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“Graffiti é existência”: reflexões sobre uma forma de citadinidade

“Graffiti is existence”: thoughts on a way of living in the city

Resumo

A partir dos aprendizados de uma etnografia das práticas de graffiti de São Paulo, realizada nos anos de 2016 e 2017, este artigo propõe um deslocamento do olhar a respeito deste fazer, a fim de refletir sobre aquilo que lhe escapa à primeira vista, isto é, certas dinâmicas que estão para além dos muros da cidade. Busca-se, sob esta perspectiva, descrever e refletir sobre os efeitos que estas práticas produzem nos sujeitos que pintam na rua, especialmente no que diz respeito à formulação de suas identidades e à maneira com que se relacionam com o espaço urbano. Este entendimento permite evidenciar a elaboração de uma existência particular na cidade, informada pelas experiências de pintar na rua.

Palavras-chave:
graffiti; arte urbana; antropologia urbana; citadinidade

Abstract

Based on an ethnography of the graffiti practices of São Paulo, held in 2016 and 2017, this article proposes a displacement of the look on this subject, to reflect on what escapes it, at first sight, that is, specific dynamics that are beyond the walls. In this perspective, we seek to describe and reflect on the effects those practices have on writers, especially about the formulation of their identities and how they interact with the urban space. This understanding allows us to highlight an elaboration of a particular way of living in the city, informed by the experiences of painting on the street.

Keywords:
graffiti; street art; urban anthropology; city

Graffiti is about doing it, being it, and getting it. 1 1 “Graffiti é sobre fazer isso, ser isso e pintar isso” (Powers, 1999, p. 6, tradução minha).

Stephen Powers

Anotei este trecho do livro de Stephen Powers desde a primeira vez que o li, quando fazia pesquisa bibliográfica na cidade de Nova Iorque, em decorrência de minha investigação de mestrado, à época em andamento. A afirmação de Powers, ele também um sujeito que pinta na rua, ecoa e sintetiza - de forma simples e direta - muitas das falas dos interlocutores com quem trabalhei na cidade de São Paulo, que a todo momento alertavam, mostravam e enunciavam: graffiti2 2 Adoto a grafia graffiti, e não “grafite”, considerando a maneira como os interlocutores de minha pesquisa o fazem. Portanto, não se trata de uma escolha trivial, seja no contexto deste artigo ou na escolha dos sujeitos que fazem graffiti. Como Manuela Carneiro da Cunha (2017) bem nos ensina, o uso de termos de empréstimo revela que há uma escolha de preservar o vinculo a determinado registro, neste caso as práticas de graffiti que têm sua origem em Nova Iorque e Filadélfia e ao movimento hip-hop. Em outras palavras, a manutenção da grafia denota um vínculo com certas maneiras de ser e fazer que tem correspondência em outros contextos. Para uma análise aprofundada sobre o tema, ver Gabriela Leal (2018, p. 41-64). não é uma tinta no muro, é toda uma outra coisa, como procurarei elucidar aqui.

As descrições e reflexões apresentadas neste artigo derivam de pesquisa etnográfica que realizei em São Paulo nos anos de 2016 e 2017 (Leal, 2018LEAL, G. P. de O. Cidade: modos de ler, usar e se apropriar - uma etnografia das práticas de graffiti de São Paulo. 2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.). Nesse período, acompanhei sujeitos que começaram a fazer graffiti entre os anos 1980 e o início dos anos 2000 - pertencentes, respectivamente, à old school e à new school, de acordo com classificação por eles elaborada, também registrada por Sergio Franco (2009FRANCO, S. Iconografias da metrópole: grafiteiros e pixadores representando o contemporâneo. 2009. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009., p. 71). O recorte geracional possibilitou ter contato com interlocutores de larga experiência de pintura na rua, que, por conseguinte, possuem um repositório diverso de relatos e maneiras de fazer relacionados ao espaço urbano, dimensão particularmente importante para a investigação que eu levava a cabo. Além disso, a etnografia concentrou-se majoritariamente em práticas de graffiti masculinas, o que implica dizer que os artigos, pronomes e adjetivos masculinos não são aqui empregados no sentido “universalizante” da ciência, mas são corporificados. Em outras palavras, dizem respeito a procedimentos e experiências de homens nas práticas de graffiti de São Paulo que, por sua vez, são descritos e analisados sob o ponto de vista de uma pesquisadora mulher. Trata-se de uma perspectiva parcial e de um conhecimento localizado (Haraway, 1995HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, Campinas, n. 5, p. 7-41, 1995., p. 21).3 3 Acerca das escolhas textuais aqui adotadas, faz-se necessária outra observação: tal como na dissertação, suprimi os nomes dos interlocutores com quem trabalhei, a fim de preservar as suas identidades em contextos e situações específicas, visto que as práticas de graffiti são consideradas ilegais na cidade de São Paulo e sofreram forte repressão em parte do período pesquisado. Há somente uma exceção, conforme abordarei adiante.

Além do gênero masculino, de modo geral, os interlocutores possuem outra característica em comum: moraram ou ainda moram em bairros periféricos da cidade, sem, no entanto, limitarem suas práticas de pintura a tais territórios; longe disso, desde a iniciação nas práticas de graffiti, circulam intensa e extensamente pelo espaço urbano paulistano. A fim de acompanhar variadas situações de pintura, o trabalho de campo colocou-se em movimento, o que permitiu ter contato com diferentes sujeitos e procedimentos destas “práticas microbianas, singulares e plurais” (Certeau, 2012CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 162). Os deslocamentos desenharam uma etnografia multi-sited (Marcus, 1995MARCUS, G. Ethnography in/of the world system: the emergence of multi-sited ethnography. Annual Review of Anthropology, v. 24, p. 95-117, 1995.), isto é, dada a especificidade do objeto, que não era passível de ser apreendido a partir de um único local de investigação, ela assumiu um caráter móvel, relacionado e com trajetórias inesperadas, conformando-se através de caminhos, conexões, linhas, combinações e justaposições de locais.

À medida que a etnografia constituía um saber outro e desmanchava a familiaridade que eu imaginara ter em relação a tais práticas, foi possível acessar os significados complexos de fazer graffiti na cidade. Esse aprendizado permitiu compreender que do ponto de vista de quem pinta na rua, fazer graffiti remete a algo que não se reduz e não está necessariamente autoevidente nas inscrições que ocupam as superfícies do espaço urbano, pelo menos não para os não iniciados. Para emprestar os termos de Michel de Certeau (2012CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 105), com as devidas mediações, as práticas de graffiti se revelaram como “maneiras de pensar investidas em maneiras de fazer”. Não se trata, pois, de uma atividade acionada pelos sujeitos somente em determinadas situações, ao contrário, ela permeia e informa outras dimensões de suas vidas. Há, portanto, uma subjetividade investida na ação de maneira que é também através desse fazer que eles se constituem.

Nas reflexões que se seguem, elaborarei essa perspectiva a partir de dois pontos principais: a compreensão das práticas de graffiti como elemento importante na produção da existência dos sujeitos que pintam na rua e enquanto uma maneira de se relacionar com os espaços da cidade que não se limita aos momentos de pintura. Para tal, o artigo foi organizado em três seções. Na primeira, procuro destacar aspectos comuns das diferentes trajetórias de vida com que tive contato, os quais foram moldados e informados por essas práticas. Em seguida, busco evidenciar, de forma sintética, como diferentes dimensões da relação desses sujeitos com os espaços urbanos é modificada pela experiência de pintar na rua. Por fim, nas considerações finais proponho articular esse entendimento com questões mais abrangentes do contexto urbano, a partir da noção de forma de citadinidade, de Michel Agier (2011)AGIER, M. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011..

Da iniciação ao projeto

Jardim Eliana, distrito do Grajaú, meados de 1997. Aos 15 anos, Alexandre Luiz da Hora Silva, o NIGGAZ4 4 Como explicado anteriormente (nota 3), optei por suprimir os nomes de rua e de registro (voltarei a isso adiante) do corpo do texto, dado o contexto em que a pesquisa foi realizada. A única exceção refere-se ao Alexandre Luiz da Hora Silva, o NIGGAZ, que aqui faz as vezes de uma homenagem de caráter múltiplo: à sua importância e de suas inscrições; à história do graffiti paulistano; e às trajetórias de vida compartilhadas pelos interlocutores. Essa escolha não tem o intuito de produzir um efeito totalizante e homogeneizante sobre a diversidade de sujeitos com quem trabalhei, mas liga-se à dimensão política e ética na qual as práticas de graffiti e a pesquisa etnográfica encontram-se imbricadas. - jovem negro, pobre, nascido e crescido na periferia de São Paulo -, dava início à sua breve e notável trajetória nas práticas de graffiti. À época, a cena paulistana ganhava outros impulsos com a emergência de uma nova geração, que, ao mesmo tempo que olhava para o passado e aprendia com ele, procurava reinventar e forjar percursos próprios.

Desde a infância, eu desenhava em papéis, e um amigo me fez o convite. No início eu não gostava tanto, mas depois comecei a frequentar o centro de São Paulo, a loja Pixa-In, na galeria [Galeria Presidente, na rua 24 de maio, no centro de São Paulo], comecei a conhecer mais sobre graffiti e até hoje continuo apaixonado (NIGGAZ, 2016NIGGAZ. Entrevista concedida a Binho Ribeiro. In: SILVA, M. N. et al. (org.). Niggaz: graffiti, memória e juventude. São Paulo, 2016. p. 18-29., p. 21).5 5 Entrevista concedida a Binho Ribeiro, em 2003, para a décima edição da revista Livro Negro do Graffiti, reproduzida no livro Niggaz: graffiti, memória e juventude, de 2016.

Aqueles que puderam conviver com NIGGAZ relatam sua ávida paixão, quase obsessão, pelo desenho: desenhava a todo o momento, desde a infância. As ilustrações, que saíram das folhas de papel e tomaram os muros, carregavam influências diversas, como das tirinhas e história em quadrinhos, da pixação6 6 A escolha da grafia com X e não com CH, conforme a norma culta da língua portuguesa, não se deu sem motivo, voltarei a isso adiante. e do cotidiano da periferia; além disso, assimilavam aprendizados decorrentes da convivência com a old school. Em pouco tempo, ele se tornou referência no Grajaú e influenciou profundamente a cena de graffiti que emergia no extremo sul de São Paulo. No entanto, era à cidade que ele pertencia e logo passou a percorrê-la, enfrentando distâncias e restrições econômicas. “Ele foi um dos primeiros do Grajaú a percorrer a cidade para pintar”, certa vez me contou um interlocutor que teve a oportunidade de conviver com NIGGAZ, “ele sumia e não sabíamos para onde ele ia, depois descobrimos que ele percorria a cidade inteira para pintar, o que levou outros a fazerem isso também.”7 7 Fala reconstituída no caderno de campo.

Em seus percursos chegou à Vila Madalena, bairro de configurações e arranjos distintos daquele que ficara a duas horas de distância,8 8 À época a Estação Grajaú (terminal de ônibus integrado à estação de trem), importante ligação entre o extremo sul e a região do bairro de Pinheiros, não existia (fora inaugurado somente em 2003); os trajetos eram feitos sobretudo de ônibus, através de terminais (Portella, 2016, p. 155). onde começou a frequentar as oficinas oferecidas pelo Projeto Aprendiz (atual Associação Cidade Escola Aprendiz).9 9 Ver o site da Associação Cidade Escola Aprendiz: http://www.cidadeescolaaprendiz.org.br (acesso em 03/04/2019). No bairro da zona oeste, NIGGAZ passou a conviver com outros sujeitos que pintavam na rua, vindos de diferentes regiões da cidade e de diferentes contextos socioeconômicos. Nesse período, o Aprendiz, como a instituição ficou conhecida, conformava-se como um importante espaço de trocas, aprendizados e encontros para parte dos integrantes da new school.10 10 Para uma análise da importância dessa instituição nesse período, ver Franco (2009) e Nogueira e Mekari (2016). Para Sergio Franco (2016FRANCO, S. NIGGAZ: as distâncias intransponíveis. In: SILVA, M. N. et al. (org.). Niggaz: graffiti, memória e juventude. São Paulo, 2016. p. 44-49., p. 47), a chegada de NIGGAZ à Vila Madalena estimulou outros a percorrerem a cidade no sentido inverso: das regiões centrais às bordas.

NIGGAZ foi um dos primeiros de sua geração a trilhar um caminho de possibilidades para viver daquela arte: desenvolveu trabalhos encomendados por campanhas publicitárias, ilustrações para jornais e revistas, tornou-se arte-educador e ministrou oficinas. Naquele tempo, onde as alternativas nesse campo começavam a ser criadas, ele já refletia sobre os dilemas e desafios de equacionar o trabalho autoral com o encomendado; isto é, de articular seus próprios desejos com os desejos dos outros.

Meu forte é a ilustração, só que, infelizmente, o mercado da ilustração é um pouco difícil para quem não tem uma formação, não tem um contato. No momento, só faço graffiti e, no ramo do graffiti, ou você se coloca no meio comercial, fazendo trabalhos onde você tenha que se modelar à pessoa, ou você faz oficinas, onde você pode mudar a visão que as pessoas têm sobre o graffiti. (NIGGAZ, 2016NIGGAZ. Entrevista concedida a Binho Ribeiro. In: SILVA, M. N. et al. (org.). Niggaz: graffiti, memória e juventude. São Paulo, 2016. p. 18-29., p. 22-24).

NIGGAZ não teve tempo de experimentar outras possibilidades que emergiriam dessas primeiras oportunidades que ele próprio ajudara a criar, junto com outros que pintavam à época e que continuam a pintar na cidade. Em 2003, prestes a completar 21 anos, foi encontrado morto na Represa Billings, no Grajaú, distrito onde iniciou e findou seu percurso.

Apesar de compreender trânsitos distintos, parte das trajetórias de vida com que tive contato ao pesquisar as práticas de graffiti paulistanas carregava um ponto em comum, tal como descrito na história de NIGGAZ: uma parcela significativa dos interlocutores se descrevia como “uma criança que sempre desenhava”. Em grande parte dos casos, a experiência e o gosto pelo desenho antecederam, pois, a pintura na rua, de maneira que foi comum ouvir relatos daqueles que eram conhecidos em seus círculos afetivos por tal aptidão. Tampouco, entre a maioria deles, a iniciação nas práticas de graffiti se deu tardiamente: muitos começaram a pintar na rua entre os 12 e 17 anos, a partir de convites de amigos da escola ou do bairro. E, muitas vezes, a descoberta da possibilidade de pintar nos muros aconteceu através da pixação, que, algum tempo depois, passou a conviver ou deu lugar às inscrições de graffiti.11 11 A tipografia longilínea e oblíqua das tags retas ou pixos, como são chamadas as inscrições realizadas na pixação, está tão presente no espaço urbano de São Paulo quanto o graffiti, e a relação estabelecida entre elas marca a ambas. A adoção da grafia com X, que escapa à norma culta da língua portuguesa, refere-se à maneira como os pixadores escrevem, uma escolha que, como explica Alexandre Pereira (2005, p. 9-10), procura estabelecer um distanciamento intencional da grafia estabelecida pelas regras da ortografia, com CH, e diferenciar-se de outras inscrições existentes na cidade. Apesar de, no contexto paulistano, ser comum ter contato com narrativas que procuram colocar a pixação e o graffiti em polos opostos de pares dicotômicos - como beleza-feiura e arte-vandalismo -, a aproximação etnográfica possibilitou acessar outras dinâmicas que revelaram uma relação mais próxima e complexa entre essas práticas e seus praticantes. Como vim a descobrir, muitos dos sujeitos estudaram na mesma escola ou moram no mesmo bairro, o que indica a existência de vínculos afetivos e não somente uma proximidade baseada nas características comuns desses fazeres. Ademais, a pixação e o graffiti interagem e se misturam em diferentes esferas, a começar pelas superfícies da cidade, o que culminou no desenvolvimento de regras e éticas compartilhadas; nessa perspectiva, é significativo notar as fronteiras de respeito mútuo demarcadas por tais normas, que buscam a convivência das práticas e inscrições. Os sujeitos que fazem graffiti e os pixadores possuem experiências comuns relacionadas ao espaço urbano, seja de repressão e abusos policiais, seja de dificuldades e desafios encontrados em determinados espaços, o que pode, por vezes, culminar no compartilhamento e na troca de táticas de negociação, técnicas de escalada e conquista de superfícies. Atualmente, é possível também identificar uma aproximação da pixação com o mercado de arte contemporânea, movimento semelhante ao realizado pelas práticas de graffiti há alguns anos. Assim, se, por um lado, as interações entre o graffiti e a pixação podem compreender conflitos, já que muitas vezes disputam os mesmos espaços da cidade, por outro, parece haver a proeminência do respeito, por vezes admiração mútua, mas, sobretudo, a busca por trocas e por uma coexistência. Portanto, ao tomar tais práticas a partir de binarismos estanques, as narrativas de certas estruturas de pensamento e representação, responsáveis por elaborar boa parte do imaginário paulistano a respeito desses fazeres, não dão conta das dinâmicas complexas e das fronteiras borradas que ora aproximam, ora distanciam essas práticas.

Em um primeiro momento, a iniciação nas práticas de graffiti possui uma circunscrição territorial, ao se concentrar em ruas e vielas da quebrada em que se mora. Entretanto, em pouco tempo, tais práticas se expandem para a cidade inteira, que é tomada como contexto, e o conhecimento do tecido urbano torna-se rapidamente um elemento constituinte desses fazeres. Esse espraiamento se dá principalmente - mas não somente - para outras quebradas, muitas vezes estimulado pelo convite de sujeitos que também pintam na rua, moradores de outras regiões da cidade. Nesse contexto, a expressão quebrada, para além de se referir a uma localidade geográfica, evoca certa noção de periferia que remete à representação elaborada pelo movimento hip-hop de São Paulo.12 12 Embora o artigo não se proponha a fazer uma reconstituição histórica da trajetória das práticas de graffiti em São Paulo e no mundo, faz-se necessário chamar atenção para a relação de tais práticas com o movimento hip-hop. Em 1974, em Nova Iorque, quando Afrika Bambaataa cunhou o termo hip-hop (Macedo, 2016, p. 26) para referir-se à conjunção dos quatro elementos fundadores do movimento (graffiti, MC, DJ e b-boy), as práticas de graffiti já se encontravam estabelecidas e contavam com suas próprias normas e éticas (Snyder, 2009, p. 26). No entanto, a emergência do movimento hip-hop trouxe um novo impulso e instituiu uma outra escala de circulação das inscrições: articuladas com os outros elementos, elas conquistaram o mundo através dos videoclipes, programas de televisão e revistas (Lutz, 2001, p. 108). Esses materiais, aliados a livros e filmes que registravam as práticas de graffiti de Nova Iorque, chegaram a São Paulo ainda nos anos 1980 através de correspondências, bancas de jornais e de alguns poucos sujeitos que tiveram a oportunidade de viajar para o exterior, época em que tanto as práticas de graffiti quanto o movimento hip-hop surgiam na capital paulista. Através deles não circulavam somente fotografias de pieces, throw ups e tags, mas um conjunto de léxicos, signos, procedimentos e representações que eram reinterpretados, adaptados e recriados a partir dos contextos e realidades locais. Diferentemente da conjuntura nova-iorquina, em São Paulo a emergência das práticas de graffiti se deu em diálogo com os demais elementos do movimento hip-hop, o que não quer dizer, todavia, que não tenham trilhado percursos próprios e elaborado dinâmicas particulares. Como explica Marcio Macedo (2016MACEDO, M. Hip-Hop SP: transformações entre uma cultura de rua, negra e periférica (1983-2013). In: KOWARICK, L.; FRÚGOLI JR., H. Pluralidade urbana em São Paulo: vulnerabilidade, marginalidade, ativismos. São Paulo: Editora 34: Fapesp, 2016. p. 23-54., p. 36-37), ao final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o movimento hip-hop paulistano foi marcado pela incorporação de uma estética vinculada à noção de periferia, que passou a ser tomada como um signo identitário e não mais enquanto estigma, e teve como marco o lançamento do álbum Sobrevivendo no Inferno, do grupo de rap Racionais MC’s.13 13 Ver o site dos Racionais MC’s: http://www.racionaisoficial.com.br (acesso em 03/05/2019). A partir desse período, a periferia começou a ser referida pelo movimento enquanto

um espaço social, territorial e político que se estrutura a partir de um denominador comum para jovens negros, mestiços, nordestinos e brancos: a classe pobre. Esse denominador comum (periferia = classe pobre) gera uma experiência partilhada por todos esses jovens que estão submetidos aos problemas sociais vigentes nesse espaço social. (Macedo, 2016MACEDO, M. Hip-Hop SP: transformações entre uma cultura de rua, negra e periférica (1983-2013). In: KOWARICK, L.; FRÚGOLI JR., H. Pluralidade urbana em São Paulo: vulnerabilidade, marginalidade, ativismos. São Paulo: Editora 34: Fapesp, 2016. p. 23-54., p. 40, grifo do autor).

Tal entendimento permite identificar semelhanças entre o uso do termo quebrada, feito pelos sujeitos que fazem graffiti, daquele feito por outros grupos que também têm a rua como espaço privilegiado de atuação. Uma primeira aproximação pode ser feita em relação ao emprego de tal expressão entre os pixadores, registrado por Alexandre Pereira (2005PEREIRA, A. B. De rolê pela cidade: os pixadores em São Paulo. 2005. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 62-63), onde, segundo o pesquisador, também é possível observar dois movimentos: de um lado, a sua universalização, visto que quebrada refere-se a uma experiência partilhada de morar na periferia; de outro lado, a particularização de tal ideia, contida na valorização do bairro em que se mora. Outra aproximação pode ser feita em relação à noção de periferia formulada por sujeitos que desenvolvem outro conjunto de práticas, os integrantes de coletivos videoativistas, pesquisados por Guilhermo Aderaldo (2017ADERALDO, G. Reinventando a cidade: uma etnografia das lutas simbólicas entre coletivos culturais vídeo-ativistas nas “periferias” de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2017.) na cidade de São Paulo. Como Aderaldo (2017ADERALDO, G. Reinventando a cidade: uma etnografia das lutas simbólicas entre coletivos culturais vídeo-ativistas nas “periferias” de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2017., p. 83, 249) nos ensina, a noção de periferia, tal como elaborada por seus interlocutores, refere-se a uma “experiência corporificada”, isto é, “possui uma dinâmica itinerante e que, por isso, torna-se passível de ser vista em toda cidade”, o que também parece ter lugar na ideia de quebrada mobilizada pelos sujeitos que fazem graffiti. Trata-se, portanto, de uma noção que é relacional e dotada de mobilidade, que nomeia processos de exclusão, desigualdades e identidades comuns.

A iniciação na pintura na rua implica, ainda, o desenvolvimento de uma autonomeação e autoexpressão através da definição do nome de rua e do que se lança, isto é, o que se escreve ou desenha nas superfícies da cidade. Essa elaboração não é um aspecto formal e acessório, mas uma dimensão central das dinâmicas de sociabilidade que envolvem essas práticas, uma vez que os sujeitos que fazem graffiti são reconhecidos por seus pares pela conjunção desses elementos. Nesse contexto, o nome de registro, atribuído pela certidão de nascimento, torna-se secundário e irrelevante, e, muitas vezes, o nome de rua assume proeminência inclusive em outros círculos de interação. A criação dessa combinação possui uma temporalidade e se relaciona tanto com afinidades individuais quanto com uma dimensão coletiva, já que é desenvolvida em diálogo com outras inscrições existentes. Este trecho do meu caderno de campo permite enfatizar tal aspecto:

[…] em uma de nossas conversas, perguntei como que ele tinha chegado na elaboração dos personagens e elementos que lançava. Ele revelou que quando começou a fazer graffiti percebeu que cada um tinha um personagem, que era como uma assinatura, e aí começou a elaborar os seus. Começou com ETs, porque sempre gostou de ficção científica, depois elaborou monstros e criaturas estranhas até chegar nos insetos que desenha hoje. Um tempo depois, passou a lançar outros personagens, “os pirulitos”, para interagir com estes insetos e ajudar a “criar uma cena”. (Caderno de campo, julho de 2016).

Nesse processo de elaboração do nome de rua e do que se lança são desenvolvidas afinidades com certas modalidades de inscrição. No contexto pesquisado, foi possível notar a proeminência de algumas: tags, assinatura, geralmente no estilo cursivo de escrita manual, feita com spray ou marcadores permanentes (os canetões) e elaborada em dimensões variáveis - podem ocupar uma grande superfície ou pequenos espaços, junto com outras tags; throw ups ou bombs,14 14 Em outros contextos, como Ligia Ferro (2011, p. 1) nos mostra, é possível identificar a diferenciação no emprego desses termos de acordo com o lugar em que é a inscrição é feita, se na rua (bomb) ou no metrô (throw up); entretanto, tal distinção não foi observada no contexto do presente estudo. letras arredondadas, de grandes dimensões, feitas usualmente com uma ou duas cores para o preenchimento e o contorno, produzidas isoladamente ou então de maneira a compor uma cena com elementos de fundo e personagens - a sua repetição consecutiva configura o bombing;15 15 Apesar do termo bombing ser usualmente empregado para se referir à feitura consecutiva de throw ups/bombs, ele também pode ser empregado para se referir à realização consecutiva de outras modalidades, como personas e tags, no sentido de bombardear a superfície. letras ou wild style, estilização tipográfica complexa, onde as letras se entrelaçam e muitas vezes são legíveis somente aos iniciados; personagens ou personas, desenhos figurativos, comumente de animais ou pessoas; e, finalmente, murais, figurativos ou abstratos, que ocupam grandes superfícies, demandam maior tempo de pintura e são elaborados individual ou coletivamente. Concomitantemente ao aprendizado e desenvolvimento das técnicas de pintura exigidas por cada uma das modalidades, os sujeitos elaboram ainda um estilo próprio de cores, traços e sombras, pelo qual também serão reconhecidos.

Através da combinação destes elementos - nome de rua, o que se lança, modalidades, cores, traços e sombras - os sujeitos que fazem graffiti fabricam as suas identidades e as formas de expressá-las na cidade e para seus pares. Como pude compreender na etnografia, com exceção do nome de rua, que tende a não variar temporalmente, as demais dimensões podem alterar-se ao longo de suas trajetórias à medida que ampliam seus repertórios de possibilidades estéticas, aprimoram suas técnicas e surgem novos artefatos. É possível, assim, identificar um esforço contínuo de desenvolver um estilo único, característica constitutiva dos modos de ser e fazer dessas práticas. Para isso, são mobilizados conhecimentos que possuem contornos individuais - delimitados pelas vivências de cada um - e coletivos - constituídos na transmissão entre pares, que ora assume um caráter de troca, ora de competição. Esses saberes são, sobretudo, de ordem prática, sintetizados na noção de experiência de rua, que se refere ao tempo em que se pinta na rua e circula pela cidade e, por conseguinte, às vivências acumuladas ao longo da trajetória de cada sujeito; tal expressão é comumente associada aos que fazem graffiti há mais anos, os quais também são detentores de um maior prestígio. À ideia de experiência de rua se sobrepõe outra, a de mestre, geralmente atribuída àqueles que pertencem a gerações anteriores à sua própria e que, em alguns casos, podem assumir o papel de mentores para certos sujeitos. Sendo assim, o reconhecimento da experiência de rua não implica, necessariamente, a identificação do sujeito enquanto mestre; entretanto, de maneira geral, aquele que é associado ao termo mestre também é reconhecido por sua experiência de rua.

A dimensão da transmissão de saberes - que não se limita ao período de iniciação, mas permeia os modos de fazer dessas práticas de uma maneira geral - recebeu atenção em pesquisas realizadas em outros contextos. Janice Rahn (2002RAHN, J. Painting without permission: hip-hop graffiti subculture. Westport: Bergin & Garvey, 2002., p. 139-157), por exemplo, ao investigar a cena de graffiti em Montreal, no Canadá, chama atenção para o caráter do-it-yourself (“faça você mesmo”) e autodidata desses procedimentos, que constituem um modelo de construção de conhecimento pautado na percepção, experiência e reflexão crítica estimuladas entre os pares em uma estrutura não institucionalizada de aprendizado cotidiano. Rahn (2002RAHN, J. Painting without permission: hip-hop graffiti subculture. Westport: Bergin & Garvey, 2002., p. 144) ainda ressalta que o caráter prático - ação e interação - são elementos-chave para descrever e compreender como a expertise técnica é adquirida nesse modelo, que valoriza a “experience before all the abstracting and conceptualizations that follow”.16 16 “Experiência antes de toda abstração e conceitualização que se seguem” (tradução minha). Janaína Furtado (2012FURTADO, J. R. Tribos urbanas: os processos coletivos de criação no graffiti. Psicologia e Sociedade, Belo Horizonte, v. 24, n. 1, p. 217-226, abr. 2012., p. 221-224), por sua vez, a respeito das criações coletivas entre crews17 17 Termo empregado por quem faz graffiti para designar coletividades que pintam conjuntamente e adotam nomes para se identificar e se distinguir de outras coletividades. A expressão é mobilizada de maneira semelhante em outras conjunturas; a esse respeito, ver também Austin (2001), Castleman (1982), Campos (2007), Ferro (2011) e Powers (1999). de Florianópolis, Santa Catarina, reforça a relevância dessas trocas para os processos de criação, pois elas são ao mesmo tempo fonte de identificação e de formação das identidades individuais. Tais aspectos, registrados por ambas as pesquisadoras, encontram correspondência entre as práticas de graffiti que acompanhei na cidade de São Paulo.

Ao destacar certas passagens da trajetória de vida de NIGGAZ, que, como dito, ressoa percursos trilhados pelos interlocutores da etnografia, procurei mostrar que as práticas de graffiti envolvem uma elaboração de si que se relaciona com dinâmicas internas desse fazer, mas também informa outras dimensões das vidas dos sujeitos, em especial, as escolhas de trabalhos remunerados que poderão ser ocupados sem que tenham de deixar de pintar na rua. O recorte da pesquisa - que privilegiou interlocutores pertencentes a old e new school - permitiu ter contato com sujeitos que, em sua maioria, possuíam entre 30 e 40 anos, isto é, não somente pintavam na rua há anos, como também estavam há algum tempo inseridos no mercado de trabalho. Muitos deles, como vim a saber, tiveram como primeiro emprego a ocupação de office boy, ainda bastante jovens, o que, além de possibilitar a compra de sprays, envolvia uma circulação pela cidade, de maneira que modalidades de pintura que demandavam menos tempo de feitura, como as tags, eram incorporadas às dinâmicas do trabalho. Registrei os mais diferentes ofícios ocupados naquele momento ou em períodos anteriores: de vendedor de doces no transporte público à assistente administrativo em um grande hospital. Se, de um lado, nem todas as ocupações implicavam uma circulação pela cidade, de outro, havia unanimidade em dizer que elas foram importantes para garantir o acesso às tintas e, por consequência, possibilitar a continuidade da pintura de graffiti ao longo dos anos. Nas conversas a respeito da dimensão financeira e do trabalho - sobre experiências passadas, presentes ou em relação ao que se almejava para o futuro - estava presente o desejo de viver da própria arte, formulação que ouvi com recorrência e que fora alcançada por alguns.

A esse respeito, cheguei a reflexões semelhantes às de Lígia Ferro (2011FERRO, L. Da rua para o mundo: configurações do graffiti e do parkour e campos de possibilidades urbanas. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Urbana) - Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2011., p. 25) ao investigar tais práticas em outros contextos. Assim como proposto por Ferro, compreendo que as categorias analíticas projeto e campo de possibilidades, de Gilberto Velho (2013)VELHO, G. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013., oferecem noções interessantes para pensar o contexto das práticas de graffiti. Os projetos, como nos ensina Velho (2013VELHO, G. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013., p. 60-62), consistem na organização de certa conduta a fim de atingir objetivos específicos através da mobilização de recursos materiais ou simbólicos; eles são dinâmicos e se encontram em um estado de permanente reelaboração, de acordo com as circunstâncias, sentidos e oportunidades daqueles que os elaboram. Sob esta perspectiva, viver da própria arte revela-se como uma expressão dos projetos de muitos dos sujeitos que fazem graffiti, que, apesar de não coincidirem necessariamente em termos de conteúdo e atividades, partilham uma vontade comum: se sustentar financeiramente através de trabalhos relacionados ao campo da arte. Tais projetos não são desenvolvidos em um vácuo, mas em um campo de possibilidades, ou seja, em um espaço que articula e organiza recursos e trajetórias (Velho, 2013VELHO, G. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013., p. 132), o que implica dizer que os sujeitos são conscientes das limitações e constrangimentos existentes para atingir os fins almejados. No contexto das práticas de graffiti de São Paulo, a expectativa de viver da própria arte, enquanto um projeto, está inserida em um campo de possibilidades que vem sendo constituído e encontra-se em constante mutação desde os anos 1980. No início dos anos 2000, por exemplo, a possibilidade de fazer trabalhos remunerados relacionados ao graffiti ainda era novidade e para viver da própria arte era preciso articular criativamente recursos ainda escassos; hoje, a realidade é outra e configura um campo de possibilidades distinto, com um conjunto mais diverso de oportunidades, o que não implica dizer que se trata de uma tarefa fácil.

Na capital paulista, assim como em outros contextos, a condição de ilegalidade das práticas de graffiti18 18 Ver lei nº 16.612/2017 (São Paulo, 2017). não impossibilitou o desenvolvimento de oportunidades de trabalho remunerado a partir delas.19 19 A respeito de outros contextos, ver Campos (2007, p. 326); Cooper e Chalfant (2016, p. 126); Ferro (2011, p. 245); Rahn (2002, p. 158); Snyder (2009, p. 167). Entre os interlocutores com quem trabalhei, em especial aqueles que viviam parcial ou inteiramente da própria arte, ficou evidente que as habilidades e aprendizados adquiridos durante os anos de pintura na rua ajudaram a forjar novos ofícios. No recorte da pesquisa foi possível identificar duas áreas de maior concentração de desenvolvimento de carreira: a arte-educação, particularmente a mediação de oficinas, e o mundo da arte, entendido aqui na acepção de Howard Becker (1982BECKER, H. Art worlds. Berkeley: University of California Press, 1982., p. 1), ou seja, enquanto uma rede específica de cooperação envolvida na produção, distribuição e consumo de determinado tipo de arte. Apesar de sofrer influências das práticas de graffiti, essa esfera do trabalho remunerado se constituiu como um domínio distinto - com regras, agentes e lógicas particulares -, mas não deixou de ter uma relação simbólica e até pragmática com as pinturas na rua. De um lado, por exemplo, muitas das oportunidades de trabalho remunerado são criadas a partir das inscrições não autorizadas feitas nas superfícies da cidade; de outro lado, para parte dos sujeitos, as sobras de tinta spray e látex, provenientes de pinturas comissionadas, são fundamentais para que continuem fazendo graffiti. Ademais, os trabalhos comissionados acabaram por penetrar a rede de trocas que envolvem as práticas de graffiti, tornando-se um recurso valioso para o fortalecimento ou criação de vínculos entre pares. É possível, pois, identificar uma fronteira que, simultaneamente, marca distâncias, visto que, do ponto de vista de quem pinta na rua, as pinturas comissionadas não são consideradas graffiti; e se mostra porosa, por possibilitar a mobilização de recursos materiais e simbólicos.

Essa discussão pode ser adensada em diálogo com as reflexões de Vitor Sergio Ferreira (2016)FERREIRA, V. S. Aesthetics of youth scenes: from arts of resistance to arts of existence. YOUNG, v. 24, n. 1, p. 66-81, 2016.. Ao analisar categorias analíticas que são correntemente mobilizadas para pensar as culturas juvenis contemporâneas, Ferreira chama atenção para uma tendência crescente: em um contexto mundial de altas taxas de desemprego, certas artes e ofícios, antes desenvolvidos de forma lúdica e sociável, passaram a ser também explorados profissionalmente, tornando-se carreiras. Para o pesquisador, esse movimento revela uma fusão particular entre identidade e trabalho, onde os jovens “creatively design themselves and their existences as ways to achieve self-fulfillment (autonomy), self-discovery (authenticity) and self-distinction (individuality), and to mark their own spot into the world” (Ferreira, 2016FERREIRA, V. S. Aesthetics of youth scenes: from arts of resistance to arts of existence. YOUNG, v. 24, n. 1, p. 66-81, 2016., p. 75).20 20 “Elaboram criativamente a si mesmos e suas existências enquanto meios para alcançar autorrealização (autonomia), autodescoberta (autenticidade) e autodistinção (individualidade), e para marcar seu próprio lugar no mundo” (tradução minha). Ferreira propõe, então, pensar as dinâmicas das culturas juvenis contemporâneas enquanto artes da existência, isto é, enquanto práticas e estéticas que possibilitam a reinvenção de si mesmos e das maneiras de se relacionar com o mundo. Embora em minha pesquisa eu não analise as práticas de graffiti a partir da perspectiva das culturas juvenis, é possível relacionar certos aprendizados aqui apresentados com a reflexão proposta pelo pesquisador. O percurso que procurei reconstituir através da trajetória de NIGGAZ e dos interlocutores com quem trabalhei - com ênfase na iniciação e nos projetos de viver da própria arte - permite compreender que as práticas de graffiti são constituídas ao mesmo tempo em que ajudam a constituir as trajetórias de vida dos sujeitos que pintam na rua. Através das experiências de pintar na rua, eles têm as suas habilidades desenvolvidas, bem como fabricam suas identidades e visões de mundo; ou, para usar os termos de Ferreira, ao mesmo tempo que elaboram criativamente suas existências, eles forjam os seus lugares no mundo. No contexto pesquisado, também foi possível observar uma fusão particular entre identidade e trabalho, sintetizada nos projetos de viver da própria arte, presentes na narrativa de muitos daqueles que fazem graffiti, como enfatizei anteriormente. Dito de outra maneira, as práticas de graffiti estão imbricadas nas práticas cotidiana das vidas sociais daqueles que pintam na rua, como bem sumarizou um dos interlocutores com quem trabalhei: “Graffiti é existência antes de resistência.”

Maneiras de ler, usar e se apropriar dos espaços da cidade

Vila Mariana, zona sul de São Paulo, janeiro de 2017. Eu havia tomado uma carona com eles no carro, estávamos a caminho de um evento onde os dois fariam uma palestra. No deslocamento até o local passamos pela Rua Vergueiro, na altura do metrô Ana Rosa. Era uma manhã chuvosa, o trânsito estava lento, o semáforo fechou. Paramos na altura de uma mureta, localizada no canteiro central; os dois começaram a olhar atentamente para ela, comentando sobre as várias camadas de inscrições que identificavam ali. Essas camadas eram descritas através dos nomes de rua que os seus olhares atentos reconheciam, seguidos de comentários que sublinhavam a importância daquele local para a história e a memória da cena de graffiti paulistana, visto que importantes sujeitos haviam pintado naquela superfície. Lancei um olhar mais atento à mureta: ela acompanhava uma rampa de acesso para a outra pista da Rua Vergueiro, que fica desnivelada em relação à pista em que estávamos. As diferentes texturas e tonalidades tornavam visíveis tempos distintos, pude reconhecer algumas inscrições e seus autores também; no entanto, eu não possuía o repertório necessário para decifrar as mais antigas, o que evidenciava a diferente percepção que tínhamos daquela mesma superfície. Em meio a esse decifrar de camadas, eles lembraram de uma história narrada por NIGGAZ, de quem foram amigos, que contara que havia ficado frustrado ao pintar aquela mureta. Na ocasião, conforme reproduziram, estavam presentes nomes importantes da cena de graffiti e o NIGGAZ era o menos experiente, por isso, queria dar o melhor de si, mas ficara nervoso e sentiu que não conseguira fazê-lo da maneira que desejara. O semáforo abriu, seguimos o percurso. Pouco tempo depois, estávamos na Avenida 23 de Maio; quase todos os murais haviam sido apagados, no entanto, eles recordavam quais desenhos e inscrições existiam em cada uma das superfícies, novamente citando os nomes de rua de quem os fizera.21 21 Em janeiro de 2017, um novo prefeito tomou posse, João Doria Jr. (Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB), o que provocou uma mudança de conjuntura que incidiu no regime de parcerias e na atmosfera de tolerância em relação às práticas de pintura na rua, que até então tinham lugar na gestão de Fernando Haddad (Partido dos Trabalhadores - PT). Nos primeiros meses de seu mandato, Doria iniciou uma cruzada antipichação que afetou todas as práticas de pintura na rua, em especial as práticas de graffiti e a pixação, e ocasionou um conjunto de medidas que incluiu desde ações repressivas por parte das forças policiais até a aprovação de uma nova lei para disciplinar, reprimir e punir a feitura de inscrições nas superfícies da cidade. Um dos marcos desse conjunto de medidas foi o início de apagamentos massivos pela cidade, que incluiu o mural coletivo que tinha lugar na Avenida 23 de Maio, realizado em parceria com a antiga gestão e que, segundo esta, configurava o maior mural do tipo da América Latina. Na altura de um muro recuado, parcialmente tomado por uma vegetação rasteira, o sujeito que estava ao volante diminuiu a velocidade e apontou em tal direção; ao fazer isso, ele nos disse que aquele também era um muro histórico e que estava com receio de o terem apagado. Respirou aliviado porque isso não acontecera. Completou, então, dizendo que aquela pintura havia sido uma das responsáveis por ele começar a pintar na rua; o mural fora pintado pelos OSGEMEOS e VITCHÉ, integrantes de uma geração anterior à sua. Outras memórias se fizeram presentes ao longo de todo o caminho, tecendo e revelando um percurso ocupado por pessoas, histórias e situações, invisíveis aos não iniciados.

Figura 1
Registro do processo de apagamento dos murais da Avenida 23 de Maio, em 2017. A imagem mostra o contraste entre o muro apagado e aquele que estava na iminência de sê-lo (foto: Gabriela Leal, 2017).

Ao acompanhar diferentes sujeitos e situações pela cidade de São Paulo, tive contato com os mais variados rolês, acabando por me deter em três: rolê vandal, rolê de pintura de mural e encontros de graffiti. O termo rolê é uma expressão utilizada para se referir às saídas para pintar na rua e, nesse contexto, configura-se como uma categoria versátil que apresenta dinâmicas e fazeres distintos a depender da pintura a ser realizada, muitas vezes indicada por um segundo termo qualificador, como vandal e pintura de mural. O termo rolê é utilizado por outros grupos de maneira semelhante, como entre os pixadores, no sentido de “sair para pixar a cidade” (Pereira, 2005PEREIRA, A. B. De rolê pela cidade: os pixadores em São Paulo. 2005. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 52-53), e entre os skatistas, para os quais a expressão “dar um rolê” é sinônimo de “sair para andar de skate” (Machado, 2011MACHADO, G. M. C. De “carrinho” pela cidade: a prática de street skate em São Paulo. 2011. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011., p. 243).

Figura 2
Rolê vandal. Vandal, aqui, adquire outro significado que não a tradução direta do inglês - vandalismo ou vândalo - que confere um sentido negativo relacionado à depredação intencional. Nesse contexto, vandal faz referência à pintura não autorizada e, ao longo da etnografia, foi correntemente valorizado e utilizado pelos interlocutores para expressar uma representação compartilhada de graffiti de verdade. Tal enaltecimento, de uma maneira geral, assinalava uma busca pela manutenção de maneiras de fazer que remetem às origens dessas práticas, em especial ao ato de pintar sem autorização; ao mesmo tempo, também procurava marcar um distanciamento em relação às pinturas comissionadas (foto: Gabriela Leal, 2016).

Figura 3
Rolê de pintura de mural. Os rolês de pintura de mural têm como destino um espaço disponível (sem inscrições ou murais na superfície a ser pintada) já mapeado - previamente autorizado ou a ser negociado - e envolvem uma combinação antecipada da hora, local, dia, percurso (no caso daqueles que se deslocarão conjuntamente) e divisão dos encargos em relação aos materiais de apoio que serão utilizados (como escadas, baldes, tinta látex, etc.), sendo que os sprays são de responsabilidade individual. Tais rolês são coletivos e as dinâmicas estabelecidas, desde o arranjamento até o processo de pintura, assumem diferentes configurações a depender dos vínculos firmados entre os sujeitos envolvidos. Acontecem sobretudo nas quebradas e chegam a durar mais de dez horas, ou até dias, a depender do tamanho e complexidade. Trata-se de uma pintura não comissionada (foto: Gabriela Leal, 2016).

Figura 4
Encontro de graffiti. São articulados majoritariamente nas quebradas, através das redes de sociabilidades dos envolvidos na sua organização. Reúnem diferentes sujeitos pintando conjuntamente, podendo envolver 20 sujeitos ou ultrapassar uma centena. Ao longo da etnografia tive contato com três tipos de relações que esses eventos podem estabelecer com os territórios: de caráter itinerante e móvel (ocorrendo em quebradas distintas e distantes umas das outras), de mobilidade parcial (com circulação circunscrita à determinada quebrada) ou, então, recorrentes no mesmo local (o que implica uma renovação dos muros a cada evento). A quantidade de superfícies disponíveis varia, assim como a duração - certos encontros duram somente um dia, outros, um final de semana inteiro. Eles podem compreender atividades adicionais, em especial atrações musicais, o que é recorrente quando há algum apoio financeiro, como contribuições de comerciantes locais, de marcas ou editais de fomento à cultura. Em São Paulo existem eventos que acontecem há mais de dez anos (foto: Gabriela Leal, 2016).

Os rolês me colocaram em contato com diferentes procedimentos, técnicas e saberes, os quais, por sua vez, permitiram refletir sobre aspectos específicos da relação que os sujeitos que fazem graffiti estabelecem com os espaços urbanos. Foi possível acessar, por exemplo, uma atividade leitora, informada pelas experiências de pintar na rua e mobilizada de diferentes maneiras, a depender da situação. Nos processos de pintura, a leitura do ambiente é fundamental para avaliar as condições que envolvem a superfície, algo que ficou evidente sobretudo nos rolês vandal, dado seu trânsito entre ilegalidade e legitimidade, que oferece maiores riscos aos envolvidos. Durante esses rolês, a decisão do momento de feitura das inscrições leva em conta uma série de elementos e ritmos,22 22 O sentido de ritmo aqui empregado faz referência à categoria analítica de Henri Lefebvre (2004, p. 36; p. 48), e diz respeito à dimensão tanto da natureza (como o dia, a noite, as estações do ano, etc.) quanto da sociedade (as paradas de ônibus, os semáforos, o fluxo de pessoas regulado pelos horários de trabalho, etc.) da vida cotidiana. que variam de acordo com as configurações dos CEPs,23 23 O termo CEP é empregado aqui enquanto um termo êmico, utilizado por alguns dos interlocutores para indicar lugar, localização. Trata-se da adoção de um termo oficial, utilizado pelo sistema de Correios no Brasil, o Código de Endereçamento Postal (CEP), que, conforme definição, “é um conjunto numérico constituído de oito algarismos, cujo objetivo principal é orientar e acelerar o encaminhamento, o tratamento e a distribuição de objetos de correspondência, por meio da sua atribuição a localidades, logradouros, unidades dos Correios, serviços, órgãos públicos, empresas e edifícios” (Correios, 2018). ou seja, dos diferentes locais da cidade. Essa percepção, ao mesmo tempo sensível e cartográfica, denota um outro mapa da cidade, cujo conteúdo permite aos sujeitos que fazem graffiti ponderar a probabilidade de denúncias anônimas ou de uma rápida repressão policial; ou então avaliar e definir a economia do tempo que abarcará o processo de pintura, isto é, o período do dia em que será realizado e a sua duração. Em alguns CEPs da cidade, conforme explicaram os interlocutores com quem trabalhei, pintar à luz do dia traz segurança em relação aos abusos das forças policiais; outros, por sua vez, são mais propícios à pintura no período noturno ou na madrugada, sem oferecer esse mesmo risco. Há ainda lugares da cidade onde a pintura deverá ser feita rapidamente e outros onde é possível fazê-la lentamente, o que, por conseguinte, acaba por influenciar a escolha da modalidade de inscrição, bem como a sua elaboração estética. Esses saberes constituem, do ponto de vista de quem faz graffiti, regiões morais que ajudam a identificar ambientes de risco ou amistosos para a feitura das inscrições, sobretudo as não autorizadas. As regiões morais - categoria analítica acionada aqui de acordo com o uso renovado que Michel Agier (2011)AGIER, M. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011. propõe do termo clássico de Robert Park (1967)PARK, R. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano. In: VELHO, O. G. O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. p. 29-72. -, que emergem dessa associação de entendimentos práticos, condicionam as experiências de pintura nos diferentes espaços da cidade e revelam fronteiras constituídas relacionalmente através de experiências individuais e de histórias partilhadas entre quem pinta na rua.

Essa atividade leitora não se restringe aos rolês, fazendo-se presente em outras interações com o espaço urbano. Como descrito na situação que abre esta seção do artigo, ao circular pelo tecido urbano, os sujeitos que fazem graffiti leem as superfícies da cidade através das inscrições, tomadas como índice de histórias e memórias. Essa maneira de ler os espaços da cidade se aproxima, em alguma medida, da “arquitetura imaginária” de que falam Vogel, Mello e Mollica (2017VOGEL, A.; MELLO, M.; MOLLICA, O. Quando a rua vira casa: a apropriação de espaços de uso coletivo em um centro de bairro. Niterói: Eduff, 2017., p. 43) quando relatam as histórias contadas por seus interlocutores ao caminharem pelo bairro do Catumbi, os quais, conforme contam os pesquisadores, empreendiam “exercícios nostálgicos de inventariação dos teres e haveres coletivos de antigamente”. Contudo, as ausências que marcam as circulações pela cidade parecem não ter o mesmo efeito em ambos os contextos. Se, no Catumbi, as demolições e renovações urbanas tornavam-se marcos de um drama social compartilhado pelos moradores do bairro, no contexto das práticas de graffiti, os apagamentos das inscrições, feitos pelo poder público ou pela iniciativa privada, evidenciam uma efemeridade que foi, em certa medida, incorporada às suas próprias dinâmicas, isto é, mesmo que inexistentes em sua materialidade, as inscrições apagadas continuam a contar histórias e provocar rememorações que, salvo conflitos circunscritos, não remetem necessariamente a algo negativo.

As diferentes formas de perceber o espaço urbano, seja nos rolês ou nas situações de circulação, indicam a existência de modos de ler a cidade que são ao mesmo tempo condição e consequência das práticas de graffiti. A leitura do espaço, ao alinhavar resíduos de cidades vividas, cria totalidades por onde somente os sujeitos que fazem graffiti sabem navegar e marcam um aspecto relacional: apesar de separados geograficamente, os muros e superfícies encontram-se conectados simbolicamente através de memórias e experiências que resistem a qualquer tentativa de apagamento. Esses modos de ler a cidade criam cartografias outras que se sobrepõem ao espaço construído e, tal como as inscrições, podem ser tomados como uma produção das práticas de graffiti, mas uma “produção silenciosa”, para empregar aqui a expressão de Michel de Certeau (2012CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: 1: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2012., p. 48).

Entretanto, a atividade leitora é apenas uma das dimensões que constituem a maneira que os sujeitos que fazem graffiti se relacionam com o espaço urbano. A fim de explorar um segundo aspecto, mobilizarei dinâmicas de outro rolê, o de pintura de mural. Como mencionado, estes rolês consistem em pinturas coletivas, geralmente arranjadas na quebrada de um dos envolvidos, feitas em um muro que permita uma interação estética entre as inscrições. Como pude observar em diferentes situações, ao longo dessas pinturas há uma transformação do espaço que diz respeito não somente às inscrições, mas também às maneiras de fazê-las: a calçada e a rua viram um ateliê e todo o tipo de material é espalhado por ali. Há um intenso movimento dos corpos que revela a existência de uma técnica do corpo (Mauss, 2003MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac e Naify, 2003., p. 401-403) fundamental para resistir aos constantes deslocamentos e ao tempo, dado que a produção dos murais pode durar mais de dez horas, ou até dias. A descrição abaixo, retirada do meu caderno de campo, possibilita adensar esta imagem:

[…] em pouco tempo aquele pedaço de asfalto e de calçada se transformou em um ateliê: eles demonstravam uma intimidade ímpar com o lugar, movimentavam-se constantemente de forma a experimentá-lo e perspectivá-lo de diferentes ângulos; sentavam no chão, iam de um lado para o outro da rua; subiam e desciam da escada, que era revezada e deslocada; galões de tinta, latas de spray e demais artefatos estavam espalhados pela calçada e também em parte da rua; a cada troca de cor era preciso tirar o ar da lata de spray e, neste processo, uma série de jatos coloridos passavam a tingir a rua. A paleta de cores que cada um trouxera era ampliada com o empréstimo de latas que faziam entre si. Os outlines ganharam preenchimento com spray e borrifadores e o mural ia, assim, ganhando forma. (Caderno de campo, julho 2016).

Nos rolês de pintura de mural, os usos do espaço não se dão somente na beira da superfície que recebe a inscrição, mas se expandem pelo entorno, integrando muro, rua e calçada por meio dos pingos de tintas, latas de sprays, traços e movimentos. Nesse entrelaçamento de coisas, corpos e maneiras de fazer, a fronteira entre público e privado parece ser temporariamente desativada24 24 Emprego o termo “desativar” à luz das reflexões de Stephen Wright (2016, p. 55-57) a respeito da função estética da arte: “Desativar é um verbo usado com frequência por Giorgio Agamben para nomear as condições políticas de possibilidade de mudanças genuínas de paradigma, que só podem acontecer, argumenta ele, se estruturas de poder residuais forem efetivamente desativadas. Se elas forem apenas deslocadas e revisadas, seu poder permanece ativo. […] Desativar a função estética da arte, torná-la inoperante - na acepção de Agamben - é deixá-la aberta a outras funções. […] Ou funções mais operativas, próprias das práticas em escala 1:1. […] Apenas desativando essa função extenuante, que exclui a possibilidade do uso, é que se pode abrir caminho para uma estética propositada da arte; uma estética reaproveitada em nome dos usos.” e novos limites são definidos situacionalmente. Assim, se, em princípio, os muros têm a função de traçar uma fronteira física entre esses pares dicotômicos, a maneira como os sujeitos que fazem graffiti se servem deles parece reconfigurar tais determinações: no processo de pintura, muros, ruas e calçadas tornam-se uma coisa só e funda-se um espaço de criação, sociabilidade e aprendizado onde a aparente impessoalidade da rua dá lugar a um conjunto de interações e trocas que, segundo tal oposição, estariam reservadas ao domínio do privado. As representações e significados do espaço urbano são, pois, manipulados e transformados em outra coisa, revelando um conjunto de modos de usar a cidade que, tal como os modos de ler, são, simultaneamente, condição e consequência dessas práticas. São também eles uma produção silenciosa que se sobrepõe ao espaço construído sem, no entanto, apossar-se dele permanentemente.

A fim de enfatizar a existência de uma maneira particular de se relacionar com os espaços urbanos, informada pelas práticas de graffiti, gostaria de, por fim, chamar atenção para o modo como as superfícies da cidade estão imbricadas nas dinâmicas estabelecidas entre quem pinta na rua. O convívio das inscrições nos muros não se dá de forma desordenada, mas é organizado por um conjunto de moralidades e éticas que compõem o que os interlocutores da pesquisa chamaram de regras do jogo ou sistema. Para os iniciados nesse conjunto de normas tácitas, as inscrições são índices de sujeitos, circunstâncias e procedimentos que devem ser respeitados, quer dizer, representam seus autores, as situações enfrentadas no processo de pintura, a quantidade de tempo e de tintas gastos. O caso mais paradigmático de transgressão do sistema é o atropelo, sobreposição proposital de uma inscrição sobre outra, que configura um dos maiores desrespeitos entre quem pinta na rua, justamente por não considerar o conjunto de elementos do qual as inscrições são índice. Por isso, nos processos de pintura há uma preocupação em encaixar as novas inscrições nos espaços disponíveis de superfícies já́ ocupadas, ou então se procura selecionar superfícies que não possuam inscrições.25 25 Caso essas opções não sejam possíveis, os sujeitos poderão adotar uma série de procedimentos que possibilitem contornar uma possível situação de atropelo. Para uma análise mais detalhada a esse respeito no contexto de São Paulo, ver Gabriela Leal (2018). Contudo, isso não implica dizer que o atropelo não ocorra. Quando isso acontece, há primeiro uma avaliação para determinar a sua natureza: se quem o fez era conhecedor das regras do jogo, tendo início um embate; ou se era um atropelo de amador, isto é, um não iniciado no sistema, o que implica não um conflito direto, mas marcar um novo rolê para renovar a pintura. No primeiro caso, o conflito tem início no próprio muro com a resposta do atropelado, reivindicando respeito. Após essa primeira reação, ele pode se estender para além da superfície, tomando as redes sociais ou culminando em conversas face a face, com o objetivo de debater sobre a responsabilidade do ato cometido. A falta de um consenso pode deflagrar uma série de atropelos pela cidade, feitos pelos envolvidos na querela, que somente será terminada quando um deles reconhecer a culpa, o que poderá incorrer no ressarcimento do material utilizado na produção da primeira inscrição atropelada, com a compra de tinta látex e sprays.

Desse modo, se, através dos modos de usar a cidade, os sujeitos que fazem graffiti deslocam e atualizam as lógicas que regulam os espaços urbanos, esse conjunto de acordos tácitos chama atenção para outra dimensão que se encontra em operação. Do ponto de vista de quem pinta na rua, existem lógicas e regras que organizam as interações das inscrições nas superfícies da cidade; em outras palavras, os espaços por elas ocupados devem ser respeitados pelos seus pares. Sob essa perspectiva, a apropriação toma o lugar do uso, entendendo o primeiro termo por um dos sentidos indicados em sua etimologia: tomar para si.26 26 Segundo o dicionário de língua portuguesa Michaelis, o termo “apropriar” compreende em sua etimologia dois significados distintos: 1) tomar para si; apoderar(-se), apossar(-se); e 2) tornar(-se) próprio, adequado ou conveniente. É comum encontrar o emprego no segundo sentido, o qual é utilizado em alguns casos como sinônimo de uso; no entanto, aqui, o termo é empregado no primeiro sentido, justamente para marcar uma diferença em relação à ideia de uso adotada ao longo deste trabalho. Esta não é uma distinção nova e se aproxima das reflexões de Lígia Ferro (2011, p. 268, grifo meu) acerca das práticas de graffiti e parkour nos contextos que pesquisou: “Até que ponto podemos dizer que os writers e os traceurs se apropriam da rua? Na verdade, os vários lugares da rua são usados pelos writers e traceurs assim como por outros habitantes da cidade. Quando um grafiteiro escreve algo numa parede, ele não pretende dizer ‘esta parede é minha’. […] Durante as nossas conversas, por vezes interpelei quer os writers, quer os traceurs acerca da possibilidade da sua ‘apropriação’ da rua e eles sempre foram unânimes em dizer-me: ‘eu não me aproprio da rua, eu uso a rua’ […]. Através do graffiti e do parkour, a rua vive-se de uma determinada forma, as sociabilidades que se travam em torno destas práticas são também diversas, mas não parece que haja propriamente uma reivindicação de uma exclusividade da rua por parte destes atores.” Essa apropriação reivindica uma exclusividade (sem atropelos) ou uma convivência (encaixe) por parte de outros sujeitos que pintam na rua. Há, pois, um duplo movimento: ao mesmo tempo que buscam respeitar as inscrições já existentes e, por conseguinte, seus autores, os sujeitos instauram ou renovam a posse simbólica de seus próprios espaços, que também deve ser respeitada. Entretanto, essa é uma condição temporária, já que a qualquer momento as inscrições podem ser apagadas pelo dono do muro ou pelo poder público e, quando isso ocorre, a superfície ou parte dela torna-se novamente passível de ser pintada por outros sujeitos, o que reinicia o estado das coisas. Essa dinâmica denota a existência de modos de se apropriar da cidade particulares e endógenos às práticas de graffiti, que convivem e são acionados simultaneamente aos demais modos aqui destacados, o que configura uma relação complexa com o espaço urbano.

Considerações finais

Ao longo do artigo, procurei evidenciar que fazer graffiti diz respeito a dinâmicas que estão muito além dos muros, perspectiva muitas vezes obliterada por sua dimensão estética, as inscrições. Busquei, ainda, sublinhar que os efeitos dessas práticas não recaem somente sobre o espaço urbano, visto que os próprios sujeitos que pintam na rua são também modificados por essas experiências. Ao tecer reflexões acerca de certos aspectos da iniciação, bem como da influência dessas práticas sobre a elaboração dos projetos de viver da própria arte, espero ter mostrado como elas informam a formulação de identidades e as maneiras de expressá-las. Portanto, ao mesmo tempo que produzem inscrições na cidade, os sujeitos que fazem graffiti fabricam o sentido de suas existências no mundo.

Em seguida, as reflexões voltaram-se para certas características dos rolês de pintura na rua e suas maneiras de fazer, o que possibilitou explicitar particularidades das interações estabelecidas entre os sujeitos que fazem graffiti e o espaço urbano, que não se limitam aos processos de pintura. Destaquei três dimensões que constituem essa relação particular - modos de ler, usar e se apropriar da cidade - e que influenciam a maneira como eles organizam o percebido no contexto urbano. Assim, se, como dito, as práticas de graffiti informam a formulação de uma maneira de ser e estar no mundo, talvez seria ainda mais preciso afirmar que se trata, sobretudo, de uma maneira de ser e estar na cidade. Dito de outra maneira, se, como escreve Richard Sennett (2018SENNETT, R. Construir e habitar: ética para uma cidade aberta. Rio de Janeiro: Record, 2018., p. 89), “habitar marca a forma”, as inscrições de graffiti podem ser então tomadas enquanto marcas de uma forma particular de habitar as cidades contemporâneas.

Esse entendimento permite, por fim, aproximar o reconhecimento dessa maneira particular de existir na cidade da noção forma de citadinidade, elaborada por Michel Agier (2011)AGIER, M. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.. Conforme explica o antropólogo, essa categoria analítica fornece uma formulação abrangente que permite compreender que “as ações, as interações e suas representações são definidas a partir de uma dupla relação: a dos citadinos entre si e a deles com a cidade como contexto social e espacial” (Agier, 2011AGIER, M. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Terceiro Nome, 2011., p. 91). Como procurei sumarizar, as práticas de graffiti influenciam profundamente esta dupla relação: a dos sujeitos que fazem graffiti entre si e a deles com a cidade enquanto contexto social e, sobretudo, espacial. Isso permite, pois, identificar uma forma de citadinidade que é particular a tais práticas, ou seja, produzida e informada pelas experiências de pintar na rua.

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  • 1
    “Graffiti é sobre fazer isso, ser isso e pintar isso” (Powers, 1999POWERS, S. The art of getting over: graffiti at the millennium. New York: St. Martin’s Press, 1999., p. 6, tradução minha).
  • 2
    Adoto a grafia graffiti, e não “grafite”, considerando a maneira como os interlocutores de minha pesquisa o fazem. Portanto, não se trata de uma escolha trivial, seja no contexto deste artigo ou na escolha dos sujeitos que fazem graffiti. Como Manuela Carneiro da Cunha (2017)CARNEIRO DA CUNHA, M. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais. In: CARNEIRO DA CUNHA, M. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Ubu Editora, 2017. p. 304-369. bem nos ensina, o uso de termos de empréstimo revela que há uma escolha de preservar o vinculo a determinado registro, neste caso as práticas de graffiti que têm sua origem em Nova Iorque e Filadélfia e ao movimento hip-hop. Em outras palavras, a manutenção da grafia denota um vínculo com certas maneiras de ser e fazer que tem correspondência em outros contextos. Para uma análise aprofundada sobre o tema, ver Gabriela Leal (2018LEAL, G. P. de O. Cidade: modos de ler, usar e se apropriar - uma etnografia das práticas de graffiti de São Paulo. 2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018., p. 41-64).
  • 3
    Acerca das escolhas textuais aqui adotadas, faz-se necessária outra observação: tal como na dissertação, suprimi os nomes dos interlocutores com quem trabalhei, a fim de preservar as suas identidades em contextos e situações específicas, visto que as práticas de graffiti são consideradas ilegais na cidade de São Paulo e sofreram forte repressão em parte do período pesquisado. Há somente uma exceção, conforme abordarei adiante.
  • 4
    Como explicado anteriormente (nota 3), optei por suprimir os nomes de rua e de registro (voltarei a isso adiante) do corpo do texto, dado o contexto em que a pesquisa foi realizada. A única exceção refere-se ao Alexandre Luiz da Hora Silva, o NIGGAZ, que aqui faz as vezes de uma homenagem de caráter múltiplo: à sua importância e de suas inscrições; à história do graffiti paulistano; e às trajetórias de vida compartilhadas pelos interlocutores. Essa escolha não tem o intuito de produzir um efeito totalizante e homogeneizante sobre a diversidade de sujeitos com quem trabalhei, mas liga-se à dimensão política e ética na qual as práticas de graffiti e a pesquisa etnográfica encontram-se imbricadas.
  • 5
    Entrevista concedida a Binho Ribeiro, em 2003, para a décima edição da revista Livro Negro do Graffiti, reproduzida no livro Niggaz: graffiti, memória e juventude, de 2016.
  • 6
    A escolha da grafia com X e não com CH, conforme a norma culta da língua portuguesa, não se deu sem motivo, voltarei a isso adiante.
  • 7
    Fala reconstituída no caderno de campo.
  • 8
    À época a Estação Grajaú (terminal de ônibus integrado à estação de trem), importante ligação entre o extremo sul e a região do bairro de Pinheiros, não existia (fora inaugurado somente em 2003); os trajetos eram feitos sobretudo de ônibus, através de terminais (Portella, 2016PORTELLA, T. Memória e resistência: paralelos entre NIGGAZ e a perspectiva política para a juventude brasileira. In: SILVA, M. N. et al. (org.). Niggaz: graffiti, memória e juventude. São Paulo, 2016. p. 148-149., p. 155).
  • 9
    Ver o site da Associação Cidade Escola Aprendiz: http://www.cidadeescolaaprendiz.org.br (acesso em 03/04/2019).
  • 10
    Para uma análise da importância dessa instituição nesse período, ver Franco (2009)FRANCO, S. Iconografias da metrópole: grafiteiros e pixadores representando o contemporâneo. 2009. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. e Nogueira e Mekari (2016)NOGUEIRA, P. R.; MEKARI, D. Niggaz: o grafiteiro que virou praça na praça que foi escola. In: SILVA, M. N. et al. (org.). Niggaz: graffiti, memória e juventude. São Paulo, 2016. p. 62-71..
  • 11
    A tipografia longilínea e oblíqua das tags retas ou pixos, como são chamadas as inscrições realizadas na pixação, está tão presente no espaço urbano de São Paulo quanto o graffiti, e a relação estabelecida entre elas marca a ambas. A adoção da grafia com X, que escapa à norma culta da língua portuguesa, refere-se à maneira como os pixadores escrevem, uma escolha que, como explica Alexandre Pereira (2005PEREIRA, A. B. De rolê pela cidade: os pixadores em São Paulo. 2005. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 9-10), procura estabelecer um distanciamento intencional da grafia estabelecida pelas regras da ortografia, com CH, e diferenciar-se de outras inscrições existentes na cidade. Apesar de, no contexto paulistano, ser comum ter contato com narrativas que procuram colocar a pixação e o graffiti em polos opostos de pares dicotômicos - como beleza-feiura e arte-vandalismo -, a aproximação etnográfica possibilitou acessar outras dinâmicas que revelaram uma relação mais próxima e complexa entre essas práticas e seus praticantes. Como vim a descobrir, muitos dos sujeitos estudaram na mesma escola ou moram no mesmo bairro, o que indica a existência de vínculos afetivos e não somente uma proximidade baseada nas características comuns desses fazeres. Ademais, a pixação e o graffiti interagem e se misturam em diferentes esferas, a começar pelas superfícies da cidade, o que culminou no desenvolvimento de regras e éticas compartilhadas; nessa perspectiva, é significativo notar as fronteiras de respeito mútuo demarcadas por tais normas, que buscam a convivência das práticas e inscrições. Os sujeitos que fazem graffiti e os pixadores possuem experiências comuns relacionadas ao espaço urbano, seja de repressão e abusos policiais, seja de dificuldades e desafios encontrados em determinados espaços, o que pode, por vezes, culminar no compartilhamento e na troca de táticas de negociação, técnicas de escalada e conquista de superfícies. Atualmente, é possível também identificar uma aproximação da pixação com o mercado de arte contemporânea, movimento semelhante ao realizado pelas práticas de graffiti há alguns anos. Assim, se, por um lado, as interações entre o graffiti e a pixação podem compreender conflitos, já que muitas vezes disputam os mesmos espaços da cidade, por outro, parece haver a proeminência do respeito, por vezes admiração mútua, mas, sobretudo, a busca por trocas e por uma coexistência. Portanto, ao tomar tais práticas a partir de binarismos estanques, as narrativas de certas estruturas de pensamento e representação, responsáveis por elaborar boa parte do imaginário paulistano a respeito desses fazeres, não dão conta das dinâmicas complexas e das fronteiras borradas que ora aproximam, ora distanciam essas práticas.
  • 12
    Embora o artigo não se proponha a fazer uma reconstituição histórica da trajetória das práticas de graffiti em São Paulo e no mundo, faz-se necessário chamar atenção para a relação de tais práticas com o movimento hip-hop. Em 1974, em Nova Iorque, quando Afrika Bambaataa cunhou o termo hip-hop (Macedo, 2016MACEDO, M. Hip-Hop SP: transformações entre uma cultura de rua, negra e periférica (1983-2013). In: KOWARICK, L.; FRÚGOLI JR., H. Pluralidade urbana em São Paulo: vulnerabilidade, marginalidade, ativismos. São Paulo: Editora 34: Fapesp, 2016. p. 23-54., p. 26) para referir-se à conjunção dos quatro elementos fundadores do movimento (graffiti, MC, DJ e b-boy), as práticas de graffiti já se encontravam estabelecidas e contavam com suas próprias normas e éticas (Snyder, 2009SNYDER, G. Graffiti lives: beyond the tag in New York’s urban underground. New York: New York University Press, 2009., p. 26). No entanto, a emergência do movimento hip-hop trouxe um novo impulso e instituiu uma outra escala de circulação das inscrições: articuladas com os outros elementos, elas conquistaram o mundo através dos videoclipes, programas de televisão e revistas (Lutz, 2001LUTZ, J. Taking up space: an interview with bio of TATS CRU, Inc. Dance Research Journal, v. 33, n. 2, p. 102-111, 2001., p. 108). Esses materiais, aliados a livros e filmes que registravam as práticas de graffiti de Nova Iorque, chegaram a São Paulo ainda nos anos 1980 através de correspondências, bancas de jornais e de alguns poucos sujeitos que tiveram a oportunidade de viajar para o exterior, época em que tanto as práticas de graffiti quanto o movimento hip-hop surgiam na capital paulista. Através deles não circulavam somente fotografias de pieces, throw ups e tags, mas um conjunto de léxicos, signos, procedimentos e representações que eram reinterpretados, adaptados e recriados a partir dos contextos e realidades locais. Diferentemente da conjuntura nova-iorquina, em São Paulo a emergência das práticas de graffiti se deu em diálogo com os demais elementos do movimento hip-hop, o que não quer dizer, todavia, que não tenham trilhado percursos próprios e elaborado dinâmicas particulares.
  • 13
    Ver o site dos Racionais MC’s: http://www.racionaisoficial.com.br (acesso em 03/05/2019).
  • 14
    Em outros contextos, como Ligia Ferro (2011FERRO, L. Da rua para o mundo: configurações do graffiti e do parkour e campos de possibilidades urbanas. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Urbana) - Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2011., p. 1) nos mostra, é possível identificar a diferenciação no emprego desses termos de acordo com o lugar em que é a inscrição é feita, se na rua (bomb) ou no metrô (throw up); entretanto, tal distinção não foi observada no contexto do presente estudo.
  • 15
    Apesar do termo bombing ser usualmente empregado para se referir à feitura consecutiva de throw ups/bombs, ele também pode ser empregado para se referir à realização consecutiva de outras modalidades, como personas e tags, no sentido de bombardear a superfície.
  • 16
    “Experiência antes de toda abstração e conceitualização que se seguem” (tradução minha).
  • 17
    Termo empregado por quem faz graffiti para designar coletividades que pintam conjuntamente e adotam nomes para se identificar e se distinguir de outras coletividades. A expressão é mobilizada de maneira semelhante em outras conjunturas; a esse respeito, ver também Austin (2001)AUSTIN, J. Taking the train: how graffiti art became an urban crisis in New York City. New York: Columbia University Press, 2001., Castleman (1982)CASTLEMAN, C. Getting up: subway graffiti in New York. Cambridge: MIT Press, 1982., Campos (2007)CAMPOS, R. Pintando a cidade: uma abordagem antropológica ao graffiti urbano. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia - Especialidade Antropologia Visual) - Universidade Aberta, Lisboa, 2007., Ferro (2011)FERRO, L. Da rua para o mundo: configurações do graffiti e do parkour e campos de possibilidades urbanas. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Urbana) - Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2011. e Powers (1999)POWERS, S. The art of getting over: graffiti at the millennium. New York: St. Martin’s Press, 1999..
  • 18
    Ver lei nº 16.612/2017 (São Paulo, 2017SÃO PAULO (Município). Lei nº 16.612, de 20 de fevereiro de 2017. Dispõe sobre o Programa de Combate a Pichações no Município de São Paulo, dá nova redação ao inciso I do art. 169 da Lei nº 13.478, de 30 de dezembro de 2002, e revoga a Lei nº 14.451, de 22 de junho de 2007. São Paulo, 2017. Disponível em: Disponível em: http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-16612-de-20-de-fevereiro-de-2017 . Acesso em: 10 maio 2018.
    http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/l...
    ).
  • 19
    A respeito de outros contextos, ver Campos (2007CAMPOS, R. Pintando a cidade: uma abordagem antropológica ao graffiti urbano. 2007. Tese (Doutorado em Antropologia - Especialidade Antropologia Visual) - Universidade Aberta, Lisboa, 2007., p. 326); Cooper e Chalfant (2016COOPER, M.; CHALFANT, H. Subway art. London: Thames & Hudson, 2016., p. 126); Ferro (2011FERRO, L. Da rua para o mundo: configurações do graffiti e do parkour e campos de possibilidades urbanas. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Urbana) - Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2011., p. 245); Rahn (2002RAHN, J. Painting without permission: hip-hop graffiti subculture. Westport: Bergin & Garvey, 2002., p. 158); Snyder (2009SNYDER, G. Graffiti lives: beyond the tag in New York’s urban underground. New York: New York University Press, 2009., p. 167).
  • 20
    “Elaboram criativamente a si mesmos e suas existências enquanto meios para alcançar autorrealização (autonomia), autodescoberta (autenticidade) e autodistinção (individualidade), e para marcar seu próprio lugar no mundo” (tradução minha).
  • 21
    Em janeiro de 2017, um novo prefeito tomou posse, João Doria Jr. (Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB), o que provocou uma mudança de conjuntura que incidiu no regime de parcerias e na atmosfera de tolerância em relação às práticas de pintura na rua, que até então tinham lugar na gestão de Fernando Haddad (Partido dos Trabalhadores - PT). Nos primeiros meses de seu mandato, Doria iniciou uma cruzada antipichação que afetou todas as práticas de pintura na rua, em especial as práticas de graffiti e a pixação, e ocasionou um conjunto de medidas que incluiu desde ações repressivas por parte das forças policiais até a aprovação de uma nova lei para disciplinar, reprimir e punir a feitura de inscrições nas superfícies da cidade. Um dos marcos desse conjunto de medidas foi o início de apagamentos massivos pela cidade, que incluiu o mural coletivo que tinha lugar na Avenida 23 de Maio, realizado em parceria com a antiga gestão e que, segundo esta, configurava o maior mural do tipo da América Latina.
  • 22
    O sentido de ritmo aqui empregado faz referência à categoria analítica de Henri Lefebvre (2004LEFEBVRE, H. Rhythmanalysis: space, time and everyday life. London: Continuum, 2004., p. 36; p. 48), e diz respeito à dimensão tanto da natureza (como o dia, a noite, as estações do ano, etc.) quanto da sociedade (as paradas de ônibus, os semáforos, o fluxo de pessoas regulado pelos horários de trabalho, etc.) da vida cotidiana.
  • 23
    O termo CEP é empregado aqui enquanto um termo êmico, utilizado por alguns dos interlocutores para indicar lugar, localização. Trata-se da adoção de um termo oficial, utilizado pelo sistema de Correios no Brasil, o Código de Endereçamento Postal (CEP), que, conforme definição, “é um conjunto numérico constituído de oito algarismos, cujo objetivo principal é orientar e acelerar o encaminhamento, o tratamento e a distribuição de objetos de correspondência, por meio da sua atribuição a localidades, logradouros, unidades dos Correios, serviços, órgãos públicos, empresas e edifícios” (Correios, 2018CORREIOS. O que é CEP. 2018. Disponível em: Disponível em: http://www.correios.com.br/precisa-de-ajuda/o-que-e-cep-e-por-que-usa-lo . Acesso em: 10 maio 2018.
    http://www.correios.com.br/precisa-de-aj...
    ).
  • 24
    Emprego o termo “desativar” à luz das reflexões de Stephen Wright (2016WRIGHT, S. Para um léxico dos usos. São Paulo: Edições Aurora, 2016., p. 55-57) a respeito da função estética da arte: “Desativar é um verbo usado com frequência por Giorgio Agamben para nomear as condições políticas de possibilidade de mudanças genuínas de paradigma, que só podem acontecer, argumenta ele, se estruturas de poder residuais forem efetivamente desativadas. Se elas forem apenas deslocadas e revisadas, seu poder permanece ativo. […] Desativar a função estética da arte, torná-la inoperante - na acepção de Agamben - é deixá-la aberta a outras funções. […] Ou funções mais operativas, próprias das práticas em escala 1:1. […] Apenas desativando essa função extenuante, que exclui a possibilidade do uso, é que se pode abrir caminho para uma estética propositada da arte; uma estética reaproveitada em nome dos usos.”
  • 25
    Caso essas opções não sejam possíveis, os sujeitos poderão adotar uma série de procedimentos que possibilitem contornar uma possível situação de atropelo. Para uma análise mais detalhada a esse respeito no contexto de São Paulo, ver Gabriela Leal (2018)LEAL, G. P. de O. Cidade: modos de ler, usar e se apropriar - uma etnografia das práticas de graffiti de São Paulo. 2018. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018..
  • 26
    Segundo o dicionário de língua portuguesa Michaelis, o termo “apropriar” compreende em sua etimologia dois significados distintos: 1) tomar para si; apoderar(-se), apossar(-se); e 2) tornar(-se) próprio, adequado ou conveniente. É comum encontrar o emprego no segundo sentido, o qual é utilizado em alguns casos como sinônimo de uso; no entanto, aqui, o termo é empregado no primeiro sentido, justamente para marcar uma diferença em relação à ideia de uso adotada ao longo deste trabalho. Esta não é uma distinção nova e se aproxima das reflexões de Lígia Ferro (2011FERRO, L. Da rua para o mundo: configurações do graffiti e do parkour e campos de possibilidades urbanas. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Urbana) - Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2011., p. 268, grifo meu) acerca das práticas de graffiti e parkour nos contextos que pesquisou: “Até que ponto podemos dizer que os writers e os traceurs se apropriam da rua? Na verdade, os vários lugares da rua são usados pelos writers e traceurs assim como por outros habitantes da cidade. Quando um grafiteiro escreve algo numa parede, ele não pretende dizer ‘esta parede é minha’. […] Durante as nossas conversas, por vezes interpelei quer os writers, quer os traceurs acerca da possibilidade da sua ‘apropriação’ da rua e eles sempre foram unânimes em dizer-me: ‘eu não me aproprio da rua, eu uso a rua’ […]. Através do graffiti e do parkour, a rua vive-se de uma determinada forma, as sociabilidades que se travam em torno destas práticas são também diversas, mas não parece que haja propriamente uma reivindicação de uma exclusividade da rua por parte destes atores.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    31 Out 2018
  • Aceito
    15 Abr 2019
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