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Nova centralidade do território e da identidade nas lutas sociais e processo de complexificação da questão agrária

La nouvelle centralité du territoire et de l’identité dans les luttes sociales et le processus de complexification de la question agraire

Resumo

Até a década de 1980, as interpretações da questão agrária brasileira apontavam que os conflitos e as contradições no campo se expressavam na relação entre dois polos opostos: o camponês e o latifundiário, refletindo duas perspectivas diferentes de uso da terra - para trabalho (meio de produção e vida) e para negócio (associado à expansão e à especulação do mercado capitalista). Contudo, a partir de então, novas vozes irrompem na cena pública, politizando aspectos como a identidade e o território e reconfigurando o campo de disputas, processo que compreendemos como de complexificação da questão agrária. Este artigo trata desse processo, que é múltiplo do ponto de vista dos sujeitos e dos territórios e que impõe a necessidade de novas formas de abordagem dos problemas dos usos territoriais e dos conflitos no campo no Brasil.

Palavras-chave:
Terra; Território; Identidade; Conflitos; Questão agrária

Résumé

Jusqu’aux années 1980, les interprétations de la question agraire brésilienne soulignaient que les contradictions et les conflits ruraux s’expliquaient par le biais de la relation entre deux pôles opposés: celui du paysan et celui du grand propriétaire terrien, reflétant deux perspectives différentes d’utilisation de la terre - pour le travail (moyens de production et vie) et pour les affaires (associées à l’expansion et à la spéculation du marché capitaliste). Cependant, dès lors, de nouvelles voix ont émergé sur la scène publique, politisant des aspects tels que l’identité et le territoire et reconfigurant le champ des conflits, un processus que nous comprenons comme une complexification de la question agraire. Cet article traite de ce processus, qui est multiple du point de vue des sujets et des territoires et qui impose la nécessité d’intégrer de nouvelles formes d’approche en ce qui concerne les problématiques des conflits ruraux brésiliens et de l’utilisation du territoire.

Mots-clés:
Terre; Territoire; Identité; Conflits; Question agraire

Abstract

Until the 1980s, Brazilian agrarian interpretations pointed out that conflicts and contradiction in the field are explained through the relationship between two opposing poles: peasants and large landowners, who reflected two different perspectives of land use - for work (means of production and life) and for business (associated with expansion and speculation in the capitalist market). However, from that decade, new voices have emerged on the public scene, politicizing aspects such as identity and territory and reconfiguring the field of disputes, which we understand as a complexification of the agrarian question. This article deals with this process in Brazil, which is diverse from the point of view of the subjects and territories and which requires the need to incorporate new approaches in terms of the problems of territorial uses and conflicts in the field.

Keywords:
Land; Territory; Identity; Conflicts; Agrarian question

Introdução

A análise e a interpretação da questão agrária brasileira se fizeram a partir de meados da década de 1950, com base na oposição entre camponeses e latifundiários, cujas formas de uso e apropriação da terra são diferentes e conflitantes. Os dados sobre a questão agrária no Brasil revelam que, do período das sesmarias aos tempos do agronegócio, o latifúndio monocultor e o latifundiário marcam nossa geo-história. A persistência da concentração fundiária reproduz (e é reproduzida por) um padrão de desigualdades e injustiças que, ao legitimar o poder e o acesso de uns poucos à terra, nega e expropria tal direito a muitos outros.

São inegáveis os privilégios da classe latifundiária quando do pensamento e das ações que deram origem às configurações político-territoriais no Brasil e que a seguem determinando. No entanto, a predominância da lógica mercantil e latifundiária, que via de regra implicou dinâmicas desterritorializantes na vida dos homens e mulheres do campo, não se expandiu uniforme e ilimitadamente a ponto de “domesticar” (Santos, 2008SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2008.) o mundo rural como um todo.

A reterritorialização e a r-existência mais ou menos ativa se deram de inúmeras maneiras e se manifestam na grande heterogeneidade, tanto de formas de apropriação e transmissão da terra, quanto de concepções de grupo ou coletividade, trabalho e usos da terra do “mundo rural brasileiro”. O destaque com aspas se explica justamente porque, como afirma Brandão (2007aBRANDÃO, C. R. Tempos e espaços nos mundos rurais do Brasil. Ruris - Revista do Centro de Estudos Rurais , Campinas, v. 1, n. 1, p. 37-64, 2007a.), é muito mais diversificado e polissêmico do que em geral se imagina e do que sugere essa expressão.

Inúmeras formas de ocupação e uso da terra (de gestão social de tempos e de espaços, de vidas e de mundos de vida e de trabalho) se conformaram entre os limites das grandes fazendas ou além delas. Os métodos oficiais e os escusos, embora decisivos, não levaram ao extermínio absoluto de sujeitos e territorialidades que se contrapõem ao latifúndio/latifundiário. Há, ainda hoje, uma enormidade de sujeitos com diferentes modalidades de uso e gestão da terra no Brasil - muitas delas antes subsumidas na categoria camponês -, tais como indígenas, quilombolas, seringueiros, faxinalenses, populações de fundo de pasto etc.

A partir da década de 1980, esses sujeitos passam a afirmar que suas lutas são por existir, por identidade e por território - por isso, são demandas que partem da ideia de coletivo (e não de indivíduo) e de direitos sociais (e não civis), como já nos provocava Martins (1985MARTINS, J. S. A militarização da questão agrária no Brasil (terra e poder: o problema da terra na crise política). Petrópolis, RJ: Vozes , 1985.). Ao invés de desaparecer diante do propalado e inevitável avanço da modernização no campo, reemergem na cena pública e nas arenas políticas trazendo pautas como a identidade e o território e exigindo o reconhecimento de suas demandas e de suas trajetórias, o que interpretamos como uma complexificação da questão agrária.

Com vistas a demonstrar tal processo de complexificação, apresentamos inicialmente os termos do debate clássico da questão agrária e, em seguida, o transcurso de sua reconfiguração. Índios, quilombolas, seringueiros, quebradeiras de coco de babaçu e geraizeiros, entre outros, ganham força como sujeitos políticos e renovam esquemas de percepção e de ação cuja força repousa na identidade e no território.

O debate clássico da questão agrária: terra para trabalho x terra para negócio

No Brasil, a sistematização teórica e política da questão agrária se institui a partir de meados da década de 1950. Para aqueles que se debruçaram sobre os conflitos no campo, a contradição se explicitava na relação entre dois polos opostos: o camponês e o latifundiário, que refletiam duas perspectivas diferentes de uso da terra - para trabalho (meio de produção e vida do camponês) e para negócio (associada à expansão e à especulação do mercado capitalista). Embora o objetivo do artigo não seja fazer uma revisão das interpretações do lugar do campesinato nos debates sobre a questão agrária no Brasil, consideramos importante destacar que há diferentes leituras do papel e do futuro desses sujeitos no campo.

Inspirados pelos debates de Karl Kautsky e Lenin, teóricos como Abramovay (1998ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo: Ed. Unicamp, 1998.) e Veiga (1991VEIGA, J. E. O desenvolvimento agrícola: uma visão histórica. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1991.) concebem o campesinato como resquício de sociedades tradicionais (ou resíduo pré- capitalista), em processo de transição para um modo de vida típico das sociedades industriais contemporâneas. Assim, entendem que o destino do campesinato é o desaparecimento, tornando-se proletários ou capitalistas. Filiam-se, portanto, a um tipo de visão que Brandão (2007bBRANDÃO, C. R. Territórios com classes sociais, conflitos, decisão e poder. In: ORTEGA, A. C.; ALMEIRA, F. (Org.). Desenvolvimento territorial, segurança alimentar e economia solidária. Campinas: Alínea, 2007b. p. 39-61.) chama de estática, positivista e utilitarista. Nessa perspectiva, o local é tido como dado, natural, a-histórico e não institucional ou socialmente constituído. Aparece, pois, como um “espaço-plataforma homogêneo, inerte, dotado de contiguidade, um plano geométrico, onde cristalizariam as aglomerações humanas e agrupar-se-iam certas atividades econômicas” (Brandão, 2007bBRANDÃO, C. R. Territórios com classes sociais, conflitos, decisão e poder. In: ORTEGA, A. C.; ALMEIRA, F. (Org.). Desenvolvimento territorial, segurança alimentar e economia solidária. Campinas: Alínea, 2007b. p. 39-61., p. 44).

Abramovay (1998ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. São Paulo: Ed. Unicamp, 1998.) e Veiga (1991VEIGA, J. E. O desenvolvimento agrícola: uma visão histórica. São Paulo: Edusp/Hucitec, 1991.) são exemplos de autores que, com base numa leitura positivista e utilitarista, têm priorizado as dimensões econômicas e o desenvolvimento das forças produtivas em suas abordagens do espaço agrário. Como bem aponta Porto-Gonçalves (2011PORTO-GONÇALVES, C. W. A reconfiguração da questão agrária e a questão das territorialidades, Outra Política, 4 jul. 2011. Disponível em: Disponível em: https://outrapolitica.wordpress.com/tag/carlos-walter-porto-goncalves/ . Acesso em: 20 jul. 2015.
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), a priorização dessas abordagens resultou - não por contradição - em perda de campo no debate sobre a questão agrária. No entanto, Porto-Gonçalves (2011PORTO-GONÇALVES, C. W. A reconfiguração da questão agrária e a questão das territorialidades, Outra Política, 4 jul. 2011. Disponível em: Disponível em: https://outrapolitica.wordpress.com/tag/carlos-walter-porto-goncalves/ . Acesso em: 20 jul. 2015.
https://outrapolitica.wordpress.com/tag/...
) afirma a pertinência de se pensar a questão agrária, principalmente, devido às reconfigurações e contradições sociais que elas expressam, empiricamente demonstradas pela permanência e pelas transformações dos contextos de conflito pela terra.

Outra abordagem, de autores como Martins (1981MARTINS, J. S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes , 1981., 1985MARTINS, J. S. A militarização da questão agrária no Brasil (terra e poder: o problema da terra na crise política). Petrópolis, RJ: Vozes , 1985.) e Oliveira, A. (1981OLIVEIRA, A. U. Agricultura e indústria no Brasil. Boletim Paulista de Geografia, São Paulo: AGB, n. 58, p. 5-64, 1981. , 1994OLIVEIRA, A. U. A geografia das lutas no campo. São Paulo: Contexto, 1994., 1999OLIVEIRA, A. U. A geografia agrária e as transformações territoriais recentes no campo brasileiro. In: CARLOS, A. F. A. (Org.). Novos caminhos da geografia. São Paulo: Contexto, 1999. p. 63-110.), destaca a permanência e os frequentes processos de luta e reinvenção do campesinato como próprios da lógica contraditória do capitalismo no campo. A reprodução de relações não capitalistas de produção no âmbito do capitalismo é, para esses autores, necessária ao movimento eminentemente contraditório e desigual do capital. Ou seja, como bem coloca Oliveira, A. (1999OLIVEIRA, A. U. A geografia agrária e as transformações territoriais recentes no campo brasileiro. In: CARLOS, A. F. A. (Org.). Novos caminhos da geografia. São Paulo: Contexto, 1999. p. 63-110., p. 91), “há lugar histórico para os camponeses no futuro”. Isso porque, “os camponeses, em vez de se proletarizarem, passaram a lutar para continuarem sendo camponeses” (Oliveira, A., 1999OLIVEIRA, A. U. A geografia agrária e as transformações territoriais recentes no campo brasileiro. In: CARLOS, A. F. A. (Org.). Novos caminhos da geografia. São Paulo: Contexto, 1999. p. 63-110., p. 72). Chama atenção assim para as lutas dos camponeses, a violência e os conflitos pela terra, e dá visibilidade a esses sujeitos, suas trajetórias e demandas.

Desde 1985, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) faz um dossiê anual sobre os conflitos no campo no Brasil.1 1 Ver www.cptnacional.org.br. Os dados de 2020 revelam um total de 1.608 conflitos por terra (maior número de toda a série histórica), 96 conflitos trabalhistas (pico de 416 em 2007), 350 conflitos por água (também um recorde) e 18 assassinatos (máximo de 73 em 2003). Um dado que chama atenção é a área total dos conflitos por terra no ano de 2020: 77.443 hectares. De longe a maior área registrada em todos os relatórios, e que vem crescendo exponencialmente desde 2015.

De acordo com Porto-Gonçalves e Cuin (2013PORTO-GONÇALVES, C. W.; CUIN, D. P. Geografia dos conflitos por terra no Brasil (2013). Expropriação, violência e r-existência. In: CPT - COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo-Brasil, p. 18-26, 2013.), o conflito é imanente às relações sociais e de poder, resultado de diferentes interesses e visões de mundo. No que tange às especificidades da realidade do campo no Brasil contemporâneo, o conflito se dá na tentativa de imposição de um modo de apropriação, uso e significação do espaço e dos recursos sobre outro modo, ou seja, do encontro de diferentes racionalidades, de sujeitos sociais e suas respectivas trajetórias, práticas e representações sociais (ou organização socioespacial). Diz respeito, portanto, à existência de múltiplas territorialidades em relações contraditórias (nas quais umas territorialidades se impõem, desterritorializando outras), e à pluralidade de percepções e interesses do/no território. Os conflitos são, portanto, decorrência da geração desigual de impactos e da disputa por legitimidade de uso e apropriação de recursos, mas vão além, são simultaneamente lutas por sentidos culturais (PORTO-GONÇALVES; CUIN, 2013PORTO-GONÇALVES, C. W.; CUIN, D. P. Geografia dos conflitos por terra no Brasil (2013). Expropriação, violência e r-existência. In: CPT - COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo-Brasil, p. 18-26, 2013.).

Uma perspectiva similar é apresentada por Acselrad (2004ACSELRAD, H. Conflitos ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2004.), para quem os conflitos precisam ser analisados simultaneamente nos espaços da distribuição de poder sobre os recursos do território e nos espaços das representações simbólicas. Por isso, segundo o autor, o caminho metodológico passa por identificar o tipo de capital material e simbólico (espécie de poder) que está em disputa e as estratégias dos sujeitos em torno de seus objetivos.

O debate da questão agrária e as contradições do campo deixam em evidência que a expansão das relações capitalistas de produção no campo é, paradoxalmente, seguida pelo aumento das contradições, ou seja, dos conflitos, chave interpretativa central na obra de Martins (1988MARTINS, J. S. Não há terras para plantar neste verão: o cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no renascimento político do campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.). Tal perspectiva dá força à visão do autor, segundo a qual análises da questão fundiária implicam recolocar o papel das noções de contradição e de processo, ressaltando que, no Brasil, camponeses, povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos, entre outros, são sujeitos sociais do capitalismo tanto quanto o capitalista.

Dentro dessa lógica, a luta é imanente ao capitalismo. De acordo com Oliveira, A. (1994OLIVEIRA, A. U. A geografia das lutas no campo. São Paulo: Contexto, 1994.), no século XX forjam-se os primeiros movimentos sociais camponeses, muitos desses agora trabalhadores assalariados, na luta pela terra e por melhores condições de vida e trabalho. Com a organização das Ligas Camponesas na década de 1950, a luta camponesa ganha dimensão nacional. Esse movimento contagiou grande contingente de camponeses e trabalhadores rurais e urbanos, em um contexto de tensões, injustiças, desigualdades e violência. Para Martins (1985MARTINS, J. S. A militarização da questão agrária no Brasil (terra e poder: o problema da terra na crise política). Petrópolis, RJ: Vozes , 1985.), a dimensão que tomam os conflitos no campo e a organização social dos camponeses, que colocam a bandeira da reforma agrária em debate nacional, é fator crucial de explicação para o Golpe Militar de 1964 e para a rápida formulação no mesmo ano de uma legislação voltada à questão, o Estatuto da Terra.

Embora o Estatuto da Terra tenha reafirmado a concepção de reforma agrária (reconhecendo uma questão fundiária), devido à reação de grupos antirreformistas e grandes latifundiários, ganhou força a ideia de que a agricultura brasileira se desenvolveria sobretudo com adequações de política econômica e infraestrutura.

Para os movimentos sociais que capitanearam e pregaram a bandeira da reforma agrária, as ações do governo militar voltaram-se, ao mesmo tempo, à reprodução do capital e ao controle social (contenção dos conflitos) em três tipos de estratégias: desmoralização política das lideranças e mediações; desmobilização dos grupos locais (via reassentamentos em casos extremos de tensão social); e por meio da violência. “A reforma agrária ficou circunscrita aos casos de tensão social grave, em áreas prioritárias, quando então pode haver a desapropriação por interesse social, e aos casos de reassentamento de minifundiários, ou das vítimas de conflitos, em outras regiões” (Martins, 1985MARTINS, J. S. A militarização da questão agrária no Brasil (terra e poder: o problema da terra na crise política). Petrópolis, RJ: Vozes , 1985., p. 33). Nesse cenário, agravaram-se os conflitos - mortes, violência, expulsão e migração -, reforçando a tese de Martins (1985MARTINS, J. S. A militarização da questão agrária no Brasil (terra e poder: o problema da terra na crise política). Petrópolis, RJ: Vozes , 1985.) de que a contradição e o processo são peças-chave para compreender a questão.

Na década de 1980, com o fim da ditadura, ocorre uma reconfiguração da força dos movimentos sociais. Grzybowski (1987GRZYBOWSKI, C. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no campo. Rio de Janeiro: Vozes/Fase, 1987.) divide a luta do campo nesse período em: movimento dos camponeses pela terra; movimento dos operários do campo contra a exploração do trabalho e assalariamento; e, por último, a luta dos camponeses contra a expropriação. Sendo que o movimento dos camponeses pela terra era, segundo o autor, mais expressivo nas regiões Norte e Nordeste, e o movimento dos operários no Centro-Sul do país.

Nesse contexto reorganiza-se a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a reforma agrária volta à agenda pública (traduzida no I Plano Nacional da Reforma Agrária - PNRA, 1985) e, com isso, a função social da propriedade é legitimada na Constituição Federal de 1988.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é gestado nessa efervescência. Como afirma Carter (2010CARTER, M. (Org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Ed. Unesp, 2010., p. 503), ele nasce e atua “como um movimento engajado em uma árdua luta para transformar uma sociedade de extrema disparidade na distribuição da riqueza e do poder, sustentada ao longo de vários séculos por políticas iníquas de Estado”. O protagonismo do MST se manifesta na sua expressão nacional e organização, que tem nas ocupações “importante mecanismo de recriação do campesinato, porque implica recuperar a condição material para a territorialização camponesa” (Campos, 2006CAMPOS, C. S. S. Campesinato autônomo: uma nova tendência gestada pelos movimentos sociais do campo. Lutas & Resistências, Londrina, v. 1, p. 146-162, 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/revista1aedicao/lr146-162.pdf . Acesso em: 15 set. 2021.
http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal/r...
, p. 150).

Mas também nascem entidades representativas do ideário latifundiário, cuja expressão maior é a União Democrática Ruralista (UDR), fundada pelo Deputado Ronaldo Caiado (ex-PFL e hoje DEM-GO) e Plinio Junqueira Junior. A UDR foi o primeiro canal de revalorização político-ideológica da classe latifundiária, tentando impor ao patronato rural uma mesma identidade política, com base em uma visão corporativista da política como fio condutor das ações, visando eleger um parlamentar militante defensor da propriedade e da iniciativa privada (Barcelos; Berriel, 2009BARCELOS, E. A. S.; BERRIEL, M. C. Práticas institucionais e grupos de interesse: a geograficidade da bancada ruralista e as estratégias hegemônicas no parlamento brasileiro. In: ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA, 19., 2009, São Paulo. Anais... São Paulo, 2009. p. 1-32.). Porta voz das posições antirreformistas e do discurso da violência necessária, a atuação da UDR garantiu que no texto da Constituição Federal de 1988 as “propriedades produtivas” não seriam desapropriadas, deixando para a legislação complementar a própria definição do que era produtivo (Medeiros, 2010MEDEIROS, L. S. Movimentos sociais no campo, lutas por direitos e reforma agrária na segunda metade do século XX. In: CARTER, M. (Org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil . São Paulo: Ed. Unesp , 2010. p. 113-136.).

Identidade e território ganham força nas lutas sociais: a complexificação da questão agrária

Na década de 1980, emergem também outras formas de organização, lutas e conflitos no campo: “novas” vozes irrompem, ligadas às bandeiras ambiental e étnica: seringueiros, ribeirinhos, pescadores, quebradeiras de coco de babaçu, atingidos por barragens, quilombolas. Cruz (2011CRUZ, V. C. Lutas sociais, (re)configurações identitárias e estratégias de reapropriação social do território na Amazônia. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.) designa esse processo como de emergência de “uma espécie de polifonia política”, uma diversidade de “novos” sujeitos políticos, de “novos” protagonistas que surgem na cena pública e nas arenas políticas.

Assim, como aponta Almeida, M. (2007ALMEIDA, M. Narrativas agrárias e a morte do campesinato. Ruris - Revista do Centro de Estudos Rurais, Campinas, v. 1, n. 2, p. 157-186, 2007.), ocorre uma mudança nas “narrativas agrárias”. O autor chama atenção para o fato de que isso não representa a morte do camponês, mas sim o fim de uma narrativa única. O paradoxo é que o fim da “antropologia das sociedades agrárias” se dá em paralelo a uma enorme vitalidade de fragmentos que se aninhavam nas categorias antigas de campesinato - barrancos e florestas, ilhas e praias, chapadas e brejos, babaçuais e açaizais, canaviais e cafezais; ribeirinhos e seringueiros, quilombolas e caiçaras, sertanejos e montanheses, coletores e plantadores; saberes, tradições, memórias; fazeres (Almeida, M., 2007ALMEIDA, M. Narrativas agrárias e a morte do campesinato. Ruris - Revista do Centro de Estudos Rurais, Campinas, v. 1, n. 2, p. 157-186, 2007., p. 177).

No caso dos indígenas, a partir desse período tornam-se conhecidas publicamente as reivindicações e a organização de povos ainda não descritos na literatura etnológica, tampouco reconhecidos pelo órgão indigenista, a Fundação Nacional do Índio (Funai), tais como os Tinguí-Botó, os Karapotó, os Kantaruré, os Jeripancó, os Tapeba e os Wassu. Esses povos passam a ser chamados de “novas etnias” ou de “índios emergentes” (Oliveira, J., 1998OLIVEIRA, J. P.. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, 1998. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003.
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). No entanto, Oliveira, J. (1998OLIVEIRA, J. P.. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, 1998. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003.
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) faz uma crítica à interpretação desse fenômeno a partir da perspectiva da “etnogênese” ou “emergência étnica”.

Assim aparece, por exemplo, o termo “etnogênese”, empregado por Gerald Sider (1976),2 2 SIDER, G. M. Lumbee Indian Cultural Nationalism and Ethnogenesis. Dialectical Anthropology, v. 1, p. 161-172, 1976. no contexto de uma oposição ao fenômeno do etnocídio. Não caberia tomá-la como conceito ou mesmo noção, pois este e outros autores, que também aplicam a mesma ideia na etnografia de populações indígenas (como Goldstein, 1975),3 3 GOLDSTEIN, M. Ethnogenesis and Resource Competitionamong Tibetan Refugees in South India. In: DESPRES, L. (Org.). Ethnicity and Resource Competition in Plural Societies. Paris: Mouton/The Hague, 1975. p. 159-186. sequer sentem a necessidade de melhor defini-la, tomando-a como evidente. Em termos teóricos, a aplicação dessa noção - bem como de outras igualmente singularizantes - a um conjunto de povos e culturas pode acabar substantivando um processo que é histórico, dando a falsa impressão de que, nos outros casos em que não se fala de “etnogênese” ou de “emergência étnica”, o processo de formação de identidades estaria ausente (Oliveira, J., 1998OLIVEIRA, J. P.. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, 1998. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003.
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, p. 62).

Do ponto de vista de Oliveira, J. (1998OLIVEIRA, J. P.. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, 1998. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003.
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), é um erro classificar os povos indígenas reconhecidos publicamente a partir dos anos 1970-80 como “novas etnias” ou “índios emergentes”, pois os componentes culturais tidos como legítimos não constituem traços exclusivos ou originais das sociedades em questão. Processos anteriores de transformação no encontro com outras culturas e povos também são parte da trajetória desses índios, especialmente no caso dos índios do Nordeste que estiveram, via alianças ou guerras, em contato com os colonizadores portugueses já no século XVI, tendo sido submetidos a escravização, pacificação e aldeamentos forçados (Oliveira, J.; Freire, 2006OLIVEIRA, J. P; FREIRE, C. A. R. A presença indígena na formação do Brasil. Brasília: Ministério da Educação/Laced/Museu Nacional, 2006. ; Oliveira, J., 2010OLIVEIRA, J. P. O nascimento do Brasil: revisão de um paradigma historiográfico. Anuário Antropológico, v. 35, n. 1, p. 11-40, 2010. doi: https://doi.org/10.4000/aa.758.
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).

Daí a afirmação de que o surgimento de uma nova sociedade indígena não é apenas o ato de outorga de território, de “etnificação” puramente administrativa, de submissões, mandatos políticos e imposições culturais, é também aquele da comunhão de sentidos e valores, do batismo de cada um de seus membros, da obediência a uma autoridade simultaneamente religiosa e política (Oliveira, J., 1998OLIVEIRA, J. P.. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, 1998. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003.
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, p. 66).

O ponto central da crítica de Oliveira, J. (1998OLIVEIRA, J. P.. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, 1998. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
) repousa, a meu ver, na negação da ambivalência construída entre o tradicional e o moderno. Não há nesses casos uma separação absoluta e evidente entre um “nós” comunitários e tradicionais, e os “outros” modernos e globais. Como aponta Haesbaert (2014HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2014. ), trata-se de uma realização da tradição pela modernidade, por meio da qual agentes tradicionais se relacionam com esses “outros” e acionam práticas modernas.

Como afirma Bourdieu (2000BOURDIEU, P. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2000. ), conhecimento do mundo e o próprio mundo se conformam mutuamente e o poder de conservar ou de transformar o mundo social implica conservar ou transformar suas categorias de percepção. Nesse sentido, segundo Bourdieu (2000BOURDIEU, P. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2000. , p. 142), tornar algo público, oficial e objetivado “representa um considerável poder social, o de constituir os grupos, constituindo o senso comum, o consenso explícito, de qualquer grupo”. Trata-se aqui da força do habitus - “esquemas de percepção, de apreciação e de ação que fundam, aquém das decisões da consciência e dos controles da vontade, uma relação de conhecimento e de reconhecimento, ambos práticos, mas profundamente obscura para si mesma” (Bourdieu, 2001BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. , p. 207).

Esses esquemas de percepção e conhecimento do mundo se dão em relação com outros grupos, com seus respectivos habitus. Bourdieu (2000BOURDIEU, P. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2000. ) afirma que realidade e representação dependem de conhecimento e de reconhecimento, posto que “as representações que os agentes sociais têm das divisões da realidade [...] contribuem para a realidade das divisões” (Bourdieu, 2000BOURDIEU, P. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2000. , p. 120). Ainda segundo o autor, isso se dá num campo social de relações de forças objetivas e simbólicas de classificação e de representação de si e dos outros, a fim de manter ou de transformar essas relações.

Para Bourdieu (2001BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. ), o campo social é constituído de acordo com a distribuição e diferenciação das propriedades atuantes (agentes e o capital que possuem), sendo isso o que define o poder sobre um campo em determinado momento (incorpora o poder sobre o trabalho acumulado). O conhecimento das posições depende das propriedades intrínsecas (condições) e relacionais (posição) dos agentes (Bourdieu, 2001BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. ). Sendo assim, Bourdieu (2000BOURDIEU, P. O poder simbólico. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2000. , 2001BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. ) nos ajuda a entender a emergência de novas alianças, novos mecanismos de representação, novos projetos de futuro que fazem irromper unidades políticas (e não puramente identitárias) antes inexistentes na cena pública a partir da década de 1970.

É importante destacar ainda que tal processo está estritamente articulado à atuação de mediadores externos, especialmente organizações não governamentais (ONG) e a Igreja Católica, bem como à promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88). Nesse período, dá-se o que Lifschitz (2011LIFSCHITZ, J. A. Comunidades tradicionais e neocomunidades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011.) denomina “ong-nização da cultura”, ou seja, a cultura passa a ser entendida como novo recurso econômico (capitalizada pela via dos projetos), gerando demandas por recriação de identidades. Assim, a cultura comunitária é incorporada no âmbito institucional.

Com a CF/88, os novos dispositivos de direitos criados levam a mudanças tanto no sentido de abrir possibilidades para que as reivindicações de indígenas e quilombolas, agora legalmente reconhecidos como tais, tomassem a arena política, quanto na perspectiva de produzir outro contexto, no qual novos atores, seja no campo governamental ou na sociedade civil, se legitimarão como representantes dos interesses das comunidades indígenas e quilombolas (Steil, 1998STEIL, C. A. A etnicização da política. Tempo e Presença, n. 298, p. 21-23, mar./abr. 1998. Suplemento Especial: Comunidades negras tradicionais - afirmação de direitos.).

Lifschitz (2011LIFSCHITZ, J. A. Comunidades tradicionais e neocomunidades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011.) discute a articulação entre as políticas públicas voltadas ao reconhecimento dos direitos dos quilombolas e a questão da comunidade como imaginário e campo de ação. Afirma que a situação de comunidade é caracterizada pelas singularidades das trajetórias, hoje conectadas com a atuação dos “agentes externos”. Juntos, esses atores vêm desencadeando processos de reconstrução de territórios e de práticas, num modelo de produção de etnicidades que Lifschitz denomina neocomunidades. “As neocomunidades quilombolas são um caso de identidades prescritivas, isto é, induzidas por uma política pública, o que também torna esse processo de reconstrução de saberes, práticas e territórios ainda mais singular” (Lifschitz, 2011LIFSCHITZ, J. A. Comunidades tradicionais e neocomunidades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2011., p. 15-16). São identidades “desde o Estado” - nova realidade comunitária que ele coloca em questão. Paradoxal junção entre modernidade tardia e recriação de identidades com sentido político.

Como bem aponta Steil (1998STEIL, C. A. A etnicização da política. Tempo e Presença, n. 298, p. 21-23, mar./abr. 1998. Suplemento Especial: Comunidades negras tradicionais - afirmação de direitos.), embora formulado na relação com esses agentes externos, esse novo código étnico-cultural não é totalmente estranho às comunidades. São, em nosso entender, atualizações em termos positivos de questões como ancestralidade, parentesco, cultura material e proximidade face a face em contextos relacionais interior/exterior.

Portanto, um elemento fundamental desse processo é a inserção da questão étnica na agenda política, implicando um deslocamento de ênfase da ação política dos movimentos sociais no qual a identidade étnica passa a ser mobilizada como uma categoria estratégica em suas práticas e lutas sociais, a partir de então orientadas por categorias novas e próprias, que valorizam seus modos de ser e viver - “um novo idioma de ação” -, caracterizando o que Steil (1998STEIL, C. A. A etnicização da política. Tempo e Presença, n. 298, p. 21-23, mar./abr. 1998. Suplemento Especial: Comunidades negras tradicionais - afirmação de direitos.) denomina “etnicização da política”. A ênfase aqui recai no ato político de instrumentalização do componente étnico, e não numa ideia de aparição súbita e inesperada ou de constituição de novas identidades absolutas e essenciais em si mesmas.

Essa diversidade de “novos” sujeitos políticos, de “novos” protagonistas na cena pública e nas arenas políticas (que passam a se apresentar como indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco de babaçu, seringueiros, ribeirinhos, geraizeiros, entre outros), ressignifica - positiva - os conteúdos dantes estigmatizantes e negativos que se arraigaram no senso comum ou que nele se encontravam invisibilizados (deixando claro aqui que esses conteúdos estão em permanente ressignificação). O que seria próprio desses grupos é que nesses contextos “a atualização histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade” (Oliveira, J., 1998OLIVEIRA, J. P.. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, 1998. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003.
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, p. 64).

Até então, muitos desses sujeitos estavam subsumidos na categoria camponês - as aspas no que indica o novo nas palavras de Cruz (2011CRUZ, V. C. Lutas sociais, (re)configurações identitárias e estratégias de reapropriação social do território na Amazônia. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011.) já nos davam pistas disso. A partir de então, passam a afirmar a identidade e o território e a redefinir “o padrão de conflitividade e o campo relacional de antagonismos” (Cruz, 2011CRUZ, V. C. Lutas sociais, (re)configurações identitárias e estratégias de reapropriação social do território na Amazônia. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011., p. 7). Doravante dá-se o que vamos chamar de complexificação da questão agrária, devido ao fato de que os fatores identidade, etnia e território ganham força nas lutas sociais, tornando-se focos irradiadores de parte significativa dos conflitos no campo, especialmente na área de expansão das fronteiras agrícolas na Amazônia.

[...] partem de afirmações étnicas e do uso tradicional da terra e dos recursos naturais, o que também tem reflexo nas políticas públicas de acesso à terra: estas, no passado, resumiam-se a políticas redistributivas de terra no âmbito da reforma agrária, e no presente abrangem a política indigenista, a política ambiental e as políticas de demarcação de quilombos. Tratar-se-ia, agora, não de se utilizarem os instrumentos redistributivos da Reforma Agrária com vistas a atender as demandas indígenas, de quilombolas e extrativistas, mas da demarcação adequada de seus territórios (Vianna Jr., 2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92., p. 90).

Com isso, dá-se o que Medeiros (2010MEDEIROS, L. S. Movimentos sociais no campo, lutas por direitos e reforma agrária na segunda metade do século XX. In: CARTER, M. (Org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil . São Paulo: Ed. Unesp , 2010. p. 113-136.) chama de diversificação de manifestações e emergência de novos ciclos de lutas. A emergência desses “novos” sujeitos causa, portanto, rupturas importantes no que concerne às lutas no campo após a década de 1980. Como mostra o Quadro 1, a etnicização da questão agrária implica novas demandas, novos valores e renovados repertórios, entre os quais o direito ao meio ambiente (especialmente à floresta), à identidade e ao território tomam destaque junto a reivindicações por reforma agrária, direitos trabalhistas e previdenciários e à luta de posseiros, trabalhadores e pequenos produtores rurais e sem-terra.

Quadro 1
Novo ciclo de lutas pós-década de 1980

Na segunda metade do século XX, tal emergência reverbera em termos de novas formas de conflito no campo e de articulação com debates públicos em torno da reforma agrária, da rediscussão do lugar da agricultura no processo de desenvolvimento nacional e da importância do reconhecimento das especificidades socioespaciais desses “novos” sujeitos tradicionais e/ou étnicos.

Na década de 1990, aumentam as ocupações do MST e os conflitos no campo. A violência policial cresce explicitamente, e cria-se uma frente intelectual de atuação contra os movimentos, capitaneada pela mídia. Entre 2003 e 2009, há o período de maior conflitividade e maior violência, especialmente aquela praticada pelo poder privado - com destaque para o agronegócio - e pelos projetos de infraestrutura do governo federal.

A categoria “índios” figura nos relatórios da CPT sobre conflitos desde 1987. Em 1988, o relatório traz a noção de “povos da floresta” referindo-se a índios, seringueiros e posseiros, mas há uma lacuna de mais de 10 anos na qual os índios desaparecem dos relatórios como sujeitos dos conflitos.

Os quilombolas passam a figurar como tais nos dados sobre conflitos por terra no relatório de 2001, com os casos das comunidades de Camaputiua, no município de Cajari, e de Pau Pombo dos Pretos, município de Santa Helena (ambos no estado do Maranhão); de Sesmaria Boa Vista/Quilombo Mata Cavalo, município de Nossa Senhora do Livramento, estado do Mato Grosso; de Camutá, município de Gurujá, no Pará; e de Cafundó, em Salto do Pirapora, São Paulo.

Em 2015, Oliveira, A. (2016OLIVEIRA, A. U. Camponeses, indígenas e quilombolas em luta no campo: a barbárie aumenta. In: CPT - COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo: Brasil 2015. Goiânia: CPT Nacional, 2016. p. 28-42. ) mostra que os quilombolas são sujeitos de 77 conflitos no campo (10,1%) e os povos indígenas, de 100 (13,1%). Sendo importante destacar que outras populações tradicionais, como seringueiros, castanheiros, ribeirinhos, fecho e fundo de pastos, geraizeiros, pescadores, vazanteiros etc., estão incluídos na categoria camponeses posseiros, sobre os quais recaem 253 ocorrências de conflitos (33,2%). Nesse contexto, encontram-se em disputa configurações sociais e identidades políticas, a definição como trabalhador rural, populações tradicionais, indígenas, quilombolas etc., mas principalmente o direito ao território com base nas formas de organização próprias dos movimentos.

Quanto à questão da terra, essa mudança implica a complexificação do debate. A questão fundiária ainda é elemento central, mas o reconhecimento étnico-cultural e das especificidades dos territórios tradicionais, tais como os indígenas e quilombolas, ganha importância no debate.

Segundo Steil (1998STEIL, C. A. A etnicização da política. Tempo e Presença, n. 298, p. 21-23, mar./abr. 1998. Suplemento Especial: Comunidades negras tradicionais - afirmação de direitos.), essa nova forma de se apresentarem e ser apresentados simboliza um rompimento também com a invisibilidade histórica com que foram tratados esses “novos velhos” sujeitos.

Forjam-se hoje na América Latina e, mais especificamente, no Brasil, processos de (re)territorialização envolvendo grupos sociais defensores de territórios e/ou lugares supostamente mais fechados, estáveis e “conservadores”. Trata-se de grupos oficialmente denominados “povos tradicionais” (termo polêmico, porém inserido na própria Constituição brasileira de 1988), mas que nem por isso, obviamente, irão construir territórios/lugares também “tradicionais”. Na verdade, o que não pode ser defendido aqui é uma visão dicotômica entre concepções “tradicionais” ou “conservadoras” e concepções “(pós?)modernas” ou “progressistas” de território e/ou de lugar. Esses exemplos brasileiros são muito representativos da ambivalência com que essas propriedades são construídas. Também neste sentido esses territórios são “múltiplos” - uma multiplicidade de situações identitárias e de poder se revezam ou se mesclam, dependendo, por exemplo, do contexto histórico e geográfico (em termos de escalas de acionamento) em que são constituídos.

[...] fechamento (sempre relativo) ou delimitação territorial mais nítida não significa, obrigatoriamente, a defesa de uma visão política retrógrada, conservadora. Pode representar, como bem demonstram os chamados povos tradicionais, um momento dentro de uma luta mais ampla e que não dicotomiza visões de “tradição” e “(pós)modernidade”, mas refunda-as, conjugadas, sob um novo amálgama. Para os povos tradicionais brasileiros, como indígenas e quilombolas, o relativo fechamento territorial, no momento do estabelecimento claro do limite físico de suas “reservas” por exemplo, pode significar, dependendo da situação, exatamente o contrário - a condição para a sobrevivência do grupo enquanto tal. No caso dos antigos quilombos, territórios relativamente fechados, o isolamento e a ocultação eram mesmo sinônimo de liberdade - ou da liberdade que, pelas lutas de resistência, eles podiam conquistar (Haesbaert, 2014HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2014. , p. 98-99).

As comunidades tradicionais representam uma espécie de “biopolítica a partir de baixo” que resultam em novas formas de uso e jurisdição pouco ou nada capitalistas. Implicam, por isso, “uma transformação positiva e mais ampla - sobretudo, neste caso, mais múltipla, da territorialidade do Estado”, historicamente pautada “na afirmação e legitimação da propriedade privada e na jurisdição sobre ‘terras públicas’, em geral muito pouco ‘públicas’” (Haesbaert, 2014HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2014. , p. 148).

As comunidades quilombolas [entendemos que também as indígenas] constituem grupos mobilizados em torno de um objetivo, em geral a conquista da terra, e definidos com base em uma designação (etnônimo) que expressa uma identidade coletiva reivindicada com base em fatores pretensamente primordiais, tais como uma origem ou ancestrais em comum, hábitos, rituais ou religiosidade compartilhados, vínculo territorial centenário, parentesco social generalizado, homogeneidade racial, entre outros. Nenhuma destas características, porém, está presente em todas as situações, assim como não há nenhum traço substantivo capaz de traduzir uma unidade entre experiências e configurações sociais e históricas tão distintas (Arruti, 2006ARRUTI, J. M. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru, SP: Edusc, 2006., p. 39).

Põem-se como ponto de partida situações sociais específicas e coetâneas, caracterizadas por elementos político-organizativos com a finalidade de garantir a terra e afirmar a identidade própria (Arruti, 2006ARRUTI, J. M. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru, SP: Edusc, 2006.). Terras indígenas, quilombolas, faxinais, fundos de pasto, entre outras, são:

[...] novas modalidades de territorialização que em geral aliam um tipo específico de domínio jurídico coletivo à forma tradicional de apropriação econômica e simbólica desses espaços por cada um desses grupos socioculturais. Coloca-se em prática, de alguma forma, a territorialização ao mesmo tempo como domínio jurídico-político, usufruto econômico e apropriação simbólico-cultural do espaço (Haesbaert, 2014HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2014. , p. 149).

As comunidades tradicionais se colocam na luta por definição das zonas de uso comum:

[...] muitas das zonas definidas e juridicamente reconhecidas como áreas indígenas, antigos quilombos ou outros espaços de uso comum e exclusivo de determinados povos tradicionais reforçam uma lógica zonal de ordenamento territorial (amplamente subordinada à legitimação estatal) que, para muitos, pode parecer um contrassenso ou estar na contramão de um mundo cada vez mais marcado pelas relações em rede e pela mescla de culturas e identidades.

A maioria das áreas alia um complexo jogo de poder em que é fundamental a luta pelo reconhecimento e legitimação de suas territorialidades com o fortalecimento da relação cultural intragrupo(s). Em muitos casos (especialmente o dos indígenas), retrabalha-se uma relação específica com a natureza, não apenas no sentido do domínio sobre seus recursos materiais, mas também em termos de sua apropriação simbólica (Haesbaert, 2014HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2014. , p. 115).

Assim como Oliveira, J. (1998OLIVEIRA, J. P.. Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 47-77, 1998. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100003.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), Haesbaert (2014HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2014. ) chama atenção para o paradoxo da definição de territórios a partir de uma base na identidade étnica, que amplia a questão ao colocar em evidência múltiplas formas de uso comum da terra. Haesbaert (2014HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2014. ) pontua que o processo de reconhecimento jurídico do território via Estado pode implicar certa essencialização identitário-territorial (forçada definição clara entre um “nós” e “os outros” e ligação biunívoca entre a constituição identitária do grupo e o território), mas que, para muitos, representa o único caminho possível para manter o grupo como tal, resistindo ao avanço da lógica privatista e produtivista de uso da terra - e portanto, desterritorializante.

Vemos aqui uma contradição no processo de definição dos territórios tradicionais: a necessidade de determinar claramente esses marcadores identitários e territoriais e de adequá-los à lógica da legislação de reconhecimento (e de seus pressupostos, que residem na lógica zonal de que trata Haesbaert [2014HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2014. ]), que pode levar à essencialização. Contudo, as reflexões de Almeida, A. (2010ALMEIDA, A. W. B. Calhambolas, quilombolas e mocambeiros: a força mobilizadora da identidade e a consciência da necessidade. Revista Eletrônica Afros e Amazônicos. v. 2, n 1, 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/6361960/CALHAMBOLAS_QUILOMBOLAS_E_MOCAMBEIROS_A_FORÇA_MOBILIZADORA_DA_IDENTIDADE_E_A_CONSCIÊNCIA_DA_NECESSIDADE . Acesso em: 15 set. 2021.
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) permitem destacar que, nesses casos, é importante marcar a distinção entre necessidade e consciência da necessidade. Ou seja, esses processos (e as contradições subjacentes) são orientados por mobilizações e critérios político-organizativos que reforçam a identidade desses grupos em face dos interesses antagônicos e das diferentes realidades que enfrentam. Isso envolve tomar consciência de suas necessidades ligadas à reprodução social, muitas vezes, portanto, rompendo com uma visão economicista (de produção e de propriedade) (Almeida, A., 2010ALMEIDA, A. W. B. Calhambolas, quilombolas e mocambeiros: a força mobilizadora da identidade e a consciência da necessidade. Revista Eletrônica Afros e Amazônicos. v. 2, n 1, 2010. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/6361960/CALHAMBOLAS_QUILOMBOLAS_E_MOCAMBEIROS_A_FORÇA_MOBILIZADORA_DA_IDENTIDADE_E_A_CONSCIÊNCIA_DA_NECESSIDADE . Acesso em: 15 set. 2021.
https://www.academia.edu/6361960/CALHAMB...
).

Devido ao aumento do número de povos e comunidades tradicionais reivindicando reconhecimento público e estatal, pensadores que se debruçam sobre a questão agrária deram gradativamente, a partir dos anos 1990, mais atenção às “comunidades tradicionais”, com destaque para as formas pelas quais esses grupos vêm se constituindo, especialmente em relação às lutas por território e às reivindicações perante o Estado por uma demarcação coletiva de suas “terras tradicionalmente ocupadas”. Outro ponto de destaque desse enfoque repousa no fato de tais reivindicações criarem constrangimentos e limites às novas fronteiras de acumulação (Guedes, 2013GUEDES, A. D. Lutas por terra e lutas por território: fronteiras e passagens nas ciências sociais brasileiras. Anais do XV Enanpur, v. 15, n. 1, 2013. Disponível em: Disponível em: https://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/article/view/318/309 . Acesso em: 15 set. 2021.
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). Isso porque:

[...] não são territórios que estão ao abrigo dos múltiplos interesses político-econômicos hegemônicos, seja da grande empresa (o agronegócio e a exploração dos recursos naturais), seja do Estado (no estabelecimento de infraestruturas como estradas e hidrelétricas ou de base militares) (Haesbaert, 2014HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2014. , p. 116).

No que diz respeito aos estudos sobre comunidades negras, até a década de 1980 a ênfase era em comunidades rurais que apresentavam a particularidade de ser negras. Após esse período, os estudos focalizam as comunidades negras que têm a particularidade de ser camponesas (Arruti, 2006ARRUTI, J. M. Mocambo: antropologia e história do processo de formação quilombola. Bauru, SP: Edusc, 2006.). Quanto ao trabalho do etnólogo, Lima (1998LIMA, A. C. S. A “identificação” como categoria histórica. In: OLIVEIRA FILHO, J. O. (Org.). Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998. p. 171-220.) aponta que até o início dos anos 1970 a etnografia procurava reconstituir a origem dessas culturas para não as perder, posto que elas seriam inevitavelmente assimiladas. A partir dos anos 1980 o futuro torna-se utopia, cabendo pensar-se e demonstrar o reavivamento étnico.

Há nesses apontamentos duas mudanças essenciais: primeiro, o ponto principal do ponto de vista analítico passa a ser a etnicidade, a particularidade de serem negras ou indígenas; segundo, o étnico não designa mais decadência e sim resistência, projeto político e as particularidades, inclusive e com grande importância as territoriais, como pontos de partida essenciais (Pereira, 2018PEREIRA, C. F. As agroestratégias ruralistas de desterritorialização de povos indígenas e quilombolas: (re)definindo marcos legais e usos territoriais. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2018. ).

Entre avanços e obstáculos, o caminho para o reconhecimento dos territórios indígenas e quilombolas parece ter sido aberto e, em grande medida, apropriado pelos grupos sociais que surgem a partir do reconhecimento desses direitos. A emergência desses “novos” sujeitos, ligados aos princípios do reconhecimento, imprime novas formas de agenciamento sociopolítico na atualidade, centradas na afirmação das diferenças e do direito ao território (Cruz, 2011CRUZ, V. C. Lutas sociais, (re)configurações identitárias e estratégias de reapropriação social do território na Amazônia. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011., 2013CRUZ, V. C. Das lutas por redistribuição de terra às lutas pelo reconhecimento de territórios: uma nova gramática das lutas sociais. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social, terra e território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2013. v. 1. p. 119-176. ). Agora, o reconhecimento qualifica esse tipo de luta. É um novo repertório, uma nova gramática.

Com a incorporação desse novo repertório na CF/88 e com as políticas públicas disso resultantes, verificou-se:

[...] o aumento do peso relativo das políticas de reconhecimento (“multiculturais”) paralelamente à ampliação das políticas redistributivas, considerando-se o reconhecimento de territórios de comunidades tradicionais (inclusive indígenas) e a problemática ambiental. Uma rápida análise dessas questões parece corroborar, ao mesmo tempo, a concorrência e a complementaridade dessas posições e, talvez, destacar algumas características singulares das políticas de reconhecimento, quando referentes a terras e territórios no Brasil. Neste sentido, as políticas de reconhecimento de territórios parecem ocupar um dos pilares do que está em jogo na Amazônia: a criação de um mercado de terras que inclua áreas reformadas (de reforma agrária redistributiva) e, ao mesmo tempo, estabeleça regiões “protegidas do mercado de terras”, como bens comuns (“commons”), em contradição com o mercado (Vianna Jr., 2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92., p. 88).

Chamando atenção para o fato de que a lutas das comunidades e dos povos tradicionais vai além do reconhecimento identitário, Vianna Jr. (2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92.) discute essas comunidades em termos de identidades “territorializadas”, ou seja, que dizem respeito ao “reconhecimento de formas tradicionais de uso e de propriedade da terra e dos recursos naturais, dos commons e de uma identidade fortemente territorializada” (Vianna Jr., 2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92., p. 88). Assim como em Haesbaert (2006HAESBAERT, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2006., 2007HAESBAERT, R. Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia, v. 9, n. 17, p. 19-45, 2007. doi: https://doi.org/10.22409/GEOgraphia2007.v9i17.a13531.
https://doi.org/https://doi.org/10.22409...
), fica clara a vinculação entre território e o universo da apropriação simbólica, ou seja, o fato de que processos de apropriação e identidade se ensejam mutuamente e levam em conta também as representações que eles veiculam e produzem.

A articulação entre território e identidade foi privilegiada nesse campo político e acadêmico. Ao considerar as políticas de reconhecimento e os territórios indígenas e quilombolas como parte relevante do debate, são incorporadas as demandas territoriais, que vão muito além das que podem ser atendidas por uma reforma agrária redistributivista, pois, como bem aponta Vianna Jr. (2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92.), é fundamentada no reconhecimento de territórios e recursos naturais como coletivos.

Na conjuntura do reconhecimento multicultural, o reconhecimento dos indígenas e quilombolas parece diferenciado para Vianna Jr. (2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92.), abrindo uma polêmica entre os que defendem os direitos universais e os que defendem o reconhecimento das diferenças (como no caso dos índios e quilombolas), especialmente no que tange ao debate sobre terras e territórios, que é:

[...] superficial e “ideologizado”, aprofundando-se apenas nos paradoxos: setores “conservadores” anti-reforma agrária (uma política universalista) associando-se a “progressistas” universalistas que questionam acesso à terra diferenciado para o que consideram quilombolas e indígenas “inventados”; grupos que advogam a focalização das políticas sociais nos mais pobres se posicionam contra políticas diferenciadas para, por exemplo, quilombolas ou indígenas (Vianna Jr., 2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92., p. 83).

Vianna Jr. (2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92.) considera as leituras de Fraser (2009FRASER, N. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova, São Paulo, n. 77, p. 11-39, 2009. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-64452009000200001.
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) e Hale (2002HALE, C. R. Does multiculturalism menace? Governance, cultural rights and the politics of identity in Guatemala. Journal of Latin American Studies, v. 34, n. 3, p. 485-524, 2002. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3875459 . Acesso em: 15 set. 2021.
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) avançadas no debate sobre o reconhecimento em contexto multicultural por “distinguirem um multiculturalismo cultural assimilável e assimilado pela política neoliberal de um outro que estaria desafiando o governo (e talvez mesmo o Estado) neoliberal, este mais ‘estrutural’, direcionado às desigualdades econômicas” (Vianna Jr., 2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92., p. 83).

Com base em Fraser, Vianna Jr. (2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92.) reflete sobre o contexto brasileiro, no qual acredita que injustiça se combate com políticas redistributivas conjugadas a políticas de reconhecimento. A injustiça repousa em qualquer tipo de desigualdade (a autora valoriza e trabalha analiticamente com diferentes esferas de injustiça) (Fraser, 2009FRASER, N. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova, São Paulo, n. 77, p. 11-39, 2009. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-64452009000200001.
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). Portanto, Fraser (2009FRASER, N. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova, São Paulo, n. 77, p. 11-39, 2009. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-64452009000200001.
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) vai contra as polêmicas sobre os caminhos para se combaterem as injustiças (necessidade de se escolher um ou outro) e nos ajuda a pensar “a divisão entre uma grande política redistributiva - Reforma Agrária - e um conjunto de políticas de reconhecimento, ambas também relacionadas à sub-representação de camponeses, povos e comunidades tradicionais na política” (Vianna Jr., 2008VIANNA JR., A. Reforma agrária e territórios uma reflexão preliminar sobre o lugar das políticas de reconhecimento na questão agrária. In: ACSELRAD, H. (Org.). Cartografia social e dinâmicas territoriais: marcos para o debate. Rio de Janeiro: UFRJ, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, 2008. p. 81-92., p. 85), especialmente na Amazônia.

Martins (1985MARTINS, J. S. A militarização da questão agrária no Brasil (terra e poder: o problema da terra na crise política). Petrópolis, RJ: Vozes , 1985., p. 17) chama atenção para a necessidade de se pensar a diversidade das experiências de lutas, movimentos sociais e formas de organização no campo, que ultrapassam os limites das instituições e muitas vezes os rompem. Para o autor, “é importante considerar que o nascimento ou a reivindicação de relações de caráter comunitário tem sido um fenômeno comumente associado à expansão das relações capitalistas em várias sociedades”.

Esses sujeitos - índios, quilombolas, seringueiros, sem-terra etc. - revelam a multiplicidade do campo, os diferentes matizes de racionalidade e de vivências, de lutas por reconhecimento, por justiça, por transformação da realidade (que se colocam nas contradições do desenvolvimento capitalista). São múltiplas manifestações de luta pelos direitos humanos, de mobilização coletiva que ensejam processos de humanização no âmbito dos movimentos sociais e nas experiências e lutas democráticas. Organização social e território são parte da luta desses sujeitos e é na luta que se formam os movimentos sociais. Esses criam novas racionalidades (a questão do político, da ação dos agentes e das classificações fica aqui evidente): as classificações em disputa pelos indígenas e quilombolas (conjuntamente com os agentes externos) se refletem em modificações na sua posição no campo das classificações objetivas e princípios segundo os quais essas classificações são produzidas no âmbito do sistema hegemônico.

Porto-Gonçalves e Alentejano (2009PORTO-GONÇALVES, C. W.; ALENTEJANO, P. R. R. A violência do latifúndio moderno-colonial e do agronegócio nos últimos 25 anos. Conflitos no Campo Brasil, v. 1, p. 109-117, 2009.) dão um panorama interessante desse processo: de um lado, há uma Geografia do latifúndio, da monocultura e da escravidão, cujos atores são os capitalistas (poder privado) e o Estado (poder público), que tem na violência e na dominação política seu modo de ação; de outro lado, há a Geografia da diversidade produtiva e da liberdade, promovida por camponeses, populações tradicionais e movimentos sociais, agindo em termos de r-existência e de estratégias de libertação e autonomia. Na visão desses dois autores, complementando o apontamento de Oliveira, A. (1994OLIVEIRA, A. U. A geografia das lutas no campo. São Paulo: Contexto, 1994.), o conflito é uma marca da formação territorial brasileira que nasce como resposta à violência e à dominação.4 4 Outras estratégias são a judicialização, a cooptação e a omissão. Exemplos de conflitos e reação violenta à organização de pessoas do campo não faltam na nossa história: Quilombo dos Palmares (1862) e Cabanagem (1835) no período colonial, Canudos (1896), Contestado (1912) e as greves dos colonos das fazendas de café (1913) no Império são alguns dos primeiros grandes conflitos brasileiros em resposta à opressão e à expropriação da terra, do trabalho e dos modos de vida. Esses movimentos são usualmente tratados como “pré-políticos”, mas Martins (1981) problematiza essa classificação mostrando que ela denota uma visão evolucionista da história das lutas no campo que desvaloriza as formas de organização e manifestação baseadas na cultura popular.

Martins (1988MARTINS, J. S. Não há terras para plantar neste verão: o cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no renascimento político do campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.) afirma que a luta pela terra é um dos instrumentos da reinvenção do cotidiano dos pobres que, a partir das experiências vinculadas à expansão das contradições do capitalismo (empresas, injustiças, grilagem, violência etc.), semeiam “novas significações para velhos atos, novos atos para velhas significações, novos atos e novas significações” (Martins, 1988MARTINS, J. S. Não há terras para plantar neste verão: o cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no renascimento político do campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988., p. 11). Para o autor, essa é a forma de resistência pela qual são capazes de romper “velhas relações de dominação, que questiona um direito de propriedade iníquo, que demole pactos e alianças políticas convencionais sem a participação de todos os interessados” (Martins, 1988MARTINS, J. S. Não há terras para plantar neste verão: o cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no renascimento político do campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988., p. 11).

A perspectiva apontada por Martins (1988MARTINS, J. S. Não há terras para plantar neste verão: o cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no renascimento político do campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988.) permite compreender a “duplicidade contraditória” do encontro entre capital e populações indígenas e quilombolas, posto que o primeiro destrói ou modifica essas sociedades, que, ao mesmo tempo, subvertem e ressignificam as lógicas que o capitalismo tenta impor. Para o autor, isso quer dizer que, nesse momento, se tornam sujeitos políticos, desmistificando a ideia de linearidade do projeto capitalista.

A lógica perversa do capital os destrói e ao mesmo tempo os reinventa, sendo que o maior impacto para índios e quilombolas é a conversão da terra em mercadoria com consequente transformação do capital em proprietário da terra. “O cerco e a remoção, a definição de um território não mais pela tribo e sim pelo Estado, introduzem a mediação do mercado e da terra-mercadoria na relação do homem com a natureza” (Martins, 1988MARTINS, J. S. Não há terras para plantar neste verão: o cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no renascimento político do campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988., p. 35). Como impacto desse processo, o autor cita a inexistência da terra para uso livre, gerando insuficiência em termos de produção de roças e de perambulação e caça, obrigando-os a recriar sua lógica de subsistência segundo suas próprias tradições, ainda que adaptadas. Assim, se veem obrigados a restaurar seu mundo.

Os conflitos agrários põem em evidência a violência e outros mecanismos de dominação que impedem a efetivação dos direitos sociais e políticos. As lutas dos sujeitos do campo - camponeses e populações tradicionais - põem “em questão o atual direito de propriedade e suas consequências sociais, [...] a luta pela terra põe também em questão esse pacto político,5 5 Pacto entre as classes urbanas, grandes proprietários e sindicalistas cooptados. Constitui a base de sustentação do Estado e a distribuição desigual da propriedade em nosso país. questiona sua legitimidade social e política” (Martins, 1985MARTINS, J. S. A militarização da questão agrária no Brasil (terra e poder: o problema da terra na crise política). Petrópolis, RJ: Vozes , 1985., p. 9). Sendo assim, são sujeitos fundamentais do processo político brasileiro e da crise atual. O autor chama atenção ainda para o fato de que questionar os níveis de exploração do trabalho é diferente de questionar o direito à propriedade da terra.

A especificidade desses conflitos, que muitos estudos não conseguem abarcar devido à perspectiva que adotam, é que eles envolvem predominantemente a questão da des-reterritorialização - dizem respeito a processos de desterritorialização das populações tradicionais, de privação do acesso à terra e aos recursos dela advindos e de territorialização - de toda gama de relações simbólicas, culturais e afetivas desses povos com/no território em que se tornaram legítimas dentro do quadro administrativo e burocrático do Estado (instrumento clássico da hegemonia patronal/empresarial), tensionando, assim, a estrutura de dominação instituída.

O movimento de des-reterritorialização dos chamados povos tradicionais, hoje, no Brasil, muito mais que a simples construção de territórios bem delimitados e estanques, significa o reconhecimento de que, no seu muito variável caráter “multi” (ou mesmo “trans”) territorial, está sempre presente, em diferentes níveis, também, um “estar entre” ou um acionar/produzir distintas territorialidades - o que significa entrar num jogo de múltiplas situações identitárias e múltiplas relações de poder. Ter consciência dessa multiplicidade e saber jogar com essa diversidade de situações de des-reterritorialização é estrategicamente fundamental na ação política desses grupos (Haesbaert, 2014HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2014. , p. 100).

Com a complexificação da questão agrária, as reivindicações e os conflitos passam a ser abordados pelos próprios sujeitos com base num componente étnico-territorial. Essa estratégia de ação política precisa ser também incorporada às abordagens em termos de uso da terra e das sobreposições que levam aos conflitos.

A questão agrária não se expressa mais exclusivamente na contradição entre latifundiário e camponês, já que índios, quilombolas, seringueiros, quebradeiras de coco de babaçu, geraizeiros etc. reconfiguram e reeditam esse campo social - seus esquemas de percepção, de apreciação e de ação, como tratado por Bourdieu (2001BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. ). Permanece em termos da questão agrária a dicotomia minifúndio (“minoria numericamente representativa”) e latifúndio (pouco numerosos) (Mesquita, 2011MESQUITA, B. A. A dinâmica recente do crescimento do agronegócio na Amazônia e a disputa por territórios. In: SAUER, S.; ALMEIDA, W. Terras e territórios na Amazônia: demandas, desafios e perspectivas. Brasília: Ed. UnB, 2011. p. 45-68.), mas agora, essa se torna mais complexa ao incorporar o problema da definição e reconhecimento dos territórios étnicos e/ou de uso comum.

Considerações finais

A análise do processo de complexificação da questão agrária com a politização das pautas ligadas às demandas por identidade e território coloca em evidência as novas configurações dos conflitos de caráter fundiário no campo brasileiro, deixando clara a atualidade da questão agrária no século XXI. Nesse jogo, estão em disputa as concepções de terra e de território que se imprimirão em normas de regulação e uso, em políticas públicas e na determinação dos sujeitos com legitimidade para implementá-las e/ou delas usufruírem. Cada visão expressa compreensões da realidade social e projetos de uso e apropriação do espaço.

Embora aquém da demanda das comunidades, os dados da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) apontam 847 territórios indígenas e quilombolas6 6 O dado representa a soma das terras indígenas delimitadas, declaradas, homologadas e regularizadas e das terras quilombolas com portarias publicadas e títulos expedidos. Destaque-se que, sob a gestão Bolsonaro (janeiro de 2019 até o presente, maio de 2021), nenhuma terra indígena foi demarcada e apenas um território quilombola foi titulado (Quilombo Rio dos Macacos - Bahia). no Brasil até maio de 2021, que se configuram como “novas” formas de territorialização, resultado de articulações semânticas, políticas e estratégicas. Novas não do ponto de vista geo-histórico. A despeito dos numerosos aparatos de restrição do acesso de indígenas e negros à terra, o apossamento foi uma realidade precípua e constante, tanto nas proximidades dos povoamentos quanto em áreas mais distantes. Às vezes tolerada e em muitos casos tida como residual e imobilizadora de terras, os fatos mostram que a inserção desses povos no contexto agrário brasileiro não pode ser resumida à absoluta submissão aos grandes latifundiários, posto que várias foram (e ainda são) as estratégias que utilizaram para manter a ocupação, tais como disputas judiciais, organização coletiva e resistência física.

A novidade está no duplo reconhecimento (não só o reconhecimento público oficial, mas também o autorreconhecimento) que permite colocar em evidência suas trajetórias culturais e territoriais, agora problematizadas no campo da política de Estado e abordadas pelos próprios sujeitos políticos em termos de reconhecimento de direitos. A formalização dos direitos reconhecidos levou à elaboração de novas políticas para dar tratamento à questão do uso e controle territorial de povos indígenas e quilombolas, agora baseadas em princípios de autorreconhecimento, direito originário e tradicionalidade, mapeadas, delimitadas e regidas por dois tipos de domínios diferentes do privado individual: público, no caso dos indígenas; e coletivo, no contexto quilombola.

Com isso, redefinem-se também o padrão de conflitividade e os antagonismos no campo. A partir de então, a questão agrária se expressa na contradição entre latifundiários, camponeses, agricultores familiares, indígenas, quilombolas, seringueiros, quebradeiras de coco de babaçu, geraizeiros etc. Eles inovam o repertório de lutas e pressionam por atualização do ordenamento legal e, assim, impõem restrições jurídicas ao uso e à ocupação capitalista e privada (como no caso dos territórios indígenas, quilombolas e das reservas extrativistas que aparecem como novos modelos jurídicos de propriedade - com base nas ideias de uso comum/coletivo, de identidade territorial e de tradicionalidade), e variados esquemas de resistência (alianças com outros grupos e entidades, requerimento de respeito aos direitos que lhes foram reconhecidos, denúncias etc.).

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  • 4
    Outras estratégias são a judicialização, a cooptação e a omissão. Exemplos de conflitos e reação violenta à organização de pessoas do campo não faltam na nossa história: Quilombo dos Palmares (1862) e Cabanagem (1835) no período colonial, Canudos (1896), Contestado (1912) e as greves dos colonos das fazendas de café (1913) no Império são alguns dos primeiros grandes conflitos brasileiros em resposta à opressão e à expropriação da terra, do trabalho e dos modos de vida. Esses movimentos são usualmente tratados como “pré-políticos”, mas Martins (1981MARTINS, J. S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes , 1981.) problematiza essa classificação mostrando que ela denota uma visão evolucionista da história das lutas no campo que desvaloriza as formas de organização e manifestação baseadas na cultura popular.
  • 5
    Pacto entre as classes urbanas, grandes proprietários e sindicalistas cooptados. Constitui a base de sustentação do Estado e a distribuição desigual da propriedade em nosso país.
  • 6
    O dado representa a soma das terras indígenas delimitadas, declaradas, homologadas e regularizadas e das terras quilombolas com portarias publicadas e títulos expedidos. Destaque-se que, sob a gestão Bolsonaro (janeiro de 2019 até o presente, maio de 2021), nenhuma terra indígena foi demarcada e apenas um território quilombola foi titulado (Quilombo Rio dos Macacos - Bahia).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Aceito
    14 Set 2021
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