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Quando um vírus toma lugar: algumas reflexões geográficas sobre a pandemia de Sars-Cov-21 1 Traduzido a partir do original inédito de Michel Lussault.

Resumo

A pandemia de Sars-Cov-2 parece ter surpreendido a maioria das autoridades políticas e sanitárias, em razão da velocidade da difusão do vírus e da necessidade de controlá-la por medidas estritas de confinamento, sem precedentes em tempo de paz na escala planetária. Como apreender o “sucesso” do patógeno em termos geográficos? Este artigo objetiva mostrar que a pandemia se construiu a partir das próprias características do sistema-Mundo urbanizado. Com efeito, só as condições da urbanização global podem explicar a cinética e a exaustividade geográfica da epidemia de Covid-19. O texto visa também compreender como se estabelecem as diferenciações espaciais locais e regionais de tal fenômeno global e propõe, finalmente, uma leitura da pandemia à luz do paradigma do antropoceno.

Palavras-chave:
Urbanização planetária; Pandemia; Hiperespacialidade; Sincronização; Antropoceno

Abstract

The Sars-Cov-2 pandemic seems to have surprised most political and health authorities by the speed that the virus spread and the need to control it through strict confinement measures, unprecedented in peacetime on a global scale. How can we understand the ‘success’ of the pathogen in geographical terms? This article aims to show that the pandemic was built from very specific characteristics of the urbanized world-system. Effectively, only the conditions of global urbanization could explain the geographical kinetic and exhaustiveness of the Covid-19 pandemic. The article also aims to understand how local and regional spatial differentiations of such phenomenon is established and, finally, proposes an interpretation of the pandemic, considering the anthropocene paradigm.

Keywords:
Planetary urbanization; Pandemic; Hyperspatiality; Synchronization; Anthropocene

Résumé

La pandémie de Sars-Cov-2 semble avoir pris de court la plupart des autorités politiques et sanitaires, en raison de la rapidité de la diffusion du virus et de la nécessité de la contrôler par des mesures de confinement strict, sans équivalent en temps de paix à une échelle planétaire. Comment appréhender le “succès” du pathogène en termes géographiques? Cet article se propose de montrer que la pandémie s’est construite à partir des caractéristiques mêmes du système-Monde urbanisé. Ce sont en effet les conditions de l’urbanisation globale qui seules peuvent expliquer la cinétique et l’exhaustivité géographique de l’épidémie de Covid-19. Le texte tente également de comprendre comment s’établissent les différentiations spatiales locales et régionales d’un tel phénomène global et propose in fine une lecture de la pandémie à la lumière du paradigme de l’anthropocène.

Mots-clés:
Urbanisation planétaire; Pandémie; Hyper-spatialité; Synchorisation; Anthropocène

O interesse da geografia pelos patógenos explica-se facilmente: trata-se de actantes2 2 Como define o autor em outra obra, actante é um termo geral que “designa uma realidade social qualquer (não necessariamente uma pessoa) dotada de uma capacidade de contribuir à organização e à dinâmica de uma ação individual e/ou coletiva. Resumindo, toda entidade que é definível e distinguível, que é ativa em um processo social, que opera atos (LUSSAULT, 2009, p. 149). [N.T.] cuja intervenção é intrinsecamente espacial, porque se difundem “na” vastidão, via os contatos entre os anfitriões que eles contaminam - e, desse modo, contribuem no agenciamento do espaço social específico de uma doença contagiosa. A geografia, aliás, utilizou-se das epidemias para conceituar e modelizar o processo de difusão3 3 Ver, por exemplo, o conhecido livro de Peter Gould, The Slow Plague: a geography of the AIDS pandemic, Oxford, Blackwell Publishers, 1993. e a epidemiologia é, em parte, uma ciência da difusão das contaminações.

Vale lembrar que um vírus não é uma entidade viva, como uma bactéria, porque precisa de um corpo a infectar para se multiplicar e logo passar para outro organismo vivo (humano, animal, vegetal). Sem isso, o capsídeo de proteína que contém um pouco de material genético (aqui, RNA) não subsiste muito tempo. O vírus é por si obrigado a “existir” se deslocando, seu caráter de “agente” revela-se, assim, 100% geográfico (se não mexe, desaparece), e é o que explica que lutar contra ele traz a necessidade de respostas igualmente geográficas: o confinamento, o distanciamento entre os humanos que correm o risco de se transmitir a doença, a suspensão das mobilidades, a quarentena.

Dito isso, mesmo para os especialistas atentos a esses fenômenos há muito tempo, a força de intervenção do vírus Sars-Cov-2 foi, e permanece, há que admiti-lo, espantosa: “ele” (especificando que essa terceira pessoa do singular é uma ficção, que permite falar desse micro-organismo transitório de maneira conveniente, mas errônea, ao passo que é verdade que esse “ele” consiste sempre numa multidão viral que investe o corpo de cada hóspede cresce indefinidamente à medida que a pandemia progride) conseguiu gripar, literalmente, o sistema-Mundo num piscar de olhos.4 4 Este texto retoma algumas das análises desenvolvidas em Chronique de Géo’virale, Lyon, 205, éditions, 2020. Ainda estamos um pouco incrédulos frente ao que aconteceu, constatando que a paralisia se instalou em toda parte e que, enquanto a Europa mal começa a se desconfinar, depois da segunda onda pandêmica, subcontinentes inteiros continuam sofrendo impedimentos severos à “vida normal” dos habitantes. Em algumas semanas, um micro-organismo transitório, desconhecido de todos, conseguiu se impor duravelmente como um operador geopolítico global e atuar muito além de sua ordem de grandeza, que é aquela dos corpos que contamina muito além da sua esfera imediata de ação, que é aquela dos organismos infectados, não aquela das mobilidades, das atividades de produção e dos mercados mundiais, nem aquela das políticas monetárias dos bancos centrais.

Um sistema reforçado

Na minha opinião, a potência da “performance”5 5 Aqui, deve-se compreender a palavra num sentido inspirado (livremente!) da linguística. Nesta disciplina, de forma muito esquemática, parte dos especialistas consideram que os enunciados produzidos pelos indivíduos em e para seus atos não dizem respeito apenas ao domínio do constativo, isto é, do modo que registra um estado do mundo, mas também àquela dos performativos, que acrescentam ao mundo um estado. Retomo essa ideia (encontrada, em particular, nos trabalhos de Catherine Kerbrat-Orechionni) e a transponho para considerar que o geógrafo deve estar atento aos efeitos sociais da intervenção de qualquer “operador espacial” (qualquer entidade que opera atos espaciais - é o caso dos patógenos), e assim, delimitar melhor sua “performance”. Certamente, o Sars-Cov-2 acrescento um estado inédito ao sistema-Mundo. do vírus é devida ao fato de que tirou plenamente partido das características do Mundo contemporâneo. Para entendê-lo, vale primeiro lembrar o que é, do meu ponto de vista, o Mundo: um novo modo de espacialização das sociedades humanas, uma mutação na ordem da habitação humana do planeta - e é por isso que é judicioso escrevê-lo com maiúscula, reservando a palavra com minúscula para o que tange ao mundano, ao social (Lussault, 2013LUSSAULT, M. L’avènement du Monde: Essai sur l’habitation humaine le terre. Paris: Seuil , 2013.). Uma revolução, de amplitude comparável àquela do neolítico, ou da revolução industrial - dois grandes períodos durante os quais os humanos instalaram quadros de existência radicalmente novos. E, desta vez, trata-se de uma revolução urbana: a urbanização generalizada, acionada em sua fase mais ativa depois de 1950, com uma aceleração desde 1990 e certamente outra depois de 2010, é a principal força instituinte e imaginante do Mundo contemporâneo, é ao mesmo tempo mundializada e mundializante. Força instituinte porque arranja de uma nova forma as realidades materiais, humanas e não humanas, constrói os ambientes espaciais das sociedades. Imaginante, porque instala as ideologias, os saberes, os imaginários e as imagens constitutivas da mundialidade.

A urbanização mundializada e mundializante não é mais totalmente pensável a partir, unicamente, da estatística (embora ultrapassar o limiar da metade da população da terra considerada urbana no início do século XXI seja um marco significativo do processo), e tampouco o é a partir da simples expansão topográfica e material das cidades: uma crítica é necessária às abordagens estritamente demográficas e “particionais” - que abordam as coisas sob o ângulo das relações cidade-campo.6 6 Cf. Brenner e Schmidt (2013) e Brenner (2018). Notemos que boa parte dos estudos urbanos francófonos identificou essa novidade (desse o fim dos anos 1960), apesar de ser de bom-tom subestimar sua contribuição, na medida em que não foi escrita em inglês. Pois, a urbanização consiste essencialmente em uma substituição dos modos de organização das sociedades e das formas de vida que foram, outrora dominantes, por novos modos e formas de vida: os do urbano globalizado, no seio do qual a economia é nova, as estruturas sociais e culturais conhecem mutações profundas, as temporalidades, os espaços e as espacialidades são viradas do avesso, um ambiente biofísico específico é criado. Em poucas gerações, o Homo sapiens, tornou-se verdadeiramente o Homo urbanus (Paquot, 1990PAQUOT, T. Homo urbanus: essai sur l’urbanisation du monde et des moeurs. Paris: Félin, 1990.). O terráqueo de hoje, seja onde more, habita o Planeta em urbano.

Assim, um Mundo instalou-se por meio da urbanização; constitui o estado contemporâneo do ecúmeno terrestre - o ecúmeno sendo o conceito que designa o espaço de vida especificamente criado por e para a espécie humana, isto é, a Terra como Planeta habitado - que difere de tudo o que a antecedeu. A mundialização não procede de uma simples acentuação da internacionalização, mas instaura um englobamento em tamanho planetário (enquanto os mundos de antanho eram globalidades de tamanho infraterrestre) que agencia de maneira inédita as realidades e se impõe como um atrativo para o conjunto dos fenômenos sociais e culturais. Muito mais ainda que aquele do início do século, o Mundo de 2020 constitui um sistema7 7 Não é necessário aqui insistir longamente na anterioridade do pensamento do Mundo como sistema pela geografia francófona. Quanto a mim, inscrevo-me na filiação das abordagens emblematizadas nesse tempo pelo importante livro Le monde espace et système (Durand; Lévy; Retaillé, 1992). de grande complexidade cumulativa que espalha espacialmente e interliga realidades heterogêneas que pertencem aos campos individual, social, biológico, físico - razão pela qual não podemos reduzir o sistema-Mundo a um sistema físico, e nem pensá-lo ou modelizá-lo como tal. Construímos, nós, os humanos, uma realidade geo-histórica em que tudo está em interação e em que nenhum fenômeno não é mais independente das miríades de fenômenos que ativa em retorno cada vez que se manifesta.

Penso que essa “sistemática” cresceu consideravelmente de uns 20 anos para cá, pela mesma razão do que a fase mais recente do capitalismo mundializado promoveu: em particular, um crescimento sem precedentes e inédito das logísticas, um novo império da conexão numérica generalizada, uma “desagregação”8 8 Retomo esse termo de Pierre Veltz, que, desde os anos 1990, insistiu no processo de mundialização da indústria, ligado a essa capacidade de virar do avesso as geografias dos espaços produtivos. Cf., em particular, Veltz (2017). [dégroupage] das cadeias de produção num contexto de hiperindustrialização que ver o número de bens manufaturados crescer sem parar e a geografia econômica se redistribuir constantemente, uma acentuação inacreditável do papel da renda fundiária e imobiliária na drenagem e na fixação dos ativos financeiros em expansão infinita e em circulação permanente, que se traduziu por mudanças das paisagens urbanas sem equivalentes na história (com a aparição, em todos os lugares, das Sky Lines9 9 Cf. Appert e Montes (2015). e a multiplicação dos hiperlugares, marcadores da mundialidade, como os Malls, os aeroportos, os parques de atrações),10 10 Cf. Lussault (2017). um incrível desenvolvimento do turismo nacional e internacional, cujos fluxos peregrinavam até pouco tempo atrás o planeta, uma nova e forte presença das redes sociais e das mídias de informação 24 horas no estabelecimento de uma cena pública mundial.

Tudo isso confortou os atores globais, prontos a submeter a seus interesses os governos locais, nacionais e até mundiais. Pensemos, por exemplo, na capacidade de influência do Gafam (Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft), no papel de plataformas como Uber ou Airbnb, na capacidade de ação dos fundos de investimentos e dos bancos, no papel dos grandes grupos logísticos, tecnológicos, aeronáuticos, automóveis, agroindustriais, químicos, farmacêuticos. Em toda parte, os lobbys prosperam e os lobistas têm boa reputação. Notemos que não foi difícil convencer ou recrutar (e às vezes comprar) os ditos governos, cativados que foram - e permanecem? - pelo canto de sereia dos promotores da imaginação dominante da World City.11 11 Cf. Lussault (2016).

O “sucesso” epidêmico do Sars-Cov-2 demonstra esse reforço do caráter sistêmico das relações entre os componentes do mundo. O patógeno revela-se totalmente dependente da passagem de corpo a corpo para sobreviver, precisa de um campo de extensão constituído de numerosas pessoas próximas e/ou conectadas para infectar. Este foi achado facilmente graças às características espaciais da Terra urbanizada, da qual se aproveitou. Desde que a humanidade existe, ela encontrou muitos vírus mais mortíferos que o Sars-Cov-2 - os da gripe espanhola de 1918-1919 ou da gripe de 1958-1959, por exemplo. Se, hoje, o coronavírus provoca um colapso planetário, não é porque é mais perigoso que os outros, é porque expressa até que ponto o Mundo se tornou um desdobramento de ligações de interdependências.12 12 É provável também que esta crise pandêmica revele até que ponto, nas sociedades contemporâneas mundializadas, a questão da “boa saúde” tenha se tornado a principal preocupação dos grupos sociais dominantes, em particular, e a morte apareça como uma perspectiva quase inaceitável. Logo que algo acontece em algum lugar, isso desencadeia reações desmedidas em relação ao impulso inicial - o que acabamos de sofrer. Por essa razão mesmo, nenhum fenômeno agora é insignificante; por menor que seja, tem um potencial imprevisível.

Sejamos diplomáticos

A difusão do vírus prova também que nada escapa à urbanização que instalou o meio referencial de toda vida, humana e não humana e, aliás, nos espaços urbanizados, o entrelaçamento entre todos os vivos humanos e não humanos é notório, mesmo que tendamos a esquecer disso. É mais verossímil que a pandemia constitua um indicador convincente dos efeitos das mudanças da economia geográfica relacional entre entidades vivas, em razão da mutação dos ecossistemas impulsionada pela urbanização. As relações de localização e de distância entre humanos e não humanos, ou seja, suas “geopolíticas”, stricto senso (isto é, a dimensão política de suas lutas de lugares), e suas “diplomacias” (isto é, as imaginações institutas das modalidades possíveis de regulação das ditas relações), foram, estas últimas décadas, totalmente reconfiguradas pela dinâmica da mundialização. Retomo, aqui, o termo diplomacia com a inspiração do filósofo Baptiste Morizot,13 13 Cf. notadamente Morizot (2018). que vislumbra, a partir da análise do retorno dos lobos na França, conferir-lhe um papel efetivo de habitante de um espaço cujo compartilhamento com outras “agências” (humanas e não humanas) são problemáticas. Para Baptiste Morizot, a única maneira de evitar cair em uma guerra de os uns contra os outros, consiste em enunciar uma nova narrativa de “coabitação diplomática”, não uma meta-narrativa olhando desde cima, mas uma narrativa performativa que suporta uma cartografia aceitável das coexistências em territórios humanos e não humanos entrelaçados.14 14 Vale ressaltar o interesse das abordagens dos filósofos e antropólogos do meio-ambiente, que tentam analisar esses entrecruzamentos entre seres vivos. Permitam iniciar reflexões com as geografias que abordam a questão da habitação humanas e/ou aquela dos territórios e territorialidades. Cf., por exemplo, Desprest (2020) ou Tsing (2017). Acho essa abordagem muito estimulante e faço um destaque maior que o do autor ao que chamaria a dimensão “geopolítica”, isto é, levar em conta a expressão das diplomacias em interespacialidades efetivas e concretas (ou seja, em arranjos de espaços), sejam elas conflitantes ou não. Me parece que, em tensão, o par geopolítica-diplomacia permite apreender de maneira estimulante a coabitação do ecúmeno terrestre por humanos e não humanos em todas as escalas. Na minha opinião, trata-se de um verdadeiro programa de trabalho para as ciências sociais e, em particular, para os estudos urbanos, na hora da entrada no antropoceno.

Compreende-se logo que é possível aplicar essa leitura às interações espaciais entre o coronavírus da Covid-19 - que vai, evidentemente, continuar circulando durante um tempo (mesmo que a chegada de vacinas eficientes mude um pouco a dinâmica da pandemia) e de “tomar residência” nos “lares” - e seus hóspedes e não hóspedes humanos. Evidentemente, essas interações são limitadas, mas podemos orientá-las de muitas maneiras diferentes segundo o tipo de “diplomacia” de “geopolítica” escolhido, como atestam as diversas formas de abordar o confinamento e as limitações de circulação no Mundo. Entre o que é praticado na Coreia do Sul, ou no Japão, na Itália ou na França, na Alemanha ou nos EUA, no Brasil ou na Dinamarca etc., não são tanto abordagens sanitárias distintas que foram observadas, do que a instauração de regimes diplomáticos e geopolíticos específicos em cada caso, e que sempre se apoiam numa certa visão, uma maneira de contar a história dos laços entre humanos e patógenos e uma maneira de conceber os dispositivos espaciais que permitem manter e regular essas relações.

É assim que podemos, por exemplo, compreender a pesquisa do antropólogo Frédéric Keck (2020KECK, F. Les sentinelles des pandémies: chasseurs de virus et observateurs d’oiseaux aux frontières de la Chine. Paris: Zones Sensibles, 2020.) quando examina as formas pelas quais Estados ou territórios como Singapura, Taiwan, Hong Kong preparam a gestão de uma pandemia de tipo gripe aviária a partir de sua experiência com epizootias originárias do reservatório viral da China continental. Essa preparação baseia-se na implantação de uma rede de alerta, em que não humanos, pássaros neste caso, são fadados a indicar, ao se infectarem, a chegada de um vírus destrutivo. Ali, humanos, em particular aqueles engajados em sociedades ornitológicas que observam os pássaros, recrutam não humanos, numa geografia de vigia que visa permitir a melhor gestão possível da entrada num território de outro agente não humano. O dispositivo de sentinela ao serviço do coletivo é formado desse agenciamento. Temos aqui espacializações e repertórios de espacialidades particularmente sutis e aparentemente eficazes. Ademais, não é ilegítimo pensar que esse tipo de preparação, que impregna a sociedade inteira, permitiu a esses territórios gerirem de maneira mais eficiente a atual pandemia, em razão da familiaridade dos indivíduos ao comércio com micro-organismos patógenos e do desenvolvimento de uma estratégia “imunitária” idônea - a palavra imunidade designando o conjunto das modalidades de gestão, por um grupo espacializado, de suas relações com o exterior e do tratamento do fenômenos de entrada e de saída dos agentes patógenos.

Sincronização e sincorização

Se voltarmos à difusão epidêmica, constatamos que o vírus prosperou, em primeiro lugar, onde as concentrações de populações são altas (ao longo da expansão da doença, espaços menos densos e povoados acabam sendo implicados, em particular, por práticas de turismo ou de lazer ou deslocamentos profissionais) e, sobretudo, os laços sociais intensamente ativados - o que explica que o critério de densidade não seja absoluto (cf. infra). O mapa da sua implantação primária, é o mapa das aglomerações urbanas. No seio mesmo dos espaços afetados, a epidemia achou focos virulentos em lugares de agrupamentos marcados: templos, igrejas, estádios, carnavais, mercados cobertos. O nosso vírus prospera nos lugares em que a copresença é notável e a interação social intensa - isto é, uma urbanidade forte. A geografia do vírus segue aquela da urbanização e, sobretudo, pega emprestadas as redes relacionais que ela instala.

Porque o Sars-Cov-2, como numerosas outras entidades oportunistas, mostra-se perfeitamente adaptado à “mobilização geral” que é fundamental no sistema Mundo, em que tudo e todo mundo circula o tempo todo, por todos os lugares e por todos os meios. Se comporta como o mosquito tigre, por exemplo, um grande viajante que segue as linhas de transporte dos indivíduos e mercadorias. Se os seres humanos sempre tiveram uma inquietação pelo movimento, como se observa desde a pré-história, a urbanização contemporânea provocou uma verdadeira explosão dos movimentos: para cada indivíduo, mover-se é uma atividade e um valor social fundamental. Não podemos esquecer que o crescimento mundial da população sendo ainda verificado, sempre há mais habitantes que aspiram a se deslocar mais e a consumir objetos e serviços que exigem, também, para estar disponíveis, cada vez mais deslocamentos numerosos.

Assim, o vírus tornou-se um passageiro planetário, que pega emprestados todos os modos de deslocamento possíveis, ao acompanhar seus hóspedes que o transportam e o fazem cruzar as fronteiras. Viajou muito de avião, mas não exclusivamente. Beneficiou-se de todas as combinações de mobilidade que os humanos compõem, doravante, de maneira comum - cada indivíduo tornou-se um logístico da sua vida cotidiana. Nesse sentido, é normal que o turismo tenha sido um veículo ideal de difusão, de tanto ter se mundializado (contribui até com a acentuação sistêmica dessa mundialização) e massificado: é uma atividade de grande número e da proximidade.

O Sars-Cov-2 gozou da “hiperespacialidade” que se impôs como um princípio da mundialidade:15 15 Para uma apresentação mais precisa de hiperespacialidade e hiperescalaridade, cf. Lussault (2017). todo operador espacial que se encontra em algum lugar e/ou se move é, em razão da importância das mobilidades e comunicações numéricas, potencialmente conectado e em contato, material e/ou imaterialmente, a um número indefinidos de outros operadores. O vírus prosperou em curto lapso de tempo com esta hiperespacialidade que garantiu a amplitude mundial da epidemia, permitindo-lhe transbordar rapidamente fora do seu lugar circunscrito inicial e permitiu o forçamento adaptativo do sistema espacial que explica que a difusão viral possa provocar uma crise global que excede, muito, o campo sanitário.

A hiperespacialidade permite compreender o que eu chamo de “hiperescalaridade” do Sars-Cov-2: é ativa em todas as escalas, sincronicamente. É a razão pela qual é presente e atuante, simultaneamente, na escala do micro-organismo, inteiramente ocupado em garantir a sua viabilidade, na escala de cada corpo que infecta, na escala das áreas urbanas em que a epidemia se difunde, na escala do Estado que organiza o confinamento em defesa desta expansão acelerada e generalizada, na escala do Mundo, sob estresse frente ao avanço inexorável e fulgurante da pandemia, encenadas via cartografias em tempo real e gráficos do crescimento exponencial da difusão da patologia. A geografia do vírus consiste neste arranjo de todos estes espaços de grandeza e de lógicas internas completamente diferentes que se encontram ajustados pela operação virale, hiperespacial e hiperescalar, e que sincroniza, ao mesmo tempo que “sincoriza”.

Retomo aqui, inflectindo-o um pouco, o conceito de sincorização, criado e desenvolvido por Boris Beaude, a partir do grego chora (que designa o espaço existencial, em oposição aos topos que é o espaço posicional) e de syn (que significa comum), para definir o conteúdo espacial da sincronização.16 16 Cf. Beaude (2018). Assim, a epidemia sincroniza, já que garante a concordância de tempos muito diferentes: não nos esqueçamos de que o do vírus é muito curto e não tem nada a ver, em absoluto, com o dos ciclos econômicos ou o da urbanização etc. Tudo isso se amarra, no entanto, em uma configuração temporal que é aquela da pandemia. E, a difusão da Covid “sincoriza”, porque agencia espaços dessemelhantes - e que assim permanecem, porque esse agenciamento não provoca a desaparição de suas diferenças. A pandemia revela a importância de este par sincronização/sincorização, que me parece estar no centro do funcionamento atual do Mundo, o que explica que até a dialógica local-global deva ser, hoje em dia, complexificada.

A crise sanitária que atravessamos permite compreender a potência desconcertante das interações num sistema Mundo em que a relacionalidade é uma constante. Pois, não existe uma corrente causal direta, simples e mecânica entre a infecção do primeiro paciente pelo vírus e a crise mundial. Existe até uma incomensurabilidade aparente entre o micro-organismo que infeta um corpo e o macromercado globalizado que, in fine, se encontra paralisado. O vírus não provoca diretamente a parada do funcionamento do Mundo, não tem um superpoder de malvado num firme da Marvel (e não existe super-herói capaz de pará-lo). O que ele faz, entretanto, é que, ao se tornar vetor de epidemia, primeiro na China, na região de Wuhan, provocou circuitos de retroações potentes que, rapidamente, ultrapassaram “limiares críticos” (o que os anglófonos chamam de tipping points, “pontos de inflexão”) para subconjuntos do sistema espacial: aqui, por exemplo, quando etapas do número de doentes são atingidas e que a curva de crescimento dos casos e das mortes torna-se, não aritmética, senão geométrica, limiares são atingidos em termos de geografia da contaminação e tudo vira do avesso, espaços geográficos tornam-se a sede de uma doença que, ali, nutre-se por si só, como constatamos em Wuhan, na Lombardia, ao redor de Mulhouse, de Madri, em Nova York etc. Focos epidêmicos de tamanha importância tendo aparecidos, o sistema é turvado e o medo torna-se um ingrediente essencial, as decisões políticas de confinamento e de restrição encadeiam-se e reforçam-se mutuamente, as retroações acentuam-se mais ainda, desregulam funcionamentos de regiões inteiras, travam imediatamente as redes de relações nacionais e globais e engajam o Mundo em uma situação na qual nada parece facilmente controlável, e, ainda menos, rapidamente reversível.

O estado do sistema muda, então, muito rapidamente: tinha se logrado, bem ou mal (depois do alerta de 2008), mantê-lo mais ou menos orientado (segundo os padrões econômicos dominantes) e caímos por terra! A expansão do vírus provocou uma emergência sistêmica inédita, que não era possível prever - nossa época é aquela da incerteza, há que lidar com ela; apareceu de maneira contingente, mesmo que possamos, retrospectivamente, descobrir suas condições de possibilidade. Podíamos/devíamos saber, não obstante, que a probabilidade desse tipo de encadeamento era nula e preparar-se para isso - preparação que faltou cruelmente na maioria dos países, com exceção dos lugares em os ensinamentos de episódios precedentes tinham sido integrados nos dispositivos ad hoc.

A infecção do paciente zero, no anonimato de uma epidemia ainda em germinação, é algo equivalente, se aceitarmos uma analogia que poderia ser refutada do ponto de vista estrito da teoria dos sistemas caóticos, da batida de asas de uma borboleta evocada por Edward Lorenz numa célebre conferência de 1972 intitulada: “Previsibilidade: o batimento das asas de uma borboleta no Brasil pode causar um tornado no Texas?”. Aqui, as espículas de vírus que se fixam no revestimento de um indivíduo desencadearão uma crise global. Lorenz teorizou o “efeito borboleta”; hoje, observaríamos um “efeito de vírus”.

Um mundo global de diferenças espaciais

Podemos, portanto, sustentar a ideia segundo a qual a origem da potência da performance do vírus é antes de tudo “geográfica” porque ele tira partido das características espaciais do mundo urbanizado. Mas uma tal configuração epidêmica global não deve impedir de estar atento às especificidades regionais de desdobramento da pandemia. É ainda difícil analisar precisamente e compreender as importantes diferenças observadas. Mas parece plausível que as modalidades próprias de urbanização de uma região desempenhem um papel. Se olharmos para o caso da Lombardia e do Vêneto, onde o impacto da doença, durante a “primeira onda” da epidemia, surpreendeu por sua amplitude, constatamos que esse vasto perímetro forma uma metaorganização urbana complexa que associa, esquematicamente, (i) muitas cidades antigas, muitas vezes dinâmicas, atraentes, embora de tamanhos muito diferentes, espalham-se regularmente de oeste a leste, paralelas ao rio Pó, de Milão a Veneza, cada uma com um caráter marcado e constituindo um lar de uma grande periurbanização local “autônoma”, (ii) espaços de atividades muito extensos, implantados quase continuamente em ambos os lados da autoestrada A4 e da linha ferroviária - eixos estruturantes de todo esse complexo lombardo e veneziano, servido por uma estreita rede de vias de comunicação - e pontuadas por hiperlugares (aeroportos, centros comerciais) e grandes “clusters” industriais e produtivos e (iii) áreas urbanizadas que se estendem de forma muito ampla para as margens norte e sul desses dois primeiros espaços axiais, a grandes distâncias, bem como nos “vazios” que eles deixam subsistir. Descobrimos aqui perímetros mais intersticiais, difusos, porosos (notadamente em direção aos Alpes), marcados pela agricultura, ao mesmo tempo muito ligados aos outros dois (i e ii). Por exemplo, Bérgamo, uma das maiores polaridades urbanas (tanto pela influência de sua famosa Città Alta empoleirada num monte, quanto pela do gigantesco Mall Oriocentro, localizado abaixo, o qual é contíguo ao aeroporto especializado em voos low cost, que rapidamente se tornou um importante ponto de entrada turístico na Itália), está intimamente ligada, a confins, no norte, há muito tempo já montanheses e agro-pastoris, mas não enclausurados.

Eis aqui um grande território paradoxal e ambíguo multicêntrico e espalhado, denso e difuso, homogêneo e heterogêneo, em que as interconexões internas e externas são muito fortes. Verdadeiro centro de gravidade econômica da península e uma das regiões das mais produtivas da Europa, integrada aos dispositivos de produção globalizados, ele é atravessado em permanência pelos fluxos de pessoas, de mercadorias, de dados. As cidades são cadinhos históricos de uma sociabilidade intensa, às vezes intra e interfamiliar, inclusive crianças e pessoas idosas, onde a proximidade e a civilidade dos contatos são valorizadas - e isso conta muito para o estabelecimento desta ambiência e desta cultura incomparável da città, no fundamento de atração que exercem a Lombardia e o Vêneto.

O turismo nacional e internacional é importante no seio desse sistema regional, em razão da concentração das cidades patrimoniais entre as mais reputadas do Mundo e do prestígio de grandes eventos culturais (bianuais e trienais) e “criativos” - lembremos que Milão, metrópole mundial, drena um turismo muito ligado à moda e ao design. Os visitantes asiáticos e chineses são uma legião, o que dá crédito a uma hipótese de uma introdução turística precoce do vírus, redobrando aquela ligada às atividades manufatureiras e comerciais. A lenta progressão subterrânea da doença teria preparado sua explosão, a partir de meados de fevereiro. A este respeito, os jogos de futebol (não somente aqueles da série A) da qual sabemos a importância e a popularidade nesses setores, teriam também sido particularmente favoráveis à contaminação simultânea de muitas pessoas.

Por outro lado, se observarmos que casos epidêmicos se iniciariam em cidades secundárias, frequentemente pequenas e aparentemente um pouco isoladas, na realidade sempre se revelam ligadas a grandes áreas e hiperlugares que polarizam o sistema (Casti; Adobati, 2020aCASTI, E.; ADOBATI, F. (Dir.). Pourquoi Bergame? Analyser le nombre de testés positifs au COVID 19 à l’aide de la cartographie. De la géolocalisation du phénomène à l’importance de sa dimension territoriale. École Urbaine de Lyon, jun. 2020a. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/anthropocene2050/pourquoi-bergame-analyser-le-nombre-de-test%C3%A9s-positifs-covid-19-%C3%A0-laide-de-la-cartographie-7950cd0b452c . Acesso em: 5 out. 2021.
https://medium.com/anthropocene2050/pour...
, 2020bCASTI, E.; ADOBATI, F. (Dir.). Pourquoi Bergame? Analyser le nombre de testés positifs au COVID 19 à l’aide de la cartographie. De la géolocalisation du phénomène à l’importance de sa dimension territoriale. École Urbaine de Lyon , mar. 2020b. Disponível em: Disponível em: https://medium.com/anthropocene2050/pourquoi-bergame-5b7f1634eede . Acesso em: 5 out. 2021.
https://medium.com/anthropocene2050/pour...
). Acrescentemos uma população em envelhecimento, em particular das cidades secundárias citadas, portanto muito exposta ao excesso de mortalidade ligada à Covid-19, e sólidos sistemas hospitalares públicos, mas subdimensionados para fazer face a tal fenômeno, os ingredientes estão aí para uma epidemia brutal, que encontrou um “meio urbano” favorável pela intensidade relacional que o caracteriza. Convém sublinhar, no entanto, que as características que podem explicar essa maior exposição da Lombardia e, em menor medida, do Vêneto à pandemia são também as que lhes conferem em tempos normais sua urbanidade e dinamismo. Os medos do momento não deveriam levar a condenar definitivamente as configurações históricas, espaciais e sociais que fundaram culturas urbanas específicas. A mesma prudência em termos de extrapolação e previsão também seria útil para o futuro do sistema-Mundo em sua integralidade.

Para além desse exemplo particular, se tentarmos identificar constantes na análise das diferenças inter-regionais e locais assumidas pela epidemia, as particularidades de cada caso deveriam considerar, em minha opinião, uma combinação de cinco fatores principais (eles próprios multifatoriais): apresento-os numa ordem não hierárquica e muito sucintamente, para submetê-los a uma primeira discussão.

  • (1) As modalidades de introdução e disseminação do vírus em um determinado espaço são importantes e heterogêneas. O vírus não penetra em todos os territórios da mesma forma, com a mesma carga (e essa questão da magnitude da carga viral, que pode variar muito entre as pessoas, ganha importância à medida que os estudos avançam), o mesmo potencial epidêmico, a mesma dinâmica. A este respeito, voltemos a sublinhar o papel do turismo internacional e nacional, que é um vetor de introdução particularmente eficaz, inclusivamente nas zonas afastadas dos centros maiores. Pôde-se assim demonstrar que Wood River Valley, uma comunidade de 22.000 habitantes no centro do espaço de Idaho, atrativo por suas estações de esportes de inverno, experimentou uma taxa de contaminação superior à da cidade de Nova York. Poderíamos multiplicar esses exemplos nos Alpes, entre outros.

Devemos também lembrar o papel dos focos epidêmicos ligados a concentrações excepcionais de indivíduos: templos, estádios, festivais. Todos esses locais de reunião e contato permitiram a contaminação simultânea de um grande número de pessoas e rápidas difusões. Neste tipo de circunstâncias, temos observado o papel de pessoas denominadas “superdifusoras” (“Superspreaders”), nomeadamente pessoas que infectam dezenas de outras em encontros em que entram em contacto físico com um grande número de pessoas. Aqui, momentos de eventos-lugares como cultos evangélicos (onde a comunhão entre os fiéis exige abraços e canções apaixonadas que, como sabemos hoje, são difusores de aerossóis portadores de vírus) ou à noite em boates, ou ainda festas familiares ou jogos de futebol parecem particularmente propícios ao aparecimento desses veículos de superdifusão - o vírus se convidando nos deslocamentos dos indivíduos que retornam de seu encontro, que vão dispersar a infecção em uma vasta escala.

  • (2) É fundamental levar em conta as características sociodemográficas de uma população (índice de idosos, prevalência de patologias, estrutura social e familiar, desigualdades sociais e raciais etc.). A epidemia não independe de forma alguma das desigualdades sociais; ela até mesmo as coloca sob uma luz dura. Assim, nos EUA, os afro-americanos foram particularmente expostos à doença e, em particular, a suas formas graves, enquanto experimentavam dificuldades de acesso às unidades de saúde. Comentaristas também chegaram a vincular esse fenômeno ao vigor da reação das populações afro-americanas e, mais geralmente, das minorias raciais e sociais ao assassinato de Georges Floyd por policiais em Minneapolis, em 25 de maio de 2020. Mesmo tendo sido as comunidades mais frágeis as que sofreram todo o impacto dos efeitos econômicos e de saúde relativos à Covid, esse novo episódio de violência policial parecia ainda mais injusto e insuportável do que os (muitos) anteriores.17 17 Cf., por exemplo, a reação do famoso jogador de basquete da NBA Kareem Abdu-Jabbar no Los Angeles Times, em 30 de maio 2020: “Não entende os protestos? O que você está vendo são pessoas empurradas para o limite”. Disponível em: https://www.latimes.com/opinion/story/2020-0530/dont-understand-the-protests-what-youre-seeing-is-people pushed-to-the-edge. Acesso em: 5 out. 2020.

  • (3) A situação pré-pandêmica do sistema de saúde é obviamente um dado essencial. Trata-se de levar em conta tanto o potencial do sistema hospitalar (público e privado) - seu equipamento material, sua abertura social, sua malha geográfica, sua capacidade de acolhimento, a disponibilidade e competência do pessoal - o da medicina urbana (muito diferentemente mobilizado dependendo do país), sem esquecer o que se passa com os estabelecimentos para idosos, que, como vimos, estão particularmente expostos a formas graves e fatais da doença. É pouco dizer que nem todos os sistemas de saúde tiveram a mesma resistência à disparada de casos pesados. Deste ponto de vista, a comparação entre França, Itália e Alemanha é particularmente interessante. É razoável pensar que a Alemanha se beneficiou de um sistema de saúde bem integrado, acessível e eficiente, em particular com uma ligação muito boa entre a medicina urbana e a medicina hospitalar.

  • (4) O estado de preparação18 18 Traduzo a palavra preparedness, que está no cerne dos estudos anglófonos que se dedicam a como podemos melhorar a forma de enfrentar catástrofes (“naturais”, de saúde e/ou tecnológicas) em determinada sociedade. Essa abordagem é muito diferente da prevenção, que é promovida em particular pela teoria do risco. Cf. principalmente Lakoff (2006), que distingue prevenção, precaução e preparação tratando-as como diferentes “estilos de raciocínio”. das autoridades públicas e da sociedade e as formas como a epidemia é tida em consideração e gerida são fatores decisivos. As diferenças nessa área entre as atitudes e reações das autoridades públicas em diferentes países, regiões e cidades são espetaculares. O despreparo francês foi notável, assim como a procrastinação em exames, máscaras, o isolamento de pacientes e o trabalho de monitoramento dos focos epidêmicos. Também é surpreendente, ainda na França, a total desconsideração da possibilidade de envolver genuinamente os atores locais e os habitantes na gestão da resposta à epidemia. Enquanto alguns países optaram por ver os cidadãos como indivíduos responsáveis, o Estado francês os tratou como crianças indisciplinadas. Esse é um lembrete de que a questão da preparação não se limita à forma como as autoridades se mobilizam e implementam medidas que permitam superar uma crise da melhor maneira possível (o exemplo da Coreia talvez seja um do mais frisantes do que significam a antecipação de uma crise e suas evoluções por uma autoridade pública), mas estende-se à reflexão sobre a capacidade da “sociedade” inteira (e, portanto, dos cidadãos em primeiro lugar) de ser igualmente ativo nessa preparação e mobilizado na gestão cooperativa da epidemia. Aqui, novamente, os exemplos da Coreia, mas também da Alemanha ou Dinamarca, são para meditar.

  • (5) Finalmente, e é claro, a configuração geográfica de uma região e as modalidades de funcionamento espacial (como acabamos de mostrar com o exemplo da Lombardia) intervêm. Mas devemos lembrar que nem tudo é simples e mecânico. Por exemplo, a densidade urbana é, sem dúvida, uma condição favorável à disseminação, mas ela permanece relativa: algumas cidades e/ou bairros muito densos foram mais poupadas do que cidades e/ou bairros muito menos densos, mesmo que fossem próximos. Assim, em Manhattan, no auge da epidemia, havia 730 casos por 100.000 habitantes, e em Staten Island, 1644. Na verdade, o tipo de densidade é mais importante do que qualquer coisa, ou seja, como essa densidade se organiza em formas urbanas específicas e é modalizada nas relações espaciais entre os indivíduos. O vírus floresce onde as interações entre as pessoas (as interespacialidades) são mais fortes: isso tem precedência sobre o único critério de densidade. Um espaço pouco povoado e pouco denso, mas em que os habitantes estão em contato cotidiano estreito, será um campo de jogo ideal para o vírus, tanto se não mais, do que um espaço denso, mas com baixa urbanidade, em que há pouco contato entre os habitantes. Além disso, mesmo em um espaço muito denso e intensa vida social, também podemos impedir a propagação da epidemia prestando atenção aos “gestos de barreira” (uso de máscara, distanciamento etc.): vimos sua eficácia na Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura. A contrário, a dificuldade de aceitar o uso de máscara como uma simples ferramenta de proteção em muitos países permitiu a rápida disseminação do vírus, inclusive dentro de geotipos com urbanidade relativamente baixa.

A combinação de todos esses fatores explicaria o vigor do processo de diferenciação geográfica da epidemia. Assim, entendemos um ponto muito importante: a mundialização globaliza os fenômenos, mas não turva as especificidades geográficas. Irei ainda mais longe e formularei a hipótese de que, quanto mais a mundialização promove operações-padrão, mais ela se globaliza (assim como a epidemia, que tira proveito das operações ordinárias da mundialização) e mais se afirmam as especificidades locais e regionais ligadas a características geográficas e sociais.

Uma crise semiológica e “imunológica”

Assim, pela hiperespacialidade e pela hiperscalaridade, Sar-Cov-2 transformou-se em poucas semanas em atrator do sistema Mundo. Se aceitarmos uma analogia proposta aqui para enfatizar um ponto que me parece importante, assim como um vírus provoca uma reação imunológica em um corpo ao embaralhar as informações e seu tratamento pelo organismo, a epidemia de coronavírus provoca uma espécie de “reação imunológica” do sistema-Mundo ao perturbar os dispositivos de significação e os instrumentos de compreensão utilizados até então. Esta crise inédita suscitou uma dramaturgia cotidiana, encenada por todas as mídias, pelas redes e plataformas digitais, pelos canais de informação de atores mundiais como a OMS, pelas revistas científicas globais etc. Cada habitante da terra foi chamado a acompanhar continuamente um espetáculo exclusivo: a progressão inevitável da doença, que nos convenceu da existência de um perigo iminente para o Mundo.

A epidemia de Covid vampirizou o campo informacional. Este se embala, as notícias ali proliferam, dramáticas, até porque vivemos agora sob o império do imediatismo comunicacional. A epidemia é um alerta sanitário, mas também um teste político, que participam e provêm de uma crise informacional e mesmo semiológica, porque degrada os sistemas de signos e as lógicas de significados com que estamos habituados no quadro do Mundo atual e a experiência que podemos ter disso. A pandemia produz signos e sentidos novos, mas alterados em relação à imaginação geográfica padrão da mundialização. O Sars-Cov-2 tornou-se o protagonista de uma história diferente daquela que estamos habituados a escutar, perturba tanto o gênero da narrativa oficial da mundialização quanto o das descrições (textuais e estatísticas) do estado “normal” do Mundo; ele até sacode suas representações, sejam os mapas produzidos para apreender a epidemia ou mesmo imagens estranhas, tiradas por drone e que repetimos num loop, espaços urbanos desertos, cidades abandonadas e embalsamadas como cadáveres num mausoléu. O vírus se difunde rapidamente, e agora nos vemos perdendo referências para qualificar o que está acontecendo - daí o sucesso neste período de todas as “palavras” de natureza profética e/ou chamados para sair da mundialização, mudar o capitalismo etc., de autores que muitas vezes logo pensam que tiveram vantagem quando muitas vezes só expressaram seu desânimo analítico e sua angústia quanto ao futuro.

Poderíamos, então, propor modelizar a pandemia como uma perturbação informacional e semiológica - uma perspectiva que aqui só posso sugerir. Partamos, de novo, da ideia que um vírus é ativo ao interromper o campo de informações quando infecta um corpo. Ele perturba o organismo, alertando o sistema de defesa do hospedeiro. Quanto ao patógeno da Covid-19, sabemos agora que essa interferência é muito poderosa e sutil, pois pode ir tão longe quanto o início dessa famosa tempestade de citocinas, essa reação imunológica exagerada que às vezes é fatal. O primeiro campo de batalha informacional é, portanto, o do espaço dos corpos contaminados e é a partir desse terreno inicial que, após a multiplicação viral, a expansão poderá continuar.

A infecção do paciente zero, a partir de um reservatório animal, provavelmente muito mais cedo do que inicialmente se acreditava, por volta do início do outono de 2019, em Hubei, por um vírus inicialmente desconhecido, constitui, portanto, a alteração original da informação espacial - mas a geo-história de Sars-Cov-2 começa mais cedo, em espaços e tempos ainda desconhecidos onde o vírus atravessa as barreiras das espécies para passar do morcego ao pangolim, antes de chegar ao ser humano. No início, não entendemos o que está acontecendo. “Nós” (as autoridades locais de saúde e políticas) tememos essa novidade que não tem sentido, escondemos o que parecia “insignificante” mas mesmo assim constrangedor, o primeiro erro “hermenêutico” que abre uma longa série, no contexto de uma pandemia em que os conflitos de qualificação dos fatos e de interpretação são constantes e centrais. Então, quando os signos se acumulam, quando tudo se torna tristemente significativo, e o que vem após semanas de encobrimento não pode mais ser negado, Wuhan é colocado em quarentena em 23 de janeiro - a China começa a informar regularmente a OMS e a comunidade internacional desde o início de 2020. Isso constitui um ato espacial e comunicacional muito “performativo”, que então muda ipso facto o estado do Mundo e lança um processo de alerta em uma escala completamente diferente - enquanto a China está pesando na OMS para que o dito alerta seja o mais explícito possível, sem, entretanto, prejudicar a ideia de que o país agiu da melhor forma e o mais depressa possível. Portanto, há uma tensão real em torno de “elementos de linguagem”, que então se repetirão mais ou menos onde quer que ocorra a epidemia. Porém, começamos a admitir a provável expansão para fora da China de um vírus que rapidamente parece incontrolável, constantemente multiplicado no corpo de cada vez mais pacientes, incrustado em suas circulações, e que conquista novos campos de intervenção, muito distantes dos mundos da vida dos indivíduos afetados, ao mesmo tempo muito concretos e abstratos: a dos sistemas produtivos mundiais e das circulações financeiras, também a dos órgãos decisórios e reguladores dos Estados soberanos que a progressão da epidemia enlouquece. Quando a Itália é brutalmente afetada, e depois outros países europeus, os dados colocados em mapas, os diagramas de crescimento exponencial dos casos, os modelos digitais também convertidos em gráficos (e apresentados como preditivos, em particular pelas autoridades e pela mídia, sem que os autores o neguem realmente, embora sejam apenas simulações abstratas de processos difusivos, este golpe narrativo sendo pesado de consequências) irá lançar um processo de pânico - alimentado por canais de notícias e redes sociais. Os Estados reagem apressadamente, após terem ficado para trás, com o fundamento de que tudo não parecia claro; não puderam / quiseram descodificar os sinais que, no entanto, os alcançavam em abundância, porque os cientistas chineses, a OMS e mesmo o governo de Xi Jing Ping cedo entregaram informações importantes que permitiram em particular caracterizar um vírus há muito considerado na Europa, nos EUA, no Brasil com base no sistema de referência da gripe sazonal, um erro de interpretação que outros países, como Coreia ou Cingapura, não cometeram. Os governos repentinamente assustados com seu próprio adiamento sobrerreagem midiaticamente e eles também começam a articular retóricas e metáforas (muitas vezes guerreiras), para produzir uma grande abundância de informações que acompanham e justificam as decisões que acreditam basear-se na ciência. Os atores econômicos e sociais, os organismos internacionais não ficam de fora, e um sem-número de fatos, dados, discursos, escritos passam a cobrir qualquer outro discurso preexistente, nada mais do que acontecia algumas semanas antes ainda parece ter sentido. Tudo isso alimenta um processo dramatúrgico que se globaliza e transforma o vírus em um “quase-personagem”, o herói de uma intriga desastrosa. Ele nos é retratado como uma espécie de monstro implacável, que alimenta a epidemia implacavelmente, somos dominados pela emoção, paralisados, atordoados pelo acúmulo de “notícias de última hora” [breaking news] - que acabam sendo falsas, portanto, “notícias quebradas” [“broken news”].19 19 O autor parece se referir a um programa de comédia da BBC que zombava dos canais 24 horas por dia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Broken_News. Acesso em: 5 out. 2020. [N.T.] Os vírus das informações descontroladas redobram o trabalho dos vírus que atravessam os corpos, os boatos seguem os boatos, cientistas chegam até a tocar os oráculos. O Sars-Cov-2 consolidou-se como um grande operador semiológico, a cada dia a máquina infernal da mídia e das redes se alimenta da menor migalha de informação e alimenta a dramaturgia - até que ela perca sua atualidade e seja substituída por outra.

O antropoceno como momento atual [da atualidade]

Para terminar esta análise a quente, com toda a dificuldade desse tipo de exercício que às vezes leva a sobredeterminar as explicações, parece-me que podemos tomar esse episódio pandêmico como um “fato antropocênico total”, capaz de sustentar nossas reflexões sobre maneiras de coabitar a ser inventadas coletivamente face aos desafios que a mundialização nos coloca - e dos quais somos, portanto, atores e “vítimas”.

Escolhemos, durante muito tempo, subestimar a extensão das convulsões ligadas à Mudança Global e temos dificuldades para admitir até que ponto teríamos que modificar as formas mais legítimas de ver, pensar, agir, produzir, consumir e conceber crescimento, prosperidade e solidariedade. Doravante, está em andamento uma mudança de paradigma, com o surgimento do conceito de antropoceno. Enquanto a ideia de crise ambiental, à qual alguns ainda se agarram, remete à ideia clássica de que as sociedades simplesmente teriam que administrar um contratempo momentâneo, para o qual necessariamente encontraremos a solução, o termo antropoceno denota a existência de uma bifurcação, da qual estamos em processo de experimentar as primeiras manifestações. Definido como uma nova “época” menos geológica do que histórica, o antropoceno procede da influência direta e proeminente da atividade humana no sistema biofísico planetário. No entanto, muitos pesquisadores estão inclinados a identificar o que é chamado de “grande aceleração” pós-1945 dos fenômenos de Mudança Global (Steffen et al., 2015STEFFEN, W.; BROADGATE, W.; DEUTSCH, L.; GAFFNEY, O.; LUDWIG, C. The trajectory of the Anthropocene: The Great Acceleration. The Anthropocene Review, v. 2, n. 1, p. 81-98, 2015. doi: https://doi.org/10.1177%2F2053019614564785.
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; Syvitski et al., 2020SYVITSKI, J.; WATERS, C. N.; DAY, J.; MILLIMAN, J. D.; SUMMERHAYES, C. P.; STEFFEN, W.; ZALASIEWICZ, J.; CARRETA, A.; GALUSZKA, A.; HAJDAS. I.; HEAD, M. J.; LEINFELDER, R.; McNELL, J.; POIRIER, C.; ROSE, N.; SHOTYK, W. WAGREICH, J.; WILLIAMS, M. Extraordinary human energy consumption and resultant geological impacts beginning around 1950 CE initiated the proposed Anthropocene Epoch. Communications Earth & Environment, v. 1, n. 32, 2020. doi: http://dx.doi.org/10.1038/s43247-020-00029-y.
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). Ou seja, um período sincronizado com o início da fase contemporânea de urbanização massiva. Esta poderia, portanto, ser considerada o vetor de entrada efetiva no antropoceno, que se constitui ao mesmo tempo num metaproblema que informa e questiona todos os campos da sociedade, em todas as escalas, e em outro fator da mundialização, que configura outra sistematização complexa (a mudança global), que acabou de se conectar com a sistemática ligada à urbanização generalizada.

Arrisquemos a seguinte hipótese: sabemos e teremos cada vez mais de conhecer um novo estado do ecúmeno terrestre, que resultaria dos efeitos hiperescalares da urbanização mundializante, marcada pelo impacto maciço de certas atividades urbanas no sistema biofísico planetário, caracterizado em particular:

  • (i) pelo aquecimento global e seus múltiplos efeitos;

  • (ii) pelo esgotamento de recursos não renováveis e mesmo renováveis;

  • (iii) por uma rápida redução da biodiversidade em escala terrestre;

  • (iv) por uma modificação inédita do metabolismo de grandes sistemas bióticos e abióticos (solos, oceanos, água) devido às três primeiras evoluções e ao impacto da atividade humana em termos de poluentes e de difusão de moléculas químicas sintéticas.

A mudança global reorganiza tudo e também opera por sincronização e por sincronia; reorganiza espaços e tempos, e essa reorganização produz desigualdades sociais, injustiças e grandes tensões políticas. Mas também cria novas aspirações, habilidades, vontades de agir, proposições de coabitação e organização de espaços diferentes, novos imaginários do animal e do vegetal, novas culturas etc. Estamos, portanto, começando a identificar os contornos de uma situação em que duas forças sistemáticas se emparelham, alimentam, consolidam e contradizem - observamos relações que poderiam ser qualificadas como ago-antagonísticas entre a urbanização generalizada e a mudança global, e é isso que melhor caracteriza a especificidade do antropoceno.20 20 O ago-antagonismo é uma teoria original desenvolvida pelo endocrinologista e biólogo Elie Bernard Weil (1988), que postula que qualquer fenômeno emergente é constituído por um sistema que compreende pelo menos dois elementos que só podem cooperar se tiverem efeitos “opostos”. Para ele, um sistema é caracterizado por um par de forças que se opõem (antagonismo) e “cooperam” (agonismo). Tais sistemas são marcados pela hétero-organização, ou seja, sua dinâmica (que é “dissipativa”) não se reduz a uma única causalidade interna eficiente. Essa abordagem foi amplamente comentada na ciência de sistemas e me parece interessante para identificar essa relação entre urbanização e mudança global. Causada por um vírus cujo aparecimento é um indício da convulsão dos ecossistemas urbanizados e cuja disseminação foi autorizada pela configuração atual do sistema Mundo, a pandemia veio evidenciar que o duplo processo de mundialização urbana e mudança global atingiu um momento crítico, que abre a possibilidade de questionar a habitabilidade do planeta para os seres humanos e para todos os seres vivos que ele hospeda e com os quais mantemos, gostemos ou não, relações de interdependência.

As coisas assim postas, penso que um dos desafios da reflexão sobre o antropoceno é permitir reinscrever nosso presente numa história enriquecida pela antropização do planeta, da fabricação do ecúmeno, de lhe devolver profundidade e pluralidade enquanto foi muito tempo sobredeterminada pela visão “moderna”. Essa visão progressista, heroica, foi fundada no domínio da “natureza”, apoiada por engenharia ad hoc e ciências cada vez mais convertidas ao utilitarismo à medida que as sociedades ocidentais afirmavam seu (tardio) império. Mas, precisamente, as novas histórias conectadas nos lembram hoje até que ponto a visão teleológica de nossa ocupação planetária pelas potências europeias e depois pelos EUA mutila nosso conhecimento e nos fez esquecer outras experiências habitacionais. Aquelas dos primeiros povos, claro, mas não só. Também aquelas de outras áreas culturais, cuja complexidade foi esquecida, como mostram, por exemplo, os trabalhos de Romain Bertrand sobre o espaço indonésio. Seu livro recente, Qui à fait le tour de quoi? L’affaire Magellan, mergulha-nos num mundo insular que, ao ser abordado pela expedição de Franco de Magalhães, revela-se intensamente interconectado, ligado, entrecruzado por rotas comerciais seculares, que não esperou que a Europa se organizasse e desenvolvesse culturas materiais ricas e sutis e cosmologias, cosmogonias e organizações políticas que não eram menores (Bertrand, 2020BERTRAND, R. Qui a fait le tour de quoi? L’affaire Magellan. Lagrasse, FR: Verdier, 2020.). E o mesmo poderia ser dito de tantas áreas extraocidentais, que oferecem outros caminhos em termos de definição das relações entre os humanos e seu “meio ambiente” (que, na verdade, não nos rodeia apenas porque nós, humanos, também passamos por aquilo de que é feito), diferente em todo o caso do que o imperialismo europeu e depois estadunidense impôs recentemente como único modelo possível.

Se esta pandemia de fato confirma, a sua maneira, que entramos definitivamente no antropoceno - não há retorno possível -, não deveria ela nos encorajar a reconhecer plenamente a multiplicidade das histórias da aventura planetária da espécie humana, a variedade de economias relacionais que podem ser vislumbradas com não humanos vivos e não vivos, portanto, até mesmo para dar novamente a possibilidade de conceber vários cenários possíveis para o futuro? Vários cenários que não seriam tão competitivos e, melhor ainda, sincronizáveis e sincronicamente conciliáveis, no sentido de que aceitaríamos que o Mundo não funcionasse segundo um único padrão. Podemos aceitar, por opção política da sociedade mundial, que coexistam pacificamente várias imaginações instituintes da coabitação? Podemos escolher compor um Mundo “reconciliado” com os não humanos ao mesmo tempo que com seções inteiras de sua própria história, e um Mundo de pluralidades? A experiência de vida e pensamento in vivo em escala 1 da pandemia oferece uma oportunidade real de nos engajarmos nessa reflexão.

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  • 1
    Traduzido a partir do original inédito de Michel Lussault.
  • 2
    Como define o autor em outra obra, actante é um termo geral que “designa uma realidade social qualquer (não necessariamente uma pessoa) dotada de uma capacidade de contribuir à organização e à dinâmica de uma ação individual e/ou coletiva. Resumindo, toda entidade que é definível e distinguível, que é ativa em um processo social, que opera atos (LUSSAULT, 2009LUSSAULT, M. L’homme spatial. Paris: Seuil , 2009., p. 149). [N.T.]
  • 3
    Ver, por exemplo, o conhecido livro de Peter Gould, The Slow Plague: a geography of the AIDS pandemic, Oxford, Blackwell Publishers, 1993.
  • 4
    Este texto retoma algumas das análises desenvolvidas em Chronique de Géo’virale, Lyon, 205, éditions, 2020.
  • 5
    Aqui, deve-se compreender a palavra num sentido inspirado (livremente!) da linguística. Nesta disciplina, de forma muito esquemática, parte dos especialistas consideram que os enunciados produzidos pelos indivíduos em e para seus atos não dizem respeito apenas ao domínio do constativo, isto é, do modo que registra um estado do mundo, mas também àquela dos performativos, que acrescentam ao mundo um estado. Retomo essa ideia (encontrada, em particular, nos trabalhos de Catherine Kerbrat-Orechionni) e a transponho para considerar que o geógrafo deve estar atento aos efeitos sociais da intervenção de qualquer “operador espacial” (qualquer entidade que opera atos espaciais - é o caso dos patógenos), e assim, delimitar melhor sua “performance”. Certamente, o Sars-Cov-2 acrescento um estado inédito ao sistema-Mundo.
  • 6
    Cf. Brenner e Schmidt (2013BRENNER, N.; SCHMIDT, C. The “urban age” in question. Internationl Journal of Urban and Regional Research, v. 38, n. 3, p. 731-755, 2013. doi: https://doi.org/10.1111/1468-2427.12115.
    https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
    ) e Brenner (2018BRENNER, N. Debating planetary urbanization: for an engaged pluralism. Environment and Planning D - Society and Space, v. 36, n. 3, p. 570-590, 2018. doi: https://doi.org/10.1177%2F0263775818757510.
    https://doi.org/https://doi.org/10.1177%...
    ). Notemos que boa parte dos estudos urbanos francófonos identificou essa novidade (desse o fim dos anos 1960), apesar de ser de bom-tom subestimar sua contribuição, na medida em que não foi escrita em inglês.
  • 7
    Não é necessário aqui insistir longamente na anterioridade do pensamento do Mundo como sistema pela geografia francófona. Quanto a mim, inscrevo-me na filiação das abordagens emblematizadas nesse tempo pelo importante livro Le monde espace et système (Durand; Lévy; Retaillé, 1992DURAND, M. F.; LÉVY, J.; RETAILLÉ, D. Le monde espace et système. Paris: FNSP, 1992.).
  • 8
    Retomo esse termo de Pierre Veltz, que, desde os anos 1990, insistiu no processo de mundialização da indústria, ligado a essa capacidade de virar do avesso as geografias dos espaços produtivos. Cf., em particular, Veltz (2017VELTZ, P. La société hyper-industrielle: nouveau capitalisme productif. Paris: Seuil , 2017. (La République des idées.)).
  • 9
    Cf. Appert e Montes (2015APPERT, M.; MONTES, C. The metropolitan skyline: researching the vertical dimension in urban morphology. Urban Morphology, v. 18, n. 1, p. 75-77, 2014. Disponível em: Disponível em: http://www.urbanform.org/online_unlimited/pdf2014/201418_69.pdf . Acesso em: 5 out. 2021.
    http://www.urbanform.org/online_unlimite...
    ).
  • 10
    Cf. Lussault (2017LUSSAULT, M. Hyper-Lieux: nouvelles géographies de la mondialisation. Paris: Seuil, 2017.).
  • 11
    Cf. Lussault (2016LUSSAULT, M. L’imagination géographique de la “World City”. In: LUSSAULT, M.; MONGIN, O. (Dir.). Cultures et créations dans les métropoles-monde. Paris: Hermann, 2016. p. 23-45.).
  • 12
    É provável também que esta crise pandêmica revele até que ponto, nas sociedades contemporâneas mundializadas, a questão da “boa saúde” tenha se tornado a principal preocupação dos grupos sociais dominantes, em particular, e a morte apareça como uma perspectiva quase inaceitável.
  • 13
    Cf. notadamente Morizot (2018MORIZOT, B. Les diplomates, cohabiter avec les loups sur une nouvelle carte du vivant. Marseille, FR: Wild Project, 2018.).
  • 14
    Vale ressaltar o interesse das abordagens dos filósofos e antropólogos do meio-ambiente, que tentam analisar esses entrecruzamentos entre seres vivos. Permitam iniciar reflexões com as geografias que abordam a questão da habitação humanas e/ou aquela dos territórios e territorialidades. Cf., por exemplo, Desprest (2020DESPREST, V. Habiter en Oiseau. Arles, FR: Actes Sud, 2020.) ou Tsing (2017TSING, A. L. Le champignon de la fin du monde: sur la possibilité de vie dans les ruines du capitalisme. Paris: Découverte, 2017. (Tradução de The Mushroom at the End of the World, 2015.)).
  • 15
    Para uma apresentação mais precisa de hiperespacialidade e hiperescalaridade, cf. Lussault (2017LUSSAULT, M. Hyper-Lieux: nouvelles géographies de la mondialisation. Paris: Seuil, 2017.).
  • 16
    Cf. Beaude (2018BEAUDE, B. Synchorisations réticulaires. In: SCHAEFER, V. (Dir.). Temps et temporalités du Web. Paris: Presses Universitaires de Paris Ouest, 2018. p. 28-52.).
  • 17
    Cf., por exemplo, a reação do famoso jogador de basquete da NBA Kareem Abdu-Jabbar no Los Angeles Times, em 30 de maio 2020: “Não entende os protestos? O que você está vendo são pessoas empurradas para o limite”. Disponível em: https://www.latimes.com/opinion/story/2020-0530/dont-understand-the-protests-what-youre-seeing-is-people pushed-to-the-edge. Acesso em: 5 out. 2020.
  • 18
    Traduzo a palavra preparedness, que está no cerne dos estudos anglófonos que se dedicam a como podemos melhorar a forma de enfrentar catástrofes (“naturais”, de saúde e/ou tecnológicas) em determinada sociedade. Essa abordagem é muito diferente da prevenção, que é promovida em particular pela teoria do risco. Cf. principalmente Lakoff (2006LAKOFF, A. Preparing for the next Emergency. Public Culture, n. 19, 2006. Trad. francesa: Jusqu’où sommes-nous prêts? Esprit, p, 104-111, 2008.), que distingue prevenção, precaução e preparação tratando-as como diferentes “estilos de raciocínio”.
  • 19
    O autor parece se referir a um programa de comédia da BBC que zombava dos canais 24 horas por dia. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Broken_News. Acesso em: 5 out. 2020. [N.T.]
  • 20
    O ago-antagonismo é uma teoria original desenvolvida pelo endocrinologista e biólogo Elie Bernard Weil (1988WEIL, E.-B. Précis de Systémique Ago-Antagoniste Introduction aux stratégies bilatérales. Paris: Interdisciplinaire, 1988.), que postula que qualquer fenômeno emergente é constituído por um sistema que compreende pelo menos dois elementos que só podem cooperar se tiverem efeitos “opostos”. Para ele, um sistema é caracterizado por um par de forças que se opõem (antagonismo) e “cooperam” (agonismo). Tais sistemas são marcados pela hétero-organização, ou seja, sua dinâmica (que é “dissipativa”) não se reduz a uma única causalidade interna eficiente. Essa abordagem foi amplamente comentada na ciência de sistemas e me parece interessante para identificar essa relação entre urbanização e mudança global.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2021
  • Aceito
    18 Set 2021
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