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O cinema dizia-se de muitos modos: a emergência do cinema artístico a partir do advento do movimento cineclubista no Brasil e em Portugal (1950-1960)

Cinema was said in many ways: the emergence of the artistic film from the advent of film society movement in Brazil and Portugal (1950-1960)

RESUMO

Neste presente artigo, intentarei problematizar, por meio de uma história cruzada entre Brasil e Portugal, a noção de arte no cinema, já que ela vem servindo de plataforma para miríades de afazeres cinematográficos na contemporaneidade. Mais especificamente, tentarei argumentar, a partir das balizas teóricas e metodológicas ofertadas por Michel Foucault, como a redução da exuberante variedade de sentidos e estratégias imputadas ao conceito de arte nos idos de 1950 e 1960 não pode ser explicada a contento pelo viés do apuramento do polo da recepção, como se os dirigentes da cultura cinematográfica na atualidade tivessem, enfim, descoberto a verdadeira nervura do cinema, antes eclipsada pelo imperialismo do cinema estadunidense. Antes, buscarei trazer à tona a pletora de objetivos políticos que o movimento cineclubista buscou alcançar por intermédio da operacionalização do conceito de arte.

Palavras-chave:
Arte; Cinema; Movimento Cineclubista; Genealogia; Michel Foucault.

ABSTRACT

In this article, I will try to problematize, through a cross-story between Brazil and Portugal, the notion of art in cinema, since it has been serving as platform for myriad cinematic affairs in contemporary. More specifically, I will try to argue, from the theoretical and methodological balises offered by Michel Foucault, how the reducing of the exuberant variety of directions and strategies imputed to the concept of art way back in 1950 and 1960 can not be explained to the satisfaction from the angle of the clearance of reception polo, as if the directors of film culture today had at last discovered the true vein of cinema, prior overshadowed by imperialism of american movies. Rather, I seek to bring out the plethora of political goals that the film society movement sought to achieve through the operationalization of the concept of art.

Keywords:
Art; Cinema; Film society movement; genealogy; Michel Foucault.

“A genealogia é cinzenta”, alertava Michel Foucault, em 1971. Na esteira de Nietzsche, complementava:

Daí, para a genealogia, um indispensável retardamento: para assinalar a singularidade dos acontecimentos, fora de qualquer finalidade monótona; espreitá-los lá onde menos se espera e no que passa por não ter história alguma - os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; aprender seu retorno, não absolutamente para traçar a lenta curva de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas em que eles desempenharam distintos papéis (FOUCAULT, p. 260, 2008FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciência e História dos Sistemas de Pensamento. São Paulo: Forense Universitária, 2008. ).

O ensino de cinema no Brasil e em Portugal, especialmente ao longo das décadas de 1950 e 1960, figura como palco para o presente artigo. Durante largo período da história, aquilo que entendemos hoje como cinema arte não contava com a escolta de definições e diretrizes sólidas, evidentes, insofismáveis, pois as lutas às voltas da definição do que é/seria a arte cinematográfica não estavam ainda apaziguadas pela incontroversa neutralidade e objetividade de um modelo de reconhecimento do cinema que se tornou hegemônico. Em poucas palavras, recuar até o momento histórico em que a tentativa de fixação do estatuto do cinema arte estava sendo levada a efeito pelo cineclubismo português e brasileiro é uma forma de sermos relançados ao período em que a gramática de reconhecimento do cinema estava em vias de ser montada.

Menos conceitualmente, é muito mais o esforço procedimental presente nos trabalhos investigativos de Foucault que nos ajudará nessa empreitada analítica. A noção central que guiará nossos passos metodológicos é a de problematização, entendida aqui como o intervalo entre consensos ou, se quisermos, como o momento histórico privilegiado em que determinada vontade de saber (a própria ideia de vontade implica que esse saber ainda não imperara insofismável) atracou-se com outras, disputando as razões pelas quais algo deveria ser diferente do que era. Tudo se passa como se as sucessivas problematizações históricas escancarassem o período preciso em que as autoridades se assumem abertamente entre a ignorância total e a onisciência absoluta. Ou, ainda, a problematização é o momento histórico em que acompanhamos a passagem do dever ser ao ser; o momento, em suma, no qual se pode analisar com maior nitidez o nascimento de uma gramática normativa e performativa de certo aspecto da realidade social, na medida em que essa gramática se ajustava em formação, em vias de formular seus princípios basilares e constitutivos.

De acordo com tais coordenadas arqueogenealógicas, restituir as vozes dos mortos é uma maneira de discriminar como o presente em que nossas vísceras oscilam é balizado por determinada configuração imputada em nome de objetivos políticos específicos por uma vontade de saber. Gesto tão mais inquieto quanto mais tivermos em mente que conduzir o pensamento para o exterior de si afigura-se como condição para fazê-lo pensar o que já não se pensa ou, se quisermos, o impensado que lhe constitui, uma vez que essa gramática é, a um só tempo, o mais familiar e o menos imediatamente acessível. Como exemplo, bastaria recordar que muito cedo a criança falante de português aprende a conjugar corretamente os verbos da primeira pessoa do singular (nenhuma criança diz: “eu querem”), mesmo sem saber que há verbos, primeira pessoa ou conjugação.

A afirmação de o trabalho genealógico ter em mira o questionamento do ser é a consequência inevitável da hipótese foucaultiana de que o que se encontra na raiz do conhecimento são “centelhas” (FOUCAULT, 2002FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002., p. 22), produzidas no encontro entre duas espadas. Eis o ponto central: as centelhas - o resultado da luta - não têm a mesma natureza das espadas - o instrumento da luta. As centelhas não nos reenviam ao episódio da (re)descoberta da verdade. Remetem-nos, isso sim, às batalhas que, uma vez encerradas, produzem efeitos de verdade. Sob nossa perspectiva, o conhecimento do que seria o cinema deve ser lido, pois, na chave de efeito de superfície de uma série de lutas e embates que se escondem por sob o manto da objetividade. Se é verdade que todo o leitor está sempre dois passos a frente do que lê, espero que essa breve genealogia possa apanhá-lo no contrapé, a fim de que, dessa feita, possamos alargar o conhecimento a respeito das linhas de força que informam a experiência cinematográfica na contemporaneidade.

Qual cinema?

Não foram os Irmãos Lumière que inventaram o Cinema. Descobriram êles o cinematógrafo, o meio mecânico de exibir as fitas (DIDONET, 1959DIDONET, Humberto. Promoção de bons filmes. Porto Alegre: Edições Paulinas, 1959., p. 83).

Todas as paixões e os ódios mobilizados na arena cinematográfica ao menos desde a década de 1930, especialmente a partir do final da década de 1940 (o marco da consolidação do movimento cineclubista), tiveram em vista a operacionalização de programas simultaneamente estéticos, pedagógicos e políticos marcados pela firme resolução de levar a cabo a transformação do cinematógrafo em cinema, cujo resultado exitoso auferir-se-ia pela alteração do estatuto do cinematógrafo de mero meio mecânico de projeção de imagens em cinema arte.

Antes de mais nada, cumpre dizer que, à contramão do que tendemos a imaginar, as autoridades estatais brasileiras e portuguesas, em sua esmagadora maioria, não buscaram perverter ou barrar os verdadeiros fins artísticos do cinema em nome de formulações moralizantes que amparassem os mecanismos de legitimação do Estado. Na maioria das vezes, não era apagando a força da arte que os governantes imaginavam a obtenção de certos objetivos políticos. Era a expansão da arte que asseguraria o bom termo dos programas de governo. Quanto mais arte, mais respeitabilidade; quanto mais respeitabilidade, mais docilidade na interiorização dos comandos estatais subsumidos nas imagens em movimento. Não é à toa que Antônio Ferro, o grande responsável pela chamada política do espírito em Portugal durante a vigência do salazarismo, tenha saído recorrentemente em defesa do reconhecimento do cinema como uma arte. No seu livro As trágicas do silêncio, Ferro disparava:

Atravessamos uma época febril, em que a Vida só se compreende no movimento: num automóvel, num comboio, num aeroplano, nunca a pé... O minuto de hoje é mais fecundo que a hora de ontem. Não caminhamos para o futuro, precipitamo-nos para o futuro (FERRO, 1917FERRO, António. As grandes trágicas do silêncio. Lisboa: Monteiro e Companhia, 1917., p. 20).

Eis o ponto-chave da presente argumentação: se o destino do cinema, especialmente no que diz respeito ao engrandecimento do seu estatuto, dependeu, como veremos, da conduta dos espectadores diante dos filmes, nomeadamente da interiorização do conceito de cinema arte, isso significa que historicamente a ascensão do cinema à esfera artística não se fez graças ao desenvolvimento paulatino de novos meios tecnológicos, nem a formas mais sofisticadas de narratividade. Não foi o surgimento de novos filmes portadores de qualidades estéticas inéditas que abriram as portas do universo da arte para o cinematógrafo. Testemunha disso é o fato de que a mudança do estatuto do cinema foi obrada, no mais das vezes, pela reavaliação de filmes que não costumavam ser entendidos como artísticos e que somente em um segundo momento se viram reinterpretados de tal modo (Hitchcock, por exemplo, foi compreendido como um diretor voltado aos interesses do cinema comercial, sendo agraciado como um cineasta exuberante apenas anos depois, sobretudo após as entrevistas que concedeu a Truffaut e aos elogios que recebeu do críticos e cineastas que escreviam na Cahiers du Cinéma). Nunca é demais frisar que as salas de cinema comerciais e cineclubistas bebiam na fonte das mesmas distribuidoras.

Em 1939, Roberto Nobre, o mais assíduo defensor da ideia do cinema como uma arte, começava seu livro tecendo considerações escatológicas a respeito do futuro do cinema. No entanto, por meio delas, buscava justamente provar a impossibilidade do reconhecimento do caráter artístico do cinema por parte dos seus contemporâneos. Isso demonstra, entre outras coisas, a ausência de consenso em torno da associação entre cinema e arte. A necessidade de conscientização dos indivíduos acerca da natureza artística do cinema revela o caráter não axiomático das definições do estatuto do cinema de então. O autor não podia senão fazer apelo a um reconhecimento futuro da natureza artística do cinema. A imagem em movimento:

Será a grande Musa dos tempos modernos. Ela conseguirá atingir tudo, o exterior e o íntimo dos humanos. Vós, velhos, que só sabem olhar para trás, com os olhos ao contrário, que não sabem sentir o génio contemporâneo, não a entendereis. Para sentir integralmente a sua beleza seria preciso nascer depois de 1900 (NOBRE, 1939NOBRE, Roberto. Horizontes de Cinema: ensaios. Lisboa: Guimarães e Editores, 1939., p. 15).

Ainda que fosse mobilizado como fundamento teórico das argumentações de Nobre no seu livro Horizontes do cinema, Henri Bergson foi um desses velhos que só souberam olhar para trás, dado que não lia o cinema na chave de artefato artístico. Quando muito, o cinema, segundo Bergson, valeria como um arquivo histórico útil para as gerações futuras, sobretudo a título de um “documento inapreciável” (NOBRE, 1939NOBRE, Roberto. Horizontes de Cinema: ensaios. Lisboa: Guimarães e Editores, 1939., p. 80) para as futuras gerações. Que o cinema ainda não fosse reconhecido como arte por Bergson, fica bastante claro pela necessidade do pedido de licença por parte do filósofo para a abordagem de assunto tão pouco digno de considerações sérias. Isto é, não era como espectador de cinema que Bérgson rumava ao cinematógrafo, mas em razão da curiosidade do ofício filosófico, pois nada devia “deixar o filósofo indiferente” (NOBRE, 1939NOBRE, Roberto. Horizontes de Cinema: ensaios. Lisboa: Guimarães e Editores, 1939., p. 80). A justificação da ida do filósofo ao cinema não se localiza, pois, ao lado das propriedades artísticas do objeto. Muito ao contrário. Era a exigência de flexibilidade na relação consigo, exigência que seria característica daqueles que perseguem um modo de vida filosófico, que o levava a discorrer sobre os filmes a que assistia, já que o filósofo representava o tipo social “capaz de desejar a morte para ver o que há lá dentro” (BOLETIM CINECLUBE DO PORTO, 1952BOLETIM CINECLUBE DO PORTO. Porto, 1952.).

A presença de um filósofo nos debates sobre o estatuto do cinema não nos deve fazer imaginar que o cinema tenha sido abastardado por indivíduos estrangeiros aos afazeres cinematográficos, que desconheciam as especificidades do cinema e que, exatamente por isso, não estavam à altura da tarefa de definir com precisão sua natureza artística. Como asseverava Nobre, quem rechaçou o caráter artístico do cinema não foram os “outros” (NOBRE, 1939NOBRE, Roberto. Horizontes de Cinema: ensaios. Lisboa: Guimarães e Editores, 1939., p. 76). Nesse passo, vale lembrar que o próprio pai do cinematógrafo não tinha se dado conta da grandeza do que inventara, a despeito do seu paternal orgulho de inventor. Quer dizer, o próprio Lumière não indexara o cinema nos ramos da grande árvore genealógica da arte. Para Lumière, o cinema, no melhor dos casos, descendia da ciência.

Em diversas ocasiões, o cinema foi vítima de uma total e completa desqualificação, como se não fosse possível lhe atribuir qualquer significação social positiva, nem mesmo a título de arquivo histórico. De acordo com o escritor Bernard Shaw, o cinema só adquiriria valor se deixasse de lado a imagem, pois o gênio humano jazia na manipulação da palavra escrita ou falada, jamais no uso de imagens, de modo que o cinema se tornaria suportável no dia em que fosse construído “unicamente por legendas” (NOBRE, 1939NOBRE, Roberto. Horizontes de Cinema: ensaios. Lisboa: Guimarães e Editores, 1939., p. 87). Por sua vez, o escritor francês George Duhamel enxergava no cinema um “passatempo de hilotas”, ou, ainda, um “passatempo de iletrados e de criaturas miseráveis” (NOBRE, 1939NOBRE, Roberto. Horizontes de Cinema: ensaios. Lisboa: Guimarães e Editores, 1939., p. 97). Também Anatole France considerava o cinema uma ameaça à dignidade do homem e as salas de cinema um antro escuro de onde se saia “com vergonha de ser homem” (NOBRE, 1939NOBRE, Roberto. Horizontes de Cinema: ensaios. Lisboa: Guimarães e Editores, 1939., p. 80).

A rigor, o fenômeno de descrédito do cinema como uma arte batia à porta da década de 1960, pois continuava a ser premente, ali, a necessidade de “apelo aos intelectuais” (DIDONET, 1959DIDONET, Humberto. Promoção de bons filmes. Porto Alegre: Edições Paulinas, 1959., p. 87), apelo que se encaminhava no sentido de demonstrar seu valor artístico. Didonet lançava a pergunta: estariam os intelectuais suficientemente esclarecidos de que o cinema era uma arte “nova e absolutamente autônoma”? (1959DIDONET, Humberto. Promoção de bons filmes. Porto Alegre: Edições Paulinas, 1959., p. 88). Desde 1940, o poeta Vinicius de Moraes vinha chamando a atenção para a desatenção de parte significativa da intelectualidade brasileira perante o cinema, o que o permitia traçar uma linha divisória entre duas gerações de intelectuais brasileiros, sendo o “interesse pelo cinema como arte” (MORAES, 1942) a marca distintiva entre elas. O fato era que grandes escritores brasileiros como Pedro Nava, um dos mais notórios intelectuais antivisuais, não constituía exceção. Nenhum deles, dos intelectuais, tinham sido uma geração de visuais. Nem Prudente de Moraes Neto, nem Augusto Meyer, nem Carlos Drummond de Andrade, muito menos Graciliano Ramos, ou José Lins do Rego, ou Armando Fontes, ou, ainda, Raquel de Queiroz. Vinicius queixava-se: definitivamente, os intelectuais do cinema não haviam nascido da “geração de Alceu Amoroso Lima” (MORAES, 1942, p. 65). Sendo assim, o grosso da intelectualidade brasileira, do ponto de vista do comportamento frente ao cinema, seguia sendo bergsoniana, pois o desprezo pelo cinema como arte mantinha-se vivo e atuante. Mesmo nos casos em que o ato de assistir ao cinema ganhasse algum valor positivo, não se tolerava, em absoluto, que um membro da intelectualidade debandasse de mala e cuia para o campo cinematográfico. Daí que Roquette Pinto, por exemplo, tenha optado pela não assinatura da coautoria de um longa-metragem, já que não ficava nada bem para um membro da Academia Brasileira de Letras estar às voltas com o cinema (ALMEIDA, 1999ALMEIDA, Claudio Aguiar. O cinema como “agitador de almas”: argila, uma cena do Estado Novo. São Paulo: Annablume, 1999.). Não é estranho que tanto se diga a respeito do Estado como agente repressor das aspirações artísticas do cinema se os intelectuais e os artistas consagrados foram aqueles que mais as rejeitaram?

Nem todos os artistas e intelectuais cerraram os olhos diante da hipótese de considerar o cinema como uma arte digna de tal nome. A bem dizer, muito mais do que condenado em bloco, o cinema foi sucessivamente pensado de muitas maneiras, sendo a arte apenas uma das possibilidades de nomeá-lo e, dessa feita, de inteligibilizá-lo. Isto é, o cinema dizia-se de muitos modos. Pois bem, se o cinema não nasceu atrelado à noção de arte, em vez da defesa retrospectiva de uma suposta essência do cinema como arte, mais vale levar a cabo o mapeamento das estratégias empregadas na modificação do estatuto do cinema.

Isso significa, precisamente: a materialidade dos elementos narrativos que compõe os filmes de Charles Chaplin - filmes aos quais não se atribuíam o qualificativo de artístico no momento de seu aparecimento - foi sempre idêntica. O modo de compreendê-la, entretanto, alterou-se ao longo das décadas. Com isso, não estamos deixando escapar o fato de Chaplin ter gozado de enorme prestígio desde muito cedo. Significa apenas que o valor positivo do cinema do Vagabundo não se nutria de atributos artísticos. Continuamente, o valor do cinema de Chaplin foi catapultado pelo cinema educativo. Das 15 comédias disponibilizadas pelo INCE em regime de empréstimo às escolas, sete pertenciam ao Vagabundo (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO, 1955ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO, 1955. ). Ao que tudo indica, antes de ser tocado pelas musas, Chaplin foi cavalgado pelos professores. Todavia, nenhuma dessas iniciativas de inteligibilização do cinema se compara à força do movimento cineclubista no que toca a fixação do estatuto do cinema arte a partir de finais da década de 1940.

O movimento cineclubista

É a partir da década de 1940 que se multiplicam as vertentes teóricas que defendem a visão do cinema como arte. Consequentemente, é a partir de tal ano que explodem as lamentações sobre o sem tamanho da cegueira dos homens que viveram no passado sem reconhecer a nervura artística do cinema. Sediada no Museu de Arte Moderna, o encerramento da I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro, ocorrida no dia 16 de dezembro de 1952, terminava lamentando o fato de que a fulcralidade de Humberto Mauro na construção do cinema como uma arte no Brasil tenha sido ignorando por tantos patrícios e por tantos anos consecutivos (ORTIZ, 1949ORTIZ, Carlos. Cartilha do cinema. São Paulo: Editora Iris, 1949.). O enxovalho de críticas ao passado continuava a fluir. Assim, os ais de Alex Viany dirigiam-se ao fato de a critica brasileira não ter atribuído o devido valor à arte de Humberto Mauro, já que o grosso dos críticos ainda não tinham em posse a “noção da grandeza dele” (VIANY, 1959VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. São Paulo: Instituto Nacional do Livro, 1959.). Pois bem, não podemos seguir sem destacar o que está em jogo nessas releituras cineclubistas do passado. Em nosso entender, a reinterpretação responsável por elevar o cinema à esfera da arte não traduziu a descoberta tardia da verdadeira natureza do cinema, mas sim refletiu a entrada em cena de um novo regime de descrição dos afazeres cinematográficos, o qual cumpriu objetivos políticos específicos.

Sem sombra de dúvida, a simples existência do formato cineclubista, formato criado com o fito de aprofundamento das reflexões sobre cinema, representava um valiosíssimo gesto de valorização do cinema:

Todo aquele que pretende fazer justiça, parece-nos que terá de dizer que Clube de Cinema de Coimbra para já, por tudo o que tem feito, dignifica o cinema. É já alguma coisa, e é com certeza o mais essencial do seu programa (BOLETIM CINECLUBE DE COIMBRA, 1960BOLETIM CINECLUBE DE COIMBRA , 1960. ).

É preciso ter em mente que os cineclubes muitas vezes sequer possuíam sede própria. De modo que, se quisessem ascender a planos mais elevados da cultura, não podiam seguir sendo acolhidos pelos clubes de “campismo” (BOLETIM CINECLUBE IMAGEM, 1957BOLETIM CINECLUBE IMAGEM, 1957. ). O dispositivo de institucionalização era fundamental não apenas porque o cinema não se encontraria destelhado, mas porque a institucionalização supunha a aproximação entre as autoridades cineclubistas e as autoridades estatais. Dito de outro modo, os cineclubes buscaram na legalização de suas atividades o apoio necessário contra as palavras de desprezo de parte da opinião pública que ainda via o trabalho cineclubista com desconfiança, pois os cineclubistas não podiam continuar a “aceitar sem protesto o comentário de certos jornalistas” (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1954BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO. Lisboa, 1954.), que publicavam matérias com o único fito de atingir os seus dirigentes e seu amor pelo cinema.

Assim, o movimento de legalização despontava como uma estratégia para blindar os cineclubes e seus representantes contra as dificuldades e incompreensões, contra a apatia cultural em que se vivia, contra as inúmeras forças que atuavam no sentido de ensejar “certo ambiente de hostilidade à ideia cineclubista” (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1954BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO. Lisboa, 1954.). Enfim, o enquadramento legal dessa modalidade de aprendizado e de exibição de cinema assinala o momento histórico em que o Estado conferiu um justo reconhecimento aos esforços do movimento cineclubista, reconhecendo em termos legais o que até ali era apenas uma situação de fato. Gradualmente, os dirigentes cineclubistas passaram a demandar com mais intensidade o reconhecimento estatal, reconhecimento que se materializava na validação do Estatuto Cineclubista, cujas eventuais restrições e regulações impostas à liberdade dos associados e dirigentes ver-se-iam compensadas pela valorização do cinema suposta na parceria entre Estado e cineclubes: “A este propósito não me parece descabido lembrar que tal tarefa - enorme, difícil e complexa tarefa - assentava na base da pura valorização da atividade dos Cine-Clubes (BOLETIM CINECLUBE DO PORTO, 1958BOLETIM CINECLUBE DO PORTO . Porto, 1958.).

Em 1956, o Cineclube de Estremoz, ao relatar o encontro entre o Secretário Nacional de Informação e os membros da Comissão Consultiva dos Cineclubes Portugueses, que teve lugar no palácio da Foz, fazia questão de registrar que os dirigentes e membros dos cineclubes tinham ganho, ali, a certeza de que “altas entidades oficiais tomaram consciência da importância nacional do movimento cineclubistas” (BOLETIM CINECLUBE DE ESTREMOZ, 1956BOLETIM CINECLUBE DE ESTREMOZ, 1956. ).

Do ponto de vistas das imbricações entre as práticas pedagógicas cineclubistas e a valorização do cinema, a captação dos sentidos subjacentes supostamente imputados à obra fílmica pela genialidade do diretor constituía o primeiro passo no processo de valorização do cinema como uma arte. O trabalho de escavação das intenções do autor e sua biografia só eram completos, no entanto, se relacionados não apenas as duas figuras da interioridade do autor (a intencionalidade e a pessoalidade), mas também ao lote de filmes já produzidos pelo autor. Daí o Cineclube Católico considerar como igualmente imprescindível a reunião das peças fílmicas que compunham o itinerário estético traçado pelo diretor de cinema. Ao lado da biografia, a bio-filmografia (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1958BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1958.).

Após o vai-e-vem entre a intencionalidade e a pessoalidade do autor e os filmes produzidas pelo próprio, o espectador idealizado pelos cineclubes tinha que saltar das pequenas ilhas imagéticas de cada diretor em direção à totalidade das imagens veiculadas pelo cinema em geral, aquilo que foi designado pelo Cineclube Católico como evolução da arte cinematográfica:

Os filmes [...] situam-se em relação à obra de seu autor e à evolução da arte cinematográfica - razão porque tentaremos sempre aproximá-los de uma e outra, através de estudos algumas vezes amplos sobre autores e análises de ideias em contraposição (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1959BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1959.).

A independentização dos temas presentes nos filmes face à figura do autor tomou alguns caminhos: a organização por gêneros (Western, suspense, etc.), as escolas modernas de cinema (noir, Nouvelle Vague, neo-realismo italiano, etc.), o cinema nacional (francês, italiano, brasileiro, etc.), ou, ainda, a classificação advinda da natural pujança própria de certas temáticas. É o que se encontra dito no programa do Cineclube Católico, nomeadamente na parte final, intitulada Porque exibimos este filme: “Para enquadrar estes filmes no ciclo Inquérito sobre o Amor Humano podemos considerá-lo sob variadas perspectivas, o que, de resto, é inevitável dada a imprecisão do tema” (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1959BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1959.).

O racismo, o amor, a violência, temas que causavam profunda “impressão”, autorizavam uma abordagem do universo fílmico tida como adequada. Iniciado após o término da guerra, o neorrealismo italiano não era nada além do esforço de jovens cineastas que “procuraram abstrair-se da forma para aprofundar com a verdade no conteúdo” (BOLETIM CENTRO DE ESTUDOS DE MINAS GERAIS, 1958BOLETIM CENTRO DE ESTUDOS DE MINAS GERAIS, 1958. ). Mas mais. Todas as formas de leitura concentradas na análise temática poderiam e deveriam se vincular as chamadas ideias em contraposição. Eis o trampolim pedagógico a partir do qual os espectadores se lançavam na direção de outros domínios artísticos e não-artísticos:

Agora, porém, o nosso objetivo é, não só tratar a questão de maneira directa e sistemática, como também lançar as vistas sobre as relações do cinema com as outras artes. Em primeiro lugar, portanto, o enquadramento da arte numa perspectiva cristã, que é a perspectiva do C.C.C.; depois a análise das várias formas de expressão artística através do cinema (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1960BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1960.).

Quer dizer, o dispositivo temático oferecia ao cinema a chance de caminhar pelos circuitos das artes consagradas. O que importa ir percebendo é o fato de o cinema arte, muito mais do que se afastar do cinema comercial, adotou medidas positivas de valorização de si, especialmente por intermédio da aproximação com outros campos estéticos, mas também não estéticos.

Apesar de sua espinha dorsal cristã, o Cineclube Católico contava com uma enorme variedade de enquadramentos de filmes, dentre os quais a sessão permanente de estudos chamada Sociologia. Do mesmo modo, os estudos do Cineclube Pró Deo saltavam para lá do perímetro dos assuntos religiosos em prol da caminhada no “terreno da estética, da técnica, da sociologia, da pesquisa, da psicologia, da História” (BOLETIM CINECLUBE PRO DEO, 1962BOLETIM CINECLUBE PRO DEO, 1962. ), não ficando atrás da vasta bibliografia de psicologia do Cineclube Don Vital (BOLETIM CENTRO DOM VITAL, 1957BOLETIM CENTRO DOM VITAL. São Paulo, 1957.). A compreensão do filme pelo espectador não nascia simplesmente do contato com a obra fílmica, sendo indispensável a perspectivação dos elementos à primeira vista estranhos ao filme, sem os quais o estudo restaria incompleto, sobretudo se não atinasse para o “jogo de influências recíprocas entre o artista e o ambiente social” (BOLETIM CINECLUBE DO PORTO, 1954BOLETIM CINECLUBE DO PORTO . Porto, 1954.).

Ao sociologizar o cinema, os cineclubes faziam com que o diretor de cinema, uma vez reposicionado como sujeito social, não fosse senão um ser reativo condenado a responder às convocações e injunções do meio social. Regra aplicável à totalidade dos artistas, diga-se de passagem. Se existem homens “antissociais” (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1955BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO. Lisboa, 1955.), jamais existiram homens associais. A reatividade característica do ser social não o transformava em uma criatura submissa às forças do social. Por isso, o esforço de inteligibilização da conduta do artista, bem como de suas obras fílmicas, exigia que o espectador substituísse o modelo da causalidade pelo da reciprocidade entre ambiente e indivíduo, gesto analítico que atendia pelo nome de interação:

Por interações designam-se as ações e reações mútuas da individualidade e do ambiente um com o outro, pois que não só o ambiente actua sobre o indivíduo, como também este pode mais ou menos modificar o ambiente, em diversos sentidos (BOLETIM CINECLUBE DO PORTO, 1954BOLETIM CINECLUBE DO PORTO . Porto, 1954.).

Para o Cineclube Dom Vital, a interatividade traduzir-se-ia no esmiuçamento das relações entre o artista e o entorno. Sociologizado, o conhecimento do filme dependia, então, cada vez mais do conhecimento do não-filme. Ora, o dispositivo de sociologização do objeto fílmico cumpria dois objetivos distintos e complementares. O primeiro deles: aumentar o interesse dos especialistas de outras áreas pelo cinema. Era assim que o cineasta medíocre, entendido como mero reflexo do meio social, granjeava pertinência em diversos campos de estudo. Se grandes cineastas não se furtavam aos condicionamentos sociais, “os poetas menores” (BOLETIM CINECLUBE DO PORTO, 1958BOLETIM CINECLUBE DO PORTO . Porto, 1958.), pela menor potência de transformação do real, exprimiam com mais clareza o conteúdo social que lastreava suas criações. Quanto mais os cineclubes se “sociologizavam”, maior a quantidade de filmes integrados ao processo de aprendizagem sobre cinema, mas também maior o número de autoridades socialmente reconhecidas debatendo o cinema.

De posse do dispositivo de sociologização do cinema, a formação cineclubista não se esgotava no estudo dos filmes exibidos, escapando ao perigo no qual tropeçavam não só os sócios, “como até animadores e dirigentes dos cineclubes”, em suma, todos aqueles que subestimavam a referenciação ao real “em favor do cinema” (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1957BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1957.), precisamente o que os cursos sobre Marx pretendiam remediar (BOLETIM CENTRO DE CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES, 1962BOLETIM CENTRO DE CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES, 1962. ). Sumarizando: por meio da identificação do filme como um espelho da realidade social, incontáveis disciplinas - dotadas de autoridades competentes específicas - foram paulatinamente acolhidas pelas rotinas discursivas implementadas nos cineclubes.

Em maio de 1957, depois de elencada a trupe de peso que compunha o corpo docente do Cineclube Dom Vital (Paulo Emílio Salles Gomes, Francisco Luís de Almeida Salles, Álvaro Malheiros, Gilberto Souza Lima, Rudá de Andrade, Máximo Barro, Caio Scheiby, Helio Furtado Amaral, entre outros), o boletim cineclubista anunciava a grade de estudos daquele ano, que ia desde Aristóteles até o antagonismo entre ciências empíricas e filosofia no século XVIII. Assim, era a “adequação entre o tema e os conferencistas” (BOLETIM CENTRO DOM VITAL, 1957BOLETIM CENTRO DOM VITAL. São Paulo, 1957.), produzida pelo dispositivo da sociologização, que dava ensejo à ampliação da presença de autoridades nacionais e internacionais nas conferências dos cineclubes. Portanto, a fim de ganhar o estatuto de arte, o cinema teve que atrair autoridades.

Quer dizer, as autoridades, nesse caso, não tinham apenas a função de vigiar e punir, mas também de valorizar o cinema. Fundado em 1921, no Rio de Janeiro, por Jackson de Figueiredo, o Centro Dom Vital, que só ganharia uma filial paulistana em 1954, tornar-se-ia um importante ponto de convergência de intelectuais. É de encher os olhos: (Figura 1).

Figura 1 -
Boletim Centro Dom Vital, 1954.

Se o campo cinematográfico tinha a necessidade de magnetizar autoridades de toda sorte para ser interpretado como artístico, não se pode compreender o devir do cinema sem tirarmos do anonimato o modo pelo qual funcionaram os sistemas de parceria arquitetados pelas autoridades cineclubistas. Parceria que, como vimos, supunha a costura com esferas não artísticas e que, como veremos, supusera também a costura com esferas artísticas.

Com o propósito de fazer com que o cinema passasse a ser definitivamente encarado com respeito, os cineclubes aproximaram-se de outros campos artísticos socialmente consagrados. Tinha início, então, uma intensa colaboração com escritores, pintores, músicos, etc. Basta pensar, por exemplo, no curso de História da arte, realizado em conjunto com o Museu Machado de Castro, em 1958, ou, então, nos Estudos Literários junto à Associação Acadêmica de Coimbra no teatro da faculdade de letras, onde foram apresentadas investigações concernentes à relação entre cinema e poesia (BOLETIM CINECLUBE DE COIMBRA, 1961BOLETIM CINECLUBE DE COIMBRA , 1961. ). Em ambos os casos:

Trata-se de uma iniciativa inteiramente inédita em Portugal e que pelo seu valor vem colocar o cineclubismo num plano a que ele ainda não tinha ascendido e no qual tem necessidade de se colocar quanto antes, pois não pode abdicar de suas prerrogativas culturais, antes deve afirmá-las cada vez mais (BOLETIM CINECLUBE DE COIMBRA, 1955BOLETIM CINECLUBE DE COIMBRA, 1955. ).

O dispositivo da sociologização magnetizava capital cultural para o cinema. No entanto, se tal dispositivo reforçava a legitimidade do cinema como acontecimento social dotado de valores positivos, não dava conta da elevação do cinema à categoria de arte. Se é verdade que o psicanalista, o sociólogo, mas também as autoridades vinculadas ao Estado, embalados pela tese de o cinema refletir o real e contribuir para o conhecimento em geral, garantiam o cabimento dos estudos cinematográficos como meio de elucidação da vida social, em compensação não atuavam suficientemente no sentido de realçar o estatuto artístico do cinema. De modo que, paralelamente o dispositivo da sociologização, os cineclubes tinham que lançar mão do dispositivo da culturalização do cinema, já que era imperativo tentar demonstrar o cabimento de a cultura ser fomentada pelo contato com o cinema (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1959BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1959.). Nesse caso, quando as autoridades falavam de cinema, falavam do incremento do caldeirão cultural propiciado pela inclusão do cinema no campo das artes consagradas. Daí a afirmação feita na I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro encaminhar-se em direção à exaltação da cultura:

A Mostra se revestiu ainda de alto sentido cívico. A afirmação do cinema brasileiro é uma afirmação de nossa vitalidade cultural, de nossa presença, há longo tempo, no campo de uma arte que só medra e viceja nos países de grande sedimentação cultural (ORTIZ, 1949ORTIZ, Carlos. Cartilha do cinema. São Paulo: Editora Iris, 1949.).

Após o elenco dos rudimentos indispensáveis para que qualquer cineclube viesse a “trabalhar pelo bom cinema”, Didonet encerrava sua argumentação esclarecendo que o objetivo maior de um cineclube consistia em, “através do cinema, conquistar a cultura” (DIDONET, 1963DIDONET, Humberto. Associativismo. São Paulo: SESI, 1963., p.17). Se o Cineclube Dom Vital via-se a si mesmo como “representante do que melhor poderia oferecer São Paulo”, isso devia-se à sua “posição de reafirmação dos legítimos valores da Cultura através do cinema” (BOLETIM CENTRO DOM VITAL, 1961BOLETIM CENTRO DOM VITAL. São Paulo, 1961.), sendo a formação cinematográfica a porta de entrada para a formação de uma Paideia apta a englobar outros domínios artísticos, o que explica, entre outras coisas, o incentivo dirigido aos membros do Cineclube Dom Vital para que frequentassem o MASP e para que se engajassem no conhecimento das obras de Boticelli, Bosh, Van Dyck, Reynalds, El Greco, Goya, etc. Culturalizado, o cinema apresentava-se como um exímio divulgador das artes, como se a experiência cinematográfica atuasse como o meio privilegiado para a “abertura de muitas pessoas para a arte em geral” (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1958BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1958.). Os dirigentes insistiam na ideia de que:

Ensinando-se uma arte eclética, como o cinema, amplia-se a cultura individual na sua generalidade, pois isso contamina, pela elevação do espírito, a noção do conhecimento das outras artes, não só de ficção como as plásticas e até a música (BOLETIM CINECLUBE DE AVEIRO, 1955BOLETIM CINECLUBE DE AVEIRO, 1955. ).

Convertido em um bem cultural, o cinema forjava as condições de possibilidade para que pudesse ser convertido em uma das disciplinas das grades curriculares de instituições que não se dedicavam exclusivamente ao estudo do cinema. Fundado a 31 de outubro de 1931 em Campinas, o Centro de Ciência, Letras e Artes, cuja demora no acolhimento do estudo de cinema nos seus programas de estudo era notória, não podia continuar a ignorar a necessidade de ministrar cursos de cinema, pois não podia mais se furtar a alegação de que o cinema constituía uma das etapas na formação dos que não abriam mão de uma “visão totalizada de cultura” (BOLETIM CENTRO DE CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES, 1962BOLETIM CENTRO DE CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES, 1962. ). O homem culto, aquele que conhecia os trabalhos de Bosh, Van Dyck, Reynalds, El Greco, Goya, também teria que conhecer os trabalhos de Hitchcock, Kurosawa, Antonioni, entre outros.

Ainda que nos pareça natural, quando não indiscutivelmente benéfica, a associação entre o cinema e as artes, cumpre lembrar a absoluta inexistência de indicações afixadas na porta de entrada de concertos de música clássica incitando a ida de seus espectadores ao cinema. Alguém imaginaria esbarrar nos corredores dos teatros nacionais e internacionais por onde rebolam as melodias do pianista Nelson Freire com avisos semelhantes aos impressos pelo Cineclube Dom Vidal ao final do seu boletim (Figura 2):

Figura 2 -
Boletim Centro Dom Vital, 1957.

Entre os dispositivos de endereçamento ao cinema confeccionados pelas políticas cineclubistas, merece igual destaque o dispositivo da adaptação. Pois, por meio dele, os dirigentes puderam pluralizar os pontos de contato entre o cinema e as esferas artísticas, de onde o cinema arte extrairia parte significativa do seu valor como arte. Secundarizando o papel do conceito de realidade como fonte explicativa da imagem cinematográfica, o dispositivo da adaptação projetava nas artes circunvizinhas as condições de conhecimento sobre o funcionamento do cinema, de modo que a ampliação da compreensão daquilo que se via em uma exibição cineclubista passava a depender menos da captação da realidade registrada nas imagens em movimento (tal como propunha o dispositivo da sociologização) e mais dos sistemas de relação que o cinema estabelecia entre os mais variados campos estéticos, incluindo aí a literatura infantil:

A exibição de as aventuras de tim-tim. “O aspecto que mais justifica a exibição deste filme num Cineclube está na adaptação cinematográfica. Sem desprezar todos os outros valores, é este o que, no caso, merece mais concretamente a atenção de quem goste de aprofundar e compreender melhor o que vê no cinema (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1960BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1960.).

Portanto, o dispositivo da adaptação não arrastava o espectador no sentido de averiguar a correspondência entre as imagens cinematográficas e as coisas de que as imagens são imagens; ligava-o à exigência de compreender o funcionamento dos campos estéticos consagrados para levar a cabo a tarefa de compreender o cinema. O dispositivo de adaptação mergulhava o cinema no mundo das artes, fixando um nexo de implicação entre o conhecimento das artes em geral e progresso do conhecimento cinematográfico. Os grandes nomes do teatro e da pintura não apenas se somavam ao cabedal de conhecimento do homem culto. Quanto mais saber o espectador de cinema reunisse sobre Bosh, Van Dyck, Reynalds, El Greco, Goya, mais dilataria seu conhecimento sobre cinema. Por essa rzão, o Cineclube do Porto não podia deixar de citar uma fala que atribuía ao cineasta russo Alexandre Nevski:

Quantos trabalham no domínio do cinema artístico deveriam, não apenas estudar atentamente a dramaturgia e a representação, mas assenhorar-se, com aplicação não menos inferior, de todas as subtilezas da montagem em cada uma das outras formas de arte (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1958BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1958.).

As tais subtilezas foram batizadas de ontologia. Doravante, pipocariam ontologias de toda ordem; entre teatro e cinema, literatura e cinema, música e cinema, bailado e cinema. Ora, a partir do momento em que o imperativo de conhecimento do cinema pelo acesso ao funcionamento de diversos campos estéticos era edificado pelos cineclubes, a leitura ramificava-se por tudo aquilo que transportasse em si o signo de artístico.

Quem se predispusesse a empreender uma adequada captação de todos as nuances do processo de adaptação do livro O retrato de Dorian Gray para o cinema teria, então, de aproximá-lo das outras produções literárias de que o livro se mostrava devedor, sobretudo havendo indícios de sobra a indicar inúmeros pontos de contato entre O Retrato de Dorian Gray e o livro O médico e o monstro. Do mesmo modo, como não saltar deste último livro para o Fausto, de Goethe, cujas formulações e encadeamentos narrativos certamente embasaram sua confecção, segundo os dirigentes cineclubistas? Paulatinamente, o imperativo de leituras voltadas à ampliação indireta do conhecimento sobre o cinema esparramava-se pelo interior dos cineclubes. Fosse como fosse, os espectadores foram sendo confrontados com a obrigação de escrutinar a fundo e amplamente tanto o cinema quanto os demais saberes ditos artísticos, já que se tratava de impedir que o cinema se encerrasse “em si mesmo” (BOLETIM CINECLUBE DO PORTO, 1955BOLETIM CINECLUBE DO PORTO . Porto, 1955.).

Não à toa o livro de Walter da Silveira começa com a afirmação de que o cinema, sendo uma arte narrativa, vale-se do espaço (como a pintura) e do tempo (como a música), mas também e, sobretudo, vale-se do romance, porque um filme “se origina e termina no tema em decurso” (SILVEIRA, 1966SILVEIRA, Walter da. Fronteiras do cinema. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro LTDA, 1966., p.17). Nessa toada, os dirigentes do Cineclube do Porto lembravam os associados que os críticos que se debruçaram sobre os filmes de Emílio Fernández invocam invariavelmente o “ponto de contato existentes entre o cinema de Fernández e a pintura moderna mexicana” (SILVEIRA, 1966SILVEIRA, Walter da. Fronteiras do cinema. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro LTDA, 1966., p.17). Na sessão seguinte, o imperativo de conhecer as demais artes para conhecer o que havia de artístico no cinema era visto como algo a ser permanentemente ampliado:

De molde a abraçar não só a pintura, mas todas as restantes artes, mormente a literatura, a escultura, a música e a arquitetura - melhor dizendo, toda a cultura de um povo (SILVEIRA, 1966SILVEIRA, Walter da. Fronteiras do cinema. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro LTDA, 1966., p.17).

Passo a passo, os espectadores eram conduzidos até o ciclo intitulado A evolução da arte desde a pré-história aos nossos dias, ciclo que contava com os estudos dos seguintes temas:

Pré-história; primitivismo atuais; arte grega e romana; arte pré-romântica; arte românica; artes e técnicas artísticas; aspectos do renascimento; uma exaltação pré-romântica de massas, corpos e almas; neoclassicismo; romantismo e realismo; impressionismo e pós-impressionismo; o cubismo e o novo espírito da criação artística; o surrealismo e a arte abstrata (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1958BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1958.).

Esse ciclo de estudos tinha um nome no interior do Cineclube Católico. Segundo os dirigentes do Cineclube Católico, tratava-se de entender o cinema segundo o mote da arte total, que teria como sustentação a montagem de calhamaços cinematográficos cada vez mais numerosos e específicos:

Devido à complexidade inerente ao fenômeno artístico, desde o início certos teóricos se preocuparam sobre se a arte do cinema envolveria as outras artes. Canudo e Leon Moussinac objetaram esse aspecto definindo o cinema como “a arte total” para a qual tenderiam todas as outras, opinião que também se encontra em Elie Faure (BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO, 1958BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1958.).

Pela pintura, o espírito humano dominou as formas. Pela arquitetura, apossou-se do espaço. Pela poesia e pela música, obteve o movimento. Mas a grande síntese de todas as artes - eterna aspiração da humanidade - foi obtida pelo cinema (DIDONET, 1959DIDONET, Humberto. Promoção de bons filmes. Porto Alegre: Edições Paulinas, 1959.). Isto é, cada vez mais o cinema vinha sendo levado em consideração a título de uma manifestação artística que não se conformava em ser “estática, isolável e inerte”, e que aspirava a ser “dinâmica, total e viva” (DIDONET, 1959DIDONET, Humberto. Promoção de bons filmes. Porto Alegre: Edições Paulinas, 1959.), certamente a maneira de lutar contra o fato de que o cinema, entendido como arte, ainda sofria as consequências de ter permanecido durante muito tempo “à margem da consideração das elites” (BOLETIM CENTRO DE CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES, 1962BOLETIM CENTRO DE CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES, 1962. ).

Quaisquer que tenham sido as estratégias de valorização do cinema como arte, há entre elas um denominador em comum, que cumpre destacar em jeito de finalização. Todas essas estratégias calcadas na construção de dispositivos específicos de endereçamento ao cinema, usualmente ofertados aos espectadores pelos cineclubes, tinham o condão de impelir os espectadores a associarem-se a outros campos estéticos (à música, ao teatro, etc.), a outras instituições (museus, universidades, etc.), construindo, nesses sucessivos gestos, o campo cinematográfico. No momento em que os dirigentes cineclubistas e críticos de cinema imaginavam oferecer formas de compreensão da natureza das imagens em movimento, eles também punham em funcionamento - ainda que inconscientemente - uma pletora de circuitos de estudos que acabaram por construir, peça por peça, o rosto do cinema no próprio gesto de aparentemente apenas descrevê-lo.

Como vimos até aqui, não é tão simples compreender as mutações dos modos de inteligibilização do cinema no quadro dos dispositivos que se encaminhavam no sentido de valorizá-lo como arte. De todo modo, o que importa reter é o seguinte: o processo de formação de algo como um campo cinematográfico foi indissociável das modalidades de endereçamento ao cinema, na medida em que a existência deste campo - com regras, vocabulários, alianças, etc. - não preexistia aos modos de relacionamento com o cinema. À contramão do que se costuma supor, a construção da imagem do cinema artístico dependeu, em larga medida, das atitudes cognitivas que os espectadores foram levados a adotar no cinema.

Referências

  • ALMEIDA, Claudio Aguiar. O cinema como “agitador de almas”: argila, uma cena do Estado Novo. São Paulo: Annablume, 1999.
  • DIDONET, Humberto. Promoção de bons filmes Porto Alegre: Edições Paulinas, 1959.
  • DIDONET, Humberto. Associativismo São Paulo: SESI, 1963.
  • FERRO, António. As grandes trágicas do silêncio Lisboa: Monteiro e Companhia, 1917.
  • FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002.
  • FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciência e História dos Sistemas de Pensamento. São Paulo: Forense Universitária, 2008.
  • NOBRE, Roberto. Horizontes de Cinema: ensaios. Lisboa: Guimarães e Editores, 1939.
  • ORTIZ, Carlos. Cartilha do cinema São Paulo: Editora Iris, 1949.
  • SILVEIRA, Walter da. Fronteiras do cinema Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro LTDA, 1966.
  • VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro São Paulo: Instituto Nacional do Livro, 1959.

Fontes primárias

  • ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO, 1955.
  • BOLETIM CENTRO DE CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES, 1962.
  • BOLETIM CENTRO DE ESTUDOS DE MINAS GERAIS, 1958.
  • BOLETIM CENTRO DOM VITAL. São Paulo, 1957.
  • BOLETIM CENTRO DOM VITAL. São Paulo, 1961.
  • BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO. Lisboa, 1954.
  • BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO. Lisboa, 1955.
  • BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1957.
  • BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1958.
  • BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1959.
  • BOLETIM CINECLUBE CATÓLICO . Lisboa, 1960.
  • BOLETIM CINECLUBE DE AVEIRO, 1955.
  • BOLETIM CINECLUBE DE COIMBRA, 1955.
  • BOLETIM CINECLUBE DE COIMBRA , 1960.
  • BOLETIM CINECLUBE DE COIMBRA , 1961.
  • BOLETIM CINECLUBE DE ESTREMOZ, 1956.
  • BOLETIM CINECLUBE DO PORTO. Porto, 1952.
  • BOLETIM CINECLUBE DO PORTO . Porto, 1954.
  • BOLETIM CINECLUBE DO PORTO . Porto, 1955.
  • BOLETIM CINECLUBE DO PORTO . Porto, 1958.
  • BOLETIM CINECLUBE IMAGEM, 1957.
  • BOLETIM CINECLUBE PRO DEO, 1962.

Editado por

Editores:

Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2018
  • Aceito
    15 Jun 2019
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