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Realismo, linguagem e processos mentais: uma reconstrução crítica a partir da filosofia de G. Ryle

Realism, language, and mental processes: a critical reconstruction from the philosophy of G. Ryle

RESUMO

Este artigo pretende mostrar que os argumentos sustentados por Ryle podem ser uma postura crítica ao problema do realismo e dos processos mentais: primeiramente, porque o realismo, diferentemente de algumas teorias da mente contemporâneas, separa a vida mental das outras propriedades que compõem o mundo e, posteriormente, porque tal argumento precisaria explicar como tais propriedades podem instanciar um conteúdo que não seria parte de um sistema físico [como o cérebro]. Deste modo, argumenta-se que, a partir de Ryle, a interação dos processos mentais com a possibilidade da existência de objetos externos à consciência não depende de nenhuma arquitetura biológica, mas dos elementos semânticos que utilizamos cotidianamente para falar e dizer o mundo. Esta postura, por um lado, redesenha críticas à chamada doutrina oficial e, por outro, nutre uma parcela de argumentos realistas que deveriam ser atacados e dissolvidos pelas atuais teorias da mente.

Palavras-chave:
Realismo; linguagem; processos mentais; cognição; Ryle

ABSTRACT

The present paper aims at showing that the arguments defended by Ryle may be a critical stance to the problem of realism and mental processes: first, because realism, unlike some contemporary theories of mind, separates mental life from other properties that make up the world, and subsequently, because such argument would need to explain how such properties may instantiate a content that would not be part of a physical system [such as the brain]. Thus, this study argues that, based on Ryle, the interaction of mental processes with the possibility of existence of objects that are external to consciousness does not depend on any biological architecture, but on semantic elements used in everyday life to speak and refer to the world. On the one hand, this stance redraws criticisms to the so-called official doctrine, and on the other, nourishes a number of realistic arguments that should be attacked and dissolved by the current theories of mind.

Keywords:
Realism; language; mental processes; cognition; Ryle

Introdução

Putnam (1975PUTNAM, H. 1975. Mathematics, Matter and Method. Vol. 1. Cambridge, Cambridge University Press.) afirmou que o argumento positivo do realismo é que este é a única filosofia que não faz do sucesso da ciência um milagre afirmando, por isso, que as teses do realismo epistêmico são abertas aos testes empíricos: teorias científicas são aproximadamente verdadeiras. Porém, que tipo de variantes e questões envolvem o realismo e seus “ismos” as quais, consequentemente, permitem que o agente esteja confiante daquilo que acredita ser os graus de suas crenças, percepções e cognição? O problema parece envolver não apenas uma base metafísica, mas também a própria capacidade previsional e observacional dos modelos científicos propostos, especialmente, pelas ciências cognitivas e computacionais (incluindo, particularmente, a física e a química) a partir da década de 1960 sobre a natureza do mental (Gallagher, 2017GALLAGHER, S. 2017. Enactivist Interventions: Rethinking the Mind. Oxford, Oxford University Press.). Pretende-se, neste artigo, reconstruir alguns aportes epistemológicos do realismo encontrados na filosofia de G. Ryle para, posteriormente, mostrarmos que são tais posições que explicariam a relação entre cognição e linguagem (Laudan, 1981LAUDAN, L. 1981. A confutation of convergent realism. Philosophy of Science, 48(1): 19-49.; Massimi, 2016MASSIMI, M. 2016. Four kinds of perspectival of truth. Philosophy and Phenomenological Research, 96(2): 342-359.; Saatsi, 2017SAATSI, J. (Ed.). 2017. The Routledge Handbook of Scientific Realism. London, Routledge. ), em particular porque esta deveria abandonar a noção de verdade como correspondência.

Fenômenos mentais, em outras palavras, têm sido substituídos por perspectivas realistas, como descreve Giere (2006GIERE, R. N. 2006. Scientific Perspectivism. Chicago, University of Chicago Press.), embora estas compartilhem a tese de que a ciência é produto das interações e instituições sociais, sendo a mente um artefato independente do mundo. Ao contrário desta posição, sustentamos que, por um lado, segundo Ryle, a cognição não é um processo representacional que ocorre independente de outras práticas e que, por outro, a tese atrelada ao realismo - “a concepção segundo o qual as coisas tem uma maneira de ser que é logicamente independente de todas as representações humanas” (Searle, 1997SEARLE, J. 1997. La Construcción de la Realidad Social. Barcelona, Paidós., p. 164) - é uma posição insuficiente quando consideramos os argumentos do filósofo sobre a capacidade perceptiva e a ideia de representação do mundo externo. Assim, a dissolução entre matéria e consciência tem sido assumida como uma hipótese de leitura realista equivocada, assim como afirmou Skillen (1984SKILLEN, A. 1984. Mind and matter: a problem that refuses dissolution. Mind, XCIII(372): 514-526.), porque ao postular a independência de fenômenos ou propriedades externas não consegue lidar com o lapso entre a representação e sua ‘localização’ no mundo.

Uma primeira nota deve versar, preliminarmente, sobre o tipo de realismo que estamos querendo mostrar a partir da filosofia de Ryle. Chakravartty, em A Metaphysics for Scientific Realism: knowing the unobservable (2007CHAKRAVARTTY, A. 2007. A Metaphysics for Scientific Realism: Knowing the Unobservable. Cambridge, Cambridge University Press. ), por exemplo, descreve-o em três movimentos: na dimensão ontológica, a tese realista está comprometida com o mundo externo, isto é, com a existência de um mundo configurado independente de nossas mentes. A segunda, intitulada como dimensão semântica, alega que as teorias científicas devem ser interpretadas literalmente com os fatos descritos. Por isso, quando um termo captura qualquer informação não há espaço para outras “margens” além dos sujeitos cognoscentes, inexistindo, neste caso, dados inobserváveis que pudessem representar algo consistente externamente à própria teoria. E, por último, na dimensão epistemológica, na qual reivindica-se que uma teoria ou parte dela constitua algum tipo de conhecimento do mundo externo, embora aqui o enfoque seja a ideia de que a verdade é a melhor explicação para justificar o êxito da ciência. Como veremos, os argumentos de Ryle estariam concentrados particularmente na segunda dimensão.

A outra nota é que o trabalho de Ryle está discutindo, implicitamente, como podemos afirmar algo significativo do mundo independentemente de nossos padrões de individuação, uma vez que o conhecimento de sua estrutura seria absolutamente irrelevante para falarmos da vida mental. Por isso, mesmo que o mobiliário do mundo possua independência de nossos esquemas conceituais, a questão deve ser logicamente inversa, isto é, precisa abandonar uma taxonomia do conteúdo mental e, consequentemente, a ideia de uma correspondência direta com ele. Tais argumentos, como procuramos sustentar, constituem uma espécie de chave de leitura para compreendermos o binômio mente/mundo, bem como o tratamento dispensado pela epistemologia das ciências cognitivas à percepção e às emoções.

Das faces do realismo ao problema mente-corpo

Ryle não se compromete, em seus escritos, com os argumentos da dimensão ontológica ou da dimensão epistemológica do realismo, uma vez que a existência de um mundo externo à mente ou a justificação do seu conhecimento seriam tarefas cognitivas que os artefatos linguísticos não conseguiriam tocar. Agora, por outro lado, o enfoque semântico do realismo aceita que quando há determinada correspondência entre os enunciados da teoria e o mundo, então, podemos falar da verdade da teoria. E, quando isso realmente acontece, temos condições para afirmar que os “termos” ou “conceitos” efetivamente existem, mesmo que isso signifique não aceitá-los como qualquer outro objeto do mundo. Entretanto, se tais termos e conceitos são as próprias partes das teorias científicas utilizadas para descrever os fenômenos da consciência e da vida mental como, consequentemente, eles servem para explicar aquilo que constitui o conteúdo cognitivo?

Um dos primeiros autores que inicia tal empreitada é Ryle, uma vez que ao dispor de um instrumental anti-cartesiano, exclui a interpretação e a ideia de que a referência assume a distinção ato-objeto. Segundo Gram (1983GRAM, M. S. 1983. Direct Realism. A Study of Perception. Boston, Martinus Nijhoff Publishers., p. 33), comentando Ryle, “não precisamos apelar para a gramática para dizer como as coisas estão no mundo e o que suas relações possuem umas com as outras”, pois “‘ver’ não significa uma experiência”. Em The Concept of Mind, Ryle aponta que a mente, se pensada a partir da questão cartesiana, é uma espécie de máquina fantasmagórica, isto é, o corpo seria pensado como uma máquina e, consequentemente, suas funções seriam comandadas por outra máquina interior: “Como um processo mental, como a vontade, pode causar movimentos espaciais como os movimentos da língua? Como uma mudança física no nervo óptico pode ter entre seus efeitos a percepção da mente de um flash de luz?” (Ryle, 2009RYLE, G. 2009. The Concept of Mind. London, Routledge. , p. 9). Diferentemente da posição cartesiana, o filósofo nega a existência de uma máquina-piloto interior pois, caso ela realmente existisse, seria de um gênero especialmente invisível, inaudível e sem forma ou peso.

Ryle sustentará, então, que os predicados mentais que são aplicados aos seres humanos não são inferências verificáveis em relação aos processos fantasmagóricos que temos no fluxo invisível da consciência. Ao contrário, não se opera senão uma descrição de como tais indivíduos se comportam, no cenário público, ou em certas circunstâncias. Isso seria suficiente para a compreensão daquilo que constitui a consciência de alguém. Aplicar categorias ontológicas para descrição da mente, como os termos mentais que usamos para descrição da vida interior, estariam calcados na psicologia popular (folk psychology), isto é, termos linguísticos referentes à supostas entidades mentais. Ryle indica que é na psicologia popular que se desenvolve a ideia de uma áurea conceitual que torna, portanto, os conceitos mentais como desdobramentos independentes de um modelo físico. Segundo Park (1994PARK, S. M. 1994. Reinterpreting Ryle: a nonbehavioristic analysis. Journal of the History of Philosophy, 32(2): 265-290. ), algumas interpretações veem Ryle fazendo uma redução ontológica da mente ao comportamento físico enquanto para outras ele estaria fazendo uma eliminação ontológica em favor de tal comportamento.

A mente, segundo Ryle, corresponde apenas a um conjunto de termos referentes à descrição da ação e não a qualquer coisa que tenha a configuração material ou imaterial. Esta constitui uma primeira crítica à noção de mente como um artefato privado e interno, abrindo espaço para uma série de desdobramentos na tradição filosófica, oportunizando um dos primeiros campos para aquilo que se denomina de germe das ciências cognitivas. Assim, um dos argumentos utilizados pelo filósofo para realizar uma crítica à concepção cartesiana e à ontologização da mente na tradição do pensamento em geral consiste em afastar-se da ideia de que há processos internos fisiológicos e psicológicos que ocorram por trás da própria percepção que temos do mundo. Aquilo que vemos e aquilo que sabemos do mundo não podem ser elementos drasticamente diferentes ou programas catalogados em instâncias de fenômenos independentes uns dos outros. Segundo ele,

Esse uso especial de “mental” e “mente”, no qual eles significam o que é feito “na cabeça”, não pode ser usado como evidência do dogma do fantasma na máquina. Não passa de um acontecimento desse dogma. O truque técnico de conduzir nosso pensamento em imagens auditivas de palavras, em vez de em palavras faladas, realmente garante sigilo ao nosso pensamento, uma vez que as imaginações auditivas de uma pessoa não são vistas ou ouvidas por outro (ou, como veremos, também pelo seu próprio dono). Mas esse segredo não é o segredo atribuído aos episódios postulados do mundo das sombras fantasmagórico. É apenas a privacidade conveniente que caracteriza as músicas que correm na minha cabeça e as coisas que vejo nos olhos da minha mente ( Ryle, 2009 RYLE, G. 2009. The Concept of Mind. London, Routledge. , p. 23).

Neste ponto, há espaço para pensarmos o modo como o mundo cabe na “imagem” que temos deste ou, ao contrário, se construímos uma ficção supondo que ele realmente cabe, uma vez que os objetos, físicos ou matemáticos, existiriam independentemente de nossa consciência. De uma forma absolutamente direta, Ryle revitaliza, na questão anterior, um dos problemas clássicos da epistemologia contemporânea: o realismo. Como é possível que o mundo externo, supondo que exista, possa ser representado por nossos conceitos e processos mentais? Por que nossas capacidades cognitivas permitem concebê-lo do modo como acreditamos que ele seja? E, ainda, o acesso que possivelmente realizamos estaria intimamente ligado em “verbos de percepção como ‘ver’, ‘ouvir’, ‘detectar’, ‘discriminar’ e muitos outros são geralmente usados para registrar sucessos observacionais, enquanto verbos como ‘assistir’, ‘ouvir’, ‘sondar’, ‘escanear’, ‘saborear’ são usados para registrar compromissos observacionais”? (Ryle, 2009RYLE, G. 2009. The Concept of Mind. London, Routledge. , p. 201) Assim, primeiramente, reconstruímos alguns elementos críticos à defesa do realismo para, posteriormente, analisar em que medida tais aspectos serviriam para propor um afastamento do reducionismo materialista dos processos da consciência e da vida mental.

Materialismo e representação dos processos mentais

Não é estranho que a proposta de Ryle seja uma crítica à noção cartesiana e ao dualismo que tem sido empregado na história da tradição filosófica, servindo também como uma espécie de anteparo para as ciências cognitivas. Deste modo, Ryle concebe, por um lado, a mente a partir de uma investigação disposicional e, por outro, como uma atividade linguística que permite a descrição dos processos de introspecção. Pergunta, por exemplo, “‘como as experiências passadas são armazenadas na mente?’, ‘como uma mente alcança além de sua tela de sensações para compreender as realidades físicas externas?’, ‘como subdividimos os dados dos sentidos em conceitos e categorias?’” (Ryle, 2009RYLE, G. 2009. The Concept of Mind. London, Routledge. , p. 201). Implicitamente, está perguntando como a linguagem, assim como as teorias científicas, são um instrumento útil porque se relacionam com uma porção do mundo [mental] cuja função seria, em outras palavras, salvar os próprios fenômenos.

A hipótese anterior pode mostrar, como nos parece, pelo menos três caminhos relativamente distintos a partir dos escritos de Ryle: o primeiro versa sobre a capacidade de internalização dos fenômenos mentais, isto é, assumi-los como algo que não faz parte do mundo externo; o segundo, é que a própria representação do mundo, a partir daquilo que determinamos como fenômenos mentais, precisa assumir que a existência de uma estrutura independente do nosso sistema conceitual e, por fim, a possibilidade de encontrarmos uma espécie de paralelismo ou equivalência entre nossos processos mentais, suas representações e o conteúdo cognitivo. Este último argumento, contemporaneamente, seria responsável por sustentar a existência de um corte entre os processos neurofisiológicos e as propriedades qualitativas da cognição, uma vez que elas não seriam redutíveis aos próprios eventos ou processos.

Sobre a primeira hipótese, isto é, a capacidade de externalização dos fenômenos mentais, temos que analisar a própria capacidade semântica e o modo como os conceitos seriam, segundo Ryle, um veículo ou instrumento adequado para tal tarefa. Deste modo, a relação entre a expressão linguística e a simetria existente com os próprios processos mentais, isto é, aquilo que acontece quando determinados conceitos são utilizados para dizer tais processos, denotam o enfoque semântico do realismo. Esta questão mostra, por exemplo, que o problema da interação entre a mente/linguagem, como encontramos nas respostas de autores fisicalistas entre os quais estão Smart (1959SMART, J. J. C. 1959. Sensations and brain processes. The Philosophical Review, 68(2): 141-156. ; 1963) e Place (2002PLACE, U. T. 2002. Is consciouciousness a brain process? W. LYON (Org). Modern Philosophy of Mind. London, Ed. Everyman. ), entre outras, precisam continuamente lidar com o problema do contato e da independência do mundo externo. Assim, mesmo que os processos mentais possam ser sintetizados ou reduzidos à explicação neurofisiológica, ainda é necessário saber que aspectos do mundo são relevantes para o agente cognoscente.

De qualquer modo, diferentemente do que afirmará o fisicalismo, Ryle compreende que os sistemas que usamos para uma espécie de degravação dos processos mentais entram continuamente em choque com elementos semânticos e pragmáticos da linguagem. Por isso, supor uma correspondência direta significaria apenas acreditar, ingenuamente, que a linguagem consegue dar conta daquilo que é o mundo mental, ou vice-versa. O autor está interessado em sustentar que a obscuridade dos processos mentais e da significação está assentada na concepção de que os conceitos se referem a tal mundo interior e isso nos mostra, portanto, que a fragilidade de falarmos independentemente de uma estrutura conceitual seria uma espécie de labirinto derivado do realismo ontológico.

Aqui vale recordar, por exemplo, o debate sobre se objetos físicos são coloridos. Sendo a resposta for afirmativa, então, quais seriam tais cores? E, se não forem, como poderíamos realmente saber? A confusão filosófica reside, segundo Stroud (1999STROUD, B. 1999. Subjectivism and the Metaphysics of Colour. New York and Oxford, Oxford University Press. ), no fato de que não podemos sustentar nossas percepções e crenças contra o mundo e avaliar diretamente sua correspondência como uma espécie de fotografia. Mas, ao contrário, deveríamos trabalhar com um subconjunto de percepções e crenças que representam o mundo como ele é independente de nós. Parece claro, portanto, que a única alternativa para dissolver esta questão seria a necessidade de um “olho da mente”.

O problema reclamado por Ryle, isto é, se a significação do vocabulário mental realmente descreve os eventos ou processos mentais, esbarraria ainda no uso de conceitos quando estes são advindos, por exemplo, de metáforas, metonímias, gírias ou outras condições linguísticas. Assim, a ideia de representação mental, como afirmará Searle (1983SEARLE, J. 1983. The Intentionality: An Essay in the Philosophy of Mind. Cambridge, Cambridge University Press.), deve estar além de um sistema binário de entrada e saída de informações pois, caso não o fosse, a capacidade de externalização tornar-se-ia uma atividade limitada pelo domínio do conjunto de signos. Agora, se a representação não pode funcionar de maneira arbitrária, uma vez que ela é construída socialmente, então, as informações cognitivas possuem algum tipo de contato direto com o mundo. Não obstante, temos que ter em mente que o naturalismo biológico de Searle, imerso no dualismo e nas críticas ao fisicalismo, parece não explicar adequadamente o próprio pano de fundo que pretende combater, em especial aqueles argumentos provenientes da identidade entre a consciência, a intencionalidade e os processos cerebrais (Prata, 2011PRATA, T. de A. 2011. É incoerente a concepção de Searle sobre a consciência? Manuscrito, 34(2): 557-578.; Zahavi, 2015ZAHAVI, D. 2015. You, Me, and We: the sharing of emotional experiences. Journal of Consciousness Studies, 22(1-2): 84-101.).

Uma segunda questão que devemos observar é que Ryle não está negando a possibilidade de representação do mundo e dos objetos externos, bem como também a existência de fenômenos mentais. O fato é que, de acordo com Ryle, a história da lógica e da filosofia, incluindo aí Husserl, Meinong, Frege, Bradley, Peirce, Moore e Russell, reduziram a noção de significado às inspeções de alguns super-objetos ou investigações super-observacionais. Entretanto, como seria possível que o aparato conceitual consiga estabelecer condições suficientes para que tenhamos conhecimento do mundo e possamos falar de nossos estados privados? Ou, dito a partir do problema realista, como saberíamos quais aspectos do mundo são considerados e desconsiderados, por não serem suficientemente necessários, para que possamos falar com sentido de suas propriedades? Grosso modo, estas questões revelam que o tema do realismo semântico culminará diretamente no dilema da simetria entre a mente e o acesso linguístico aos objetos externos a ela.

Assim, se há um mundo externo à nossa consciência, segundo Ryle, deveríamos nos perguntar como este consegue caber e ser organizado não a partir das condições adivinhas da estrutura biológica, mas daquelas linguístico-semânticas. Por conseguinte, conseguiríamos localizar esta mesma hipótese de leitura na análise de espécies não-humanas? Abelhas, por exemplo, veem tonalidades de cores que não vemos, além de possuírem um campo de visão de 280 graus, isto é, duas vezes e meia os 100 graus do campo de visão humano. Algumas dezenas de artigos, publicados na revista Bioinspiration and Biomimetics, mostram também que elas não conseguem enxergar o vermelho, aplicando uma tonalidade lilás ao mundo e que possuem neurônios ajustados à velocidade que respondem monotonicamente ao fluxo óptico (Roubieu et al., 2014ROUBIEU, F. et al. 2014. A biomimetic vision-based hovercraft for bees´ complex behaviour in various corridors. Bioinspiration & Biomimetics, 9(3): 1-22.). Em outras palavras, para nós ou para as abelhas, parece ser necessário que a estrutura que nos permite compreender o mundo externo consiga, mais do que minimamente, processar as informações que são recebidas o tempo todo e nos dar uma espécie de segurança física, psicológica e linguística para aquilo que constitui nosso conteúdo cognitivo.

Esta última observação, portanto, não revela apenas o dualismo que a tradição epistemológica em geral tem revitalizado entre mente e mundo mas, especialmente, que algumas coisas que estão no segundo possuem uma absoluta independência estrutural que não pode ser conhecida através dos processos cognitivos. Será, então, que para falarmos de nosso conteúdo mental precisamos, necessariamente, de contínuas informações externas, conforme analisou Marr (2010MARR, D. 2010. Vision: A Computational Investigation into the Human Representation and Processing of Visual Information. Cambridge, MIT Press., p. 15-17), e isso, em última instância, dependeria da relação entre a percepção e o observador? A resposta dada por um realista metafísico ou semântico situa-se, constantemente, nesta fronteira pois se aceitamos o argumento da existência de “objetos” externos ou não redutíveis à mente, então, deveríamos repensar como nossos artefatos conceituais podem dizer algo significativo sobre eles. O fato é que, segundo aponta Ryle, os termos mentais não são entidades ontológicas, mas expressões sistematicamente enganadoras que, ao serem colocadas fora de contexto, induzem erroneamente a existência de uma posição dualista. Algumas teorias da cognição contemporâneas como, por exemplo, Clark e Chalmers (1998CLARK, A.; CHALMERS, D. J. 1998. The extended mind. Analysis, 58(1):7-19.), ao apontarem para a inexistência de um limite identificável entre os processos cognitivos e o ambiente, precisariam lidar tanto com o problema epistêmico do realismo bem como alternativas à barreira conceitual. Já pós-humanistas como Bostrom (2018BOSTROM, N. 2018. Superinteligência: caminhos, perigos e estratégias para um novo mundo. Rio de Janeiro, DarkSide Books.), por outro lado, dispensam de seus argumentos o residual propedêutico do realismo, optando simplesmente por metáforas que incluem a indissociabilidade entre a vida, a inteligência (ou superinteligência) e a consciência.

De qualquer modo, a questão anterior, se analisada sob as perspectivas do realismo metafísico ou semântico, escondem uma das ingênuas ideias do pós-humanismo, ou seja, que a hibridez homem/tecnologias permitiria um acesso cognitivo mais apurado do mundo externo, uma vez que seres humanos não dispõem de ferramentas para captá-lo na sua condição atual. Assim, se fosse possível a convergência tecnológica do modo como é suposta, então, a crença na existência do mundo exterior deve ser aceita como uma inferência verdadeira. Por isso, a pauta de que a revolução tecnológica apressaria o modo como utilizamos os artefatos para melhorarmos a inteligência - e aqui há um problema de caráter ético-moral que deveríamos adentrar - passa distante de uma solução satisfatória (Fracescotti, 2014FRACESCOTTI, R. 2014. Physicalism and the Mind. New York, Springer Publishing.). O conceito de superinteligência acaba por recolocar, indiretamente, a experiência como um tribunal do conhecimento.

A terceira hipótese que devemos observar refere-se ao possível paralelismo existente entre os processos mentais e a redutibilidade destes aos processos físicos que fazem parte do mundo. Embora Ryle tenha definitivamente recusado esta questão em seus escritos, ela parece ganhar fôlego a partir da década de 60, quando as posições fisicalistas ou, mais especificamente, a teoria da identidade, recorrem ao monismo para refutar a superveniência do mental sobre o físico. Alguns autores, entre os quais Smart, Place e Armstrong tentaram mostrar, de um modo geral, que o fisicalismo compreenderia a tese de que toda entidade é uma entidade física em si ou é fundamentalmente composta por entidades físicas, ou que são realizadas por propriedades físicas (Melnyk, 1997MELNYK, A. 1997. How to keep the ‘physical’ in physicalism. The Journal of Philosophy, 94(12): 622-637. ), entendendo que as leis que governam o mundo físico deveriam explicar toda classe de eventos. Não haveria, portanto, uma qualidade não física dos processos mentais assim como não seria possível um conteúdo indissociável dos processos mentais, de tal modo que a tarefa científica deveria ser uma espécie de descolonização preliminar do vocabulário empregado pela psicologia popular.

Segundo Smart (1963SMART, J. J. C. 1963. Materialism. The Journal of Philosophy, 60(22): 651-662. ), por exemplo, as representações mentais como ideias, conceitos, categorias, imagens, etc. não possuem uma imaterialidade, uma vez que são notas simétricas dos processos fisiológicos e do instrumental orgânico nascido nas condições pelas quais conhecemos do mundo externo. Por isso, a partir desta hipótese, estabelece a não identificação de processos qualitativos que não ocorram nos processos físicos compatibilizando, assim, o nascimento das primeiras teorias neurobiológicas. Dito de outro modo, o materialismo mecanicista de Smart consolidou o argumento da redução dos estados mentais à organização neurofisiológica do cérebro. Entretanto, isso só foi possível tomando empréstimo fontes da física e da biologia, especialmente uma simplificação da vida mental a partir de alegorias aos processos físicos, químicos e biológicos que causam a consciência em primeira pessoa. Se Smart está certo, poderia a linguagem da física, portanto, descrever completamente o mundo em seus diferentes níveis e formas? Segundo Putnam (2012PUTNAM, H. 2012. Philosophy in an Age of Science. Physics, Mathematics, and Two Forms of Non-Reductive Naturalism. Cambridge, Harvard University Press., p. 65), isso não seria possível “porque há regiões em que a física é falsa, mas porque, para usar a linguagem aristotélica, o mundo tem muitos níveis de formas e não há possibilidade realista de reduzir todos eles ao nível da física fundamental”.

Em todo caso, falando da vida mental, é importante destacar que relacionistas comumente reagem ao argumento de que as alucinações, por exemplo, são fenômenos indistinguíveis das experiencias perceptuais e que tais experiências sejam constituídas por relações indiretas com objetos independentes da mente (Masrour, 2019MASROUR, F. 2019. On the possibility of hallucinations (Forthcoming). Mind, 2019.). Porém, se alucinações não fossem constituídas por relações com objetos independentes da mente, então, também as experiências perceptivas verídicas deveriam ser constituídas por relações independentes da mente. O fato é que alucinações, ou ilusões, carregam falsamente o problema da disjunção entre a experiência perceptiva e objetos externos a tal experiência. Ryle não utiliza o termo “alucinação”, embora dedique uma seção do capítulo VI de The Concept of Mind para tratar do autoconhecimento, no qual recusa qualquer tipo de acesso privilegiado.

Neste sentido, Vallverdú (2010VALLVERDÚ, J. 2010. Seeing for Knowing: The Thomas Effect and Computational Science. In: J. VALLVERDÚ (Org.). Thinking Machines and the Philosophy of Computer Science. Concepts and Principles. Hershey and New York, Information Science Reference, p. 280-293.) utiliza um experimento interessante, intitulado the Thomas´s effect, para descrever o problema da existência do mundo exterior e de um possível acesso privilegiado: “As pessoas cegas veem em seus sonhos? Podemos responder que sonhadores congenitamente cegos e aqueles que ficaram cegos na infância não têm imagens visuais em seus sonhos, apenas sons” e que, portanto, “podemos pensar o que nós podemos ver. Não há conhecimento além daquelas simulações visuais, modelos ou sinais. Quanto mais visualizado é um fato, mais (facilmente) pode ser conhecido” (2010VALLVERDÚ, J. 2010. Seeing for Knowing: The Thomas Effect and Computational Science. In: J. VALLVERDÚ (Org.). Thinking Machines and the Philosophy of Computer Science. Concepts and Principles. Hershey and New York, Information Science Reference, p. 280-293., p. 286). A ilustração ignora, porém, que a argumentação realista precisa lidar tanto com a existência de objetos externos quanto com a capacidade de poder representá-los. Assim, a questão não é meramente se cegos ou videntes possuem ou não uma espécie de percepção direta dos fenômenos, mas de que tipo de estrutura podemos falar a partir de nosso sistema conceitual. Logo, cegos e videntes partilham de um mesmo dilema filosófico, a saber, se a percepção é determinante para falar ou conhecer algo.

Os argumentos em pauta, embora provavelmente devessem ser tratados segundo Ryle como “erros categoriais”, constituem um limite epistêmico às teorias da mente que procuram ignorar a pauta do debate realista (Tiehen, 2019TIEHEN, J. 2019. How counterpart theory saves nonreductive physicalism. Mind, 128(509): 139-174.). Por essa razão, ao invés de eliminar, por um lado, a dicotomia entre propriedades qualitativas e quantitativas da mente e, por outro, tomar os processos mentais e fisiológicos como propriedades indissociáveis da matéria em geral que há no mundo, deveríamos recolocar a ideia de comportamento inteligente a partir das disposições, isto é, saber comportar-se sem pensar para fazer. Este pressuposto apresentado por Ryle congrega uma severa crítica filosófica à doutrina oficial, uma vez que esta não consegue dar conta de problemas como a causação mental, a falácia do acesso direto ao mundo ou mesmo a possibilidade da representação mental ser conceitualizada.

Disposições, linguagem e percepção: onde está o erro categorial?

Uma questão particular que devemos considerar quando analisamos a posição de Ryle é se a linguagem seria um instrumento adequado que permitiria uma espécie de mediação entre a cognição e os fenômenos do mundo. Se aceitássemos tal premissa como verdadeira, então, ela deveria permitir que fôssemos capazes de distinguir entre a classe dos fenômenos físicos e a classe dos fenômenos mentais. Agora, se a premissa for falsa, temos como consequência o fato de que a ideia de “mediação” jamais poderá realizar uma correspondência direta entre a classe de fenômenos anteriores. De qualquer modo, o trabalho de Ryle está perguntando se a linguagem, portanto, poderia ser um instrumento efetivo de comunicação com o mundo [interno e externo] e se, por conseguinte, a capacidade perceptiva poderia ocorrer de forma desconceitualizada e de maneira autossuficiente (Peruzzo, 2019PERUZZO JÚNIOR, L. 2019. Intentionality, conceptual content, and emotions. Aurora, 31(54): 833-847.). A pergunta que elementos externos são necessários, portanto, para que nossa cognição possa criar um conteúdo verdadeiro?, segundo o autor, representaria um erro categorial.

Segundo a posição de Hofweber, tomada como expressão metafórica, nossas mentes podem estar “envolvidas com a realidade”. Contudo, isso não significa aceitar o argumento de que toda a realidade externa permaneça nebulosa porque ela não pertenceria ao campo dos processos físicos responsáveis pela própria cognição. Para ele,

Nossas mentes estão centralmente envolvidas no que é a realidade e, por causa dessa conexão estreita, somos especiais no mundo como um todo. Essa posição idealista não era desconhecida durante algumas partes da história da filosofia, mas parece mais do que datada agora e excessivamente antropocêntrica. Por que nossas mentes humanas são metafisicamente centrais para toda a realidade? Quem pensaria que somos tão especiais que a própria realidade está ligada a nós? ( Hofweber, 2019 HOFWEBER, T. 2019. Idealism and the harmony of thought and reality. Mind, 128(511): 699-734. , p.700).

O problema mostrado por Hofweber é, manifestadamente, a chamada questão do acesso direto ao mundo externo. Enquanto o realismo metafísico crê na realidade do mundo externo como uma estrutura independente de nossos esquemas conceituais, o mentalismo aceitará apenas a existência dos fenômenos e das condições mentais. Assim, em outras palavras, o embate entre tais posições revela que a cognição precisaria “alcançar”, de algum modo, os fenômenos físicos em sua totalidade para produzir informações verdadeiras. Embora Ryle passe distante destas preocupações, o importante seria saber até que ponto os demais processos que ocorrem no organismo e no ambiente, por exemplo, constituiriam um material significativo para explorar os termos do vocabulário mental. Onde deveríamos, então, localizá-los?

Ao analisar o papel das emoções, Colombetti e Zavala (2019COLOMBETTI, G.; ZAVALA, E. 2019. Are emotional states based in the brain? A critique of affective brainocentrism from a physiological perspective. Biology & Philosophy, 34(45): 1-20.), em Are emotional states based in the brain? A critique of affective brainocentrism from a physiological perspective, sustentam que “o cerebrocentrismo afetivo é problemático mostrando que não é compatível com os relatos fisiológicos atuais de pelo menos alguns estados ou condições emocionais” (2019COLOMBETTI, G.; ZAVALA, E. 2019. Are emotional states based in the brain? A critique of affective brainocentrism from a physiological perspective. Biology & Philosophy, 34(45): 1-20., p. 45). O “cerebrocentrismo afetivo”, segundo eles, não considera o residual dos eventos que ocorrem no ambiente fora do cérebro e, por isso, não consegue explicar o conteúdo dos termos emotivos. Deste modo, localizar o significado dos estados emotivos a partir de uma perspectiva puramente fisiológica parece ser uma hipótese parcialmente verdadeira, em especial porque as emoções não estariam separadas de outros estados corporais e de seus significados (Zahavi, 2015ZAHAVI, D. 2015. You, Me, and We: the sharing of emotional experiences. Journal of Consciousness Studies, 22(1-2): 84-101.).

Neste sentido, algumas posições das ciências cognitivas como, por exemplo, argumentam Vidal e Ortega (2017VIDAL, F.; ORTEGA, F. 2017. Being Brains: Making the Cerebral Subject. New York, Fordham University Press. ), possuem uma espécie de “ideologia do sujeito cerebral”, isto é, uma profunda posição arraigada na cultura ocidental desde o século XVIII. Segundo eles, o comportamento e a cultura humana não são fenômenos da mesma classe daqueles que podem ser estudados a partir de uma “cerebralização”. Assim, deveríamos considerar, por outro lado, a posição de que somos essencialmente nossos cérebros e, por outro, o fato de que a complexidade deste não pode reduzir o domínio de outras partes do organismo e do ambiente.

LeDoux (2012LeDOUX, J. E. 2012. Evolution of human emotion: a view through fear. Prog. Brain Res., 195: 431-442., p. 440) afirma, por exemplo, que o objetivo das teorias das emoções deveria ser compreender os estados subjetivos da consciência e como os humanos rotulam palavras como medo, amor, tristeza, alegria etc. O reducionismo estaria justamente em desconsiderar o ponto de contato em favor da procura dos circuitos cerebrais e da crença de que sentimentos sejam redutíveis à marcadores, ou que todo mercador possua um conteúdo x a partir dos desafios e oportunidades fornecidos pelo ambiente. As cócegas em ratos, como no experimento apontado por LeDoux (2012LeDOUX, J. E. 2012. Evolution of human emotion: a view through fear. Prog. Brain Res., 195: 431-442.), podem ser um interessante estudo para avaliar como estes fogem ou lutam segundo determinados sentimentos, mas também podem se tornar uma espécie de falácia zoológica ao indexar termos como “alegres” ou “prazerosos” para a marcação de determinadas reações que supomos existir a partir da psicologia humana.

Se o trabalho de Ryle procura atacar indiretamente o realismo, então, ele também serve para descortinar algumas limitações das hipóteses que acabamos de explorar: a primeira, porque identificaria que o hiato realidade/cognição precisa ser dissolvido porque trata-se de um erro categorial, uma vez que o nível de funcionamento cerebral e seu produto não explicam o contato existente entre ambos; o segundo, porque evita que se reduza o domínio do observador a um agente passivo, no qual a representação seria colocada no mesmo nível da informação recebida. Em outras palavras, segundo Ryle, uma explicação causal afirmaria que o “vidro quebrou porque a pedra caiu em cima dele”, enquanto uma explicação disposicional apontaria que “o vidro quebrou quando a pedra caiu em cima dele, porque ele era frágil”. Isso acontece porque as disposições e, consequentemente, a mente, abandonam qualquer pretensão ontológica ou substancialista. Elas deveriam ser vistas simplesmente a partir do vocabulário do senso comum ou da linguagem ordinária, pois o conhecimento social que podemos ter dos outros e do mundo é um processo direto que independe de processos mentais ou estados inacessíveis.

Considerações finais

A posição de Ryle, como mostramos, procura esvaziar a ideia de que, por um lado, o corpo é público e, por outro, a mente é privada. Além disso, a ausência de uma classificação interno/externo não admitiria que a estrutura do mundo seja uma espécie de tribunal último e isonômico para qualquer declaração objetiva. Por conseguinte, os argumentos sustentados pelo realismo seriam absurdos porque pressupõem que o mundo da consciência possa ser reduzido ao mundo das interações objetivas. Quais seriam as consequências, então, da argumentação de Ryle? Segundo Krellenstein (1995KRELLENSTEIN, M. 1995. Unsolvable problems, visual imagery and explanatory satisfaction. Journal of Mind and Behavior, 16(3): 235-253.), por exemplo, uma solução para tais questões é que a formação de conceitos fundados na percepção serve como base dos conceitos que fornecem explicações causais de entidades ou propriedades. Isso significa que os modelos teóricos que seres humanos usam para descrever o mundo são moldados por uma extensão analógica daquilo que é observado. Já algumas pesquisas sobre o desenvolvimento cognitivo, como apontado por Michael Vlerick (2019VLERICK, M. 2019. A cognitive perspective on scientific realism. Philosophical Psychology, 32(8): 1157-1178.), mostram que a “noção de ‘objetividade’ está geneticamente conectada e presente no nascimento. (...) Perceber e imaginar os objetos é, portanto, um produto contingente do cérebro e dos sentidos que a evolução nos dotou”, sendo que “a base perceptiva das entidades modeladas é produto de nosso aparato sensorial - mais precisamente, nosso aparato visual” (2019VLERICK, M. 2019. A cognitive perspective on scientific realism. Philosophical Psychology, 32(8): 1157-1178., p. 7-80).

Sendo assim, o conceito de realidade poderia, segundo Ryle, ser concebido como um tipo peculiar de disposição, na qual não se procura descrever os objetos, mas os processos de eventos que são interações entre estes. A partir disso, o debate da distinguibilidade entre percepção direta e indireta, por exemplo, estaria associada a um problema de base, a saber, na inferência de uma “percepção pura”, como afirma Gallagher (2008GALLAGHER, S. 2008. Direct perception in the intersubjective context. Consciousness and Cognition, 17(2): 535-43., p. 538). Ver algo através do espelho pode ser considerada uma percepção indireta, pois vê-se a imagem no espelho, do mesmo modo que um não vidente pode perceber de forma tátil o ambiente. Contudo, em ambos os casos se está negligenciando a tese de que para falar de compreensão não necessariamente dependemos de um possível acesso direto.

Ryle procura argumentar, assim como notou Wittgenstein nas Observações sobre a Filosofia da Psicologia, texto datado da mesma época, que a existência de uma simetria entre estados mentais e eventos externos, por um lado, e a capacidade de compreensão de tais estados, por outro, são pressuposições derivadas de uma confusão de natureza gramatical. Portanto, os argumentos que utilizam expressões do tipo “percepção direta” e “raciocínio inferencial” deveriam ser tomadas apenas metaforicamente, uma vez que uma das soluções seria aceitar que “os relatos perceptivos para entender os outros se desenvolveram principalmente em uma estrutura fenomenológica empiricamente informada” (Newen; Welpinghus; Juckel; 2015NEWEN, A.; WELPINGHUS, A.; JUCKEL, G. 2015. Emotion recognition as pattern recognition: the relevance of perception. Mind & Language, 30(2): 187-208., p.189). De qualquer forma, o tema realismo acaba nos levando, sem sombra de dúvida, à uma filosofia da percepção: como nossa percepção se encaixa no mundo? Por que determinados elementos do mundo não são significativos para nosso conteúdo cognitivo? Qual a profundidade do mundo que nossa percepção pode alcançar?

Há ainda um último problema que poderia ser enunciado, a partir da posição de Ryle, quando consideramos o problema da percepção, a saber, a capacidade de sua conceitualização. Esta, por um lado, não pode ser analisada como um objeto científico e, por outro, também não é independente do contexto disposicional. A percepção parece ser, portanto, um movimento indissociável das próprias escolhas conceituais. Quando os elegemos estamos, em verdade, vendo o único mundo possível, pois não há outros fora deste. Por isso, retomando a argumentação de Ryle, se a tese do realismo semântico estiver correta, então, ela também deve ser capaz de responder se há um mundo axiologicamente neutro, destituído de propriedades, que poderiam ser percebidas independente da estrutura linguística ou mental do observador.

O realismo, de qualquer modo, parece claramente aceitar que os instrumentos e as formas de discurso científico sejam modos de expansão de nossas capacidades perceptivas e conceituais. Mesmo que esses modos sejam extremamente interdependentes, os conceitos e termos teóricos se relacionariam diretamente com aquilo que são os objetos externos à mente. Em outras palavras, como afirmou Laudan (1981LAUDAN, L. 1981. A confutation of convergent realism. Philosophy of Science, 48(1): 19-49., p. 27), o realista poderia argumentar que o sucesso de uma teoria se justifica na afirmação de que pelo menos alguns de seus conceitos centrais, e não necessariamente todos, conseguem referir-se. De outro modo, segundo Ryle, dissolver a dicotomia entre a consciência e a existência de objetos externos serve para fomentar, epistemologicamente, uma severa crítica à noção de conhecimento, uma vez que só haveria um mundo de aparências, um mundo “arranjado” linguisticamente com a ideia de verdade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2020
  • Aceito
    24 Ago 2020
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