISE DAS ESTRATÉGIAS DE TRADUÇÃO DE EXPRESSÕES CRIADAS PELA AUTORA

CLARICE-SPECIFIC ITEMS IN THE COMPLETE STORIES: A TRANSLATION STRATEGY ANALYSIS OF EXPRESSIONS CREATED BY CLARICE LISPECTOR

Resumo

Este estudo objetiva analisar as estratégias de tradução de itens culturais-específicos (ICEs) na antologia The complete stories, de Clarice Lispector, traduzida por Katrina Dodson e publicada em 2015. Os ICEs aqui analisados serão as expressões criadas pela autora. Para investigar as implicações de escolhas na tradução dos ICEs, foi necessário: i. identificar e categorizar as expressões nos contos de Clarice que se configuram como ICEs; e ii. identificar e categorizar as estratégias utilizadas na tradução dos ICEs. Os resultados mostram o uso de estratégias conservativas e substitutivas, sinalizando para a configuração dinâmica e complexa dos termos na escrita de Clarice Lispector, produzindo sensações de estranhamento construídas não apenas na distância linguístico-cultural entre as línguas portuguesa e inglesa, mas também na maneira engenhosa como a escritora lida com a linguagem.

Palavras-Chave
Clarice Lispector; Estratégias de Tradução; Tradução literária; Itens Culturais-Específicos

Abstract

The aim of this work is to analyze translation strategies of culture-specific items (CSI) in the compilation The complete stories, by Clarice Lispector, translated by Katrina Dodson, and published in 2015. The CSIs here analyzed are going to be the expressions created by the author. To consider the implications of such choices, it was important to: i. identify and categorize the expressions in Clarice’s short stories that were considered as CSI; and ii. identify and categorize the strategies applied in the translation of CSI. Results have pointed out to the use of foreignizing and domesticating translation strategies, highlighting the dynamic and complex configuration of these terms in Clarice Lispector’s writing, triggering feelings of strangeness built not only on linguistic-cultural distance, but also on the ingenious ways in which she deals with language.

Keywords
Clarice Lispector; Translation Strategies; Literary Translation; Culture-Specific Items

1. A Tradução de Contos de Clarice Lispector para o Inglês

O lugar de Clarice Lispector (1920-1977) como escritora consagrada no sistema literário brasileiro é notório. Tal reconhecimento atravessa, ao longo dos anos, as fronteiras nacionais e, ao lado de figuras como Jorge Amado (1912-2001) e Machado de Assis (1839-1908), Clarice é uma das autoras brasileiras mais traduzidas para o inglês (GOMES, 2005GOMES, M. L. S. D. Identidades Refletidas: Um estudo sobre a imagem da literatura brasileira construída por tradução. 2005. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.). É, também, a escritora brasileira mais traduzida no mundo em 2020, ano de seu centenário (BERNARDO, 2020BERNARDO, A. No ano de seu centenário, Clarice Lispector é a escritora brasileira mais traduzida no mundo. BBC News Brasil, Rio de Janeiro, 9 dez. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-55251306. Acesso em: 12 dez. 2020.
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). Becker (2013)BECKER, E. R. Algumas considerações sobre a tradução da obra de José J. Veiga para a língua inglesa. In: BITTENCOURT, R. L. F.; SHMIDT, R. T. (orgs.). Fazeres indisciplinados: estudos de literatura comparada. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013, p. 129-145. a classifica como uma representante da literatura nacional no mundo.

Essa posição de prestígio, em especial, no cenário estadunidense, tem sido consolidada na última década com o que Esteves (2016, p. 655)ESTEVES, L. M. R. Uma discussão sobre a prática da retradução com base no caso das republicações de obras de Clarice Lispector no exterior. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 55, n. 3, p. 651-676, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/010318138647117214021.
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chama de “um projeto bem-articulado” com o objetivo de promover a visibilidade da autora no exterior. Em 2009 foi publicada a biografia de Clarice – Why this world, de Benjamin Moser (2014)MOSER, B. Why this World: A Biography of Clarice Lispector. Londres: Penguin Books, 2014.; em seguida, foram lançadas as retraduções, pela editora New Directions e com edição de Moser, de A hora da estrelaThe hour of the star, tradução de Benjamin Moser (LISPECTOR, 2011LISPECTOR, C. The Hour of the Star. Tradução de Benjamin Moser. Nova York: New Directions, 2011.); Perto do coração SelvagemNear to the wild heart, tradução de Alison Entrekin (LISPECTOR, 2012cLISPECTOR, C. Near to the Wild Heart. Tradução de Alison Entrekin. Nova York: New Directions, 2012c.); Água viva – com o mesmo título em inglês e tradução de Stefan Tobler (LISPECTOR, 2012bLISPECTOR, C. Água Viva. Tradução de Stefan Tobler. Nova York: Penguin, 2012b.); e A paixão segundo G.H.The passion according to G.H., tradução de Idra Novey (LISPECTOR, 2012eLISPECTOR, C. The Passion According to G.H. Tradução de Idra Novey. Nova York: New Directions. 2012e.); as traduções inéditas de Um sopro de vidaA breath of life, tradução de Johnny Lorenz (LISPECTOR, 2012aLISPECTOR, C. A Breath of Life. Tradução de Johnny Lorenz. Nova York: Penguin, 2012a.); O lustreThe chandelier, tradução de Magdalena Edwards e Benjamin Moser (LISPECTOR, 2019bLISPECTOR, C. The Chandelier. Tradução de Magdalena Edwards e Benjamin Moser. Nova York: New Directions, 2019b.); e A cidade citiadaThe besieged city, tradução de Johnny Lorenz (LISPECTOR, 2019aLISPECTOR, C. The Besieged City. Tradução de Johnny Lorenz. Nova York: New Directions, 2019a.) foram publicadas, respectivamente, em 2012, 2018 e 2019; em 2015, outro passo importante foi dado com o lançamento da antologia The complete stories (LISPECTOR, 2015LISPECTOR, C. The Complete Stories. Tradução de Katrina Dodson. Nova York: New Directions, 2015.), organizada e editada por Moser e traduzida por Katrina Dodson. Fica evidente a influência de Moser como principal disseminador do trabalho de Clarice no sistema literário anglófono.

A recepção positiva da coletânea em inglês dos contos de Clarice é um fenômeno significativo, uma vez que o mercado editorial estadunidense é autossuficiente. The complete stories (LISPECTOR, 2015LISPECTOR, C. The Complete Stories. Tradução de Katrina Dodson. Nova York: New Directions, 2015.) é uma reunião nunca antes feita no Brasil de 85 histórias clariceanas em um só volume, lançada primeiro nos Estados Unidos e publicada no Brasil em 2016 como Todos os contos (LISPECTOR, 2016LISPECTOR, C. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016.), pela editora Rocco.

A repercussão da tradução dos contos de Clarice despertou algumas questões que motivaram o presente estudo, a princípio, sobre que tipo de estratégias foram utilizadas pela tradutora, Katrina Dodson. Trata-se de um tópico intrigante, pois traduzir Clarice é, seguramente, um desafio. A escritora é conhecida pela maneira característica e inovadora como lida com a linguagem, de modo que seu texto pode soar como estrangeiro até mesmo para o leitor brasileiro (CAMPOS, 1993CAMPOS, M. C. Clarice em Tradução. Organon, Porto Alegre, v. 7, n. 20, p. 107-110, 1993. DOI: https://doi.org/10.22456/2238-8915.39388.
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, p. 108). Além das barreiras de caráter linguístico e estilístico, Campos (1993, p. 107)CAMPOS, M. C. Clarice em Tradução. Organon, Porto Alegre, v. 7, n. 20, p. 107-110, 1993. DOI: https://doi.org/10.22456/2238-8915.39388.
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reconhece que as barreiras culturais também constituem um desafio a ser superado numa tradução de um texto clariceano.

No espectro cultural da tradução, muitas vezes as diferenças entre duas culturas geram dificuldades tradutórias, como a incompatibilidade de sentido ou a inexistência de termos funcionalmente adequados para certos itens, como nomes próprios, hábitos e instituições, que são expressões linguísticas denominadas por Franco Aixelá (2013)FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013. de itens culturais-específicos (ICEs). Este estudo investiga como uma categoria específica de ICEs foi traduzida na antologia: as expressões criadas por Clarice.

2. Tradução Literária

Ao tratar de elementos relacionados à tradução literária, Bassnett (2003)BASSNETT, S. Estudos de Tradução. Tradução de Vivina de Campos Figueiredo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. reflete sobre a questão de que muitos tradutores não atentam para o fato de que o texto literário está inserido em uma rede maior de sistemas. Esse entendimento implica dizer que o ato tradutório não se limita ao nível da estrutura ou do conteúdo. O sistema de gêneros literários e o cultural, invariavelmente, permeiam as escolhas tradutórias. Logo, quando uma abordagem tradutória é centrada em aspectos individuais do texto, tal relação dialética é negligenciada e o trabalho de tradução é afetado negativamente (BASSNETT, 2003BASSNETT, S. Estudos de Tradução. Tradução de Vivina de Campos Figueiredo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003., p. 131). Além disso, fatores relacionados à ideologia, poder, e manipulação, como a influência de leitores profissionais, dos patrocinadores de projetos de tradução e o entendimento do sistema cultural a respeito do que pode ou não ser consagrado literariamente, por exemplo, estão por trás de escolhas realizadas em projetos de tradução, como o conduzido por Benjamin Moser, biógrafo de Clarice. Além disso, embora esteja fora do escopo da discussão proposta, é válido mencionar a influência da dimensão comercial e de consumo (vendas) do produto traduzido.

A noção de tradutor como leitor pode nos ajudar a entender o processo de escolhas tradutórias. Na esteira dessa concepção e tendo em mente as implicações da virada cultural na segunda metade do século XX, o texto deixa de ser uma fonte de interpretação única e estável para ser entendido como um objeto produtor de sentidos. Portanto, o tradutor, que inicialmente é um leitor, abre mão da “ideia de uma leitura 'correta'” e reconhece que o texto literário demanda uma “interpretação criativa” (BASSNETT, 2003BASSNETT, S. Estudos de Tradução. Tradução de Vivina de Campos Figueiredo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003., p. 134, 136) que será refletida na tradução. Bassnett (2003)BASSNETT, S. Estudos de Tradução. Tradução de Vivina de Campos Figueiredo. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. enfatiza a responsabilidade que acompanha tal percepção de tradutor como leitor. Um tradutor que deixa de lado questões centrais na leitura de um autor, como os recursos estilísticos utilizados por Clarice para construir jogos de significado, por exemplo, ou ignora como o trabalho fonte se relaciona com o contexto cultural e temporal em que foi produzido, compromete a integridade do texto traduzido.

No que tange à Clarice e sua escrita, Silva (2018)SILVA, J. M. Fascínio e desconforto em Clarice Lispector. Paraíba Online, Paraíba. 16 dez. 2018. Disponível em: https://paraibaonline.com.br/colunistas/fascinio-e-desconforto-em-clarice-lispector/. Acesso em: 17 dez. 2021.
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descreve a experiência de lê-la como fascinante e desconfortável. O fascínio se deve à excelência estilística com a qual Clarice manipula as palavras e como é capaz de dobrar a língua, de conduzi-la a caminhos escorregadios, para, assim, refletir as flutuações do seu interior. O desconforto, por sua vez, “radica no fato de ela ser uma escritora visceralmente vocacionada para a meditação filosófica, para o agudo pensar sobre todas as realidades que a cercam” (SILVA, 2018SILVA, J. M. Fascínio e desconforto em Clarice Lispector. Paraíba Online, Paraíba. 16 dez. 2018. Disponível em: https://paraibaonline.com.br/colunistas/fascinio-e-desconforto-em-clarice-lispector/. Acesso em: 17 dez. 2021.
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).

Na palestra Rediscovering Clarice Lispector, Katrina Dodson (2017b)DODSON, K. Rediscovering Clarice Lispector. 2017b. (57:23 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rpLGS1vWsGM. Acesso em: 11 nov. 2021.
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reflete sobre tais desafios e conta que a tradução dos contos foi um trabalho principalmente de interpretação e performance, de entender quando Clarice se desviava do português padrão e encontrar maneiras convincentes para adaptar o inglês a usos insólitos, como veremos nas próximas seções. Ao comentar sobre o elemento interpretação, Dodson dá o exemplo de quando precisava decidir se “mulher” se referia ao sujeito feminino ou ao termo esposa, pois são palavras diferentes em inglês; ou quando foi preciso escolher se “escritora falida” deveria ser traduzido como “failed writer” ou “failed woman writer” – uma escolha que envolve ocultar ou evidenciar o sujeito mulher na língua inglesa e, consequentemente, uma escolha que pode produzir um efeito político e ideológico no texto clariceano. Sobre encarar o processo de tradução como performance, Dodson (2017b)DODSON, K. Rediscovering Clarice Lispector. 2017b. (57:23 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rpLGS1vWsGM. Acesso em: 11 nov. 2021.
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explica que precisou imaginar ser muitas das personagens dos contos, através de uma espécie de mimetismo teatral. Robinson (2003)ROBINSON, D. Becoming a Translator: An Introduction to the Theory and Practice of Translation. Oxford: Routledge, 2003. recorre à analogia da performance e evoca a figura do ator para discorrer a respeito da natureza do trabalho do tradutor. Assim como um ator, o tradutor também assume diferentes papéis e carrega diferentes “eus” dentro de si. Um dos axiomas que fundamentam o pensamento do autor é: “O tradutor é como um ator ou um músico (um performer), e não um gravador” (ROBINSON, 2003ROBINSON, D. Becoming a Translator: An Introduction to the Theory and Practice of Translation. Oxford: Routledge, 2003., p. 35, tradução nossa1 1 “The translator is more like an actor or a musician (a performer) than like a tape recorder” (ROBINSON, 2003, p. 35). ). A ideia do tradutor associada à atuação pode nos ajudar a enxergar o traduzir de uma obra literária a partir do ângulo criativo: embora o tradutor deva, invariavelmente, seguir um script (o texto de partida), ele pode emprestar sua voz aos personagens do texto original, de modo que sua interpretação passa a ser uma marca de sua presença. Assim, sob essa perspectiva metafórica, a voz do tradutor e do autor se combinam no produto final.

Já para Lefevere (2007)LEFEVERE, A. Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. Tradução de Claudia Matos Seligmann. Bauru, SP: Edusc, 2007., reescritores e, portanto, tradutores, exercem uma forte influência na criação, ou manutenção, de imagens do autor do texto fonte nas culturas receptoras, agindo também como agentes imprescindíveis na sobrevivência da obra original. Para o autor, as reescrituras são produzidas em conformidade com sistemas de valores ideológicos e culturais vigentes nas sociedades em que são feitas. Por isso, o autor nos convida a pensar: quem reescreve? Por que reescreve? Sob que circunstâncias a reescrita é produzida e para qual público é dirigida? Refletir acerca de fatores que fogem do controle do tradutor é fundamental para entendermos as estratégias empregadas em uma tradução, uma vez que esse profissional precisa atuar dentro de um sistema com diferentes restrições. Nesse sentido, o autor destaca que reescritores podem, até certo ponto, manipular e adaptar o original, para agir tendo em vista tais restrições, de modo que tais agentes invariavelmente atuem como traidores, mesmo que, por vezes, não tenham consciência desse papel, uma vez que suas escolhas são limitadas por mecanismos ideológicos da cultura alvo. Bassnett (1988)BASSNETT, S. The Translation Turn in Cultural Studies. In: BASSNETT, S.; LEFEVERE, A. Constructing Cultures: Essays on Literary Translation. Trowbridge: Cromwell Press, 1988. corrobora tal linha de raciocínio ao discutir as implicações da virada cultural para os Estudos da Tradução. A autora enfatiza que, uma vez que o traduzir acontece sempre em um determinado contexto, diferentes restrições textuais e extratextuais incidem sobre o tradutor. Esses processos manipulatórios envolvem, por exemplo,

Como um texto é selecionado para ser traduzido, [...] qual papel o tradutor exerce nessa seleção, qual papel um editor, editora ou mecenas exercem, quais critérios determinam as estratégias que serão empregadas pelo tradutor, como um texto pode vir a ser recebido no sistema de chegada.

(BASSNETT, 1988BASSNETT, S. The Translation Turn in Cultural Studies. In: BASSNETT, S.; LEFEVERE, A. Constructing Cultures: Essays on Literary Translation. Trowbridge: Cromwell Press, 1988., p. 123, tradução nossa)2 2 “How a text is selected for translation, [...] what role the translator plays in that selection, what role an editor, publisher or patron plays, what criteria determitne the strategies that will be employed by the translator, how a text might be received in the target system” (BASSNETT, 1988, p. 123).

Compreender a complexidade desses fatores de restrição passa a ser uma preocupação primária dos Estudos da Tradução, como aponta a autora.

3. Itens Culturais-Específicos

Normalmente, os ICEs aparecem no texto na forma de “instituições locais, ruas, personagens históricos, nomes de lugares, nomes próprios, jornais, obras de arte etc. – que geralmente apresentarão problemas na tradução em outras línguas” (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 191). Mas a dimensão de um ICE vai além, como vemos na definição do autor:

Aqueles itens textualmente efetivados, cujas conotações e função em um texto fonte se configuram em um problema de tradução em sua transferência para um texto alvo, sempre que esse problema for um produto da inexistência do item referido ou de seu status intertextual diferente no sistema da cultura dos leitores do texto alvo

(FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 193).

O autor rejeita a “ideia de que há ICEs permanentes, independentemente do par de cultura que está envolvido e da função textual (em um texto ou em outro) do item estudado” (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 191-192). Portanto, um ICE possui uma dinamicidade e, por isso, não existe de forma estanque, isolada ou independentemente de sua materialização textual. Por causa dessa natureza dinâmica, qualquer item linguístico que apresente um problema de tradução em decorrência da sua inexistência ou diferença de valor, no que tange às culturas fonte e alvo, pode ser considerado um ICE, “dependendo não apenas dele próprio, mas também da sua função no texto e de como é percebido na cultura de chegada” (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 193).

A problemática provocada pela tradução dos ICEs aponta para a opacidade da língua, em vez de sua transparência: “Um ICE constitui, por exemplo, um problema de opacidade ideológica ou cultural” (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 193). A configuração de um item cultural-específico depende da cultura de chegada.

O autor apresenta duas categorias básicas de ICEs: “nomes próprios e expressões comuns (por falta de um termo melhor para abranger o mundo de objetos, instituições, hábitos e opiniões, restritos a cada cultura e que não podem ser incluídos no campo dos nomes próprios)” (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 194). Outra categoria de ICEs que representa um problema de tradução, devido ao status de inexistência ou incompatibilidade de sentido nas relações da cultura de partida e de chegada, são as expressões criadas pelo autor do texto original. Na antologia de contos de Clarice, tais itens clariceanos-específicos são recorrentes.

Ao explorar a criação estética na obra de Clarice, Moser (2017, p. 164, grifo do autor)MOSER, B. Clarice, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. relaciona a tentativa de conectar linguagem e realidade a um domínio místico: “Uma palavra que não descreve uma coisa preexistente, mas de fato é essa coisa, ou uma palavra que cria a coisa que descreve: a busca dessa palavra mística, da ‘palavra que tem luz própria’, é a busca de uma vida inteira”. Com relação a tais flashes da vida que estão prestes a escapar, encontramos no texto de partida “imagens poéticas impossíveis” (MOSER, 2017MOSER, B. Clarice, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 192), de modo que as palavras ou expressões criadas pela autora demonstram uma exploração ‘de matizes de sentidos’ outras, além de “uma busca por sentidos ocultos no interior da linguagem” (MOSER, 2017MOSER, B. Clarice, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 196). Ainda sobre tal busca pelo indizível, Waldman (1992)WALDMAN, B. Clarice Lispector: a paixão segundo C. L. São Paulo: Editora Escuta, 1992. destaca que o desejado é o que está nas entrelinhas, nos intervalos:

Para contar não os fatos, mas seus ecos e “sussurros”, não as personagens, mas suas vibrações e intensidades, não um caminho, mas instantes privilegiados e fugidios, é preciso lapidar as entrelinhas, golpear a linha e aumentar o cerco de silêncio que rodeia a palavra

(WALDMAN, 1992WALDMAN, B. Clarice Lispector: a paixão segundo C. L. São Paulo: Editora Escuta, 1992., p. 121-123).

Percebemos que a natureza de um item cultural-específico dentro da obra de Clarice assume uma sinuosa dimensão que perpassa aspectos culturais e estilísticos, onde o que é dito provoca reflexões sobre o não dito. Podemos pensar aqui na tradução do texto clariceano como um processo multifacetado, em que é relevante refletir não apenas sobre os aspectos linguísticos e culturais, mas também sobre como esses são afetados pelos procedimentos estéticos utilizados pela autora e em como tais questões irão reverberar na cultura de chegada. Ao expressar sua preocupação com a tradução do texto clariceano, Moser (2017, p. 260)MOSER, B. Clarice, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. reforça que “não importa quão estranha a prosa de Clarice soe em tradução, ela soa igualmente insólita no original”.

Nesse contexto, Nunes (1995, p. 112)NUNES, B. O drama da linguagem. São Paulo: Editora Ática, 1995. enfatiza sobre as personagens clariceanas: “A existência autêntica com que sonham essas individualidades dependeria da elaboração de palavras fluentes que incorporassem o real, que fizessem do dizer um modo de ser”. Tal esforço à procura da existência autêntica por meio da criação linguística pode ser contemplado ao longo da obra da autora. Em uma das últimas histórias da antologia de contos, que é um dos últimos textos da sua carreira, Brasília/Brasília, “Clarice prova que nunca perdeu o hábito de inventar nomes” (MOSER, 2017MOSER, B. Clarice, uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2017., p. 83), ao inventar a palavra “extrósima”, cuja tradução comentaremos adiante.

4. Estratégias de Tradução

Ao apresentar as estratégias de tradução para tratar os ICEs, Franco Aixelá (2013)FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013. as categoriza, com base no grau de manipulação intercultural, em dois grupos principais – conservação e substituição. O tradutor fará escolhas dentro desse espectro. Franco Aixelá esclarece que pode haver casos que não parecem se encaixar nas categorias e que no mesmo texto é possível o uso de estratégias diferentes para se tratar o mesmo item.

A primeira estratégia de tradução de natureza conservativa citada por Franco Aixelá é a repetição – “quando os tradutores mantêm o máximo possível da referência original”, de modo a provocar estranhamento no leitor da cultura de chegada (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 196). Ainda no domínio da conservação, a estratégia da adaptação ortográfica “inclui procedimentos como transcrição e transliteração”, utilizada especialmente quando o tradutor lida com um alfabeto diferente (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 197). No caso da estratégia conservativa da tradução linguística (não cultural), “o tradutor escolhe, em muitos casos, uma referência linguística muito próxima do original, aumentando sua compreensão ao oferecer uma versão da língua alvo que ainda pode ser reconhecida como pertencente ao sistema cultural do texto fonte” (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 197). A explicação extratextual refere-se a quando o tradutor conserva o ICE, mas “considera necessário oferecer alguma explicação do significado ou implicações do ICE”, mas não o faz no corpo do texto (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 198); e a explicação intratextual acontece quando “os tradutores acham que podem ou devem incluir seu comentário em uma parte indistinta do texto, geralmente para não atrapalhar a atenção do leitor” (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 198).

A primeira estratégia de natureza substitutiva citada por Franco Aixelá (2013, p. 199)FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013. é o uso de sinônimos, utilizados, principalmente, “para evitar repetir o ICE”. Diferentes conotações de palavras podem ser oferecidas através de diferentes sinônimos. A universalização limitada, também de caráter substitutivo, ocorre quando “os tradutores acham que o ICE é muito obscuro para seus leitores ou que há um outro, mais comum, e decide substituí-lo”, porém eles ainda procuram um termo cultural do polo de partida, só que menos obscuro e específico (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 199); e no caso da universalização absoluta, “os tradutores não encontram um ICE mais conhecido ou preferem apagar quaisquer conotações estrangeiras e escolher uma referência neutra para seus leitores” (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 199). Outro procedimento substitutivo é a naturalização, que acontece quando “o tradutor decide trazer o ICE para o corpus intertextual visto como específico pela cultura da língua alvo” (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 200). No extremo do espectro substitutivo de estratégias para tratar os ICEs estão a eliminação – “os tradutores consideram o ICE inaceitável nos níveis ideológico ou estilístico [...] ou, ainda, que é muito obscuro” e, por isso, preferem omiti-lo (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 200); e a criação autônoma – “em que os tradutores decidem que poderia ser interessante colocar algumas referências culturais não existentes no texto fonte para seus leitores” (FRANCO AIXELÁ, 2013FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., p. 200). São mecanismos mais radicais e menos utilizados do que os outros.

Além dos procedimentos de Franco Aixelá que discutimos, também utilizaremos na análise a estratégia tradução explicativa, elaborada por Bentes (2005)BENTES, C. M. Clifford Landers – Tradutor do Brasil. 2005. Tese (Programa de Pós-Graduação em Letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. ao reformular a categorização do autor. Esse tipo de procedimento pode tensionar as linhas entre conservação e substituição. Como veremos, diante da dinamicidade a que subjaz a atividade tradutória, diferentes circunstâncias desafiam qualquer linearidade e rigidez, de modo que escolhas tradutórias que favoreçam a aplicação de uma combinação de estratégias são necessárias.

A coleta de dados foi realizada, inicialmente, com a leitura e a interpretação dos contos originais e das traduções, de modo a identificar os ICEs e as estratégias tradutórias utilizadas na versão em inglês. Com a coleta, computamos os ICEs ao longo da antologia, a partir de nossa perspectiva e interpretação acerca dos itens em potencial, assim como identificamos as estratégias utilizadas, no intuito de percebermos as recorrências e as regularidades de aplicação de ICEs, estabelecendo os critérios de delimitação dos dados. Esse processo foi realizado seguindo a ordem das seções dos contos. Foram identificados 171 ICEs ao longo da antologia. Dentre esses, encontramos termos culturais específicos referentes a feriados, letras de músicas brasileiras, religiões, comidas, bebidas, livros, nomes de lugares, como bares, instituições e bairros. As ocorrências de tais ICEs não se configuram como recorrentes ao longo das oito seções. Identificamos, todavia, o aparecimento regular na antologia de três categorias:

  • 1ª Nomes próprios literários: 16 ICEs

  • 2ª Expressões idiomáticas: 27 ICEs

  • 3ª Expressões criadas pela autora (a partir de referências culturais existentes): 18 ICEs

As duas primeiras categorias são contempladas por Franco Aixelá (2013)FRANCO AIXELÁ, J. Itens Culturais-Específicos em Tradução. Tradução de Mayara Matsu Marinho e Roseni Silva. In-Traduções, Florianópolis, v. 5, n. 8, p.185-218, 2013., como vimos. No presente artigo, analisaremos, especificamente, a categoria acrescentada, “Expressões criadas pela autora (a partir de referências culturais existentes)”, devido à recorrência desse tipo de expressões nos contos e também por ser uma categoria simbólica dos procedimentos estilísticos clariceanos.

Como procedimentos de análise, elencamos: i) organização analítica a partir de estratégias de tradução dos ICEs; ii) investigação acerca dos sentidos produzidos pelo termo na língua portuguesa; iii) reflexão sobre as repercussões dos efeitos culturais e de sentido produzidos na tradução a partir das estratégias utilizadas.

A seguir, voltaremos nosso olhar para algumas ocorrências de expressões criadas por Clarice, de modo a analisar as estratégias utilizadas na tradução.

5. Estratégias de Tradução de Itens Clariceanos-Específicos

Algumas personagens clariceanas, ao tentarem empreender uma ruptura com a simulação existencial, acabam esbarrando na linguagem comum, cristalizada – uma materialização linguística dos desafios que caracterizam a busca pela autenticidade. Ao mencionar o uso de expressões petrificadas da língua na escrita clariceana, Waldman (1992, p. 145)WALDMAN, B. Clarice Lispector: a paixão segundo C. L. São Paulo: Editora Escuta, 1992. sugere que “o uso moderno do clichê ou das máximas pode funcionar como dique à fantasia de autenticidade absoluta do EU [...]”. Percebemos nas personagens dos contos essa busca por originalidade, sendo muitas vezes frustrada pelo regresso ao lugar-comum. A linguagem comum – “reserva de bens acumuláveis, estalão dos valores estereotipados, (clichês verbais)” (NUNES, 1995NUNES, B. O drama da linguagem. São Paulo: Editora Ática, 1995., p. 110) – é, por um lado, um artifício que, a partir de nossa interpretação, pode ser utilizado no texto de partida para ilustrar a impossibilidade de ser e a inevitabilidade de simular, de reproduzir. Por outro lado, a tentativa de alcançar a autenticidade pode ser percebida através dos movimentos escorregadios da escrita clariceana, como a criação de palavras. Dessa forma, esse artifício pode funcionar no texto como um esforço para romper com a simulação existencial das personagens (NUNES, 1995NUNES, B. O drama da linguagem. São Paulo: Editora Ática, 1995.).

Essas novas palavras ou expressões são desenvolvidas a partir de morfemas e referências culturais já existentes na língua. Em certas ocorrências, palavras ou frases idiomáticas com um sentido estabilizado são manipuladas e utilizadas com um sentido ou função diferente, causando um efeito de opacidade e deslizamento na leitura. Já outros neologismos clariceanos são o resultado da derivação de nomes de lugares e de pessoas. Devido ao caráter de inexistência e/ou disparidade de tais termos com relação à cultura de chegada, percebemos a necessidade de contemplá-los nesta análise.

Ao comentar sobre a tradução de itens-clariceanos específicos na palestra Rediscovering Clarice Lispector, Dodson (2017b)DODSON, K. Rediscovering Clarice Lispector. 2017b. (57:23 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rpLGS1vWsGM. Acesso em: 11 nov. 2021.
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relata que foi desafiador discernir algumas vezes se determinada expressão já existia de forma estabilizada na língua portuguesa, ou se seria um caso de invenção clariceana, uma vez que através de sua escrita engenhosa, Clarice faz expressões criadas soarem como cristalizadas. Em uma entrevista, a tradutora reitera esse aspecto do processo de traduzir os contos: “Um grande desafio em traduzi-la foi acertar quando ela estava inventando ou deformando uma frase ou palavra, e quando a linguagem participava em formas já conhecidas em português” (DODSON, 2015DODSON, K. Um mundo estranho e maravilhoso – quatro perguntas a Katrina Dodson. [Entrevista cedida a] Equipe IMS. Blog IMS. 31 out. 2015. Disponível em: https://blogdoims.com.br/um-mundo-estranho-e-maravilhoso/. Acesso em: 18 nov. 2021.
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). É significativo pensar a respeito de como, para quem faz parte da cultura do texto de partida, a percepção de quando tais desvios ocorrem é mais orgânica. A tradutora, que é estadunidense, tem a intricada tarefa de identificar e interpretar o que é estabilizado e o que é manipulado na escrita clariceana, de modo a oferecer uma tradução que acompanhe, ou não, esses movimentos deslizantes. Dessa forma, a tradução pode oferecer ao leitor do texto em inglês acesso a essa especificidade da escrita clariceana. No gráfico a seguir, podemos observar quais estratégias foram mais e menos utilizadas nessa categoria de ICEs.

Gráfico 1
Estratégias utilizadas na tradução de expressões criadas pela autora

Como verificamos no gráfico acima, encontramos no texto de chegada uma considerável variedade de estratégias para lidar com esse tipo de itens culturais-específicos. A variedade de procedimentos empregados aponta para o desafio de tradução que tais expressões representam. Observamos que as estratégias estrangeirizadoras foram mais utilizadas e a mais presente, com 8 ocorrências, foi a tradução linguística/literal. Apenas 1 neologismo clariceano foi repetido. No domínio das estratégias domesticadoras, com 4 ocorrências, a tradução explicativa também foi aplicada. No entanto, é importante lembrar que a tradução explicativa pode, às vezes, assumir um caráter híbrido entre estrangeirização e domesticação (VENUTI, 2008VENUTI, L. The Translator’s Invisibility: A History of Translation. Londres e Nova York: Routledge, 2008.), uma vez que há a possibilidade de o tradutor utilizar termos explicativos e, ainda assim, manter, de alguma forma, um diálogo com a expressão do texto de partida. Também identificamos momentos na tradução em que a expressão criada foi substituída por outra que soasse natural para a cultura de chegada, através do mecanismo da naturalização, utilizado 3 vezes. Verificamos ainda que, em 2 casos, ocorreu a combinação de duas estratégias tradutórias: a tradução linguística/literal e a criação autônoma. Por meio desse procedimento, a tradutora recria o neologismo clariceano em inglês e, assim, imprime a marca de sua interpretação e criação. O texto de chegada oferece, por meio desse recurso, referências culturais/linguísticas que não estão presentes na expressão do texto de partida. Ao mesmo tempo, observamos um esforço em tentar manter uma aproximação com o termo em português. Vejamos como algumas dessas estratégias foram utilizadas.

Em Happy birthday/Feliz aniversário, acompanhamos a descrição do desprezo que uma matriarca sente pelos seus descendentes, que para ela são fracos e medíocres. Ela os descreve da seguinte forma: “Todos aqueles seus filhos e netos e bisnetos que não passavam de carne de seu joelho, pensou de repente como se cuspisse. Rodrigo, o neto de sete anos, era o único a ser a carne de seu coração” (LISPECTOR, 2016LISPECTOR, C. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016., p. 185). As expressões carne do joelho e carne do coração são elaboradas por Clarice com base em uma expressão familiar: carne da minha carne. O jogo de palavras que ela faz, no entanto, cria outras nuances de sentido.

Quadro 1
Ocorrência dos ICEs flesh of her knee; flesh of her heart/carne de seu joelho; carne de seu coração

Em contraste ao coração, elemento que simboliza a afetividade, o joelho pode configurar-se nesse texto em um elemento de afastamento, de apatia. Como também é possível que a expressão seja produto de um efeito de deslocamento simbólico: a carne do joelho é fibrosa, já a do coração, macia. Utilizar as construções carne do joelho e carne do coração em uma tradução pode gerar um estranhamento. Como observamos no Quadro 1, Dodson traduz linguisticamente/literalmente a expressão, de modo a conservar as imagens construídas em português.

O leitor da cultura receptora encontrará no texto de chegada as imagens mentais de carne do joelho e carne do coração e poderá se familiarizar com o estilo desfamiliarizante de escrita clariceano. O recorrente emprego da estratégia da tradução literal revela, assim, o esforço da tradutora em tentar colocar o leitor da tradução em contato com os neologismos dos contos. Ao comentar sobre seu processo de escolhas ao lidar com expressões desse tipo, Dodson (2015)DODSON, K. Um mundo estranho e maravilhoso – quatro perguntas a Katrina Dodson. [Entrevista cedida a] Equipe IMS. Blog IMS. 31 out. 2015. Disponível em: https://blogdoims.com.br/um-mundo-estranho-e-maravilhoso/. Acesso em: 18 nov. 2021.
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explica: “eu resistia ao desejo de escrever algo mais compreensível ou de simplesmente cortar o inexplicável, como foi feito nas traduções anteriores. Prefiro deixar o mistério aberto, mesmo se incomodar o leitor. Assim fica mais clariceano”. Tirar o leitor do texto de chegada de sua zona de conforto e colocá-lo numa posição de incômodo: trata-se de um posicionamento audacioso, dadas as implicações envolvidas em uma tradução para uma língua que ocupa uma posição central no sistema literário. Ao mesmo tempo, Dodson (2017a)DODSON, K. Katrina Dodson, Author & Translator. [Entrevista cedida a] Lauren Kinney. Lunch Ticket. 2017a. Disponível em: https://lunchticket.org/katrina-dodson-author-translator/. Acesso em: 17 nov. 2021.
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afirma que retraduzir muitos dos contos garantiu uma liberdade maior para tentar aderir-se ao estilo da autora quando ela se desviava do português padrão. Cerca de dois terços dos contos já haviam sido traduzidos para o inglês.

A expressão carne de seu joelho, por exemplo, foi anteriormente traduzida por Pontiero (LISPECTOR, 1984LISPECTOR, C. Family Ties. Tradução de Giovanni Pontiero. Texas: University of Texas Press, 1984.) como flesh of her flesh ou carne de sua carne: uma escolha que pode neutralizar o caráter de estranhamento da expressão em português. Portanto, há uma preocupação na tradução da antologia (e no projeto da qual faz parte) em retraduzir expressões caracterizadas por desvios da escrita clariceana que foram mitigados em traduções anteriores. No texto Understanding is the proof of error, Dodson (2018, tradução nossa[3])DODSON, K. Understanding is the Proof of Error. The Believer Magazine. Las Vegas, Issue One Hundred Nineteen, 11 jul. 2018. Disponível em: https://believermag.com/understanding-is-the-proof-of-error/. Acesso em: 17 nov. 2021.
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confirma tal interesse: “Apenas as obras mais célebres são traduzidas várias vezes para o inglês, e essa foi uma oportunidade rara de recuperar a força singular da originalidade de Lispector”. Essa fala também nos revela que a posição de relevância que Clarice ocupa no sistema literário brasileiro teve uma influência significativa nas escolhas de tradução estrangeirizadoras. Como veremos mais à frente, esse esforço de recuperar as formas desviantes do texto clariceano nem sempre foi possível.

Em For the time being/Por enquanto, da seção “A via crucis do corpo”, Clarice explora o tempo e os instantes que escapam através de elementos como a monotonia, o vazio e de como “morremos” às vezes ao longo da vida: “Viver tem dessas coisas: de vez em quando se fica a zero. E tudo isso é por enquanto. Enquanto se vive. [...] Como acordo quem está dormindo? como chamo quem eu quero chamar? o que fazer?” (LISPECTOR, 2016LISPECTOR, C. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016., p. 560-561). Como se fica a zero? Como traduzir a ideia de se ficar a zero?

Quadro 2
Ocorrência do ICE hit zero/ficar a zero

Ficar é uma expressão problemática para se traduzir para o inglês, uma vez que o leque semântico gerado pela palavra é bastante amplo. Pensar no que seria ficar na expressão ficar a zero, nesse domínio da escrita clariceana, amplia o desafio. A tradutora mantém a maior parte dos elementos da expressão e escolhe traduzir ficar como hit ou atingir – atingir zero. A escolha por utilizar o termo atingir confere à construção clariceana uma ideia de percurso para se chegar ao zero; enquanto que ficar a zero supõe um ponto estático. Entendemos tal alternativa como uma tradução explicativa, pois embora a expressão traduzida esteja próxima ao ICE original, o texto de chegada a deixa mais palatável ao oferecer a interpretação que vimos de ficar. Logo, temos aqui uma estratégia entre as possibilidades de estrangeirização e domesticação.

Como mencionamos anteriormente, em 2 casos ocorreu uma combinação de duas estratégias: a tradução linguística/literal e a criação autônoma. Tais estratégias combinadas unem o caráter conservativo e substitutivo da tradução, o que aponta mais uma vez para a dinamicidade da atividade tradutória, que é escorregadia e, muitas vezes, não se conforma às polarizações. Vejamos esses dois casos em dois contos diferentes.

Quadro 3
Ocorrência do ICE fantasticize/fantasticar
Quadro 4
Ocorrência do ICE extragantic/extrósima

No conto Daydream and drunkenness of a young lady/Devaneio e embriaguez duma rapariga, a personagem, que passa por um momento de inquietação e começa a pensar freneticamente sobre si, começa a fantasticar, a fantasticar em um certo momento da narrativa. É válido pontuar que essa personagem está em uma busca inicial da superação do lugar-comum. A expressão fantasticar, que embora não esteja estabilizada no domínio linguístico da língua portuguesa, produz imagens e conexões mentais que nos fazem ter uma noção do que a autora quis dizer. Aqui, a autora transforma o substantivo fantástico em verbo através do sufixo verbal -ar. Ao manipular referências existentes, o texto de partida alcança um efeito de sentido (deslocamento do lugar-comum) que talvez não poderia ser expresso, caso fosse utilizada uma expressão culturalmente estabilizada. No tratamento desse ICE, a estratégia empregada é a tradução literal, cujo resultado é uma nova palavra no texto de chegada.

Como observamos no Quadro 3, Dodson recorre a um procedimento engenhoso e emprega um recurso de criação parecido ao utilizado por Clarice ao formular a expressão fantasticize em inglês: ela transforma fantastic em verbo por meio do sufixo -ize. Dessa forma, a tradutora mantém a estranheza da prosa de Clarice por fazer uma escolha pouco usual, uma vez que ela poderia optar por uma opção mais segura – fantasize (fantasiar). Ao mesmo tempo, ela dá a oportunidade para que o leitor em inglês perceba que há um desvio linguístico, um exotismo, mas que em sua própria língua ele possa fazer inferências de sentido. Ao discutir escolhas como essa, Dodson (2017a)DODSON, K. Katrina Dodson, Author & Translator. [Entrevista cedida a] Lauren Kinney. Lunch Ticket. 2017a. Disponível em: https://lunchticket.org/katrina-dodson-author-translator/. Acesso em: 17 nov. 2021.
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revela seu receio de que pudessem achar que ela tivesse cometido um erro, mas que é necessário confiar no possível efeito pretendido pelo autor. Sobre o processo de tradução cultural, Burke (2009, p. 16)BURKE, P. Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna. In: BURKE, P.; HSIA, R. P. (orgs.). A tradução cultural. São Paulo: Editora UNESP, 2009. salienta: “Para o receptor, ele é uma forma de ganho, enriquecendo a cultura hospedeira em resultado de uma adaptação hábil”. Ao formular uma nova palavra na língua inglesa, a tradutora contribui para tal enriquecimento.

No caso da palavra extrósima, encontrada no conto Brasília/Brasília, a tradutora, como verificamos no Quadro 4, traduz o prefixo extra literalmente e opta por fornecer sua interpretação do sentido do segundo componente da palavra, de modo a recriá-lo. Tal procedimento gera na tradução a criação de uma palavra em inglês: extragantic. Percebemos que o termo extrósima é marcado por uma opacidade maior do que fantasticar, de modo que nem Clarice, e tão pouco o leitor do texto de partida, ‘sabem o que quer dizer’ a palavra. Mas é necessário que a tradutora forneça uma versão dessa palavra para o texto de chegada, a partir de sua interpretação desse item clariceano-específico. A tradução escolhida por Dodson, extragantic, é resultado da junção de extra, sufixo que pode funcionar como superlativizante (HOUAISS; VILLAR, 2001HOUAISS, A.; VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva: 2001.), e gigantic, ou gigantesco. A tradutora opta, dessa maneira, por um termo que faz referência ao tamanho, à grandiosidade de Brasília. A expressão em inglês, embora acompanhe o ritmo de ruptura do texto de partida, por se tratar de uma palavra não estabilizada, é mais transparente do que “extrósima”, uma vez que sinaliza para uma leitura sobre a dimensão da cidade.

Já no âmbito das estratégias domesticadoras, encontramos na tradução expressões culturalmente estabilizadas na cultura de chegada para substituir expressões criadas pela autora. No conto A full afternoon/Uma tarde plena, o dia da protagonista é marcado pela imagem de um sagui: “Essa mulher era, aliás, um pouco silenciosa para si mesma e não se entendia muito bem consigo própria. Mas assim é. E jamais se soube de um sagui que tenha deixado de nascer, viver e morrer – só por não se entender ou não ser entendido” (LISPECTOR, 2016LISPECTOR, C. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016., p. 517). Para se referir à pequenez do animal, Clarice utiliza o termo minimeza.

Quadro 5
Ocorrência do ICE itty-bitty thing/minimeza

A escolha por substituir o termo criado por um termo estabilizado mantém a relação de sentido entre ambos e pode provocar um senso de familiaridade na leitura da tradução. Percebemos que há um movimento inverso na categoria de expressões comuns. Na tradução de expressões idiomáticas, verificamos a utilização de termos não estabilizados na cultura de chegada: construções linguísticas que podem soar exóticas e, portanto, atribuídas à natureza inovadora dos textos de Clarice. Já em certos momentos, na tradução de expressões que, de fato, são produto dos padrões estilísticos de engenhosidade clariceanos, ocorre a naturalização, de modo que o que foi produzido como inovador, pode ser visto como estabilizado.

6. Domesticando e Estrangeirizando os Sentidos de Clarice

No campo das expressões criadas pela autora, a partir de referências culturais existentes, verificamos no texto de chegada diferentes escolhas dentro do espectro estrangeirizador e domesticador, com uma tendência mais forte para estratégias estrangeirizadoras. Na maioria das vezes, o ICE é traduzido para o inglês sem alterar as imagens mentais construídas por Clarice, através da tradução literal do termo para o inglês. Tal direção permite que os desvios linguísticos clariceanos, que dobram a língua para alcançar flashes de sentido que beiram ao indizível, venham à tona na tradução. Tais escolhas foram influenciadas por fatores tais como traduções anteriores e a posição canônica da obra clariceana.

Observamos, ainda, na combinação de estratégias estrangeirizadoras e domesticadoras, a marca de autoria da tradutora ao tentar acompanhar os possíveis efeitos de sentido do texto clariceano por criar uma nova expressão na língua inglesa. Acompanhamos um sujeito tradutor que se desdobra entre uma posição de tradutor/autor. Ademais, ao desafiar as expectativas para uma tradução em um sistema literário estável (EVEN-ZOHAR, 1990EVEN-ZOHAR, I. Polysystem Studies. Poetics Today, Durham, v. 11, n. 1, p. 1-268, 1990.), o de língua inglesa, por apostar em uma tradução mais estrangeirizadora em alguns níveis, Moser e Dodson tensionam as posições de centro e periferia do polissistema literário.

Ao refletir sobre a tradução dessas expressões, nos deparamos com a questão de como traduzir o indizível através do familiar, da linguagem estabilizada. Clarice empurra as palavras até a margem, um esforço verbal que, muitas vezes, esbarra na impossibilidade. Como mencionamos, através dos itens culturais-específicos, entendemos que a autora utiliza o culturalmente estabilizado para refletir uma condição de estaticidade de suas personagens – presas ao lugar-comum. Na tentativa de fazê-las transcender esse aprisionamento, vimos como Clarice transforma itens culturais-específicos em itens clariceanos-específicos, por manipular referências culturais existentes e por dar vida a novas expressões. Na voz clariceana, reconhecemos o familiar e nos reconhecemos, como também nos deparamos com o novo e com o outro na sua forma mais marginalizada. Tal processo de criação se assemelha ao processo de tradução, onde o agente tradutor pode trazer à tona na sua produção o desconhecido e o familiar. Como tradutora de experiências, Clarice não fez concessões, como assegurou em sua memorável entrevista à TV Cultura em 1977 (LISPECTOR, 2012dLISPECTOR, C. Panorama com Clarice Lispector. 2012d. (28:31 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU. Acesso em: 09 dez 2021.
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). Portanto, o efeito de estranhamento é potencializado em seus textos, o que dificulta uma posição de conforto.

Esse jogo linguístico entre familiar e estranho também é encontrado na tradução dos contos para o inglês. Dodson não precisou apenas ouvir as diferentes vozes clariceanas. Precisou, também, reinterpretá-las para uma nova cultura. Ao finalizar sua nota presente em The Complete Stories (LISPECTOR, 2015LISPECTOR, C. The Complete Stories. Tradução de Katrina Dodson. Nova York: New Directions, 2015.), a tradutora relata que no texto de chegada ofereceu a versão de Clarice que melhor escutou. Para tanto, dentro dos limites que restringem o processo de tradução, a tradutora escolheu, em alguns momentos, fazer concessões à cultura receptora através de estratégias domesticadoras. No âmbito das expressões criadas por Clarice a partir de referências culturais existentes, quando estratégias tradutórias substitutivas são adotadas, o aspecto de estranhamento da criação, tão fundamental do texto clariceano, é, possivelmente, amenizado. O leitor da cultura de partida pisca duas vezes ao se deparar com o neologismo. A substituição da criação pode criar um efeito de homogeneidade e fluidez no texto de chegada. No entanto, observamos que esse tipo de estratégia foi utilizado em menor número na tradução dos itens clariceanos-específicos.

Ao longo da antologia, percebemos como Dodson, através de sua interpretação criativa, procura refazer o percurso acidentado da escrita de Clarice por priorizar a utilização de estratégias conservadoras, especialmente ao traduzir essas expressões criadas pela autora. Vimos que, nessa categoria de expressões, as traduções dos termos refletem tentativas de trazer à luz os desvios do texto em português no texto em inglês. Seja por repetir, traduzir literalmente ou por criar a partir da criação clariceana, a tradutora coloca em evidência a voz da autora através da sua. Dessa forma, sua voz também se faz presente. E nem sempre é sobre alterar ou conservar, mas sim sobre dialogar com as referências do texto de partida. Nesse processo, enxergamos vestígios de um agente que se desdobra entre interpretação de sentidos e criação de sentidos outros e que consegue, em muitos lugares, empurrar a língua inglesa até a margem para produzir o efeito de vertigem tão característico das histórias originais. A tradução acolhe, assim, o estrangeiro através do que Ricoeur (2012, p. 30)RICOEUR, P. Sobre a tradução. Tradução de Patrícia Lavelle. Belo Horizonte: Editora UFMG: 2012. chama de hospitalidade linguística: “onde o prazer de habitar a língua do outro é compensado pelo prazer de receber em casa, na acolhida de sua própria morada, a palavra do estrangeiro”.

Fatores como o prestígio da obra na cultura de partida, o interesse em resgatar nuances da escrita da autora perdidas em traduções anteriores e a pretensão do projeto de tradução do qual a antologia faz parte de produzir uma voz “unificada” em inglês para Clarice influenciaram a orientação conservadora da tradução. Tal orientação contribuiu para produzir um efeito de visibilidade da tradutora na cultura de chegada. Ao trazer à tona as imprevisibilidades presentes no texto original, Dodson não se anula. Antes, ela evidencia a dimensão e a complexidade de seu trabalho ao dar voz à Clarice que melhor escutou. A possibilidade de estrangeirizar Clarice e o prestígio que essa tradução conquistou também nos fazem refletir sobre o crescente espaço que autores traduzidos têm granjeado no sistema literário de língua inglesa. Entendemos, ainda, que as escolhas empregadas em The Complete Stories (LISPECTOR, 2015LISPECTOR, C. The Complete Stories. Tradução de Katrina Dodson. Nova York: New Directions, 2015.) ampliam o repertório de possibilidades da língua inglesa nessas situações e desafiam os repertórios existentes.

Clarice Lispector continuará a ser ouvida em diferentes línguas. Sua voz continuará a ressoar e a cruzar fronteiras de diferentes sistemas literários com a ajuda da prática da tradução. E como traduzir a escrita extrósima da autora? Talvez a melhor abordagem seja aproximar-se da Clarice brasileira – tentar transformá-la em carne do coração e não carne do joelho do leitor estrangeiro.

Agradecimento

Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, através do Programa de Pós-graduação em Linguagem e Ensino (PPGLE), da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG.

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    The translator is more like an actor or a musician (a performer) than like a tape recorder” (ROBINSON, 2003ROBINSON, D. Becoming a Translator: An Introduction to the Theory and Practice of Translation. Oxford: Routledge, 2003., p. 35).
  • 2
    How a text is selected for translation, [...] what role the translator plays in that selection, what role an editor, publisher or patron plays, what criteria determitne the strategies that will be employed by the translator, how a text might be received in the target system” (BASSNETT, 1988BASSNETT, S. The Translation Turn in Cultural Studies. In: BASSNETT, S.; LEFEVERE, A. Constructing Cultures: Essays on Literary Translation. Trowbridge: Cromwell Press, 1988., p. 123).
  • 3
    Only the most celebrated works receive multiple translations into English, and this was a rare opportunity to recuperate the singular force of Lispector’s originality” (DODSON, 2018DODSON, K. Understanding is the Proof of Error. The Believer Magazine. Las Vegas, Issue One Hundred Nineteen, 11 jul. 2018. Disponível em: https://believermag.com/understanding-is-the-proof-of-error/. Acesso em: 17 nov. 2021.
    https://believermag.com/understanding-is...
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2021
  • Aceito
    18 Out 2021
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