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Mídia–luz: dispositivos crepusculares numa sociedade diáfana1 1 Este estudo é um desenvolvimento do artigo “Arte-luz: uma introdução”, apresentado em sessão plenária no congresso internacional comunicação e luz (Braga – Portugal, 2015), no âmbito das celebrações promovidas pela UNESCO em 2015 Ano Internacional da Luz.

Crepuscular devices in a diaphanous society

Resumo

Partindo do pressuposto de que “cada época está imersa em uma determinada iluminação diurna ou noturna” (Benjamin, 2009), qual a iluminação que melhor caracteriza a nossa época? Ocuparão os dispositivos luminosos, que nos acompanham e medeiam grande parte das nossas atividades, o lugar da antiga fogueira, à volta da qual as pessoas usufruíam de calor, comunhão e luz? A resposta a essas questões levou-nos a estudar a noite e a evolução dos dispositivos de iluminação e a procurar compreender a relação entre a sociedade da produção e do cansaço e a iluminação que melhor define a nossa época.

Palavras-chave
crepúsculo; mídias luminosas; sociedade do cansaço; sociedade transparente

Abstract

Assuming that “each epoch is immersed in a certain day or night illumination” (Benjamin, 2009), what is the lighting that best characterizes our time? Will luminous devices, that accompany us and mediate a large part of our activities, occupy the place of the old fire, around which people enjoyed heat, communion and light? The answer to these questions led us to study the night and the evolution of lighting devices, and to try to understand the relation between production and tiredness society, with the illumination that best defines our epoch.

Keywords
twilight; luminous media; society of fatigue; transparent society

Cada época histórica está imersa em uma determinada iluminação diurna ou noturna.

Walter Benjamin, Passagens

Introdução

Partindo do pressuposto de que “cada época está imersa em uma determinada iluminação diurna ou noturna” (BENJAMIN, 2009_____. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG. São Paulo: Editora Oficial Estado de São Paulo, 2009.), qual a iluminação que melhor caracteriza a nossa época? Nos nossos dias, para além da iluminação artificial, estamos rodeados de dispositivos mediáticos, móveis, ubíquos e luminosos, que nos acompanham nas mais variadas tarefas, diurnas e noturnas – caminhamos de auriculares nos ouvidos e microfone na boca; dedilhamos mensagens profissionais e pessoais durante todo o dia; acendemos a televisão como quem acende uma companhia, e estamos constantemente a verificar se a internet não falhou. Ocuparão esses dispositivos, que medeiam grande parte das nossas atividades, o lugar da antiga fogueira, à volta da qual as pessoas usufruíam de calor, comunhão e luz? A resposta a estas questões levou-nos a estudar a noite e a evolução dos dispositivos de iluminação que foram gradualmente habitando tanto a noite como o dia, tornando-os cada vez mais próximos e semelhantes.

Assim, num primeiro ponto, intitulado “Até ao fim da noite”, abordamos a noite, na sua aceção literal e figurativa. No segundo momento, intitulado, “Da escuridão da noite à cidade da luz”, analisamos a evolução da luz e dos dispositivos luminosos, das suas origens até à luz elétrica. Num terceiro momento, intitulado “Da revolução elétrica à extinção da noite”, estudamos o impacto da revolução da luz elétrica. Por último, no ponto intitulado “Dispositivos crepusculares numa sociedade luminosa”, mergulhamos no nosso objetivo primeiro para responder à questão “Qual o papel dos dispositivos luminosos na atual sociedade luminosa?”. Por outras palavras, o que procuramos saber é “que dispositivos são esses?” e “como funcionam?”.

Esperamos com esta reflexão contribuir para alargar o conceito de “arte-luz” introduzido em Para uma Semiótica da Luz (2015), para “mídia-arte-luz” e, nesse sentido, promover a pesquisa no âmbito dos media-arte digitais. Esperamos dessa forma contribuir para o desenvolvimento da investigação científica em Ciências da Comunicação, em particular, no âmbito da Semiótica da Cultura.

Até ao fim da noite

Nos primórdios da Humanidade, apenas o dia e a noite funcionavam como dispositivos para “acender e apagar” o dia e, alternadamente, “acender e apagar” a noite. Apenas a lua e as estrelas podiam clarear um pouco a escuridão da noite, assim como as nuvens carregadas e o mau tempo podiam escurecer o dia. Assim, é possível que a redução crescente dos dias, à medida que se aproximava o solstício de Inverno, tenha inspirado o temor da extinção do sol, e este esteja por detrás das inúmeras festas e festivais de luz que se celebram até aos dias de hoje2 2 Entre as festas da luz pagãs de origem celta, a festa Sambaim festeja-se no primeiro dia de Inverno do calendário celta; Yule, no Solstício de Inverno e Imbolc, no primeiro dia da Primavera. Entre as apropriações cristãs de homenagem à luz, destacamos o “Natal”, adaptado a partir do “Dia do Nascimento do Sol Invictus” (festa oficial no final do Império Romano); o dia da “Candelária”, na Irlanda e o dia da “Santa Lucia”, na Suécia e na Noruega. Fora da Europa, continuam a festejar-se o Hanukkah, em Jerusalém, Yalda, na Pérsia, e Diwalin, o Festival Hindu das Luzes, na Índia. . Da mesma forma, é possível que o temor da extinção do sol esteja relacionado com as numerosas práticas ligadas ao sol e ao fogo3 3 Segundo o Dicionário dos símbolos (CIRLOT, 2000, p. 318), um dos conceitos do simbolismo da roda mais generalizados na Antiguidade consiste na interpretação do sol como roda. Tudo indica que desde a Idade do Bronze que existia no Norte da Europa um mito do cavalo do Sol criado para reproduzir o movimento do astro. Não obstante algumas dissidências entre o disco (imóvel) e a roda (giratória), o disco/roda é um símbolo muito difundido e com grande aplicação na arquitetura e na arte ornamental como emblema solar. Da semiótica da roda à sua conversão em carro ou barco de duas ou mais rodas, vai apenas um passo. , que se conservam nas tradições populares, mais ou menos integradas noutros sistemas religiosos.

Nos primórdios da Humanidade, a sobrevivência do Homem dependia da posse do fogo, tanto quanto hoje dependemos da energia elétrica para termos um abrigo com iluminação, provisão de alimentos confecionados, aquecimento, meios de comunicação e proteção contra inimigos e ladrões. Enquanto não dominou a criação do fogo, o fogo permaneceu para o Homem primitivo um objeto de grande mistério. O fogo tinha que ser roubado à natureza, bem guardado e protegido do vento, da chuva e da cobiça de tribos rivais para se manter vivo e poder ser reutilizado. A tribo que possuísse o fogo possuía o símbolo do poder e da vida, pois possuía o mais importante meio de sobrevivência4 4 Baseado no filme Quest for fire (trad. Guerra do fogo), realizado por Jean-Jacques Annaud, Canada, 1991. . Por essa razão, não obstante os perigos que lhe estavam associados, o fogo assume tão grande importância na história da cultura ocidental.

[…] O valor aqui a conquistar é a luz. A luz é então uma supervalorização do fogo. É uma supervalorização já que ela dá sentido e valor a fatos que para nós, agora, são insignificantes. A iluminação é realmente uma conquista

(BACHELARD, 1989BACHELARD, G. A chama de uma vela. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989., p. 33-34).

Assim, o homem da Idade Média, sujeito à precariedade da candeia e do lampião, mal o dia se punha, via-se imerso num mundo de sombras vacilantes. Como salienta Pedro Miguel Frade (1987, pp. 2-3)FRADE, P. M. "Obscuridades e paixões, paixões do obscuro", in Revista de Comunicação e Linguagens: As Paixões, n° 5, Novembro de 1987, Universidade Nova de Lisboa: Editora Afrontamento, 1987., para o homem medieval, sujeito ao “escurecer do mundo” e ao “devir-espectro” dos homens e das coisas, a noite não podia deixar de ser uma terrível potência da natureza, comparável à pior das intempéries. A única forma de a superar era refugiando-se no interior de um lugar seguro. A ameaçadora escuridão da noite e o encerramento de cada um em sua casa ao cair da noite levava à desarticulação da cidade numa estranha gregariedade de clausura e medo.

O pavor da noite na Idade Média, para além da própria escuridão em si, era também alimentado pela crença de que a ausência da luz libertava, assim que eram inibidas as aparências visíveis, a monstruosidade escondida no mundo, associando-se às potências devastadoras do reino das trevas. Segundo Lucia Corrain (1996, p. 23)CORRAIN, L. Semiotica dell'invisibile: il quadro a lume di note. Bologna: Progetto Leonardo Bologna, 1996., o tema da luz como salvação e das trevas como condenação (no sentido de “condenação ao inferno” ou “castigo eterno”) tem sido tratado por diversos estudiosos. Por esse motivo, a demonologia cristã estava ligada à escuridão, tanto quanto a imagem de Deus era resplandecente de brancura e luz. A equivalência entre as trevas e o mal do imaginário medieval torna-se num valor simbólico tão forte para a nossa cultura, que este regressa ciclicamente nas mais diversas fantasmagorias.

O próprio culto do sol, assimilado à metáfora do fogo inteligente do mito de Prometeu, acaba por se transformar, no mundo greco-romano e, em particular, a partir da Alegoria da Caverna de Platão, de manifestação do sagrado em ideia – a mais valorizada construção filosófica da Antiguidade. Essa associação elaborada pela cultura grega e sustentada por toda a modernidade, entre a metáfora da ”luz” e o conceito de “ideia”, culminará no século XVIII numa nova alegoria – a alegoria da razão. Insurgindo-se contra todo o princípio teocêntrico associado à superstição e à tirania da religião instituída, a filosofia do espírito das “luzes” instaurará o primado da razão e do conhecimento sobre o instinto e as emoções.

Assim desvalorizou a nossa cultura a escuridão da noite, como se nela se concentrasse o breu do mundo, ou a origem de todos os males. Como se, quando sujeito à privação da visão, o homem devesse, a toda a força, ver na noite que nada vê, uma janela de terror (FRADE, 1987FRADE, P. M. "Obscuridades e paixões, paixões do obscuro", in Revista de Comunicação e Linguagens: As Paixões, n° 5, Novembro de 1987, Universidade Nova de Lisboa: Editora Afrontamento, 1987., p. 1). Porém, a noite é também o lugar das volúpias da intimidade, onde os laços se criam na proteção do lar, e é também o lugar da intimidade mística, de toda a simbologia da intimidade, e do imaginário em geral, como aprofunda Gilbert Durand (1989, p. 163-192)DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Lisboa: Editorial Presença, 1989..

Com efeito, a obscuridade não se resume à ausência de luz ou à constatação da sua falta, a obscuridade não é apenas o silêncio da luz. Para o “psiquismo do claro-escuro”, na expressão de Bachelard (1989), a negatividade da sombra não é desprovida de fundamento: a obscuridade e a sombra são os lugares onde despertam os fantasmas e os medos. Se a obscuridade designa grosso modo o polo oposto da luminosidade física, percetível, as trevas vão bem mais longe, implicando sempre algum tipo de atividade maligna e aplicando-se tanto ao inferno do Além como ao inferno psíquico do aquém. Certamente, o homem tivera consciência deste “claro-escuro [tenebroso] da consciência” (BACHELARD, 1989BACHELARD, G. A chama de uma vela. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.), muito antes da conquista da noite. Muito depois dela, séculos e séculos mais tarde, essa continua a ser a obscuridade mais impenetrável para o Homem contemporâneo, onde a noite parece não ter fim.

Da escuridão da noite à cidade luz

Numa nota de Walter Benjamin, de 1857, pode ficar-se com uma pequena ideia de como era Paris antes de exibir a iluminação noturna que lhe conferira o título e a fama de “cidade da luz5 5 Segundo Blüm & Lippincott (2000, p. 16), existe um certo equívoco no estereótipo de Paris como capital do século XIX e “cidade da luz”, título que só se aplica para os últimos trinta anos do século. Na realidade, a maior parte da tecnologia inovadora relacionada com a luz foi desenvolvida fora de França e as tecnologias de iluminação modernas popularizaram-se muito mais rapidamente noutras capitais, como Londres e Berlim, do que em Paris. :

A verdadeira Paris é naturalmente uma cidade escura, lamacenta, malcheirosa, confinada em suas ruas estreitas…, um formigueiro de becos, de ruas sem saída, de alamedas misteriosas, de labirintos que levam você à casa do diabo; uma cidade em que os tetos pontiagudos de casas sombrias se reúnem perto das nuvens, disputando com você o pouco de azul que o céu nórdico dá de esmola à grande capital… A verdadeira Paris é cheia de pátios de milagres, dormitórios a três centavos por noite, de seres inimagináveis e fantasmagorias humanas… Ali, numa nuvem de vapor de amoníaco… e camas que foram arrumadas desde a criação do mundo, repousam lado a lado centenas e milhares de saltimbancos, vendedores de fósforos, tocadores de acordeão, corcundas, cegos, mancos, anões e aleijados… […]

(BENJAMIN, 2009_____. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG. São Paulo: Editora Oficial Estado de São Paulo, 2009., p. 564-565).

A escuridão de Paris ia muito além da sua mera conotação física. Uma escuridão tenebrosa habitava na miséria, na sujidade, na promiscuidade, na violência e nos mais variados infortúnios daqueles “seres inimagináveis” – os “saltimbancos, vendedores de fósforos, tocadores de acordeão, corcundas, cegos, mancos, anões e aleijados, homens com o nariz devorado em brigas, homens-borracha, palhaços envelhecidos…” – que repousavam lado a lado, em “camas que foram arrumadas desde a criação do mundo”.

Não obstante a escuridão entorno do tecido humano mais desfavorecido da cidade, os novos métodos de produção de luz e de distribuição de combustível acabariam de vez com o conceito de noite associado ao isolamento, à reclusão obrigatória e ao medo. Da invenção da lâmpada a óleo de Argand (c. 1783) à introdução da luz a gás (c. 1800) e à eletricidade (c. 1880), a noite foi-se tornando, gradualmente, mais luminosa (BLÜM & LIPPINCOTT, 2000BLÜM, A. & LIPPINCOTT, L. Light: the industrial age 1750-1900: art e science, technology e society,. London: Thames & Hudson, 2000., p. 26).

A introdução do primeiro método centralizado de iluminação pública – a luz a gás – enfrentou uma grande resistência da parte das populações, em virtude do medo dos perigos do gás, mas também do excesso de brilho da luz (tão escarça, comparada com os dias de hoje), sendo necessária uma autêntica revolução cultural das mentalidades em prol da sua aceitação. A iluminação elétrica limitou-se a ter que resolver problemas técnicos e comerciais. Na segunda metade do século XIX, a luz parecia estar simultaneamente por todo o lado, e em quantidades imensuráveis (BLÜM & LIPPINCOTT, 2000BLÜM, A. & LIPPINCOTT, L. Light: the industrial age 1750-1900: art e science, technology e society,. London: Thames & Hudson, 2000., p. 27-28).

Essa subordinação da noite ao tempo iluminado transformou para sempre a história da vida privada, laboral e social, alterando, de uma forma radical e irreversível, os nossos ritmos sensoriais e alargando a nossa perceção da existência. Quando Benjamin critica a ideologia do progresso, salienta que essa já estava inscrita na Aufklärung, com a sua metáfora literal da luz, total e totalizadora. Não se trata somente de uma metáfora cuja precedência é a razão emancipadora de libertação cultural e política, mas de uma luz plena, que visa a intensificação do trabalho6 6 Segundo fontes referidas por Matos (2009, p. 1133), trabalhar antes do alvorecer ou depois do pôr-do-sol era considerado imoral. . Com a iluminação elétrica moderna, o dia iluminado passará a ter vinte e quatro horas, provocando, pela primeira vez, o impacto existencial da atividade sem tréguas (MATOS, 2009MATOS, O. Aufklãrung na Metrópole: Paris e a Via Láctea. In: Walter Benjamin Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Editora Oficial, 2009., p. 1133).

Nos últimos trinta anos do século XIX, Paris exibe uma iluminação noturna que lhe confere o título e a fama de “cidade da luz”7 7 Em muitas civilizações, os mitos correspondem a necessidades humanas essenciais. Na primeira metade do século XIX, assim que a cidade de Paris se transformou num centro das atenções e se exaltaram os ânimos, Paris transforma-se num mito moderno (CAILLOIS, 1938, p. 113-115). . Numa nota de 1910, Benjamin (2009, p. 606)_____. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG. São Paulo: Editora Oficial Estado de São Paulo, 2009. escreve: “A iluminação das ruas, durante o mesmo lapso de tempo, foi mais do que duplicada; o gás substituiu o óleo; novas lâmpadas tomaram o lugar dos antigos aparelhos, e a iluminação permanente foi substituída pela iluminação intermitente”. Mas a cidade da luz é também a cidade dos espelhos, que captam o espaço exterior e refletem-no no interior, alargando-o e funcionando como recetores de diversos mitos. “O espaço empresta o seu eco ao sussurro dos olhares”. “A arte da aparência ofuscante conquista aqui a perfeição” (BENJAMIN, 2009_____. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG. São Paulo: Editora Oficial Estado de São Paulo, 2009., p. 579, 583).

Como explica Olgária Matos (2009, p. 1123, 1128)_____. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG. São Paulo: Editora Oficial Estado de São Paulo, 2009., o interesse de Benjamin pela luz estava associado à sua pesquisa dos espaços fantasmáticos de Paris. Centrando a modernidade no espetáculo, como se a metrópole fosse o sucedâneo do teatrum mundi do drama barroco – a herança estoica do “grande teatro do mundo” – as passagens e as arcadas assumem o papel de templos de consumo, catedrais profanas onde se instalam as exposições universais e a produção mercantil. Com efeito, do fogo-de-artifício à lanterna mágica e ao cinema, até às recentes manifestações públicas de luz e som, a história do espetáculo e das novas tecnologias ao serviço do entretenimento são inseparáveis da história da luz (VIRILIO, 1993VIRILIO, P. A inércia polar. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993., p. 239).

Para Benjamin (2009, p. 574-575)_____. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG. São Paulo: Editora Oficial Estado de São Paulo, 2009., o interesse dos panoramas consistia em ver a cidade dentro de um espaço interior, a partir de uma espécie de casa sem janelas. Por sua vez, os dioramas, aos quais Benjamin se refere como “as células luminosas mais íntimas da cidade-luz”, substituem a lanterna mágica enquanto percursor lúdico do cinema, uma aceleração do decorrer do tempo, “espirituosa, dançante, um tanto maliciosa”. As variações de luz que transcorrem ao longo de um dia inteiro transcorrem nos dioramas em apenas quinze minutos. (BENJAMIN, 2009_____. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG. São Paulo: Editora Oficial Estado de São Paulo, 2009., p. 571).

A subordinação da noite à cultura da luz e à atividade sem tréguas teve ainda este efeito: privou os homens da lenta metamorfose do dia em noite e vice-versa, para além de fazer desaparecer as estrelas do céu. Como escreve Baudelaire, “a cidade grande ignora os verdadeiros crepúsculos” (MATOS, 2009MATOS, O. Aufklãrung na Metrópole: Paris e a Via Láctea. In: Walter Benjamin Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Editora Oficial, 2009., p. 1133).

Da revolução elétrica à extinção da noite

Para Marshall McLuhan (2008, p. 21-34), a luz elétrica não é apenas um meio de iluminação entre outros, mas a eletrificação tornou-se no mais revolucionário, radical, ubíquo e descentralizado meio de comunicação. Embora diferentes na sua utilização, tanto a luz como a energia elétrica eliminam fatores temporais e espaciais no âmbito da associação humana, acabando com a sequência e fazendo com que tudo ocorra instantânea e simultaneamente. A luz elétrica não apenas estendeu o dia iluminado, mas, tal como Benjamin havia previsto para a iluminação a gás, prolongou as horas de trabalho dos operários, multiplicou os espetáculos de entretenimento, interferiu no ensino, na ciência, no policiamento, na vida privada e na arte, onde a fotografia e o cinema assumem um papel preponderante.

Segundo o autor canadiano, a velocidade elétrica fundiu, em pouco tempo, as culturas de todo o mundo: as culturas pré-históricas com os detritos do comércio industrial, o letrado com o analfabeto. Mas no nosso meio social alfabetizado, não estamos melhor preparados para enfrentar as mudanças introduzidas pela cibercultura do que o nativo do Gana para lidar com a alfabetização, que o arranca ao seu mundo tribal e coletivo e o mergulha no isolamento individual. Estamos tão entorpecidos pelo nosso mundo novo como o nativo pela nossa cultura letrada e mecânica. Colapsos mentais de vários níveis de intensidade são uma das consequências habituais do desenraizamento e da imersão em novos géneros, infindáveis, de informação.

Na obra que utilizamos aqui como referência, McLuhan designou os meios de comunicação como “extensões” do sensorium, porém, não deixou de salientar (no capítulo 4, p. 55-61) que essas extensões constituem, ao mesmo tempo, “amputações” das faculdades humanas que estende. Com o aparecimento da tecnologia elétrica, o homem criou fora de si mesmo um modelo vivo do sistema nervoso central e, simultaneamente, uma amputação do próprio sistema nervoso sensorial. Se o nosso sistema nervoso central se expande e se expõe, nós temos de o entorpecer; doutro modo, pereceríamos. Daí que a era dos meios elétricos seja também a era da ansiedade, da inconsciência e da apatia, mas, também, a era da consciência a respeito do inconsciente.

Segundo McLuhan (2008, p. 55-56)McLUHAN, M. Compreender os meios de comunicação: extensões do homem, Lisboa: Relógio D'Água, 2008., o mito grego de Narciso (do grego narcosis, “entorpecimento”), tal como o nome indica, está diretamente relacionado com a experiência de uma nova extensão de nós mesmos. O jovem Narciso, ao tomar o seu reflexo na água por outra pessoa, narcotiza a tal ponto, que as suas perceções o convertem num servomecanismo da sua própria imagem projetada. A jovem ninfa Eco ainda tenta conquistar o seu amor. Porém, Narciso está insensibilizado. Tinha-se adaptado a essa extensão de si mesmo, convertendo-se num sistema fechado. De acordo com a tese de McLuhan (2008, p. 183)McLUHAN, M. Compreender os meios de comunicação: extensões do homem, Lisboa: Relógio D'Água, 2008., pode dar-se o caso de as sucessivas mecanizações dos diversos órgãos físicos terem produzido uma experiência sensorial e social demasiado estimulante para que o sistema nervoso central a conseguisse suportar. Esta contínua integração de novas tecnologias no uso quotidiano produz em nós uma consciência narcísica subliminar e um entorpecimento, uma vez que a autoamputação impede o autorreconhecimento.

Por outro lado, como salienta o astrofísico português Raúl Cerveira Lima, no artigo “Deixem a noite ser noite”8 8 Artigo publicado no dia 1 de setembro de 2017, no Jornal Público. , graças à invasão da luz artificial e à iluminação massiva da noite, até nos lugares mais recônditos, com interferências notórias ao nível do metabolismo adaptativo dos seres e do desenvolvimento dos ecossistemas, o fenómeno crescente da “poluição luminosa” impede a contemplação do esplendor da noite.

Segundo António Guerreiro, no artigo “A tirania da luz”9 9 Artigo publicado no dia 8 de setembro de 2017, no Jornal Público, em comentário ao artigo citado. , estamos submetidos a uma tirania da luz, cuja explicação vai muito além da urbanização generalizada e da colonização tecnológica. Todo o pensamento ocidental é marcado pela relação fundamental entre a razão e a luz, com origem na razão crítica moderna, que remonta à metáfora da luz de origem platónica, o qual estabelece também o privilégio epistemológico concedido à visão enquanto critério de pensamento – o ocularcentrismo. “Impedir que a noite seja noite tem sido o desígnio alcançado com grande eficácia pelo capitalismo contemporâneo”, refere o autor. Jonathan Crary, no livro intitulado 24/7: late capitalism and the end of sleep, publicado em 2013, descreve este mundo em funcionamento vinte e quatro horas durante sete dias por semana, para que a produção e o consumo não parem; para conquistar o tempo inútil do sono e erradicar o sabbath. Como salienta António Guerreiro,

A extinção da noite é um fenómeno das grandes metrópoles, como Nova Iorque, difundido como uma tendência universal. […] a tirania da luz é uma necessidade básica da sociedade da atenção e da mobilização permanentes. O estado de vigilância e a exigência securitária impuseram-se como imperativos aos indivíduos e às instituições. E isso requer luz, cada vez mais luz. […]

(Jornal Público, 8 set. 2017, p. 31).

Dispositivos crepusculares numa sociedade diáfana sem luz

Segundo Manuel Castells (1999, p. 415-422)CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Terra e Paz, 1999., a televisão trouxe algo de fundamentalmente novo – o fim do sistema de comunicação dominado pela mente tipográfica – a Galáxia de Gutenberg10 10 O alfabeto foi a tecnologia conceitual que possibilitou o preenchimento da lacuna entre o discurso oral e o escrito, separando o que é falado de quem fala e criando o discurso conceitual. Ao estabelecer uma hierarquia social entre a cultura alfabetizada e a expressão audiovisual, a ordem alfabética relega o mundo dos sons e das imagens para os bastidores das artes, que lidam com o domínio privado das emoções, e para a liturgia, que assume o mesmo papel no mundo público. Pelo contrário, o sistema eletrónico de comunicação, caracterizado pela integração de texto, imagem e som; pela interação de espaços múltiplos e múltiplos tempos possíveis (diretos ou indiretos), muda de forma fundamental o caráter da comunicação e da cultura, que é, por definição, mediada pela comunicação (CASTELLS, 1999, p. 415-422). . Ao contrário da leitura e da escrita, o ato de ver televisão deixou de ser uma atividade exclusiva, para passar a ser uma atividade partilhada com o desempenho das tarefas domésticas, das refeições familiares e de inúmeras interações sociais. A partir da televisão, as mídias passaram a ser um elemento intrínseco nas nossas vidas: “passamos a viver com as mídias e pelas mídias”.

Para além de veicular a estimulação sensorial da realidade, a comunicação facilitada e o baixo esforço psicológico – a televisão é, antes de mais, um “dispositivo luminoso”, que bombardeia o espetador e o ambiente com impulsos luminosos e sonoros, como se estes ocupassem o lugar da tela do cinema. Como salienta McLuahn, “Com a televisão, o espetador é o ecrã”. O espetador é bombardeado com “uma luz que atravessa, em vez de iluminar”, que imbuem a sua pele-alma de pressentimentos inconscientes (MCLUHAN, 2008McLUHAN, M. Compreender os meios de comunicação: extensões do homem, Lisboa: Relógio D'Água, 2008., p. 315).

Segundo Lipovetsky & Serroy (2010, p. 9-15), o ecrã do cinema não é somente a invenção técnica, fundadora da sétima arte, mas é também o espaço mágico onde se projetaram os desejos e os sonhos de uma boa parte da humanidade do século XX. Na segunda metade do século, outros ecrãs passarão a refletir novos desejos/sonhos: a televisão, o computador, as consolas dos jogos de vídeo, os tablets, os telemóveis e os GPS. Segundo os autores (LIPOVETSKY & SERROY, 2010LIPOVETSKY, J.; SERROY, J. [2007] O ecrã global. Cultura mediática e cinema na era hipermoderna, Lisboa: Edições 70, 2010., p. 25-27), essa proliferação dos ecrãs (“ecranosfera”) interfere no olhar hipermoderno, como uma lente inconsciente, conferindo-nos uma visão ecrãnica ou cinematográfica do mundo, feita de espetacularidade, celebridades e entretenimento.

Para o nosso estudo, é particularmente relevante a proliferação dos ecrãs plasma, pendurados nas paredes como quadros, nos halls das empresas, nos bares e restaurantes, nas salas de jogos, nos ginásios, estabelecimentos de moda e luxo, e nas próprias salas de cinema, criando uma espécie de fundo visual ecrãnico. Feitos, não para serem vistos, mas para criarem um ambiente visual (à semelhança dos fundos sonoros), a presença destes ecrãs garante a dimensão mediatizada da realidade, substituindo, de forma fragmentada, a simples materialidade da parede por uma superfície de imagens multiplicadas – os seus múltiplos reflexos, em tudo semelhantes aos espelhos da cidade luz de Walter Benjamin: “Cada época histórica está imersa em uma determinada iluminação diurna ou noturna. (BENJAMIN, 2009_____. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG. São Paulo: Editora Oficial Estado de São Paulo, 2009., s/p).

Segundo Byung-Chul Han (2014a, p. 59-60)HAN, B. A sociedade do cansaço. Lisboa: Relógio d'Água, 2014a., a luz metafísica do pensamento ocidental brota de uma fonte original forte – “o meio das instâncias que obrigam, prometem ou proíbem, como Deus ou a razão”. Contrapondo-se a qualquer tensão metafísica, a transparência é desprovida de toda e qualquer transcendência. A transparência é desprovida de uma fonte de luz que gera hierarquias e distinções, orientações e sentidos. “A transparência não é uma luz”, mas “uma radiação sem luz”, “que em vez de esclarecer, tudo penetra e torna transparente”. Não obstante imersa numa iluminação artificial diurna, a sociedade atual não é luminosa, mas diáfana e sem luz.

A hiperinformação da nossa sociedade, segundo o autor (HAN, 2014aHAN, B. A sociedade do cansaço. Lisboa: Relógio d'Água, 2014a., p. 62), um fenómeno da transparência, “por si só, não esclarece o mundo. A transparência tão-pouco assegura clarividência. A massa de informação não gera qualquer verdade. Quanto maior é a informação que se mobiliza, mais intrincado se torna o mundo. A hiperinformação e a hipercomunicação não injetam luz na obscuridade”.

Quando Benjamin (1992, p. 21)BENJAMIN, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Lisboa: Relógio d'Água, 1992. estabelece a diferença entre o valor de culto e o valor de exposição, prevê uma inversão fundamental de valores, inteiramente cumprida no nosso tempo. Para as coisas ao serviço do culto é mais importante ser do que ser visto. O valor de culto depende da existência e não depende da exposição. Na sociedade transparente, o valor existencial desaparece em favor da exposição, uma vez que “a coação da exposição, tudo entrega à visibilidade” (HAN, 2014aHAN, B. A sociedade do cansaço. Lisboa: Relógio d'Água, 2014a., p. 21-22). A sociedade contemporânea não se tornou, segundo a hipótese de Gianni Vattimo (2000)VATTIMO, G. La società transparente. Milano: Garzanti, 2000., numa “sociedade transparente”, onde graças ao advento da sociedade de comunicação todos teriam uma voz, mas seguindo a expressão de Paul Virilio (1993, p. 20-21), a sociedade atual é “trans-aparente”, onde todos somos pressionados a aparecer, como se estivéssemos condenados à condição de sermos vistos (como uma “imagem-eco”), para poder ser. Na consolidação da sociedade da informação e da imagem, reatualiza-se tanto o mito da ninfa Eco, condenada à condição da repetição (VIRILIO, 1993VIRILIO, P. A inércia polar. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993.; BAITELLO, 2014), como a variante do “cogito”, “vídeo, ergo sum”, e a versão ainda mais atual – “videor, ergo sum” – onde “videor” traduz a forma passiva de “ver”, “ser visto”, “aparentar”, “passar por”, “tornar-se imagem” (BAITELLO, 2014_____. A era da iconofagia. Reflexões sobre imagem, comunicação, mídia e cultura. São Paulo: Paulus, 2014., p. 28-29).

Quando passamos a ideia de que todas as janelas, por definição luminosas – da porta-janela ao ecrã digital –, são dispositivos luminosos que criam o dia, impedindo a noite de ser noite, estamos a transmitir um equívoco a vários níveis. Não obstante o progresso dos meios de iluminação e a inegável poluição luminosa, a noite não deixou de ser noite. Nas regiões onde o Inverno é particularmente rigoroso, a noite continua a ser um fardo pesado, que se estende por muitos meses, e onde qualquer raio de luz natural é raro e precioso. Por outro lado, os dispositivos luminosos não têm como propósito principal iluminar a vida durante a noite. A nossa vida é rodeada por eles durante todo o tempo – de dia, para quem vive de dia, e, de noite, para quem vive de noite.

“Deixem a noite ser noite” (LIMA, 2017LIMA, R. C. Deixem a noite ser noite. In: Jornal Público. Porto, 1° set. 2017.) significa algo mais e diferente da simples relação entre dia/noite e luz/escuridão. “Deixem a noite ser noite” significa: deixem-nos parar, para descansar, recolher ao lar, permanecer em família ou simplesmente ficar em silêncio, escondidos por breves momentos, da atividade incansável, sem tréguas.

Segundo Byung-Chul Han (2014b, p. 51-52)_____. A sociedade da transparência. Lisboa: Relógio d'Água, 2014b., enquanto sociedade ativa, a sociedade da produção evolui progressivamente para uma sociedade de doping. O ser humano, tratado como uma máquina de produção, tem de funcionar sem falhas ou interrupções e maximizar a sua produção. Como reverso dessa evolução, a sociedade da produção non stop produz um esgotamento e cansaço excessivo, “que se constitui como violência, pois destrói tudo o que possa haver em comum”, aniquilando qualquer proximidade e a própria linguagem. O cansaço da sociedade da produção é um cansaço individual, do tipo mudo, um cansaço que separa e isola, que desfigura o outro porque não é capaz de o ver, na expressão de Peter Hadke, um “cansaço alienante”.

“Comunicar significa criar um espaço/tempo comum e colocar-se dentro dele”. Mas “o excesso de luz provoca a cegueira para o crepúsculo” (BAITELLO, 2005BAITELLO, N., CONTRERA, M. S., MENEZES, J. E. Os meios da incomunicação. São Paulo: CISC; Annablume, 2005., p. 77). A transparência incapacita o homem para o olhar mútuo. “O crepúsculo é o útero dos vínculos”, esse lugar “entre”, onde o tempo se demora – aí onde dois universos se aproximam e se encontram num espaço/tempo comum. “A comunicação é/requer dedicação”. “A comunicação é amor” (BAITELLO, 2005BAITELLO, N., CONTRERA, M. S., MENEZES, J. E. Os meios da incomunicação. São Paulo: CISC; Annablume, 2005., p. 77).

O cansaço alienante da sociedade da produção, que separa e isola, impede qualquer aproximação ou vinculação. A este cansaço cego, surdo e mudo, Handke contrapõem um cansaço conciliador, inspirador e clarividente, fundamental para habilitar o homem para uma serenidade especial e, por isso mesmo, para uma visibilidade especial. Como escreve o autor, “O cansaço profundo afrouxa o espartilho da identidade. As coisas começam a cintilar, a bruxulear, a tremeluzir, e os seus contornos a esfumar-se” (HAN, 2014b_____. A sociedade da transparência. Lisboa: Relógio d'Água, 2014b., p. 54). É esse cansaço fundamental que permite o acesso a um tipo completamente diferente de atenção – o acesso às formas lentas e morosas. “Toda a forma é vagarosa”. “Toda a forma é volta e desvio”. Handke eleva inclusivamente o cansaço profundo a forma redentora e rejuvenescedora. “À mão que trabalha e agarra Handke contrapõe a mão que brinca”.

Byung-Chul Han (2014b, p. 55-56)_____. A sociedade da transparência. Lisboa: Relógio d'Água, 2014b. recorda-nos que o Sabat, que significa “suspensão de atividade”, é um dia liberto de qualquer finalidade ou preocupação – um dia de intervalo, de interlúdio, um dia “entre”. À luz da cultura do Velho Testamento, “sagrado” não é o dia da finalidade, mas sim o dia do descanso, em que tudo repousa e se demora – aí, onde é possível a empatia da comunhão.

Na sociedade de produção, sem descanso e sem luz, os dispositivos mediáticos, móveis, ubíquos e luminosos, assumem um papel fundamental enquanto “válvula de escape” da atividade de produção non stop. Nos dias de hoje, ao fim de uma jornada de trabalho, é nas mídias luminosas que muitas pessoas se refugiam para “desanuviar a cabeça”, procurando por entre os fluxos de informação mais ou menos despersonalizada e irrelevante das fontes mais díspares, a informação filtrada pelos seus interesses específicos, entre as comunidades que deles partilham. É também aí, à luz das mídias luminosas, que encontramos/comunicamos com alguns dos verdadeiros amigos (“a antiga fogueira, à volta da qual usufruíamos de comunhão e luz”), uma vez que a rede permite a reintegração dos vínculos dispersos pela globalização laboral. Reforçando os vínculos mais significativos, os dispositivos crepusculares brilham numa sociedade diáfana sem luz, onde o cansaço individual separa e isola.

Conclusões

[Até ao fim da noite] Nos primórdios da Humanidade, a relação da noite física com a noite psíquica era total: apenas o dia e a noite funcionavam como dispositivos para “acender e apagar” o dia e, alternadamente, “acender e apagar” a noite. Se a obscuridade constituía o polo oposto da luminosidade física, as trevas implicavam sempre algum tipo de atividade maligna, aplicando-se tanto ao inferno do Além como ao inferno psíquico do aquém. Por essa razão, a nossa cultura desvalorizou a escuridão da noite, como se nela se concentrasse o breu do mundo, ou a origem de todos os males.

[Da escuridão da noite à cidade luz] A subordinação da noite ao tempo iluminado, graças à introdução do primeiro método centralizado de iluminação pública, transformou para sempre a história da vida privada, laboral e social, alterando, de uma forma radical e irreversível, os nossos ritmos sensoriais e alargando a nossa perceção do mundo. Com a iluminação elétrica moderna, o dia iluminado passará a ter vinte e quatro horas, provocando, pela primeira vez, o impacto existencial da atividade sem tréguas.

[Da revolução elétrica à extinção da noite] A luz elétrica não apenas estendeu o dia iluminado, mas prolongou as horas de trabalho dos operários, multiplicou os espetáculos de entretenimento, interferiu no ensino, na ciência, no policiamento, na vida privada e na arte, onde a fotografia e o cinema assumem um papel preponderante. Por outro lado, graças à invasão da luz artificial e à iluminação massiva da noite, que vai muito além da urbanização generalizada e da colonização tecnológica, o fenómeno crescente da poluição luminosa impede a contemplação do esplendor da noite.

[Dispositivos crepusculares numa sociedade diáfana sem luz] Na sociedade de produção, em que o cansaço individual, alienante e mudo, separa e isola; na sociedade transparente da hiperinformação e da hipercomunicação, diáfana e sem luz, que, em vez de esclarecer, tudo atravessa e penetra, homogeneíza e nivela, os dispositivos luminosos assumem um papel fundamental enquanto “válvula de escape” da atividade non stop, mas também reforçando os vínculos mais significativos. Uma vez que a rede permite a criação e a reintegração dos vínculos dispersos pela globalização laboral, é à luz dos dispositivos crepusculares que encontramos alguns dos bons amigos e criamos novas afinidades eletivas – a antiga fogueira, à volta da qual usufruíamos de calor, comunhão e luz.

  • 1
    Este estudo é um desenvolvimento do artigo “Arte-luz: uma introdução”, apresentado em sessão plenária no congresso internacional comunicação e luz (Braga – Portugal, 2015), no âmbito das celebrações promovidas pela UNESCO em 2015 Ano Internacional da Luz.
  • 2
    Entre as festas da luz pagãs de origem celta, a festa Sambaim festeja-se no primeiro dia de Inverno do calendário celta; Yule, no Solstício de Inverno e Imbolc, no primeiro dia da Primavera. Entre as apropriações cristãs de homenagem à luz, destacamos o “Natal”, adaptado a partir do “Dia do Nascimento do Sol Invictus” (festa oficial no final do Império Romano); o dia da “Candelária”, na Irlanda e o dia da “Santa Lucia”, na Suécia e na Noruega. Fora da Europa, continuam a festejar-se o Hanukkah, em Jerusalém, Yalda, na Pérsia, e Diwalin, o Festival Hindu das Luzes, na Índia.
  • 3
    Segundo o Dicionário dos símbolos (CIRLOT, 2000, p. 318), um dos conceitos do simbolismo da roda mais generalizados na Antiguidade consiste na interpretação do sol como roda. Tudo indica que desde a Idade do Bronze que existia no Norte da Europa um mito do cavalo do Sol criado para reproduzir o movimento do astro. Não obstante algumas dissidências entre o disco (imóvel) e a roda (giratória), o disco/roda é um símbolo muito difundido e com grande aplicação na arquitetura e na arte ornamental como emblema solar. Da semiótica da roda à sua conversão em carro ou barco de duas ou mais rodas, vai apenas um passo.
  • 4
    Baseado no filme Quest for fire (trad. Guerra do fogo), realizado por Jean-Jacques Annaud, Canada, 1991ANNAUD, J-J. Quest for fire [Filme]. Trad. Guerra do Fogo, Canada: 1991..
  • 5
    Segundo Blüm & Lippincott (2000, p. 16)BLÜM, A. & LIPPINCOTT, L. Light: the industrial age 1750-1900: art e science, technology e society,. London: Thames & Hudson, 2000., existe um certo equívoco no estereótipo de Paris como capital do século XIX e “cidade da luz”, título que só se aplica para os últimos trinta anos do século. Na realidade, a maior parte da tecnologia inovadora relacionada com a luz foi desenvolvida fora de França e as tecnologias de iluminação modernas popularizaram-se muito mais rapidamente noutras capitais, como Londres e Berlim, do que em Paris.
  • 6
    Segundo fontes referidas por Matos (2009, p. 1133), trabalhar antes do alvorecer ou depois do pôr-do-sol era considerado imoral.
  • 7
    Em muitas civilizações, os mitos correspondem a necessidades humanas essenciais. Na primeira metade do século XIX, assim que a cidade de Paris se transformou num centro das atenções e se exaltaram os ânimos, Paris transforma-se num mito moderno (CAILLOIS, 1938CAILLOIS, R. O mito e homem. Lisboa: Edições 70, 1938., p. 113-115).
  • 8
    Artigo publicado no dia 1 de setembro de 2017, no Jornal Público.
  • 9
    Artigo publicado no dia 8 de setembro de 2017, no Jornal Público, em comentário ao artigo citado.
  • 10
    O alfabeto foi a tecnologia conceitual que possibilitou o preenchimento da lacuna entre o discurso oral e o escrito, separando o que é falado de quem fala e criando o discurso conceitual. Ao estabelecer uma hierarquia social entre a cultura alfabetizada e a expressão audiovisual, a ordem alfabética relega o mundo dos sons e das imagens para os bastidores das artes, que lidam com o domínio privado das emoções, e para a liturgia, que assume o mesmo papel no mundo público. Pelo contrário, o sistema eletrónico de comunicação, caracterizado pela integração de texto, imagem e som; pela interação de espaços múltiplos e múltiplos tempos possíveis (diretos ou indiretos), muda de forma fundamental o caráter da comunicação e da cultura, que é, por definição, mediada pela comunicação (CASTELLS, 1999CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Terra e Paz, 1999., p. 415-422).

Referências

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  • VIRILIO, P. A inércia polar. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1993.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Nov 2017
  • Aceito
    07 Jan 2018
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