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SEXISMO COTIDIANO BANAL E PERSISTENTE NA POLÍTICA BRASILEIRA

DAILY BANAL AND PERSISTENT SEXISM IN BRAZILIAN POLITICS

Resumo

Os estudos de gênero cultural e a pesquisa feminista têm contribuído de diversas formas para a conscientização sobre questões de identidades de gênero, discriminação e exclusão. Na sociedade pós-moderna, no entanto, esses ‘ismos’ ainda estão presentes tanto em discursos institucionais como em privados. Em muitas partes do mundo, e no Brasil principalmente, há um retrocesso considerável em termos de visões conservadoras sobre questões de gênero social, materializadas em diferentes formas semióticas de se fazer sentidos. O objetivo principal deste artigo é o de discutir as maneiras sutis pelas quais o sexismo banal e a violência linguística são manifestadas em práticas político-discursivas. Combinando ferramentas teóricas da Análise Crítica do Discurso e da Análise Semiótica, discutirei os insultos contra mulheres e minorias produzidos pelo atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

Palavras-chave:
sexismo; análise crítica; violência linguística

Abstract

In the last decades, cultural gender and feminist studies have significantly contributed to different forms of awareness about questions of gender identities, discrimination, and exclusion in postmodern societies. However, these ‘isms’ are still present in many forms of institutional and private discourses. In many parts of the world, and especially in Brazil, there is a considerable backlash in terms of conservative visions about social gender, materialised in different semiotic forms of meaning making. The main objective of this paper is to discuss the subtle ways in which banal sexism and linguistic violence are encoded in political discursive practices. Using Critical Discourse Analysis as my theoretical tool, I will discuss insults against women and minorities produced by the current President of Brazil, Jair Bolsonaro.

Keywords
sexism; critical analysis; linguistic violence

Introdução: exclusão e sexismo

Quem quiser vir aqui [ao Brasil] fazer sexo com uma mulher, fique à vontade

Os Estudos de Gênero Cultural têm evoluído significativamente nas últimas décadas e a pesquisa feminista tem contribuído de diversas formas para a conscientização de questões de discurso e gênero cultural. Muitos dos tópicos abordados em círculos discursivos durante a segunda metade do século 20, no entanto, ainda permanecem constantes na sociedade pós-moderna e sexismo, machismo, racismo, homofobia e idadismo estão presentes tanto em discursos institucionais como em privados. Em muitas partes do mundo, há um retrocesso (backlash) (FALUDI, 1992FALUDI, S. Backlash: the undeclared war against women. Londres: Chatto & Windus, 1992.) em termos de visões conservadoras sobre identidades de gênero, materializadas em diferentes manifestações semióticas. Como consequência, uma preocupante influência política se instaura com o objetivo de restringir leis sobre o aborto, uniões entre pessoas, educação, saúde, entre outras áreas.

Para estudiosas da semiótica social e da linguagem, a depreciação linguística é um tópico central que precisa de constante atenção e pesquisa, já que continua a coexistir com outras assimetrias sociais. No presente momento brasileiro de turbulência social, exemplos de violência verbal aparecem diariamente na mídia, nas interações sociais e em representações visuais. Certos grupos de pessoas, especialmente as ‘maiorias minoritárias’ como mulheres e pessoas racializadas, e pessoas LGBTQIA+ são excluídas não só de práticas sociais, mas também de interações e textos. Homens brancos historicamente têm o poder em sociedade, pois recebem tratamentos especiais em quase todas as instituições públicas e privadas, assim como têm o acesso indiscriminado à ‘fala’. A maioria minoritária, por outro lado, foi e ainda é silenciada em muitos âmbitos sociais, e escolhas linguísticas usadas em relação a estas pessoas muitas vezes apontam para processos excludentes. Por exemplo, quando mulheres escutam a frase ‘Isso é coisa de mulherzinha’, a ofensa está estabelecida pelo que foi dito. Assim, a linguagem pode ser uma arma e machucar profundamente as pessoas.

Recentemente o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, em público, ordenou “Cala a boca” para uma repórter do jornal Folha de São Paulo, tentando marcar assim seu poder de fala e sua superioridade, e explicitamente silenciando a jornalista. A linguagem, portanto, como ‘arma’, é um dos sistemas pelos quais a discriminação se materializa dia após dia. É também através da linguagem que estereótipos e relações assimétricas são construídas. Frases como “A ministra é muito inteligente, apesar de ser mulher”, “Olha ali o travecão” ou “O lugar da mulher é na cozinha” conceitualizam o papel das pessoas referidas como hierarquicamente inferiores. E isto é sexismo.

Nas práticas sociais em geral, há uma evidente sub-representação feminina em muitas áreas de poder. Nas recentes eleições de 2020, por exemplo, apesar das quotas de financiamento e apesar das mulheres serem 52,5% do eleitorado, houve um aumento tímido da sua participação na política representativa. Representaram apenas 33,3% do total de candidaturas, para prefeita, vice-prefeita ou vereadora. De acordo com a Agência Câmara de Notícias e a Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados,

Foram pouco mais de 522 mil pedidos de registro de candidatura, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), sendo cerca de 183 mil de mulheres. Mesmo abaixo de uma real representação da população brasileira, esses dados são um recorde para as eleições municipais: em 2016, as candidaturas femininas foram 31,9% do total e, em 2012, 31,5%.

Nas constantes representações visuais do atual governo brasileiro, como no exemplo abaixo, composto majoritariamente por homens, o tipo de imagem a que estamos expostas/os diariamente reforça a situação de exclusão feminina na política e na governança:

Figura 1
28/09/2020

Nesta imagem, atores sociais (VAN LEEUWEN, 1996VAN LEEUWEN, T. The representation of social actors. In: CALDAS-COULTHARD, C. R.; COULTHARD, M. (org). Text and practices: readings in critical discourse analysis. Londres: Routledge, 1996. p. 32-70., 2008VAN LEEUWEN, T. Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. Nova York: Oxford University Press, 2008.) exclusivamente masculinos rodeiam o presidente e representam o poder da política brasileira atual, onde poucas são as mulheres que atuam em posições de decisão política e governamental. Contextualmente, suas gravatas, ternos e camisas quase iguais significam o ‘rebanho’ dominado pela figura mais proeminente do presidente, que interage diretamente com a câmera, interpelando com sucesso seus espectadores/seguidores.

Assim como no mundo político, há sub-representação feminina e de grupos majoritários em instituições em geral (CALDAS-COULTHARD, 2019CALDAS-COULTHARD, C. R. Mulheres públicas: poder, representações semióticas e gênero. Discurso & Sociedad, v. 13, n. 1, p. 29-50, 2019.). Globalmente falando, o número de mulheres que ocupam top jobs é ainda muito pequeno e a liderança feminina continua a ser um assunto problemático. Mulheres em altos cargos profissionais progridem em suas carreiras menos que seus companheiros masculinos mesmo que atuem estrategicamente da mesma forma que os homens, pois sempre encontram um ‘teto de vidro’ invisível (glass ceiling barrier) ou uma limitação velada à ascensão profissional feminina no interior das organizações. O teto é invisível porque não existem leis ou dispositivos sociais estabelecidos e oficiais que imponham uma limitação explícita ao desenvolvimento profissional das mulheres. Apesar de se equipararem aos homens, tanto em capacidade quanto em competência profissional, muitas mulheres ainda estão sujeitas a encarar as diferenças salariais em âmbito empresarial, especialmente no que diz respeito às contratações para cargos de chefia. Isto já é chamado de gender gap, ou a diferença entre a maneira que homens e mulheres são tratadas/os em sociedade. O nível baixo dos salários de mulheres continua a ser um grande problema social e as mulheres profissionais protestam insistentemente contra esta disparidade.

Um dado linguístico muito importante nesta discrepância de papéis sociais é o que aponta Cameron (2020b)CAMERON, D. The gender respect gap. In: CALDAS-COULTHARD, C. R. Innovations and challenges: women, language and sexism. Londres: Routledge, 2020b. p. 19-33.. Para a autora, mulheres não têm direito ao mesmo nível de respeito linguístico (ser nomeadas de acordo com sua posição acadêmica e social - de Dra., presidenta, ministra). Estes títulos são normalmente atribuídos aos homens com semelhante prestígio em contextos profissionais. A diferença em nomeação (ou titulação) é chamada por Cameron de ‘disparidade de respeito de gênero’ (gender respect gap). A disparidade de formas de tratamento normaliza uma forma de sexismo cotidiano banal por ser praticamente invisível para a maioria das pessoas. Há sem dúvida uma tendência de homens não reconhecerem a profissional feminina pela maneira que as denominam (em vez de ‘Doutora’, ‘você’).

Um exemplo introdutório final e bastante esclarecedor da exclusão real e da representação feminina nas sociedades é o fato peculiar, como aponta a Folha de São Paulo (05/12/2020), segundo um levantamento feito a partir de uma lista fornecida pelo Departamento de Patrimônio Histórico, que dos 367 monumentos representando imagens humanas no espaço público da cidade de São Paulo, 173 homenageiam figuras masculinas e 45 são personagens femininas, ou cerca de 12% do total de 367 monumentos da cidade. As estátuas de figuras masculinas são 173, correspondendo a cerca de 47% do total desses monumentos. Só 6 das 45 estátuas femininas são dedicadas a mulheres que de fato existiram, cerca de 13%, já que as outras estátuas femininas são de mulheres genéricas, muitas da mitologia clássica - Diana, Anfitrite, Aurora, etc. É menos que o número de donzelas nuas - 12. (Folha de São Paulo, 06/12/2020)

Assim, todas as exclusões das mulheres nas diversas práticas sociais apontam para o sexismo estrutural e banal que permeia as relações humanas. Isto porque há processos atributivos que marcam posições de gênero desnecessárias na identificação das atoras sociais. Esta ‘generificação’, feita através de escolhas semióticas, diferencia as mulheres e outros grupos majoritários de homens, principalmente em posições de poder.

A depreciação linguística e visual pela feminização, sexualização e avaliação negativa (WHITE, 2001WHITE, P. R. Appraisal: an overview. Disponível em: https://www.grammatics.com/appraisal/appraisalguide/unframed/appraisal-overview.htm. Acesso em: 2001.
https://www.grammatics.com/appraisal/app...
) reafirma as pesquisas das primeiras feministas (SPENDER, 1980SPENDER, D. Man made language. Londres: Routledge, 1980., COATES, 1986COATES, J. Women, men and language. Londres: Longman, 1986.) por exemplo, que apontavam para o fato de que textos reproduzem posições sexistas porque o mundo representado codifica crenças culturais e visões estereotipadas sobre o lugar de mulheres em sociedades.

Entre outros exemplos genéricos desta ordem aqui apresentados, irei discutir neste artigo alguns dos insultos contra mulheres e maiorias minoritárias produzidos pelo atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro e por alguns de seus auxiliares, que explicitamente marcam sexismo banal e estrutural.

A escolha dos exemplos, provenientes de jornais e páginas da web, se dá porque ainda que a diferença de tratamento entre gêneros não seja algo novo na sociedade brasileira, as ofensas estão cada vez mais óbvias, constantes e virulentas em relação às mulheres e a outros grupos sociais. E o mais aterrorizante é que esta prática linguística é autorizada e recontextualizada (BERNSTEIN, 1990BERNSTEIN, B. The structuring of pedagogic discourse. Londres: Routledge, 1990.) por seus seguidores, marcando o que Wodak (2020)WODAK, R. The politics of fear: what right-wing populist discourses mean. Londres: Sage, 2020. chama de ‘normalização desavergonhada’ do discurso político da extrema direita, construído ao redor de nacionalismo, xenofobia, racismo e sexismo.

Como sugere Wodak, para se chegar a esta normalização desavergonhada e incivilidade grosseira, tem-se que “[d]escrever, entender e explicar (mesmo que parcialmente) movimentos e partidos populistas de direita em suas práticas discursivas” (WODAK, ibid., p. xi). Na verdade, pode-se então interpretar as práticas discursivas do (neo)conservadorismo como um conjunto de ações planejadas cuidadosamente, e não exclusivamente como um ‘retrocesso’ (backlash) ou reação à diversidade de gênero ou sexual. É o que minha análise aqui pretende fazer.

Para situar o momento sexista em que nos encontramos no Brasil, irei revisitar algumas questões colocadas pelas primeiras pesquisadoras feministas, com o intuito de explorar a ideia de que a linguagem e outros sistemas semióticos ajudam a constituir nossas práticas sociais e que através de nossas interações ajudamos a manter divisões de gênero e poder na sociedade em que vivemos. E que o sexismo estrutural e banal persiste no nosso cotidiano em todos os níveis das práticas sociais, manifestando-se no nosso dia a dia sem ser devidamente contestado, como muito bem demonstra nosso atual presidente da República. Por suas posições sexistas, ele alimenta tabus que se tornam normalizados e reapropriados por outros/as participantes discursiva/os, criando assim correntes que dão suporte a políticas da extrema direita.

As implicações de sexismo e outros ‘ismos’ são bastante relevantes para os tempos em que vivemos. Como combatê-los?

‘Normalização desavergonhada’ e ‘incivilidade grosseira’ no discurso da extrema direita

Para se explicar movimentos discursivos de exclusão, recorro ao conceito de ‘normalização desavergonhada’ de Wodak (2020)WODAK, R. The politics of fear: what right-wing populist discourses mean. Londres: Sage, 2020.. Para a autora, partidos populistas de extrema direita surgem com uma alternativa para o desconforto e insegurança sociais sofridos por muitos países, incentivados por crises financeiras, por processos de imigração, pelo terrorismo, pelo surgimento das novas mídias, pela disseminação de ‘fatos alternativos’ e fake news. Isto tudo devido à convergência de vários desenvolvimentos distintos, como a enorme desigualdade social mundial, as tendências de nacionalização e, mais acentuadamente, a perda de confiança na democracia e nas instituições liberais. Como consequência, uma nova onda de autoritarismo se revela em muitos países, onde conceitos de negacionismo, exclusão de diferenças sociais e militarismo são instaurados. Surgem então políticos populistas e conservadores como Trump nos Estados Unidos, Christian Strache e Haider na Áustria, Orban na Hungria, Kaczynski na Polônia, e Bolsonaro no Brasil, que lutam para mudar a face da política social e liberal. Suas agendas do populismo conservador enaltecem valores religiosos, xenofóbicos e sexistas e rejeitam veementemente todas as práticas sociais que não se alinhem aos seus conceitos. Por serem tão disseminados e repetidos pelas novas mídias sociais e pela imprensa em geral ‘normalizam-se’ e são absorvidos sem questionamento. E, como sugere Wodak (ibid., xi-xii), como consequência da prolificidade de discursos de ódio no cenário internacional, partidos de centro-esquerda ou a democracia social são demonizados, rejeitados e avaliados negativamente como ‘extrema esquerda’. Rótulos de ‘liberal’, ‘socialista’ e ‘de esquerda’ são recontextualizados como insultos. E a ‘incivilidade grosseira’, uma das características desta nova ordem discursiva, manifesta-se frequentemente nos discursos contra pessoas e instituições – mentiras, insultos, frases discriminatórias racistas, sexistas e misóginas são publicamente apresentadas, discutidas, criticadas, mas ao mesmo tempo tornam-se ‘normalizadas’ e entram em discursos públicos. Trump, por exemplo, chamou Hillary Clinton de ‘desonesta’ e ‘corrupta’. Numa conversa com um apresentador de televisão norte-americano sobre mulheres, o agora ex-presidente disse: “quando você é uma estrela, elas te deixam fazer de tudo. Agarre-as pela ‘xeca’” (“Grab her by the pussy”) (ESPN.com.br - publicado em 11/10/2016).

Bolsonaro e seus assessores, por sua vez, na famosa reunião ministerial de 22 de abril de 2019, de acordo com a Folha de São Paulo (maio, 2020) produzem palavrões inaceitáveis numa reunião do alto escalão do governo brasileiro, quebrando protocolos da liturgia de seus cargos. Aqui os insultos pessoais, expletivos e palavrões produzidos na reunião concretizam o conceito de linguagem abjeta (CALDAS-COULTHARD, C.R.; JESUS, F. L., 2018CALDAS-COULTHARD, C. R.; JESUS, F. L. Abjection and condemnation: media representations of a transgender criminal in Brazil. Gender and Language, v. 12, n. 3, p. 372-397, 2018.):

Pres. Jair Bolsonaro:

  • ■ 5 merda

  • ■ 7 bosta

  • ■ 8 porra

  • ■ 2 foder

  • ■ 4 putaria

  • ■ 2 puta que o pariu

  • ■ 2 filho da puta

  • ■ 1 cacete

  • ■ 1 filha de uma égua

  • ■ 1 estrume

  • Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica

  • ■ 3 porra

  • ■ 3 foder

  • Paulo Guedes, ministro da Economia

  • ■ 1 porra

  • ■ 3 foder

  • Braga Netto, ministro-chefe da Casa Civil

  • ■ 1 caralho

Em minhas entrevistas com pessoas que apoiam o atual governo brasileiro, no entanto, a reação que obtive destas pessoas é que ‘desculpam’ estas manifestações como ‘normais’ com o argumento (em relação ao presidente, principalmente’) que “é assim que ela fala – ele é um homem no povo”, endossando sua masculinidade agressiva e a articulação explícita de uma ordem patriarcal. Estas são características que permeiam os discursos da extrema direita (WODAK, 2020WODAK, R. The politics of fear: what right-wing populist discourses mean. Londres: Sage, 2020., p. 196). Tristemente, a incivilidade é assim ‘normalizada’ desavergonhadamente e instaura-se uma ‘política de autenticidade’. Apesar das falas de Bolsonaro fugirem ao decoro do cargo, engajam fiéis que discursivamente repetem seu ‘discurso desavergonhado’ e ‘normalizado’.

A linguagem como arma

Em alguns países, a imagem do inimigo interno é representada (visualmente em geral) por muçulmanos, judeus, feministas e homossexuais (Hungria, Polônia, Romênia, Rússia e Eslováquia, Estados Unidos); em outros, a retórica de exclusão aponta para feminismo, genderismo, estrangeirismos (Áustria, França, Suécia, Alemanha e Brasil). Nestes contextos de ódio, ‘anti-genderismo’ refere-se a uma ideologia essencializadora, anti-modernista e anti-pluralista que se manifesta na propagação de cenários de ameaças dirigidos contra mulheres e pessoas LGBT-QIA+ na maioria dos casos e consequentemente contra a sociedade e o estado.

Infelizmente, este é o momento que vivemos no Brasil.

A relação da linguagem com as representações de gênero cultural tem sido constantemente abordada por analistas feministas (ver, por exemplo, BERGVALL, V.L.; BING, J.M.; FREED, A. (1996)BERGVALL, V. L.; BING, J. M.; FREED, A. E Rethinking language and gender research. Londres: Longman, 1996. p. 31-53.; CAMERON, D. (1990CAMERON, D. Feminism and linguistic theory. Londres: Macmillan, 1985/1990., 1996CAMERON, D. Verbal hygiene. Londres: Routledge, 1996., 2020aCAMERON, D. Expletive not deleted. Jun, 2020. Language: a feminist guide. Disponível em: https://debuk.wordpress.com. Acesso em: 01 nov. 2020a.
https://debuk.wordpress.com...
, 2020b)CAMERON, D. The gender respect gap. In: CALDAS-COULTHARD, C. R. Innovations and challenges: women, language and sexism. Londres: Routledge, 2020b. p. 19-33.; CALDAS-COULTHARD, C.R, (2010CALDAS-COULTHARD, C. R. Women of a certain age: life styles, the female body and ageism. In: HOLMES, J.; MEREDITH, M. (org.). Femininity, feminism and gendered discourse. Newcastle upon Tyne: Cambridge Scholars Publishing, 2010. p. 21-40., 2020)CALDAS-COULTHARD, C. R. (org.). Innovations and challenges: women, language and sexism. Londres: Routledge, 2020.; COATES, J. (1986)COATES, J. Women, men and language. Londres: Longman, 1986., MILLS, S. (1995)MILLS, S. Feminist stylistics. Londres: Routledge, 1995., BORBA, R. (2020)BORBA, Rodrigo. Disgusting politics: circuits of affect and the making of Bolsonaro. Social Semiotics, v. 31, n. 5, p. 677-694, 2020. entre muitas outras). ‘Gênero cultural’, o conceito cultural e social referente as práticas de masculinidade e feminilidade), pode ser considerado sob diversas dimensões importantes:

primeiramente, as relações sociais (e suas representações em práticas sociais) estão impregnadas de diferenças ideologicamente assumidas entre os sexos as quais são construídas através de recursos semióticos, sendo a linguagem o mais importante deles. Em segundo lugar, os desequilíbrios de relações de gênero nunca operam sós, mas intersectam- se ou cruzam-se com outros eixos de desigualdade social (raça, idade, classe social, etc.) (MACHIN, D; CALDAS-COULTHARD, C.R. e MILANI, T. p. 306MACHIN, D.; CALDAS-COULTHARD, C. R.; MILANI, T. Doing critical multimodality in research on gender, language and discourse. Gender and Language, v. 10, n. 3, p. 301-308, 2016.).

‘Generificação’, consequentemente, refere-se aos modos de discurso orientados pela função ideacional proposta por HALLIDAY (1985)HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar. Londres: Arnold, 1985. ou como codificamos o mundo. Usamos sistemas semióticos para organizar, entender e expressar nossas percepções da realidade. Identidades são construídas, portanto, de acordo com os recursos semióticos que as pessoas usam para interagir umas com as outras.

Nas representações de mulheres em situação de poder, por exemplo, discursos generificados são usados para comunicar ideias e práticas que enfatizam o gênero das mulheres profissionais em detrimento de outros aspetos de suas identidades, suas funções ou papéis sociais quando estas questões não são relevantes (CALDAS-COULTHARD, 2019CALDAS-COULTHARD, C. R. Mulheres públicas: poder, representações semióticas e gênero. Discurso & Sociedad, v. 13, n. 1, p. 29-50, 2019.). Como sugere Mills (1995)MILLS, S. Feminist stylistics. Londres: Routledge, 1995., a representação das identidades femininas é desfavorável às mulheres, já que seu foco principal é na aparência física e na sexualidade ou na domesticidade.

Um clássico exemplo de generificação é a frase do Presidente Bolsonaro, ao referir-se à deputada ‘Maria do Rosário (PT-RS), primeiro durante uma discussão nos corredores da Câmara em 2003, diante de vários jornalistas, depois repetida em 2014, desta vez na tribuna da Casa. Em esclarecimento ao jornal Zero Hora na época, Bolsonaro disse que a colega:

não merece [ser estuprada] porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. (Carta Capital, 2020)

Esta ‘generificação’ é feita através de escolhas semióticas (a identidade de Maria do Rosário é representada por seu aspecto físico negativo “ela é muito feia” e não por sua posição legal como deputada) e da alusão à prática do estupro, na qual o falante se associa (“jamais a estupraria”). A deputada é assim avaliada negativamente e humilhada duas vezes – por ser feia e consequentemente por não ‘merecer’ o ‘prêmio do estupro’. Claramente, o falante não entende as implicações do ato de estuprar. Estupro na verdade é um ato de agressão, violência, poder e controle, e não meramente um ato de desejo sexual, de acordo com Ehrlich (2001)EHRLICH, S. Representing rape: language and sexual consent. Londres: Routledge, 2001.. Estupro é motivado primariamente por raiva e pela necessidade do estuprador se sentir poderoso ao controlar, dominar e humilhar a vítima. Assim, a frase endereçada à deputada Maria do Rosário é claramente a arma usada metaforicamente para ferir sua vítima.

Um outro exemplo flagrante do uso da linguagem como arma é o episódio do Tchau querida. Como bem discutem BORBA (2020)BORBA, Rodrigo. Disgusting politics: circuits of affect and the making of Bolsonaro. Social Semiotics, v. 31, n. 5, p. 677-694, 2020. e SANQUE (2020)SANQUE, D. K. Signos indisciplinados: orientações escalares em competição na circulação de “Tchau querida”. Revista Indisciplina em Linguística Aplicada, v. 1, n. l,p. 1-20, 2020. em suas análises do discurso da extrema direita brasileira, o ataque linguístico inicia-se quando a então presidenta Dilma Rousseff telefona em 2016 para o ex-presidente Lula e lhe propõe que assuma o Ministério da Casa Civil. Numa pequena interação oral e informal, gravada e disseminada por toda a imprensa pelo juiz Sergio Moro, o presidente Lula fecha a conversa com o segundo par do movimento interacional de fechamento (closing move) (SINCLAIR, J.; COULTHARD, M., 1975SINCLAIR, J.; COULTHARD, M. Towards an analysis of discourse. Oxford: Oxford University Press, 1975.; COULTHARD, 2007COULTHARD, M. An introduction to discourse analysis. Londres: Longman, 2007.), ‘tchau’ – “tchau querida”. Esta frase foi então recontextualizada visual e linguisticamente, para um contexto interacional quase bélico na Câmara de Deputados, na sessão de início do processo de impeachment da presidenta Dilma. O primeiro ato de fala afetivo de término de interação oral produzido pelo ex-presidente Lula torna-se, nas outras instâncias, um ato de guerra sexista e ofensivo. Deputados, inferiores hierarquicamente à presidenta, e quebrando protocolo disciplinar da casa, trazem cartazes com a mesma frase. Estes cartazes semioticamente agem com um ‘cantochão’ visual produzido em uníssono por deputados brancos e sorridentes, estampando as cores da bandeira nacional. O propósito é o de agredir Dilma Rousseff, chamando-a inapropriadamente de ‘querida’. Quebram assim as regras de formalidade e civilidade, numa cena de sexismo explícito. Vale lembrar que ninguém se preocupou em usar o mesmo recurso semiótico quando o presidente Collor foi julgado em 1992. Como consequência, os ataques feriram de morte a presidenta sendo julgada. A frase acabou viralizando e virando meme nas redes sociais:

Figura 3
Google Imagens para a frase “Tchau querida”.

A verbalização sexista no discurso político

O bolsonarismo, ou a corrente de extrema direita que se instalou no Brasil a partir das eleições de 2016, é permeado por racismo, xenofobia e sexismo, que segundo a Lei n. 1.079, de 1950 são crimes de responsabilidade e caracterizados pelo proceder “de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Neste novo momento de nossa história, as fronteiras do público e do privado foram desmembradas pelas mídias sociais e pela grande imprensa que reproduz e normaliza ideologias de direita. E o tonus destes discursos são a agressão e o conflito verbal. A democracia da civilidade e dos mesmos direitos políticos se esvai e o antagonismo e o combate se estabelecem como norma. O bolsonarismo linguístico, divulgado quase que diariamente na grande mídia brasileira, é uma grande fonte de análise para se ‘descrever, entender e explicar’ (WODAK, 2020WODAK, R. The politics of fear: what right-wing populist discourses mean. Londres: Sage, 2020.) como discursos sexistas atuam no âmbito social.

Como as pesquisas da primeira fase dos estudos linguísticos sobre Linguagem e Gênero apontavam (SPENDER, 1980SPENDER, D. Man made language. Londres: Routledge, 1980.; BERGVALL, et al., 1996BERGVALL, V. L.; BING, J. M.; FREED, A. E Rethinking language and gender research. Londres: Longman, 1996. p. 31-53.), o discurso bolsonarista claramente compara negativamente mulheres e homens. A partir dos estudos das décadas de 60 e 70, o conceito de ‘sexismo linguístico’ foi amplamente divulgado e, pelo menos nos países de língua inglesa, também bastante combatido. Consequentemente, os códigos linguísticos, nas sociedades de língua inglesa, foram reconsiderados, as regras gramaticais e de interação questionadas e as pessoas se tornaram mais conscientes da diferença de gênero nas representações culturais.

Apesar de muitas mudanças terem ocorrido em relação ao código linguístico com o intuito de incluir mulheres em discursos, principalmente a nível internacional, a depreciação linguística de pessoas através da linguagem é ainda um fato constante em nossas práticas sociais, especialmente no Brasil.

Se olharmos para nossos dicionários, por exemplo, constataremos que ainda hoje em dia, muitas das nomeações de mulheres são depreciativas em termos de sexualidade, de idade ou de aparência física. Há ainda uma comparação imperdoável com o mundo animal, onde mulheres são nomeadas zoomorficamente

  • cobra

  • jararaca

  • mocréa

  • baranga

  • biscate

  • bombom

  • broaca

  • cadela

  • fácil

  • galinha

  • gorda

  • mocréa

  • morango

  • pera

  • perua

  • piranha

  • puta

  • vaca

  • vadia/quenga

  • vagabunda

  • velha

O ex-ministro da educação A. Weintraub, um expoente da retórica sexista populista, no ano de 2020, por exemplo, chama publicamente a mãe de uma internauta de “égua sarnenta e desdentada” (Folha de São Paulo, 8/5/2020).

A fala do Presidente

Como foco principal de minha análise, me debruço agora sobre a retórica do presidente da república, que é frequentemente sexista, preconceituosa e escatológica. O presidente é um exemplo de “padrões de comentário negativo sexista que persistem (em nossa sociedade) apesar de tantos outros efeitos positivos que o feminismo trouxe para as vidas de mulheres” (FREED, 2020FREED, A. Women, language and public discourse. In: CALDAS-COULTHARD, C. R. Innovations and challenges: women, language and sexism. Londres: Routledge, 2020. p. 4., p. 4).

A posição do presidente revela um falocentrismo cuja convicção é baseada na ideia de superioridade masculina, na qual o falo representa o valor significativo fundamental. Nas constantes repetições de seu estado ‘ereto’ quando diz (em pelo menos três ocasiões) ser ‘imbroxável’ (06/8/2019, 21/8/2020 e 11/01/2021),

“Na política, eu sou imbroxável”, diz Bolsonaro no Rio Grande do Norte”

“Eu sou imbroxável. Só papai do céu me tira daqui” (11/01/2021)

Metaforicamente sinaliza seu poder e força, ao contrário de outras pessoas que ocasionalmente ‘falham’. Mas é interessante salientar que o próprio presidente se considera um ‘falhador’ por engravidar sua mulher que dá à luz a uma menina.

“Eu tenho cinco filhos. Foram quatro homens. A quinta eu dei uma fraquejada e aí veio uma mulher.” (abril, 2017, numa palestra no Rio de Janeiro)

Em maio de 2019, ao posar para foto com um estrangeiro de feição asiática (e fazendo gesto com os dedos em insinuação sobre órgão sexual), produz o seguinte insulto:

“Tudo pequenininho aí?”

Neste exemplo, o presidente ironicamente diminui o poder do ator social pela suposição cultural estereotipada e generalizada que todo o homem asiático tem um pênis pequeno. E por extensão, todas as pessoas ‘sem pênis’ são igualmente inferiores. A função das/dos ‘sem pênis’ é a de servir ou dar prazer aos falocratas, os quais têm o ‘direito’ de penetrar. Desta forma ‘estupro’ é aceitável. O pior insulto é o de quem nem merece ser estuprada, como no exemplo acima citado ofendendo a deputada Maria do Rosário:

“Não merece [ser estuprada] porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria.” (Carta Capital, 2020)

Quando diz que

“Como eu estava solteiro na época, esse dinheiro do auxílio-moradia eu usava para comer gente. O dinheiro foi gasto em alguma coisa. Ou você quer que eu preste continha: olha, recebi 3 mil, gastei 2 mil em hotel, vou devolver mil. Tem cabimento isso?” (2018).

(Em uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo, o então candidato respondia a um questionamento sobre o auxílio-moradia que recebia da Câmara, mesmo tendo imóvel próprio em Brasília.)

Usa ‘comer’ para o ato sexual, uma metáfora agressiva, que conotativa e culturalmente pressupõe um ator masculino como sujeito e um/a ator/a feminina/a como objeto, assim como desumaniza este objeto (não se come seres humanos). É importante notar que neste exemplo, o presidente não exclui uma outra pessoa masculina passiva em sua escolha de ‘gente’. De acordo com Halliday (1985)HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar. Londres: Arnold, 1985., parte do sentido das palavras são as alternativas escolhidas. Van Leeuwen (1996)VAN LEEUWEN, T. The representation of social actors. In: CALDAS-COULTHARD, C. R.; COULTHARD, M. (org). Text and practices: readings in critical discourse analysis. Londres: Routledge, 1996. p. 32-70. também sugere, em sua discussão sobre como práticas sociais são transformadas em discursos, que há uma ‘possibilidade de escolhas’ ou uma rede sistemática, de acordo com a qual escolhemos categorizar ou nomear atores/as sociais e representá-los/las em textos, que são sempre significadas pois revelam pontos de vista particulares. A escolha de ‘gente’ em vez de mulher ou homem é certamente ambígua e importante. A visão bolsonarista de mundo parece ser a do direito de penetrar, mesmo que zoofilicamente.

“Todo mundo ia atrás de galinha no galinheiro na minha cidade. Alguns mais malandros, iam atrás da bezerrinha, da jumentinha. Era comum. Não tinha mulher como tem hoje.

(Em 2012, durante entrevista ao extinto programa de televisão CQC.)

Altamente contraditória é sua homofobia (tendo em vista sua posição em relação a animais!), manifestada inúmeras vezes em seus discursos:

“Para mim é a morte. Digo mais: prefiro que morra (um filho) num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo” (2011).

Em entrevista à revista Playboy, Bolsonaro afirmou que “seria incapaz” de amar um filho homossexual e acrescentou que ter um casal gay como vizinho desvaloriza imóveis.

“Sim, desvaloriza! Se eles andarem de mão dada, derem beijinho, vai desvalorizar”, declarou. “Não sou obrigado a gostar de ninguém. Tenho que respeitar, mas, gostar, eu não gosto.”

“O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro, ele muda o comportamento dele. Tá certo?” (2010)

“90% desses meninos adotados [por um casal gay] vão ser homossexuais e vão ser garotos de programa com toda certeza.”

Em entrevista à minissérie documental Out There, exibida pela emissora britânica BBC, Bolsonaro disse ao apresentar Stephen Fry (famoso ator inglês e declaradamente gay) que “a sociedade brasileira não gosta de homossexual”.

“O cara vem pedir dinheiro para mim para ajudar os aidéticos. A maioria é por compartilhamento de seringa ou homossexualismo. Não vou ajudar porra nenhuma! Vou ajudar o garoto que é decente” (2011). A declaração foi feita em entrevista à revista Playboy.

Como na referência à filha mulher (um erro de fabricação), a possibilidade de ter filhos homossexuais tem a ver com o medo da concorrência com um outro macho que terá o poder penetrativo. Sua explícita materialização discursiva assinala sua ideologia falocêntrica e homofóbica.

Muitas outras frases icônicas do presidente Jair Bolsonaro ilustram ainda mais sua posição insultuosa em relação a mulheres e a outras maiorias minoritárias:

“O Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer.”

Aqui, o Brasil compara-se a uma ‘virgem’ (ainda não possuída), uma alusão repleta de atributos generificados.

“Ela [repórter] queria um furo. Ela queria dar o furo [risos dele e dos demais]”, disse o presidente, em entrevista diante de um grupo de simpatizantes em frente ao Palácio da Alvorada. Após uma pausa durante os risos, Bolsonaro concluiu: “a qualquer preço contra mim.” (18/02/2020)

A declaração acima é uma referência, de acordo com a Folha de São Paulo, ao depoimento de um ex-funcionário de uma agência de disparos de mensagens por WhatsApp, Hans River, que afirmou que Patrícia queria “um determinado tipo de matéria a troco de sexo”, e esta declaração foi reproduzida em seguida por Eduardo Bolsonaro nas redes sociais. Aqui, a competente jornalista Patrícia Campos Mello é recontextualizada como prostituta que troca trabalho por sexo e a palavra ‘furo’, uma referência implícita à genitália da jornalista, significa disponibilidade sexual. Assim como a ‘virgem’ do exemplo acima – mulheres existem para serem ‘comidas’ ou estupradas.

“Quem quiser vir aqui [ao Brasil] fazer sexo com uma mulher, fique à vontade. O Brasil não pode ser um país de turismo gay. Temos família.” (abril de 2019, durante café da manhã com jornalistas.)

Neste terrível exemplo, não só nos deparamos com visões normativas de sexualidade e homofobia, onde o presidente dá permissão explícita para a mulher brasileira ser usada por estrangeiros, mas também com a ideologia machista de que os homens são os donos das mulheres e que as mesmas podem ser vendidas. Em ambos os casos, disponibilidade sexual e sexismo explícitos são materializados pelas escolhas semióticas implícitas.

“Isto não é coisa de homem” - a linguagem importa

Uma das estratégias usadas frequentemente por discursos machistas é a de menosprezar pessoas através da feminilização (ou dar atributos femininos a atores masculinos). Os seguintes exemplos demonstram insultos de Bolsonaro como estratégia de depreciação pelo feminino:

“Daqueles governadores de ‘paraíba’, o pior é o do Maranhão.”

(em conversa com o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, captada por microfones da TV Brasil, antes de entrevista no Palácio do Planalto no dia 19 de julho de 2020).

“O Brasil tem que deixar de ser um país de maricas!

(numa referência pejorativa ao receio com a COVID-19, que já tinha matado então mais de 162 mil e infectou 5,67 milhões de pessoas – 10/11/2020)

“Vai ficar todo mundo em casa que eu vou passear em Miami, ah, pelo amor de Deus, calcinha apertada, isso não é coisa de homem.”

(crítica ao chefe do executivo estadual de São Paulo João Doria, após este decretar lockdown no estado e viajar em férias para Miami, 24/12/2020).

Ao usar os termos ‘paraíba, ‘maricas’ ou ‘Maria Fofoca’ (usado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, no Twitter pedindo que o ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República, Luiz Eduardo Ramos, deixe de lado a postura de “Maria Fofoca”, os falantes subestimam o papel masculino pelo uso de nomeações femininas, o que desempodera os atores mencionados. Ao se referir ao Governador Doria por “calcinhas apertadas”, o insulta duplamente – chama-o de ‘mulher’ e de homossexual.

Enquanto a ‘deficiência comunicativa feminina e a ‘depreciação linguística’ foram a base do debate principal na primeira fase das pesquisas feministas sobre Linguagem e Gênero, outras linhas teóricas sobre o status da mulher na sociedade permearam as pesquisas da segunda fase na década de 90 (HALL; BUCHOLTZ, 1995HALL, K; BUCHOLTZ, M. (org.) Gender articulated: language and the socially constructed self. Londres: Routledge, 1995.). Neste momento, pesquisadoras viam mulheres como grupo minoritário que é oprimido e marginalizado. Temos amplos exemplos deste momento no atual discurso bolsonarista.

Quando Bolsonaro produz as seguintes frases:

“Não empregaria homens e mulheres com o mesmo salário.”

(fevereiro de 2016, entrevista ao programa Superpop, de Luciana Gimenez, na Rede TV).

“Eu tenho pena do empresário no Brasil, porque é uma desgraça você ser patrão no nosso país, com tantos direitos trabalhistas. Entre um homem e uma mulher jovem, o que o empresário pensa? ‘Poxa, essa mulher está com aliança no dedo, daqui a pouco engravida, seis meses de licença-maternidade...”

Confirma explicitamente sua posição discriminatória em relação a mulheres que são diferenciadas em relações de poder simplesmente porque são mulheres.

Considerações finais

Termino minha breve análise voltando-me à questão da ‘normalização desavergonhada e ‘incivilidade grosseira’, com um exemplo que classifico como ‘execrável’. Tomo emprestado o termo usado por Borba e Lopes (2018)BORBA, R.; LOPES, A.C. Escrituras de gênero e política de différance: imundície verbal e letramentos de intervenção no cotidiano escolar. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 21, p. 241-285, 2018., imundície verbal, com o qual os autores propõem conotações positivas para certas expressões como uma forma de ativismo linguístico. Aqui, no entanto, uso imundície verbal em seu significado literal:

“É só você deixar de comer menos um pouquinho. Quando se fala em poluição ambiental, é só você fazer cocô dia sim, dia não que melhora bastante a nossa vida também, está certo?”

(Ao ser questionado, em 9 de agosto, se é possível haver desenvolvimento com preservação do meio ambiente, 09/09/2019)

A linguagem importa sim, e ao usá-la, o bolsonarismo demonstra seu mais execrável, falogocêntrico e imundo lado – o do insulto, da vulgaridade, do sexismo banal, da homofobia. Suas expressões são imundas.

De sua posição de poder, Bolsonaro abusa de seu povo e de sua língua. Sabemos, como linguistas, que o uso da linguagem é um ato de identidade e de poder – ao interagirmos, pessoas marcam não só sua classe social, sua raça, seu grupo, mas também suas identidades de gênero e seu poder. Sabemos ainda que um dos grandes problemas das maiorias minoritárias é a inacessibilidade ao poder. Não há dúvida que os homens brancos e heterossexuais ainda são os guardiões da linguagem: são os editores, os lexicógrafos, os apresentadores de rádio e televisão e os políticos, o presidente. As escolhas semióticas refletem suas posições de poder. Como podemos conviver com estas escolhas?

Estamos num momento de muitos avanços teóricos nas áreas acadêmicas de Linguagem e Sexualidades, com o desenvolvimento de Teorias de Inclusão, Racismo, Descolonialidade, Teorias Identitárias e Teorias Queer. Estes movimentos alertam para ideologias discriminatórias e excludentes. O movimento Trans, por exemplo, tem se destacado ao tentar mudar conceitos linguísticos gramaticais, e assim provocado muitos debates na sociedade. Sem dúvida, teremos que sempre levar em conta, como dizem Borba e Lopes, que “o estudar discursos sobre a língua pode nos ajudar a entender como certos regimes de verdade a constituem e consequentemente compreender como usuárias/os enfrentam e (re) organizam o social” (BORBA, R.; LOPES, A.C., 2018BORBA, R.; LOPES, A.C. Escrituras de gênero e política de différance: imundície verbal e letramentos de intervenção no cotidiano escolar. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 21, p. 241-285, 2018., p. 256).

O reconhecimento do funcionamento dos sistemas semióticos e sua ligação com as estruturas opressivas clarifica ideologias e posicionamentos. Há uma relação explícita entre discurso, sociedade, política e cidadania, e somente pela conscientização desta relação podemos interferir e praticar ativismo linguístico. Para os grupos silenciosos e excluídos das relações de poder, o ativismo linguístico é uma forma de resistência e empoderamento.

Ao descrever, entender e explicar o discurso político bolsonarista nos damos conta de quanto ainda temos que fazer em relação às formas de representação discriminatórias e excludentes. E quão maléfico é o posicionamento discursivo do presidente, que em sua ignorância, propõe: “Você tem que pensar em tudo que vai falar agora, tem que pensar: será que vou ofender o gordinho? É gordofóbico. Será que vou ofender os carecas? Carecofóbico.”

É através da descrição, do entendimento e da explicação de eventos discursivos que alcançaremos mais conscientização para a mudança social. E se começarmos mudando nossas próprias práticas linguísticas daremos visibilidade e, portanto, inclusão e respeito a grupos discriminados. Se mudarmos a maneira que nomeamos mulheres, pessoas LBGTQIA+, pessoas trans, por exemplo, estaremos contribuindo para um mundo melhor. É somente por meio da conscientização que nossas sociedades poderão ser mais justas e igualitárias.

Para finalizar, gostaria de enfatizar a importância dos Estudos Críticos da Linguagem e dos sistemas semióticos em uso para se desvendar as relações de poder, porque é através dos recursos de nossos corpos e através de sistemas simbólicos e seus modos (a linguagem, a imagem, a tipografia, etc.) que sistemas de organização social são construídos. Sexismo estrutural e banal, racismo e idadismo são exemplos destes sistemas. A análise semiótica textual e visual de interações é a materialização destes sistemas. E combater estes sistemas é preciso.

Agradecimento

Minha imensa gratidão à Fábio A. S. Bezerra e Germán Canale, cuidadosos leitores de meu texto. Suas inteligentes e perspicazes sugestões, sem dúvida alguma, contribuíram para a finalização de minhas ideias e pesquisa.

Notas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    12 Maio 2022
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