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Mito e ritual entre os índios Kaingang do Brasil meridional* * Os dados foram recolhidos entre 1993 e 1995 no Posto Indígena Xapecó, Estado de Santa Catarina, em colaboração com o Professor Silvio Coelho dos Santos da Universidade Federal de Santa Catarina. Agradeço a hospitalidade e o ensino atento dos meus professores Kaingang que me deram a sua confiança. A pesquisa continuará em 1998; conseqüentemente, acho importante sublinhar o aspecto heurístico das análises apresentadas aqui. Agradeço aos tradutores Rogério Reus Gonçalves da Rosa e Ledson Kurtz de Almeida e também a minha aluna Cláudia Pereira Gonçalves pela revisão e edição da versão final deste texto, que é uma versão modificada de um artigo publicado anteriormente em francês na revista canadense Religiologiques, nº 10, em 1994. O financiamento da pesquisa de campo provém do Conseil de Recherche en Sciences Humaines du Canada e do FCAR (Québec).

Resumo:

A partir da relação dialógica entre o Kaingang Kõikãng (o “velho chefe”) e o etnólogo Herbert Baldus (um “racionalista”) sobre a cosmologia kaingang, ocorrido em Palmas, estado do Paraná, em 1933, da sua experiência de campo e, em particular, dos mitos narrados pelo seu informante, o Kaingang Vicente Fókãe do Posto Indígena Xapecó, Santa Catarina, em 1994, Robert Crépeau (re)introduz a discussão sobre a interpretação dos mitos e dos ritos realizada pelos investigadores no decorrer do século XX.

Resumen:

A partir de la relación dialógica entre el Kaingang Kõikãng (“viejo jefe”) y el etnólogo Herbert Baldus (un “racionalsita”) sobre la cosmología kaingang ocurrido en Palmas, estado de Paraná, en 1933, de su experiencia de campo y, en particular, de los mitos narrados por su informante, el Kaingang Vicente Fókãe del Puesto Indígena Xapecó de Santa Catarina, en 1994, Robert Crépeau, re­introduce la discusión sobre la interpretación de los mitos y de los ritos realizada por los investigadores en el transcurso del siglo XX.

Em um recente livro consagrado ao exame crítico da obra de três autores franceses que no decorrer do século XX contribuíram de maneira maior ao estudo da mitologia (Durkheim, Lévi-Strauss e Eliade), Dubuisson (1993)DUBUISSON, D. Mythologie du XXe siècle. Paris: Presses Universitaires de Lille, 1993. mostra que os axiomas subjacentes nestas contribuições tomam ares de cosmologias enviando-nos a uma “instância que cada um desses sábios colocou no centro de seu próprio sistema”. Estranho resultado para as obras contemporâneas que se pretendiam diferentes de seu objeto, e que questionam qualquer que hoje enfrente a reflexão sobre um objeto que, se não desagrada aqueles que querem aboli-lo, continua bem atual. Em que efetivamente uma abordagem do mito poderia escapar ao que Dubuisson descreve das obras mais pregnantes deste século? Lévi-Strauss (1971LÉVI-STRAUSS, C. L’homme nu. Paris: Plon, 1971., 1985LÉVI-STRAUSS, C. La potiére jalouse. Paris: Plon, 1985.) não tem colocado sua análise de mitos no mesmo nível dos mitos indígenas, sublinhando que de cada um ele produzia uma nova versão para juntar aquela que analisava? A análise dos mitos está condenada a desembocar apenas em outros mitos científicos ou outros, pouco importa? A análise de Dubuisson evidencia o ponto comum entre estas três abordagens: ela pressupõe uma ordem subjacente que preexiste a atividade construtiva do pesquisador que, finalmente, deve dela dar conta mas não a criar.

Esta ordem, a priori, é ao mesmo tempo aquilo que preexiste à análise e que dela emerge, e que revela ser a chave da origem e interpretação dos mitos. Dumézil tem localizado no centro de seu sistema a Sociedade. Lévi-Strauss invoca o Espírito Humano, enquanto que Mircea Eliade nos remete ao Sagrado. Tanto núcleos originais de uma Ordem como os de uma finalidade desprendem-se da análise de mitos destes autores:

[…] todas estas obras (mesmo as mais eruditas e as mais racionais) parecem obedecer a uma espécie de engajamento ontológico que, por remeter tacitamente à existência de uma realidade ordenada e centrada em torno de um núcleo primordial, exclui, assim também tacitamente, o reconhecer a pluralidade, a diversidade e a heterogeneidade no coração do universo ou do homem. Estas obras encerram-se sobre elas mesmas e só se abrem prudentemente à realidade tumultuosa em medida estrita ou esta realidade reforça e arremata sua monumentalidade. (Dubuisson, 1993DUBUISSON, D. Mythologie du XXe siècle. Paris: Presses Universitaires de Lille, 1993., p. 329).

Evidentemente que está fora de questão explorar no quadro deste artigo todas as conseqüências decorrentes da epistemologia comparativa de Dubuisson. Este autor nos deixa com questões fundamentais, para as quais não traz respostas claras. Poderíamos formulá-las da seguinte maneira: qual seria a configuração de uma análise do mito que não apelasse a uma ontologia primitiva e que tomaria como ponto de partida esta pluralidade, esta diversidade e esta heterogeneidade que, justamente, conforme a maioria das análises contemporâneas, caracterizam o contexto social de enunciação dos mitos?

A miticidade, para retomar o neologismo de Roland Barthes, que caracteriza as diversas teorias recentes do mito, certamente não escapa às ideologias contemporâneas, mas estas teorias podem ser formuladas de modo a escapar às ontologias, transformando-as ainda uma vez em cosmologia? Em síntese, ao que poderia assemelhar-se uma teoria do mito neste fim do século?

Os índios Kaingang do Brasil meridional

Os índios Kaingang estão aparentemente muito longe destas preocupações introdutórias. Os mitos kaingang têm progressivamente dado lugar às narrativas que se remetem à ontologia de tradições diferentes: católica, laica ou mais recentemente, protestante. De fato, é muito pouco conhecida a mitologia que se poderia dizer propriamente kaingang, e a literatura antropológica se refere a alguns textos apenas. Dentre estes, um texto do etnólogo brasileiro Herbert Baldus (1937)BALDUS, H. Ensaios de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1937., que alguns qualificariam hoje em dia de dialógico, merece destaque. Baldus nos introduz à sociedade e à mitologia kaingang de forma original ao nos relatar não diretamente um mito, mas antes uma conversação em torno de um motivo mitológico entre o etnógrafo Baldus, abertamente racionalista, e o Kaingang Kõikãng, que Baldus qualifica de “velho chefe”. Antes de passar a este texto é indispensável dar ao leitor algumas indicações etnológica sobre os Kaingang.

Elementos de etnologia kaingang

Os Kaingang habitam o Brasil meridional, mais precisamente, os estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Eles integram a vasta família lingüística Jê, que inclui os Timbira, os Kayapó, os Suyá, os Xerente, os Xavante e os Xokleng, entre outros. Associa-se igualmente aos Jê os Bororo, tornados celebres pelo livro Tristes trópicos de Claude Lévi-Strauss. Os Kaingang estão hoje aldeados em reservas sob a administração federal da Funai (Nacke, 1983NACKE, A. O índio e a terra: a luta pela sobrevivência no P. I. Xapecó-SC. 1983. Dissertação (Mestrado em Antropologia)-Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1983.; Santos, 1981SANTOS, S. C. dos. Indigenismo e expansão capitalista. Faces da agonia Kaingang. Cadernos de Ciências Sociais, v. 2, n. 2, 1981., 1997SANTOS, S. C. dos. Leaders amérindienes et indigénisme gouvernemental dans le sud du Brésil. Recherches amérindiennes au Québec, v. 27, n. 2, 1997. No prelo.; Veiga, 1994VEIGA, J. Organização social e cosmovisão Kaingang: uma introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Jê meridional. 1994. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)-Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994.).

A organização social kaingang se caracteriza pela existência de metades concebidas idealmente como exogâmicas, denominadas kamé e kairu, existindo entre elas uma relação assimétrica e complementar, a metade kamé sendo considerada primeira porque possui “mais força” que a metade kairu. Cada metade comporta uma subdivisão ou seção: os veineky e os votôro, associados respectivamente aos kamé e aos kairu. Uma criança pertence automaticamente à metade de seu pai e deve em princípio casar-se na outra metade, se bem que hoje em dia se observe cada vez menos a regra da exogamia. O Kiki-koia um importante ritual anual conhecido também pela expressão “festa dos mortos” na literatura antropológica, apresenta as metades e as seções. O kiki se constitui para os Kaingang de Xapecó em seu mais importante ritual. Lugar privilegiado da encenação da complementaridade e da assimetria que preside as relações entre as metades, cada metade é encarregada do tratamento dos mortos da outra, a fim de lhes liberar e de lhes permitir enfim deixar o cemitério onde eles estavam confinados desde a sua morte. O dualismo kaingang se exprime ainda em muitos outros aspectos da vida, particularmente nas nomenclaturas animais, sendo muitas espécies consideradas pertencentes a uma ou a outra metade (Nimuendajú, 1993NIMUENDAJÚ, C. Ethnografia e indigenismo. Campinas: Unicamp, 1993.).

Conversação em torno de um motivo mitológico

Passemos agora a conversação entre Kõikãng, um Kaingang de Palmas, Paraná, e o etnólogo brasileiro Herbert Baldus, que se desenrola em 1933, transcrita no artigo em que Baldus dedica ao culto dos mortos e publicado em 1937:

Um dia conversei com o velho chefe Kõikãng sobre os astros. “É o sol Votôro ou Kadnyerú ou Kamé ou Aniky?” perguntei.

“O sol é Kamé”, respondeu, “ou talvez Aniky, porque este tem mais força do que Kamé”.

Lembrei-me de que Kõikãng mesmo era Aniky e que também os Kamé pertenciam à “metade” dele. “E a lua?” continuei a perguntar. “É esta, por acaso, Kadnyerú ou Votôro?”

Kõikãng fez uma cara admirada e respondeu: “Se o sol é Aniky, a lua também é Aniky. Você não sabe que o sol e a lua são a mesma cousa? O sol e a lua são o mesmo, não é?”

Afirmei: “Sim, naturalmente o sol e a lua são a mesma cousa”.

Kõikãng disse satisfeito e com energia: “O sol e a lua são a mesma cousa. Sol está de dia, lua está de noite”.

Perguntei: “O sol é homem ou mulher?”

“O sol é homem, isto é seguro. O sol tem mais força. A lua é mulher porque a lua é mais fraca”.

Eu disse ao bom velho: “Mas se o sol é homem e a lua mulher eles não podem ser a mesma coisa”.

“Por que não? Eles são a mesma coisa. O sol está de dia, a lua está de noite”.

Olhei para o céu. Era uma tarde lindíssima. “Olha!” exclamei, “aqui está a lua. E há também o sol”.

Kõikãng sorriu-se com superioridade. “Esta não é a mesma lua”, disse ele, bondosamente. “Esta não é a lua grande. Esta é a lua pequena que nasce. É vista com o sol ao mesmo tempo porque é a criança. O sol é o pai e a lua grande é a mãe. Também a lua pequena é mulher. E mais tarde, a lua pequena torna-se grande”.

“E então torna-se mulher do sol?” perguntei-lhe.

“Sim, assim é”.

“Por conseguinte a filha do sol é também a mulher do sol?”

“Assim deve ser”.

“Mas a lua, sendo mulher do sol, não é por isso Kadnyerú ou Votôro? Um homem como o sol que é Aniky ou Kamé, pode casar-se somente com uma Kadnyerú ou Votôro”.

É preciso lembrar, a este respeito, também, que a lua, por outro lado, devia pertencer, como filha do sol, à “metade” do pai.

Kõikãng respondeu muito reflectidamente: “Será verdade? Sim, deve ser assim. Então a lua seria Kadnyerú, porque ela não é Votôro, isto sei com certeza”.

“Uma vez, um homem me dizia que todos os Kamé seriam gente do sol, e que todos os Kadnyerú seriam gente da lua”.

Respondeu-me: “Isto não é verdade. O pai pinta os filhos. O sol e a lua não têm nada que ver com isto”.

“Uma vez um homem me disse que todas as plantas e os animais e as estrelas são ou kamé ou Kadnyerú, sempre a metades deles kamé e a outra metade, Kadnyerú”.

“As estrelas são filhos do sol e da lua, mas não são Aniky, não são Kamé, não são Kadnyerú, não são Votôro. Cada estrela tem um nome, mas as estrelas não separadas umas das outras como Kamé e Kadnyerú e as plantas e os animais não são Aniky, não são Kamé, não são Kadnyerú, não são Votôro, porque eles não foram pintados por nossos primeiros velhos, e porque eles têm pinturas completamente diferentes”.

“Quem pintou o sol e a lua?”

“Os nossos primeiros velhos fizeram isto quando saíram da terra. O sol e a lua e tudo já estava no mundo quando os primeiros velhos chegaram”.

“Estavam, naquele tempo; o sol e a lua no chão para que a gente pudesse pintá-los?”

“Deve ter sido assim. Do contrário, como a gente poderia pintá-los!”

(Baldus, 1937BALDUS, H. Ensaios de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1937., p. 61-63).

O interesse deste diálogo entre um etnólogo e seu informante é múltiplo. Ele reproduz uma situação comum no campo, onde se confronta pontos de vista sobre motivos mitológicos, neste caso, a relação existente entre o sol, a lua e a organização social dualista dos Kaingang. As divergências de interpretação que transparecem nesta conversa entre um etnólogo, tentando aqui de toda evidência recompor logicamente uma informação que ele tem de outros informantes, e um Kaingang pertencente à metade kamé (seção aniky ou veineky), implicam outros textos que estão subjacentes nesta conversação: o mito do sol e da lua, o mito de origens das metades kamé e kairu. O que aconteceria se os invocássemos para determinar a diferença entre nossos dois interlocutores? Divergência que se pode traduzir aqui dizendo que o etnólogo se detém à estrutura do mito via associação lógica do tema a um conteúdo sociológico e mitológico (a ligação entre esquema e conteúdo) enquanto que o informante kaingang se situa ao nível pragmático refletindo sobre a semântica e a associação do tema em termos práticos.

Temos aqui dois textos apoiando o debate. O primeiro é uma narrativa sobre a origem da lua do Sr. Vicente Fókãe, um Kaingang da metade kairu residente na reserva do Xapecó, estado de Santa Catarina, que registrei em vídeo, em julho 1994:

No primeiro mundo, quando Deus fez o mundo, ele fez primeiro a terra, a água e depois o céu, e o mundo se tornou mundo. Então Deus fez o sol. Neste tempo, havia somente dois sóis, não havia lua. Eles fizeram uma assembléia de Deus e decidiram enfraquecer os olhos da lua e a lua ficou fraca e para de noite. Neste tempo, quando havia dois sóis, não existia noite. As plantas não cresciam, os rios estavam secando, a floresta não se formava bem, ela era muito baixa, e as pessoas também não aumentavam. Então eles enfraqueceram a lua fraca existir a serração, para que as plantas crescessem e aumentassem as águas e a floresta. Assim a lua é somente de noite para dar serração. Então se formou o vento para enfraquecer, refrescar o sol.

Em resposta às minhas questões, Vicente Fókãe afirmou que o sol é kamé e que a lua é kairu. Sobre minha questão querendo que o sol e a lua sejam esposos, ele me respondeu pela negativa: “Eles não são um casal porque estão separados e porque o sol não se forma de novo. A lua se forma de novo; quando termina o mês ela se renova”.

Se compararmos a fala do informante de Baldus à de Vicente Fókãe, nota-se que os dois concordam em um ponto: o sol é kamé (ou aniky, que corresponde seção veineky). Eles divergem sobre o resto. Conforme Kõikãng, a lua não é kairu e sim a mesma coisa que o sol. O sol é masculino e a lua feminino e eles formam um casal. Atropelado, pela questão de Baldus querendo que se eles formam um casal, sol e lua devem necessariamente pertencer às metades diferentes, segundo a regrada exogamia, prescrevendo um kamé a se casar com um kairu, Kõikãng admite a possibilidade de que a lua seja kairu (kadnyerú) precisando sua certeza de que ela não pode ser votôro.

De sua parte, Vicente Fókãe afirma que o sol é kamé e a lua kairu, mas que eles não formam um casal por estarem separados pelo dia e pela noite, diferenciando-se pela capacidade de transformação que a lua possui.

É interessante notar aqui que ele explica sua resposta em termos práticos ao invocar as transformações que passa lua no curso de um mês, enquanto que Kõikãng faz referência ao fato de ter o sol “mais força” que a lua quando ele afirma que eles formam um casal. A narrativa de Vicente Fókãe permite compreender porque Kõikãng afirmou a Baldus que o sol e a lua são a mesma coisa, ao esclarecer que em uma certa época, a lua foi um sol que teve seus olhos enfraquecidos. Pode-se pensar que na origem existiam dois kamé, e que Kõikãng conservou esta interpretação para lua em seu diálogo com Baldus, como Vicente, se referindo a sua própria narrativa, associou lua à metade kairu, que é considerada “menos forte” que a metade kamé. Assim estaríamos face a duas leituras diferentes e complementares do motivo: 1) aquela que Kõikãng se refere à origem da lua e insiste sobre o fato de que a lua era um sol; 2) a de Vicente Fókãe partindo do mito de origem, mas insistindo sobre a transformação do sol em lua através da diminuição de sua intensidade luminosa, situando-o logicamente com relação ao sol, kamé na posição kairu.

A este ponto da investigação, o leitor teria razão de se perguntar se não haveria outros textos, ausentes do processo, que permitiriam resolver de forma decisiva o debate. Temos aqui um texto que acrescenta alguns elementos úteis. Este foi recolhido por Schaden (1953SCHADEN, E. A origem dos homens, o dilúvio e outros mitos Kaingang. Revista de Antropologia, v. 1, n. 2, p. 139-141, 1953., p. 141) junto a Xê Coelho, no Paraná em 1947:

Xê contou-me também o mito do dilúvio universal. Muitos índios morreram na grande enchente que houve por êstes sertões Escapou somente um casal de irmãos, pequenos ainda. Eram do grupo dos Kamé .O casalzinho foi nadando, foi nadando até a uma serra muito alta, que se chama Krim-Takré. Os dois subiram no alto da serra e agarraram-se às folhas das árvores. Quando baixou a água da enchente, desceram ao chão. Casaram-se então os dois, o irmão com a irmã, e os índios tornaram a aumentar. Fizeram fogo, pois já conheciam o cipó que dá fogo. Depois de aumentar o número de filhos, o casal, antes de morrer, restabeleceu a divisão em dois grupos: os Kamé, que são mais fortes e os Kanherú, que são menos fortes. Dividiram-nos para arranjar os casamentos entre eles. Depois de aumentarem mais, os índios restauraram também a divisão em Votôro e Venhiky. Os Votôro têm a força dos Kanherú e os Venhiky as dos Kamé.

O termo venhiky corresponde a veineky e ao termo aniky por Baldus, uma seção da metade kamé, como já dissemos. O interesse deste mito é de apontar que a metade kamé é primeira e aquela que dá origem à metade kairu, que resultou de uma divisão instaurada pelos kamé sobreviventes do diluvio. Este mito de origem insere a divisão kamé/kairu em um ato sociológico fundador que permite instaurar os casamentos de maneira que eles se realizem entre as metades. Este mito transpõe o tema do mito de origem da lua que no início havia dois sóis, dois kamé, portanto, e que a lua resulta da transformação de um kamé enfraquecido. Este mito permite sugerir um ponto de entendimento entre Kõikãng e Fókãe: a prioridade admitida à metade kamé, prioridade que constitui de certo modo um axioma que organiza em seguida a construção de textos sem, em aparência, limitar excessivamente no que concerne aos outros aspectos. Basta colocar a existência da metade kamé em um texto para implicitamente sugerir a existência da metade kairu. Mas que sol seja kamé não implica necessariamente que lua seja kairu, pois podemos pensá-la igualmente como sendo de origem kamé. Se perseguimos esta lógica, ela pode ou não ser esposa do sol, independente do fato que ela se defina como kamé ou kairu, os textos permitem pensar sem contradição, em uma união primordial entre kamé ou em uma união exogâmica entre membros de metades diferentes.

Uma outra referência esta subjacente na conversa entre o etnólogo Baldus e seu informante Kõikãng. Trata-se do ritual chamado kiki, ou festa dos mortos, à qual Baldus consagra boa parte de seu artigo, e que Kõikãng menciona explicitamente quando afirma que “o pai pinta seus filhos”. As pinturas faciais indicam de fato a pertença a uma metade ou seção (kamé ou kairu ou veineky/votôro) e são utilizadas hoje em dia somente no kiki. Baldus (1937BALDUS, H. Ensaios de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1937., p. 44) parece tomar a afirmação de Kõikãng em sentido literal, sugerindo que o próprio pai deve pintar seus filhos durante o ritual ou, que em sua ausência deve-se tratar de um membro de sua metade e não de um membro da outra metade, por exemplo, a mãe. Minhas observações durante a realização do kiki em maio de 1994 no Posto Indígena Xapecó, estado de Santa Catarina, contradizem esta leitura literal da fala de Kõikãng. De fato, não é o pai que pinta o rosto de seus filhos. Duas mulheres, uma de cada metade, são encarregadas de desenhar com o carvão de uma árvore, o pinheiro (Araucaria angustifolia), para os kamé e veineky ou a sete-sangria (Simplocus parviflora), para os kairu e os votôro, os motivos distintivos das metades e de cada seção. Sem dúvida, Kõikãng queria dizer a Baldus que a pertença a uma metade se determina em linha patrilinear, enfim, que uma criança pertence à metade ou à seção de seu pai e exibirá a mesma pintura facial que a dele e não daquela que pertence sua mãe, conforme a regra exogâmica, a outra metade. Esta referência ao kiki, ao curso numa conversação que discorre sobre a origem da lua é reveladora do pensamento de Kõikãng, que se refere a um ritual para argumentar com Baldus que acaba de afirmar que um homem havia lhe dito um dia que “todos os kamé seriam gente do sol e que todos os kadnyerú seriam gente da lua”. Por que invocar um ritual no curso de uma conversação sobre um motivo mitológico? E de qual estratégia retórica se serve Kõikãng neste momento do diálogo? Por que ele nega então a afirmação enunciada por Baldus se ele acaba de aceitar a possibilidade que a lua seja kairu? Parece que Kõikãng nega a filiação que pressupõe a afirmação de Baldus “os kamé seriam gente do sol…” e que a mitologia kaingang jamais enuncia explicitamente. Em outros termos, para Kõikãng, o sol é kamé, a lua pode ser kairu sem que por isso haja um vínculo de filiação entre o sol e a metade kamé ou entre a lua e a metade kairu, pois, como ele esclarece, quando os ancestrais emergiram da terra, o sol e a lua já existiam. Baldus, de sua parte, aplica um raciocínio que não leva em conta o fato de que, freqüentemente, os mitos indígenas não se atribuem como tarefa explicar a origem de todas as coisas como a Gênese, por exemplo, mas pressupõem a existência prévia de vários elementos do mundo que eles pretendem discutir. Assim, o mito kaingang da origem da lua afirma a existência de dois sóis, mas não os explica.

A significação que um ator social atribui a um mito é, portanto, uma questão de posição (Pouillon, 1993POUILLON, J. Le cru et le su. Paris: Seuil, 1993., p. 52), e relativa a seu acesso aos diversos textos, que ele situará no quadro das práticas que ele conhece e pode invocar em auxílio a sua interpretação. O etnólogo que tem acesso aos mitos de várias populações vizinhas poderá muito bem, como o ilustrou abundantemente Claude Lévi-Strauss, situar um motivo em uma seqüência, assinar-lhe uma origem, ilustrar suas transformações e, assim fazendo, escapar aos obstáculos da significação para aceder ao sentido, quer dizer, a uma intertextualidade sem fronteiras, liberada das exigências pragmáticas locais às quais são confrontados os informantes do etnólogo.

Mito, ordem e ritual

Por que se faz apelo a uma ordem subjacente, como sublinha Dubuisson (1993DUBUISSON, D. Mythologie du XXe siècle. Paris: Presses Universitaires de Lille, 1993.), citado na introdução? A razão aí é simples: é que, para estes autores, o sentido tem origem nesta totalidade que lhe é preexistente. Afirmar o contrário seria desvelar, colocar a nu, a atividade construtiva do pesquisador, e revelar a sua pragmática, tendo então como tarefa mostrar como e por que ela se substitui àquela dos utilizadores dos mitos analisados, enfim, de levar o sentido à significação. Para Kõikãng, a ordem subjacente invocada não é o mito em si ou uma intertextualidade implicando outros mitos, mas um ritual: o kiki que, justamente, coloca em cena a assimetria e a complementaridade que caracterizam as relações entre as metades kamé e kairu e que ilustra a relação e o tratamento com os mortos. Como enfatiza Lévi-Strauss (1971)LÉVI-STRAUSS, C. L’homme nu. Paris: Plon, 1971., o mito instaura a descontinuidade, mas esta se apóia sobre uma ordem subjacente, um contínuo, que o mito descreve tão logo para aboli-lo. Referindo-se ao ritual do kiki, Kõikãng apela a esta ordem subjacente que permite reduzir a significação ao sentido, abolindo o contexto pragmático instaurado pelo mito, substituindo-lhe o espaço e o tempo rituais como lugar da enunciação discursiva e de evocação não discursiva. Os mitos kaingang se apóiam sobre uma distinção e uma assimetria (a dualidade kamé/kairu) que eles enunciam e reiteram, situando-os ao mesmo tempo, em relação a um originário grau zero da aliança, onde desaparece a dualidade sociológica kairu/kamé.

Um mito inédito relatando a origem do kiki, recolhido na reserva de Xapecó junto a Vicente Fókãe em junho de 1994, me permite ilustrar o proposto. Apresentamos uma versão resumida para os propósitos deste artigo:

O dilúvio foi anunciado. José, o pai de Jesus Cristo, construiu um barco onde reuniu-se um casal de cada nação, de cada animal e um casal kairu e kamé. Os negros não puderam subir a bordo; levou-se somente uma mulher. A água subiu durante um dia completo. Ela começou em seguida a baixar e se retirou em três dias. Não existia mais pessoas nem animais sobre a terra; os negros escaparam agarrando-se às mais altas árvores das mais altas montanhas.

Pica-pau, que é kamé, roubou o fogo e o distribuiu aos kairu e aos kamé. Fez-se em seguida uma festa, chamada Kiki, para aqueles que morreram. O primeiro a se apresentar ao seu fogo foi jacaré, yamuyé yãngré, que é kamé; porque o kamé chega primeiro ao fogo. Então o mico kãyer, que é kairu, foi ao seu fogo. Vieram em seguida fenenk, o tatu que é kairu e depois dele fóyin, o porco-espinho, que é também kairu. Os Kaingang aprenderam os cânticos do kiki destes animais.

Contrariamente à primeira versão do mito citado anteriormente, onde um irmão e uma irmã kamé solitários sobreviveram ao dilúvio, esta versão indica que a divisão em metades kamé e kairu se mantém. O mito sublinha que um casal, kamé e kairu, foi levado a bordo no barco construído por José. (Nota-se aqui o interessante uso de elementos da Gênesis.) Que seja possível encontrar duas versões se opondo sobre este ponto – uma versão mantendo a divisão e a outra a abolindo para restaurá-la em seguida –, indica que o mito do dilúvio se dirige a um ponto mais fundamental que é necessário compreender se queremos captar aqui seus laços (o vínculo) com o ritual que ele descreve a origem. Este ponto pode ser formulado como se segue: eliminando todos os humanos exceto um casal, o dilúvio anula o ciclo das trocas matrimoniais e as obrigações decorrentes da reciprocidade, e funda a sociedade sobre uma unidade fundamental: um casal incestuoso constituído de um irmão e sua irmã (da mesma metade) ou um casal kamé/kairu cujos descendentes serão necessariamente incestuosos. De fato, ainda que o casal tenha escapado do dilúvio e assim mantendo a divisão kamé/kairu, seus filhos se encontrarão na mesma posição que o irmão e a irmã incestuosos da versão precedente; a afiliação a uma metade entre os Kaingang sendo patrilinear, como vimos, eles pertencem por definição à mesma metade. Desta unidade fundamental, liberada de suas obrigações de reciprocidade, será engendrada uma nova humanidade descendente de ancestrais consangüíneos que teriam instaurado, por um ato sociológico, as divisões kamé/kairu como explicita à primeira versão do mito. A descontinuidade das metades, o mito substitui o contínuo da consangüinidade abolindo uma delas. Assim, a metade kairu surge da metade kamé, como a lua surge do sol.

Uma outra versão do mito do dilúvio, trazida por Borba (1908)BORBA, T. Actualidade indígena. Curitiba: Impressora Paranaense, 1908., anterior a estas citadas até aqui, trata o tema de maneira interessante e complementar, indicando que no momento do dilúvio coexistiam três grupos: os kaingang, os kairu e os kamé. Só os kaingang escaparam ao afogamento e sobreviveram. É somente mais tarde que os kairu e os kamé, que mortos durante a inundação, tiveram suas almas albergadas no interior da montanha, emergem do solo por turnos e os casamentos entre kairu, kamé e kaingang foram restituídos. Aqui é interessante notar que, segundo esta versão, o que subsiste ao aniquilamento das metades kairu e kamé, é a unidade tribal kaingang, que o retorno das almas dos kairu e dos kamé vem dividir.

A segunda versão do mito do diluvio introduz a origem de um ritual, o kiki atribuindo esta primeira realização a alguns animais. O leitor poderá se reportar utilmente as descrições de Nimuendajú (1993)NIMUENDAJÚ, C. Ethnografia e indigenismo. Campinas: Unicamp, 1993. e Baldus (1937)BALDUS, H. Ensaios de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1937.. Abandonado durante quase vinte cinco anos, o kiki foi retomado em 1976 e atualmente é realizado todos os anos no Posto Indígena Xapecó. Não é surpreendente constatar que muitos consideram o kiki como o nó da identidade kaingang, que em relação a uma sociedade regional e nacional invasora, procura afirmar explicitamente sua unidade. Através de um mútuo tratamento dos mortos da metade oposta, o ritual exibe a assimetria e a complementaridade entre as metades kamé e kairu. Procedendo no sentido contrário do mito que instaura no início uma unidade para cindi-la em seguida, o kiki coloca em primeira cena o dualismo social, a assimetria e a complementaridade das metades, para terminar com a fusão das metades em uma dança de encerramento do rito, na qual eles formam um único grupo. O ritual trabalha a partir das divisões sociológicas concretas e instaura uma unidade social que resulta de uma pragmática ritual, o que permite que as divisões sejam apagadas na fase final do kiki. Neste sentido, o ritual deixa à mostra as divisões sociais, por exemplo, através das pinturas faciais que se referia Kõikãng, ou durante a procissão ao cemitério onde os kamé vão sempre na frente dos kairu. Ao trabalhar um dado sociológico concreto que ele situa de maneira causal em relação a um outro domínio – semântico ou cosmológico, neste caso o mundo dos mortos ou dos ancestrais –, o Kiki apela a uma causalidade eficiente opondo-se à causalidade antecedente do mito que invoca um estado cronologicamente anterior a um fenômeno social ou natural. Em outros termos, o rito trabalha um estado social inicial que se aplica a transformar em um estado de chegada, transformação que decorrerá do sucesso de uma prática plenamente humana ainda que sempre concebida como mantendo uma relação causal com um outro domínio que não tem força determinante, mas antes de contenção. De sua parte, o mito se situa em um outro domínio, histórico ou cosmológico, e apela a fenômenos de uma outra natureza que as práticas que ele situa em relação à ordem subjacente por ele enunciada. Invocando o kiki face ao proposto pelo etnólogo Baldus; Kõikãng traz a argumentação sobre um motivo mitológico ao domínio sociológico do ritual, o que permite enunciar os problemas em função de uma causa eficiente: “É o pai que pinta seus filhos então eles não são gente do sol”. O rito e, além dele, as práticas são assim para Kõikãng o lugar onde se situa a ordem subjacente, permitindo organizar a interpretação e resolver uma questão colocando em jogo a significação de um enunciado mitológico e a face, no sentido em que Goffman (1974)GOFFMAN, E. Les rites d’interaction. Paris: Minuit, 1974. emprega o termo, do interlocutor em presença. Isto nos permite entrever porque uma sociedade pode se passar de uma mitologia explícita, mas não de ritos.

Referências

  • BALDUS, H. Ensaios de etnologia brasileira São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1937.
  • BORBA, T. Actualidade indígena Curitiba: Impressora Paranaense, 1908.
  • DUBUISSON, D. Mythologie du XXe siècle Paris: Presses Universitaires de Lille, 1993.
  • GOFFMAN, E. Les rites d’interaction Paris: Minuit, 1974.
  • LÉVI-STRAUSS, C. L’homme nu Paris: Plon, 1971.
  • LÉVI-STRAUSS, C. La potiére jalouse Paris: Plon, 1985.
  • NACKE, A. O índio e a terra: a luta pela sobrevivência no P. I. Xapecó-SC. 1983. Dissertação (Mestrado em Antropologia)-Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1983.
  • NIMUENDAJÚ, C. Ethnografia e indigenismo Campinas: Unicamp, 1993.
  • POUILLON, J. Le cru et le su Paris: Seuil, 1993.
  • SANTOS, S. C. dos. Indigenismo e expansão capitalista. Faces da agonia Kaingang. Cadernos de Ciências Sociais, v. 2, n. 2, 1981.
  • SANTOS, S. C. dos. Leaders amérindienes et indigénisme gouvernemental dans le sud du Brésil. Recherches amérindiennes au Québec, v. 27, n. 2, 1997. No prelo.
  • SCHADEN, E. A origem dos homens, o dilúvio e outros mitos Kaingang. Revista de Antropologia, v. 1, n. 2, p. 139-141, 1953.
  • VEIGA, J. Organização social e cosmovisão Kaingang: uma introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade Jê meridional. 1994. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)-Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994.
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    Os dados foram recolhidos entre 1993 e 1995 no Posto Indígena Xapecó, Estado de Santa Catarina, em colaboração com o Professor Silvio Coelho dos Santos da Universidade Federal de Santa Catarina. Agradeço a hospitalidade e o ensino atento dos meus professores Kaingang que me deram a sua confiança. A pesquisa continuará em 1998; conseqüentemente, acho importante sublinhar o aspecto heurístico das análises apresentadas aqui. Agradeço aos tradutores Rogério Reus Gonçalves da Rosa e Ledson Kurtz de Almeida e também a minha aluna Cláudia Pereira Gonçalves pela revisão e edição da versão final deste texto, que é uma versão modificada de um artigo publicado anteriormente em francês na revista canadense Religiologiques, nº 10, em 1994. O financiamento da pesquisa de campo provém do Conseil de Recherche en Sciences Humaines du Canada e do FCAR (Québec).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 1997
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