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Travestis brasileiras e escola: problematizações sobre processos temporais em gêneros, sexualidades e corporalidades nômades

Tranvestites and school: problematizations about temporal processes in gender, sexualities and nomadic corporalities

Resumo

O presente artigo tem como propósito problematizar os processos de subjetivação relacionados às travestilidades, atravessados pelas novas configurações das expressões de gêneros, sexualidades e corporalidades, em tempos contemporâneos. Neste sentido, tem o locus da escola como cenário para se potencializar linearidades, regularidades e ordens das construções identitárias binárias destes dispositivos diante das provocações disparadas pelas presenças de estudantes travestis e os rompimentos com as lógicas essencialistas, que nada tem a contribuir com as psicologias e produções de ciências comprometidas com as garantias de direitos básicos e sexuais das pessoas nas múltiplas diversidades humanas.

Palavras chave:
temporalidades; travestilidades; escola

Abstract

This article aims to problematize the subjective processes related to travestilities, crossed by the new settings of the expressions of gender, sexuality and corporeality in contemporary times. In this sense, we have the school locus as a backdrop to enhance linearity, regularities and orders of binary identity constructions these devices before provocation triggered by the presence of students transvestites and disruptions with essentialist logic that has nothing to contribute to the psychologies and productions sciences committed to the guarantees of basic and sexual rights of people in multiple human diversity.

Keywords:
temporality; transvestites; school

Este texto busca problematizar os modos de subjetivação atravessados pelas travestilidades no contemporâneo, com propósito de irradiar movimentos nas configurações que constituem expressões de gêneros nômades e sexualidades dissidentes, considerando um locus específico desse cenário, que é o contexto escolar e as vozes subalternas de constante resistência das pessoas travestis e os processos temporais que as atravessam.

Essas proposições surgem após pesquisa em nível de mestrado (SALES, 2012SALES, A. Travestilidades e escola em narrativas de alunas travestis. 2012. Dissertação (Mestrado)-Universidade Federal de Mato Grosso, Rondonópolis, 2012.), na qual buscamos fazer emergir narrativas produzidas pelas alunas travestis sobre suas experiências escolares. Atualmente elas se alinhavam com outras preocupações oriundas do projeto de doutoramento da primeira autora, em desenvolvimento, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista, no campus de Assis-SP, que também traz as travestilidades para as arenas das produções dos conhecimentos e amplia as discussões sobre as expressões de gêneros nômades e das sexualidades dissidentes (práticas sexuais) em diferentes contextos dos movimentos sociais e as demandas escolares.

Somam-se à estas provocativas, as produções e pesquisas, em curso, dos outros dois pesquisadores desta tríade, que se relacionam diretamente aos meandros dos dois trabalhos, no mestrado (enquanto orientador) e, agora, no doutoramento (também, enquanto orientação), nas suas respectivas produções e publicações, mais as articulações do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Sexualidades - GEPS da Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis, no qual todos fazem parte.

Neste sentido, diante do que se tem produzido e pensado sobre as travestis e as travestilidades singulares, no contexto das cientificidades acadêmicas, que tem os gêneros e as sexualidades como eixos de problematizações, como as perspectivas feministas e queers, estas travestilidades mapedas serão apresentadas como performatividades de gêneros, expressões de gêneros nômades e as sexualidades ainda como vidas precárias em emergência.

Logo, temos como intercessores1 1 . Intercessor é para Deleuze (DELEUZE; PARNET, 1992, p. 156) “O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Podem ser pessoas - para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas - mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores.” deste processo cartográfico leituras e produções de teóricas e teóricos que se debruçam nas potencializações das psicologias que são comprometidas com uma certa ética/estética/políticas que tem em suas nuances a garantia de vidas exitosas, com menos sofrimentos, atravessadas pelas problematizações sobre as temporalidades e os processos formativos que atravessam as travestis.

São posicionamentos ético/político/estéticos que rebatem certas produções e discursos que marginalizam algumas vidas, abrindo precedentes compromissados, discursivamente, para “as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que tem o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, M. Estratégias de saber e poder. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. Coleção Ditos & Escritos, v. 4., p. 12).

Esta tríade (ética/estética/política), já defendida por vários teóricos que se debruçam a dialogar sobre esses mapeamentos (cartografias), como Passos, Kastrup e Tedesco (2014PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. Porto Alegre: Sulina , 2014. ), será adotada como procedimentos que enredarão estas ideias iniciais e que acabam por disparar os dispositivos sexos/gêneros/corpos em perspectivas “rizomáticas” deleuzianas, ou seja, sem linhas mais ou menos importantes que se quer destacar, mas relacionando-se da mesma maneira que podem interagir várias questões que dinamizam as vidas, ou seja, ampliando os referenciais sobre as temporalidades não lineares.

As perspectivas “rizomáticas” serão traçadas para agrimensar os vários eventos que podem surgir no decorrer de cada vida travesti reforçando as vozes subalternas, via escrita (discursos), pois tal intenção e posicionamento político que “esposa uma máquina de guerra e linhas de fuga, abandona os estratos, as segmentaridades, a sedentaridade, o aparelho do Estado” (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995. v. 1., p. 16), que estão para além do que é explícito nas relações discursivas, pois, para o rizoma,

[…] ao contrário, cada traço não remete necessariamente a um traço linguístico: cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995. v. 1., p. 4).

As conexões que buscamos, ao marcar territórios de uma escrita atravessada pelos elementos que estão nas múltiplas linhas de composição das relações humanas, têm a ver com as escolhas teóricas que podem dar conta das questões que propomos problematizar, pois, para as perspectivas “rizomáticas” deleuzianas, “existem somente linhas”, e, ainda, “um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais” (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995. v. 1., p. 15-16).

Estes dispositivos constituem-se em grandes e democráticas redes, no que tange aos marcadores sociais das sexualidades, gêneros e corporalidades, em tessituras dos variados elementos que configuram as pessoas, os afetos e as relações dessas pessoas, funcionando como “um conjunto multilinear” com várias propostas de estilísticas das existências e como se dão as linhas que partem das singularidades para macro relações e nos caminhos inversos (DELEUZE; GUATTARI, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995. v. 1.). E é na cartografia, proposta por Deleuze e Guattari, nos encontros com estes teóricos e outras e outros, que nos propomos mergulhar para problematizar os processos de produções dos conhecimentos (temporalidades) sobre as travestilidades.

São várias linhas que dimensionam as pessoas, como as travestis, que tem nos corpos, nos discursos, nos desejos, nos afetos, para produção destes conhecimentos, que são estranhados, ao se depararem com os padrões universais nas relações sexo/gênero/corporalidades (atravessados pelo tempo), resultando em posicionamentos resistentes aos dispositivos de dominação, que impõem certos modelos para estas linhas de subjetivação travestis.

Escolhemos caminhos epistemológicos que revisem alguns posicionamentos e práticas psicossociais estanques enquanto discursos violentos e autoritários, que ditam o que é verdadeiro ou falso, ou mesmo, para Foucault (2006FOUCAULT, M. Estratégias de saber e poder. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. Coleção Ditos & Escritos, v. 4.), assumir essa perspectiva epistêmica, é contrapor, eticamente, a qualificação do que é ou não científico. E, de acordo com Spivak (2010SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010., p. 47), é recusar projetos de vidas que se resumem “a obliteração assimétrica do rastro desse Outro em sua precária Subjetividade”. Mesmo, porque, as demandas de significação do tempo implicam desvinculamentos de dados apenas observáveis, adquirindo processos de vidas autônomas, via discursos, e nos pensamentos das pessoas (ELIAS, 1998ELIAS, N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.).

A ética, sustentada aqui, parte de pressupostos que reafirmam as perspectivas dialógicas da e nas pesquisas, porque todas as relações e momentos vividos nos percursos dos trabalhos, ao dar vozes à essas travestis, levam em conta as processualidades de cada momento, que se somam numa ética “transdutiva” e “transversal”, pois, para Escóssia e Tedesco (2009ESCÓSSIA, L.; TEDESCO, S. O coletivo de forças como plano de experiência cartográfica. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 92-108., p. 106) “sujeito[a] e objeto de pesquisa se apresentam como duas dimensões distintas, porém inseparáveis, de uma mesma realidade reticular”. E, são perspectivas ético-políticas porque atravessam questões de raça/cor, dos machismos, das desigualdades de direitos na reinvenção dos mediadores sociais (GUATTARI, 2001GUATTARI, F. As três ecologias: Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. 11. ed. Campinas : Papirus, 2001., p. 15).

O problema que se apresenta nesta rede de ideias é: como as travestilidades podem ser pensadas desde a escola? Considerando que a escola é um espaço institucionalizante tradicional, produto da modernidade e seu instrumento para a produção de corpos normatizados (BRITZMAN, 1999BRITZMAN, D. Curiosidade, sexualidade e currículo. In: LOURO, G. L. (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 83-111.; LOURO, 1997LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes , 1997.). Que nessa normatização há forças e relações de poder que controlam e administram os corpos, disciplinando-os (FOUCAULT, 1985FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985. v. 1.). Que há expectativas e resistências (poder) que, calcados no sistema sexo-gênero-desejo (BUTLER, 1990BUTLER, J. Gender trouble. New York: Routledge, Chapmam Hall, 1990.), legitimam as hegemonias binárias, dicotômicas e universalizantes, inviabilizando as multiplicidades de modos de existir e tempos que não estão fixados numa cronologia única.

A escola se constitui aparato atravessado por planos, cujas linhas duras produzem hegemonias que circulam como tecnologias de controle e disciplinamento dos corpos que fogem da norma. Esta condição da escola como do instituído, do produtor de normalidades desejadas pela sociedade capitalista, burguesa, heteronormativa e patriarcal, situa as travestilidades como algo que introduz o caos, a desordem, a inviabilidade de existência.

Travestilidades na escola: linhas traçadas de modos de existência frente às temporalidades

A travesti na escola não corresponde ao sistema sexo-gênero-desejo hegemônico, assim como também não coaduna com experiências previstas de uma processualidade do constituir-se gêneros ou sexualidades. Isto é, a ela não correspondem as linearidades, universalidades e continuidades de algumas leituras sobre ser homem ou ser mulher, ou mesmo, das modulações das sexualidades que constam nos tratados clássicos de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade, ou seja, é o que estamos defendendo enquanto vidas precárias, gêneros nômades e sexualidades dissidentes.

As travestis em idade escolar estão em meio a um processo de produção de outro gênero. Por isso, o nomadismo da existência travesti (PERES, 2012PERES, W. S. O mal estar das sexualidades e dos gêneros contemporâneos e a emergência de uma psicologia queer. In: SOUZA, L. L.; GALINDO, D.; BERTOLINI, V. (Org.). Gênero, corpo e ativismo. Cuiabá, MT: UFMT, 2012. p. 39-56.) dispara seu embate com as temporalidades sobre as expressões de gêneros e sexualidades postas e esperadas por um/uma jovem. Aqui as travestilidades se conjugam com a juventude, no sentido que vão se constituindo em tempos que não são cronológicos, segmentados, universalizantes e progressivos. São linhas de temporalidades que se processam descontinuamente e se borram. Pois, para Peter Pál Pelbart (1998PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. São Paulo: FAPESP, 1998., p. 82), “o próprio limite circular do tempo já não contém o sujeito, mas foge dele e o obriga a persegui-lo incansavelmente, sem descanso, obrigando-o a ir ao limite de si”.

Ao dar voz e estabelecer relações com essas pessoas, pretende-se, dialogicamente, trazer à tona os discursos que atravessam as variadas travestilidades e seus tempos. Discursos que são negociados nos espaços escolares, entre as travestis, entre as três pessoas que irradiam essas ideias, sendo uma delas também travesti e outros espaços geopolíticos de vidas, que se entrecruzam no caminhar estratégico e reafirmam nossas posições cartográficas de mergulhos nas intensidades e composições que se fazem necessárias para estas problematizações precárias e nômades (ROLNIK, 1989ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989.).

Acredita-se, também, que, ao reconhecer que os gêneros são criações e mecanismos de controle e regulação (BUTLER, 1990BUTLER, J. Gender trouble. New York: Routledge, Chapmam Hall, 1990.), posicionamo-nos contrários à certas estratégias de manutenção dos essencialismos binários de sexo/gênero, pois as produções de conhecimentos sobre tais dispositivos travestis, somados às corporalidades, buscam romper com essa supremacia, portanto demanda perspectivas queers. Mesmo porque, “posicionar-se implica em responsabilidade por nossas práticas capacitadoras” (HARAWAY, 1995HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5. p. 07-41, 1995. Disponível em: <Disponível em: http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 >. Acesso em: 22 abr. 2015.
http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/ind...
, p. 27).

São geografias de vidas significadas como múltiplas possibilidades das estilísticas das existências e na prerrogativa de se posicionar na defesa de uma expressão de gênero nem de mulher, nem de homem, mas uma flutuação que pode estar entre estes espaços dos dispositivos femininos e masculinos, culturalmente, mas que também podem escapar qualquer regra destes aspectos construídos na história do Brasil, pois tais posicionamentos reafirmam que “[...] a política e a ética são a base das lutas pela contestação a respeito do que pode ter vigência como conhecimento racional” (HARAWAY, 1995HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5. p. 07-41, 1995. Disponível em: <Disponível em: http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 >. Acesso em: 22 abr. 2015.
http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/ind...
, p. 27).

São geografias mapeadas que, partindo de estudos feministas sobre gêneros, reconhecidos por serem avanços na história da humanidade, garantem “as pluralidades de abordagens nesse campo de saber são expressões de sua riqueza teórico-metodológica, e se convertem também em energias que renovam os debates e o avanço científico” (SILVA, 2009SILVA, J. M. Geografias subversivas: discursos sobre espaço, gêneros e sexualidades. Ponta Grossa: TODAPALAVRA, 2009., p. 50).

As perspectivas queers são marcadas neste texto por transgredir e desestabilizar os limites das “normalidades” ao dar visibilidade às pessoas que escapam e resistem aos poderes heteronormativos impostos na contemporaneidade. São transgressões que se organizam para confrontar as imposições sobre os desejos (PENEDO, 2008PENEDO, S. L. El Laberinto queer: la identidad en tiempos de neoliberalismo. Barcelona: Egales, 2008.), articulando erotismos e práticas sexuais, mas também na articulação dos dispositivos gênero/sexo/corpo em parâmetros subversivos.

Tais perspectivas queers ganham forças a partir dos anos 80 com pesquisadoras e pesquisadores americanos e do Reino Unido que, atravessados por muitas crises e acontecimentos sócio-culturais, como a epidemia da aids, revertem os sentidos iniciais do uso da palavra para rotular pessoas LGBTs2 2 Sigla que representa as pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. e contrapõem tais usos produzindo discussões e ativismos potencializando o posicionamento expressivo de contestação do termo (PERES, 2013PERES, W. S. Psicologia e Políticas Queer. In: TEIXEIRA-FILHO, F. et al. (Org.). Queering: problematizações e insurgências na Psicologia contemporânea. Cuiabá: EdUFMT, 2013.).

As perspectivas queers são marcadas, aqui, por transgredir e desestabilizar os limites das “normalidades” ao dar visibilidade às pessoas que escapam e resistem aos poderes heteronormativos impostos na contemporaneidade. São transgressões que se organizam para confrontar as imposições sobre os desejos (PENEDO, 2008PENEDO, S. L. El Laberinto queer: la identidad en tiempos de neoliberalismo. Barcelona: Egales, 2008.), articulando erotismos e práticas sexuais, mas também na articulação dos dispositivos gênero/sexo/corpo em parâmetros subversivos e precários.

Desta maneira, torna-se muito importante assumir este papel de subversão nas defesas que apresentamos, nos aspectos e escolhas epistemológicas porque tal teoria queer, para além das questões que abordam sobre as sexualidades, marcam, no espaço das produções de conhecimentos, as exclusões e marginalizações que certas teorias acadêmicas têm reproduzido (SILVA, 2009SILVA, J. M. Geografias subversivas: discursos sobre espaço, gêneros e sexualidades. Ponta Grossa: TODAPALAVRA, 2009.) e reafirma que “os códigos no mundo não jazem inertes, apenas à espera de serem lidos” (HARAWAY, 1995HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5. p. 07-41, 1995. Disponível em: <Disponível em: http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 >. Acesso em: 22 abr. 2015.
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, p. 37).

São caminhos (politicamente eleitos) queers que marcam pessoas com vidas precárias, porque buscamos garantir as vozes (discursos) que sempre foram lesadas nos direitos à vida para ecoar em sua mais intensa potência de resistência, pois esta precariedade dá sugestões para que as pessoas consigam suas sobrevivências e “se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo, não são concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras” (BUTLER, 2015BUTLER, J. Quadros de guerra: quando: a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015., p. 13).

Tais vidas precárias são contextualizadas nas perspectivas da feminista Judith Butler (2015BUTLER, J. Quadros de guerra: quando: a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.) ao reafirmar os direitos “à sobrevivência e à prosperidade”, via corporalidades, e os discursos produzidos sobre os mesmos, os direitos sociais e políticos na premissa das garantias dos desejos, das práticas sexuais, das estilísticas das existências e das outras configurações estéticas que podem transitar nas escolas em temporalidades não capturadas pelos esquemas cartesianos na contemporaneidade.

Esta contemporaneidade, a partir de Agamben (2009AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó-SC: Argos, 2009., p. 59), sendo,

[...] uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias, mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre ela.

Vamos defender aqui o tempo como um tema intercessor para as travestilidades e suas relações com a escola. Pois esta oferece uma cadência de um tempo da conquista da razão, das aquisições de responsabilidades, das competências linguísticas e também do tempo para ser homem e ser mulher, menos de existir travesti. Ao contrário dos primeiros, que tem explícitos esta regularidade nos currículos ou propostas curriculares, os últimos nem sempre são explícitos, pois sobre esses tudo ocorre de maneira oculta, nos meandros das práticas e relações escolares, portanto este tempo é discurso.

Portanto, é desde o conhecimento situado (HARAWAY, 1995HARAWAY, D. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5. p. 07-41, 1995. Disponível em: <Disponível em: http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 >. Acesso em: 22 abr. 2015.
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), destes lugares, junto com intercessores que nos acompanham na busca de uma polifonia em diálogos com vozes, até então subalternas, que auxiliam a movimentar ainda mais o pensar sobre as travestilidades que rompem com os padrões binários e flutuam (são nômades) nas experimentações das sexualidades, resistindo às imposições e silenciamentos que muitas vezes a escola e seus discursos buscam perpetuar.

Tendo como um desses intercessores Bakhtin (1997BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.) para o qual a narrativa vem atravessada por múltiplas vozes, portanto polifônica e dialógica, traz consigo uma certa dimensão da experiência vivida pelo coletivo, configurando subjetividades. Subjetividade aqui significada como produzida no social e no coletivo, nunca da experiência indivisa e única, mas sempre atravessadas por outras multiplicidades. Portanto, as vozes subalternas que produzem e estão neste texto, se desdobram em perspectivas rizomáticas onde não há preocupações com as origens, nem as causas, mas com por processos, os fluxos, as forças que vão constituindo as subjetividades travestis e seus atravessamentos na escola.

Nos posicionamos, portanto, a partir de algumas questões sobre essas travestilidades no sentido de desfazer as amarras e trilhar caminhos nômades, novos, movediços e que visualizem os corpos como espaços territoriais, cheios de códigos, símbolos, que traduzem tempos, processos de formação, muito mais complexos e dinâmicos do que se imaginam, transpostos, aqui, pelas opções de escritas nômades.

Dialogamos com as considerações de Peres (2012PERES, W. S. O mal estar das sexualidades e dos gêneros contemporâneos e a emergência de uma psicologia queer. In: SOUZA, L. L.; GALINDO, D.; BERTOLINI, V. (Org.). Gênero, corpo e ativismo. Cuiabá, MT: UFMT, 2012. p. 39-56.) sobre a expressão travesti na contemporaneidade e, afirmando, a existência nômade da travesti e seu efeito problematizador das identidades, binarismos e a historicidade das sexualidades, gêneros e temporalidades fixas, estanques.

Neste sentido, se estamos aqui a defender as viabilidades de vidas precárias (vozes subalternas), significamos as temporalidades travestis como sempre em processualidade nas constituições de seus gêneros, seus corpos, suas sexualidades, suas práticas sexuais, atravessadas por suas relações nos ambientes escolares, que transitam nas perspectivas dos universos de referências do feminino e do masculino, que demandam pluralidades de contextos dos corpos e das produções de estilísticas (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.), imagéticas de vidas que possibilitem situá-la nas várias facetas temporais das expressões de vidas.

Pensamos as travestilidades como estilísticas resistentes. De acordo com Foucault (1984FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984., p. 8), uma estilística resistente apresenta diferenças móveis nas relações de poder e que podem ser reversíveis, instáveis. Elas provocam os grupos institucionalizados, como a escola, a pensar no sentido de contrariar as normas etapistas de formação humana, que não extrapolam os tempos esperados pelos currículos instituídos, reproduzidos por práticas docentes com parâmetros heterossexuais, machistas, sexistas, binaristas.

Para Benedetti (2005BENEDETTI, M. R. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.), a proposição de concentrar-se na significação das várias travestilidades ja é, em si, uma manifestação de validade da afirmação que este grupo já está incorporado à sociedade brasileira. É um fator de relevância política, pois traz a tona a necessidade de fazer existir, não podemos deixar de lado o fato de que não há uma travesti, mas sim travestilidades possíveis. Tais afirmações nos contrapõem aos reducionismos que se pautam em experiências e configurações essencialistas e que, nas negociações, nas relações, com as travestis, às colocam à margem (socialmente, culturalmente e politicamente).

Para Hall (2006HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.) e Giddens (1990GIDDENS, A. Mundo em descontrole: o que a globalização está fazendo de nós. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990. ), as sociedades modernas são sociedades de transformações constantes e rápidas, não contemplando mais, no caso das novas identidades políticas que surgem, como as travestis. Para o tradicional, onde o passado (tempo canônico e cronológico) é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam as experiências de gerações monopolizadoras dos corpos e das sexualidades.

As significações do feminino e do masculino, transposto numa defesa por um gênero travestis, implicam em carregar em si uma estética vinculada à depreciação social e cultural. Trata-se de um sujeito masculino - homem - que pretende significar uma figura feminina, mas não mulher, estabelecendo provocações, desestabilizações e deslocamentos, que resultam numa negociação que não é meramente idiossincrática, mas uma desestabilização de organização das normas sociais e de gêneros que permeiam e regulam os contextos sociais e políticos onde as travestis se inserem.

Esses processos são móveis e fluidos, pois, “uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado”, e até muitas vezes significado, “a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida” (HALL, 2006HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006., p. 21). Por isso, as travestilidades refutam alguns elementos que lhe são oferecidos enquanto feminilidades e masculinidades, marcas identitárias, enquanto únicas possibilidades e se propõem a ir mais além, a estarem em processos fluidos, movediços, rizomáticos e precários, assim, suas expressões travestidas galgam caminhos mais que indesejados pelos grupos heterossexuais, porque “ela torna-se politizada”. (HALL, 2006, p. 21). E, novamente em Pelbart (1998PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. São Paulo: FAPESP, 1998., p. 153), “o tempo emancipado é o tempo emancipado de qualquer forma extrínseca a ele, que não mais obedece a uma forma (ou ordem) transcendente, ou à marca dessa eternidade no movimento do mundo”.

A despeito dessas inserções crescentes das travestis em outros espaços (a escola), que não mais somente os de prostituição, uma ruptura é simbolizada pelos estigmas que sempre a delimitaram em espaços sociais/sexuais diferentes do mundo das normalidades heterossexuais, pactuadas pelas instituições patriarcais e suas convenções.

Os estereótipos constituídos as levam demandar inúmeras inquietações que são refutadas, a priori, por uma hegemonia que negam as diferenças nos modos e expressões de vidas na tentativa de ordenar os gêneros, os corpos e as processualidades nos tempos das pessoas. Os grupos dominantes segregam as expressões dos gêneros e buscam categorizar as divisões das identidades de maneira fixa.

Somando-se a inúmeras tentativas de apagar, eliminar, excluir e marcar, negativamente, outras experimentações dos corpos, dos sexos, dos desejos, de acordo com Peres (2002PERES, W. S. Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania. Rio de Janeiro: PPG/Saúde Coletiva/UERJ, 2002., p. 11) “se a expressão da homossexualidade já é vivida como estranha e desestabilizadora da moral e dos bons costumes”, principalmente nos espaços institucionalizados. Na escola, por exemplo, as travestilidades embaralham os códigos de referência sobre os gêneros, demandando outras significações.

Assim, a definição de travesti que nos parece mais democrática, na qual assumimos, por nela acreditar, como mais uma possibilidade de expressão nos gêneros, que, somam-se feminilidades e masculinidades, por uma de nós viver enquanto pessoa travesti, e por garantirmos as vozes subalternas das travestis que se relacionam conosco nos percursos das duas pesquisas citadas (uma em processo) e das nossas produções contemporâneas.

São vidas, corpos e temporalidades que se subjetivam processualmente, consigo mesmo, com as outras pessoas e com os discursos que estão disponíveis e os outros que surgem e com as tensões que podem ocorrer nas relações; porque se apropriam de novas atitudes, estilísticas dos comportamentos e expectativas, promovendo desvios do que a sociedade relaciona ao que é ser homem ou ser mulher. São perspectivas de vidas que extrapolam as composições binaristas e essencialistas e agregam o viver com dignidade, primando pela própria vida com liberdade que demandam essas estilísticas, a partir das considerações de Foucault (1984FOUCAULT, M. Vigiar e punir. 21. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1984.) e que são precárias por inventar-se em cada situação, em cada evento e em cada necessidade pela manutenção da vida. E com tempos singulares, pois “o tempo já não está subordinado a uma forma que o determine, já que ele mesmo é doravante a forma do determinável” (PELBART, 1998PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. São Paulo: FAPESP, 1998., p. 153).

Para Stuart Hall (2006HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.), a sociedade não é mais estática, unificada e delimitada, mas uma transição de mudanças constantes que a faz diversa nas suas significações. Pluralidades de modos de existir emergem num conjunto de relações de força e resistência. Em meio a este contexto social (na educação, na saúde, na cultura) em que os gêneros e as sexualidades têm sido colocados em debate intenso entre políticas normativas e outras que buscam afirmar modos de existência fora da norma, se dão as problematizações dos gêneros, em função das práticas sociais em que estão imbricados, dentre as quais as travestilidades, como expressões de gêneros dissidentes, de certo modo, afirmam caos, desordem e embaralhamento das temporalidades canônicas.

Para Pelúcio (2004PELÚCIO, L. M. Travestis, a (re)construção do feminino: gênero, corpo e sexualidade em um espaço ambíguo. Revista Anthropológicas, ano 8, v. 15, n. 1, p. 123-154, 2004. Disponível em: <Disponível em: http://www.revista.ufpe.br/revistaanthropologicas/index.php/revista/article/view/34/34 >. Acesso em: 20 maio 2015.
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) as corporalidades travestis estão num entre a busca pela norma (na estética e modelo do corpo da mulher perfeita) e o embaralhamento de códigos diante da unicidade sexo biológico e gênero. Também, para esta autora, a partir dos relatos das próprias travestis que entrevista, ser travesti é lutar “contra a humanidade”. Aqui a dimensão da quebra dos códigos está presente com o carregamento de todo o estigma que essa “luta” tem diante de uma expectativa de corporalidades, sexualidades e gêneros da sociedade que torna a existência travesti como abjeta, precária.

Com isso, as expressividades desestabilizam o cotidiano sedimentado na heteronormatividade, promovendo exclusões e cerceamento de direitos como os de saúde e educação. As marcas identitárias dos gêneros, que estes espaços (re)produzem, nada tem à contribuir ou garantir a circulação, de maneira positivada, dessas pessoas nestes espaços e seus entornos (SALES, 2012SALES, A. Travestilidades e escola em narrativas de alunas travestis. 2012. Dissertação (Mestrado)-Universidade Federal de Mato Grosso, Rondonópolis, 2012.)

O processo de subjetivação dos gêneros pode ser ampliado quando trazemos ao cenário as travestis, que extrapolam usos e reconhecimentos dos corpos e das significações que os gêneros poderiam evocar. Ou ainda, ressignificar os gêneros, quando este deixa de ser, de acordo com Bertini (2009, p. 143, tradução nossa), “um instrumento que por muito tempo serviu para obrigar-nos a aceitar as formas de sociabilidade tradicional marcadas pelo dispositivo de gênero e pelo discurso de ordem simbólica entendida”.

Peres (2002PERES, W. S. Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania. Rio de Janeiro: PPG/Saúde Coletiva/UERJ, 2002., p. 10), em seu estudo etnográfico com grupos de pessoas LGBT, em específico com travestis, afirma que na sociedade há composições de figuras que se constroem em múltiplas relações, que vão para além das estipuladas pelos grupos hegemônicos heterossexuais e que incitam invencionalidades de modos de ser no mundo e suas temporalidades etapistas.

Considerando o tecido rizomático do conhecimento sobre as expressões de gêneros e sexuais, ao incluir as travestilidades com expressões de gêneros, para defender outras corporalidades, outras sexualidades. Essas afirmações buscam romper com processos identitários que dão limites para as construções identitárias fixas, e se coadunam com posicionamentos políticos para defesa de estilísticas das existências que demandam efetivas garantias e equidade de direitos básicos à vida (a educação formal).

Essas pessoas falam de lugares e experiências muitas vezes não visíveis e em/nos tempos que não são significados de maneiras positivas. As histórias singulares se tornam muito particulares e os tempos de cada um desses processos intercalam-se aos padrões cronologicamente entendidos aos tempos coexistentes em relação às epistemes das vidas travestis.

As travestilidades, como modo de existir, podem surgir nos variados momentos das vidas. Seja na infância e/ou adolescência e até mesmo na etapa adulta destas pessoas e a sociedade assume um papel crucial para a afirmação desses processos ou a sua alienação como possibilidade de reordenação de outros gêneros. Neste sentido, os corpos das travestis inventam novas formas e imagens que, embora marcados pelas demandas sociais e culturais que influenciam a construção de uma estética corporal, precisam, urgentemente, de olhares mais diversificados, menos preconceituosos (PERES, 2002PERES, W. S. Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania. Rio de Janeiro: PPG/Saúde Coletiva/UERJ, 2002.). Esses sistemas, sociais e culturais, acrescidos das crenças cristãs, que englobam a figuração dessas pessoas, fazem com que as travestis acabem por ficar à mercê de uma estrutura cultural e política que não contempla suas necessidades e diversidades e esta estrutura busca capturá-las em tempos que não lhes contemplam.

Estabelece-se, assim, conflitos internos e externos sobre suas expressões de gêneros e seu lugar de direito na sociedade. Escondem-se ou são escondidas atrás de figuras politicamente heterocorretas e apresentam barreiras em se reconhecer e serem reconhecidas positivamente. Negam-se e são negadas em se apropriar das corporalidades múltiplas que lhes cabem em seus devidos tempos de vidas, automaticamente transitando e contrapondo os tempos apresentados na escola.

Para Benedetti (2005BENEDETTI, M. R. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.), o novo aqui não é somente a travesti ou qualquer dos personagens que lhe rodeiam e lhe constituem. Benedetti salienta que o novo é a sua maior visibilidade na sociedade, em sua inscrição popular e social com reconhecimento. Mesmo nas redes sociais (com vídeos virais e outros), na mídia televisiva, com sua participação em programas de auditório, ou mesmo com a preocupação em garantia de direitos, de políticas públicas e da presença dos movimentos sociais específicos nessas lutas. Ações que cada vez mais intensifica sua presença nos entremeios até então heterossexuais, com os quais, todas as pessoas das cidades mantêm relações cotidianas de intercâmbio e influência de linguagens, valores, discursos, enfrentamentos e resistências.

Óbvio, que essas inserções, até então renegadas às travestis, com suas performatividades estéticas alheias aos padrões binários cristalizados, com travestilidades singulares, as colocam em uma fronteira diante das padronizações engendradas na cultura. Ou ainda, de acordo com Schneider (2000 apud PERES, 2002PERES, W. S. Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania. Rio de Janeiro: PPG/Saúde Coletiva/UERJ, 2002., p. 6),

A escolha por essa estética, por esta estilística da existência, se defronta com resistências, discriminações e sofrimentos, que nos levam a refletir a respeito da dor que é experimentada e sofrida pelas pessoas que se decidem por essa forma de existir no mundo, ousando “ultrapassar os limites de seu próprio corpo, em função de sua felicidade”.

Notamos, então, que os processos de subjetivação das expressões de gêneros, corpos e as sexualidades expressos pelas travestilidades trazem resistências aos enquadramentos temporais nos variados aspectos de constituição das pessoas (dos gêneros, das sexualidades). Isto implica, para as travestilidades, um problematizar sobre as variantes desses processos, pois seus tempos, esse mesmo tempo que problematizamos, produzem reconfigurações que podem favorecer ou negar as novas estilísticas de vida.

Emergir as discussões sobre as temporalidades das travestis e as da escola é necessário, em favor de uma visão amplificada dos conceitos que esta traz e se faz no delinear de suas vidas por não pertencerem, emergirem-se, de um tempo pré-estabelecido pelas práticas canônicas cronológicas heterossexuais. Uma menina ou jovem travesti não significa, temporalmente, o mesmo tempo de uma adolescente nascida biologicamente do sexo fêmea (mulher), pois seus elementos de formação atravessam várias questões que engendram suas expressões corporais, sexuais, espaciais e temporais. Para Peres (2002PERES, W. S. Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania. Rio de Janeiro: PPG/Saúde Coletiva/UERJ, 2002., p. 11), “a expressão travesti no cenário contemporâneo se esbarra em um modo de organização social, comprometido por valores e significados culturais que se orientam pelas estruturas do patriarcalismo”. E é no tempo que as afirmações e/ou negações irão surgir a respeito de si, pois os “quantitativos dominantes que marcam o espaço” e do “qualitativo das normalidades e dos modelos do tempo nessas representações”.

Junto com os marcadores nominais, de gêneros e os sexuais, há ainda o temporal. Lloret (1998LLORET, C. As outras idades ou as idades do outro. In: LARROSA, J.; LARA, N. (Org.). Imagens do outro. Petrópolis, RJ: Vozes , 1998. p. 13-23.) nos dá pistas sobre isso em sua discussão sobre as idades da vida. Trata de problematizar como a temporalização da vida humana em ciclos ou períodos nos subjetiva e cria mundos em que nem todas as diferenças são viáveis. Marcados por uma ideia de tempo cronológica e etapista, na qual se pertence a uma idade em relação a das outras pessoas, as explicações sobre as transformações, do corpo, das ideias, dos valores etc. são fragmentados e hierarquizados.

Segundo Lloret (1998LLORET, C. As outras idades ou as idades do outro. In: LARROSA, J.; LARA, N. (Org.). Imagens do outro. Petrópolis, RJ: Vozes , 1998. p. 13-23., p.14), estas temporalidades, estas idades, configuram modos de existir como próprios àquele momento ou não. A travesti não se expressa no mesmo tempo dos gêneros e sexualidades canonizados pela ciência médica, dos comportamentos ou psicológicas. Ela escapa às artimanhas desse controle. Suas expressões rompem e se contrapõem aos sentidos hegemônicos do que é viver as corporalidades, os sexos e os gêneros na sociedade.

Pensar o tempo como intercessor para problematização dos processos que engendram as travestilidades significa estabelecer entrelaçamentos com as corporalidades e as expressões de gêneros nos processos de normatização da vida. Assim, é problematizar o tempo contido nas explicações das transformações corporais, de gêneros e sexuais que produzem narrativas normatizantes pela via do biológico, como os discursos da sequência e da maturação (sexual, identitária). Fundamentalmente questionar o tempo contido na matriz hegemônica do sistema sexo-gênero-desejo (BUTLER, 1990BUTLER, J. Gender trouble. New York: Routledge, Chapmam Hall, 1990.).

As expressões nômades emergentes das travestis exigem que os tempos modulados para garantir a perpetuação de grupos hegemônicos dominantes, heterossexuais, sejam realocados de maneira a entrelaçar outras expectativas sobre as corporalidades, sempre em processualidades, pois, da mesma maneira que “o corpo é a base existencial da cultura” (CSORDAS, 1988 apud BENEDETTI, 2005BENEDETTI, M. R. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro: Garamond, 2005., p. 54), o tempo também a constitui. As travestis e seus tempos não têm seu corpo “visto como algo que é depositário da cultura”, ainda de acordo com o autor, “ou que os fenômenos da cultura”, assim como o tempo, pois são moldados ou tenta-se estrutura-los de qualquer maneira (CSORDAS, 1988 apud BENEDETTI, 2005, p. 54).

As corporalidades travestis podem por vezes estar mais próximas da propositura de Rolnik (1989ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989., p. 72), para a qual os corpos são vibráteis. Estes os são enquanto potencias que circulam, compõem os afetos atravessados pelas várias subjetividades e que necessitam se apropriar de tempos mais nômades, fluidos, não fixos, não rígidos e muito menos excludentes.

Corporalidades e temporalidades que se contrapõem às constantes buscas por modulações, conceituações das pessoas, dos gêneros, das sexualidades, porque determinam noções marcadas que vão desvelando os significados que as sociedades atribuem às estilísticas de vida e validações sobre as mesmas. Neste sentido, os tempos naturais, cronologicizados, anteriormente apresentados como elementares aos seres vivos, historicamente preocupados com os eventos, chocam-se com outras necessidades concretas das pessoas que evidenciam outras perspectivas temporais bem mais flexíveis em detrimento das dimensões naturais.

O tempo que atravessa as travestilidades liga-se ao corpóreo e que “ondula como um peixe”, pois, de acordo com Pelbart (1998PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. São Paulo: FAPESP, 1998., p. 16), “se decide à medida que se move”. Seus resultados, nessas dimensões, podem acarretar consequências para as travestis, que destoam do “natural”, projetados pela ciência psicológica e, por sua vez, pela escola, que seguem tempos etapistas e que marcam, nos corpos, modos inflexíveis, situações de estigmatizações e marginalizações dessas ondulações.

Contrapor-se a essas concepções elementares da natureza é afirmar tempos contemporâneos precários, para além dos cronológicos (presente e passado) e, “a concepção do tempo da idade moderna como laicização do tempo cristão, retilíneo e irreversível”, que, de acordo com Agamben (2005AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005., p. 117), refuta o tempo reto, duro, que não se dissocia de um esquema imóvel, contrariamente fazendo-se “de toda ideia de um fim e esvaziado de qualquer sentido que não seja de um processo estruturado conforme o antes e o depois”, estabelece esses corpos e tempos muito mais flexíveis.

As processualidades das experiências de vida das travestis são renegadas pelos tempos impostos, normativos e cristãos, reproduzidos constantemente pelas práticas escolares. As expectativas e experiências dessas pessoas (com seus corpos), nos seus respectivos tempos, nos levam a considerar problematizações que não eliminam as que já se conhecem, mas apresentam outros olhares às indagações sobre as expressões de gêneros e as sexualidades.

Para Norbert Elias (1998ELIAS, N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.) o tempo tem um caráter de servir de orientação, regular, o universal, natural e social e serviria de modelo de regulação da sua existência. No entanto, depara-se com os contrastes do novo, que destoam desse tempo. Confronta-se às estruturações de uma sociedade mais plural do que o imaginário e o desejado, reconfigurando as velocidades dos tempos, pois diante de processos físicos padronizados pelo homem foram transportados para as atividades sociais, para situar o fluxo do devir ou ainda estabelecer processos avaliativos destas atividades.

Como as sociedades utilizam seus padrões atuais (intencionais) para conceber os conceitos de tempo, em contrapartida à busca de rupturas com o que está posto nesses padrões de sua história. As sexualidades, os gêneros e as corporalidades estão sujeitas aos mecanismos de classificação, poder e regulação estão com quem detém o poder intelectual do conceito de tempo, é quem tem o domínio do real, do agora, de uma mesma maneira de quem detém o poder sobre as sexualidades e os corpos. Estes estão nas instituições normatizadoras da vida, como a escola.

Para Foucault (1988FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber . 13. ed. Rio de Janeiro: Graal , 1988. v.1), as sexualidades, marcadas nos e pelos corpos, parecem mais como um ponto de passagem particularmente denso pelas relações de poder; entre as pessoas, entre os gêneros, entre jovens e velhos, entre pais e filhos, entre educadores e alunos, entre padres e leigos, entre administração e população, nas relações nas escolas. Assim, como o poder do tempo ou do poder, que se estabelece por quem o detém, “a sexualidade não é o elemento mais rígido”, mas o tempo que se opera sobre ela é, de acordo com o autor, “um dos dotados da maior instrumentalidade: utilizável no maior número de manobras, e podendo servir de ponto de apoio, de articulação às mais variadas estratégias” (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, M. História da sexualidade: a vontade de saber . 13. ed. Rio de Janeiro: Graal , 1988. v.1, p. 114).

As tentativas de parametrizações dos que detém esses “certos poderes”, em sua concordância do que se reproduz o tempo/sexualidade, vão dando o tom dos conceitos de normalidade, definindo para quais fins se tem essa normalidade e em que lugar cada pessoa se modula nas relações e quais são os tempos cabíveis. Quando as pessoas travestis, não conseguem se alocar em um desses regulatórios corporais e temporais se dá o processo de exclusão e outras possibilidades e significações temporais dos corpos não são garantidas.

O que não se enquadra nos modelos sociais de comportamentos e significações de vida, como as travestis, somados aos contextos e processos culturais que já lhe são partes, não possuem corpos e tempos validados pelas escolas. E, os tempos, que acreditamos flexíveis e processuais, de acordo com Pelbart (1998PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. São Paulo: FAPESP, 1998., p. 21), coadunam com a ideia de que “ao invés de uma linha de tempo, temos um emaranhado do tempo: em vez de um fluxo de tempo, veremos surgir uma massa de tempo, em lugar de um rio de tempo, um labirinto de tempo”.

Percebemos, ainda, que acerca desses tempos não lineares existem algumas inquietações, haja vista que as ressignificações vão diferindo-se e contrapondo-se aos rótulos que deveriam obedecer. Principalmente sobre as corporalidades temporais das pessoas travestis, há múltiplas produções de tempos e corpos que possibilitam novas nuances na transcontemporaneidade. Circular dessa maneira, muitas das vezes, principalmente para as travestis, não é tão tranquilo e as relações de força, poder e resistências, tão diversas, retomam as intenções de que, de acordo com Peres (2002PERES, W. S. Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania. Rio de Janeiro: PPG/Saúde Coletiva/UERJ, 2002., p. 11),

a formatação da sociedade contemporânea, movida pelos modelos assépticos dos modos de ser no mundo, sempre marcados pelas referências cristãs, patriarcais e heterossexistas, estimula as pessoas a serem verdadeiros policiais das diferenças, discriminando, violentando e excluindo os que fazem escolhas diferentes e singulares.

Como o passado não existe mais, o futuro nunca existiu (AGAMBEN, 2005AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005.), nossos posicionamentos de vida trazem o presente como fundantes para as tensões humanas, de seus tempos, de seus corpos e de suas sexualidades. Observamos que o hoje pode e deve intervir nos confrontos pertinentes nesse mesmo hoje, do agora. De acordo ainda com Agamben (2005AGAMBEN, G. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: UFMG, 2005., p. 120), “assim como o tempo, cuja essência é pura negação, a história não é jamais apreendida no átimo, mas somente como processo global”. Ela se encontra, portanto, subtraída às experimentações vividas na coletividade, “cujo ideal é a felicidade”. O tempo, então, é uma pertença do agora e proporciona estereótipos que buscam classificar a sociedade. Proporciona manifestações dos símbolos construídos pelos valores de cada grupo cultural e de quais elementos e se quer e não quer para com suas instituições, como a escola.

É, nos aspectos da negação, que estão tempos e corpos das travestis. Tempos que não estão capturados nos moldes binários dos grupos dominantes, nem em temporalidades corporais. As travestilidades se inscrevem em suas próprias experimentações, sejam nas variadas sexualidades, sejam nos possíveis gêneros emergentes, que ecoam nas relações na escola e seus entornos; temporalidades que não são estáticas, mas plásticas, informais com variação infinita. O que se revela desde outro tempo as afirma como potencias de vida porque, “é um tempo sem antes nem depois, flutuante, não pulsado, Aion” (PELBART, 1998PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. São Paulo: FAPESP, 1998., p. 112).

Negar esses elementos é perpetuar uma história que provoca dor diante da diferença e a desvalorização das pessoas trazendo a discriminação para a cotidianidade (PERES, 2002PERES, W. S. Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania. Rio de Janeiro: PPG/Saúde Coletiva/UERJ, 2002.).

Os tempos, apenas significados pelos padrões heteronormativos, ordenam as classificações, exclusões e modulações de cada pessoa, que deve se enquadrar nas construções identitárias na mesma proporção desses parâmetros estabelecidos pelos grupos detentores do poder. Os caminhos sequenciais, sectários, delegam em qual etapa cada pessoa deverá situar-se e qual seu status nos cotidianos das relações temporais. Logo, nesse processo, as inovações, as diferenças e as novidades não estão possuídas pelo tempo e as configurações de vidas que transbordam, à esses novos tempos, também são marcados, “identitariamente”, enquanto marginais.

De acordo com Hall (2006HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006., p. 38), “a identidade é realmente algo formado ao longo do tempo, através de processos inconscientes e não algo inerente ao humano, existente na consciência, no momento do nascimento”. E para os gêneros e as sexualidades, e notadamente para a constituição das travestis, a experiência existencial com o tempo não é o mesmo tempo dos padrões heterossexuais. As corporalidades travestis vivenciam suas transformações, não fixando em aspectos de identidades fechadas, pois sempre estão em processos.

As dimensões prováveis das problematizações do tempo permeiam alusões particulares, seja no campo da física, da filosofia ou da psicologia, estando frágeis às novas configurações culturais que as sociedades vão reformatando. Estas novas e outras temporalidades rompem estigmas reproduzidos pelas escolas, que negam o surgimento das diferenças e, as travestilidadess, demandam, em perspectivas temporais de seus corpos, pois, como é do humano/a, o tempo, refletem e é refletido no outro, ressignificações dos direitos básicos e sexuais das pessoas. Com isto, “estaríamos mais próximo, sem dúvida, de um tempo da alucinação do que se uma consciência do tempo” (PELBART, 1998PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. São Paulo: FAPESP, 1998., p. 21).

Não é somente numa visão reducionista kantiana, que conceitua o tempo como interior do ser, subjetivo e a priori da experiência, mas como abstração total de uma singularidade que se multiplica nas relações, portanto, vários são os elementos que entrelaçam as convenções, pois, de acordo com Elias (1998ELIAS, N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998., p. 10),

Ele repousa sobre a hipótese de que nosso saber resulta de um longo processo de aprendizagem, que não teve um começo na história da humanidade. Todo indivíduo, por maior que seja sua contribuição criadora, constrói a partir de um patrimônio de saber já adquirido o qual ele contribui para aumentar. E isso não é diferente no que concerne ao conhecimento do tempo.

O tempo repetitivo, materialista, vai se perdendo pelas processualidades precárias dos novos gêneros, sexualidades e corporalidades não cabendo mais reproduzi-lo como único, mas múltiplo. Essas novas expressões e corporalidades, com seus tempos singulares, não paralisam as outras maneiras potentes de vida, alheios a elas.

Multiplicidades de expressões gêneros e sexuais na escola: estéticas e temporalidades desviantes

As tentativas epistemológicas de fechar parâmetros sobre os modos de ser travesti constroem isso pela via do tempo em perspectivas apenas cronológicas. Logo, nesse contexto, não cabem às expressões travestis e seus tempos, pois o tempo cronológico captura as pessoas por ser constituído e determinado nas intenções de poder nas configurações apenas identitárias, que fixam tempos de formação escolares, ou que os detém; estabelecem os elementos de cada etapa desse processo, já pré-determinados sequencialmente e não são flexíveis; potencializam a objetivação do humano ao invés da subjetivação. As experimentações são impossíveis de acontecer e todas as possibilidades que transbordem aos moldes e tempos postos nesse momento sociocultural dos grupos é negada, enquanto possibilidade humana e seus devires.

Quanto mais pluralidades dos modos de existência, das suas expressões, mais difícil pensar em na Humanidade como definição de sujeito (BRAIDOTTI, 2013BRAIDOTTI, R. Lo Pos-humano. Barcelona: Gedisa, 2013.). A localização da Humanidade como modelo para se pensar e gestar os conhecimentos e o mundo, sobre os sujeitos. O antropocentrismo entra em crise e se faz necessário problematizá-lo. Assim, a travesti se apresenta como elemento controverso aos conhecimentos que pensamos possuir sobre essas Humanidade.

Ela se posta, através, principalmente, de seus corpos, como condição sine qua non das temporalidades de suas expressões de gêneros e sexuais. Nela, o corpo é espaço e tempo referencial para as possibilidades de ressignificação de sua garantia de vida. As organizações internas e externas desses processos imagéticos fornecem elementos, também pré-estabelecidos pelos seus próprios pares e grupos, que buscam marcar quais são os devires possíveis, neste caso, impreterivelmente, flutuante entre as feminilidades e masculinidades.

Os espaços potencializados para essa elaboração e os tempos que lhe são oferecidos nada contribuem para uma afirmação positivada e autêntica para os desejos dessas pessoas. A travesti se faz resistente, paralelamente, aos processos temporais que o grupo ditador, na qual circula, estabelece enquanto aceitáveis, ficando sempre às margens de uma definição concreta das estilísticas da existência.

Então, os processos na contemporaneidade são automaticamente reagentes aos confrontos e essas pessoas se colocam frente a um combate que se torna histórico. Em contrapartida a esse grupo oprimido há o tempo habitual, aquele que está para os dominantes, que o utilizam para as construções identitárias que lhe aprazem, que os heteronormatizam.

Ao explorar esses aspectos de luta e posicionamento de direitos, manifestações nas suas expressões de gênero, nos corpos, nos nomes e em todas as possibilidades de marcações psicossociais, as travestis provocam uma reordenação de referências culturais, sociais, políticas e éticas. Suas lutas constantes pela efetiva participação nas escolhas desses processos, para além do mundo marginal, onde até pouco eram forçadas a viver, se tornam elementos fundantes para uma transformação nas dinâmicas de organização na contemporaneidade e suas intelegibilidades.

Entretanto, diante das barreiras que enfrentam em vivenciar seus tempos de se expressar travesti, fazem com que grande parte, se esforce em perpetuar os padrões heteronormativos e sexistas que sempre impuseram normas a todos as pessoas e deixam seus devires no campo das virtualidades. Mas, por outro lado, há processo de resistência que relutam na ressignificação heteronormativa e promovem borramentos das identidades fixas impostas.

As multiplicidades estéticas, corporais e temporais, que transitam nas escolas e seus entornos, conferem a recusa pelos moldes binários de possibilidades identitárias. Elas não mais se explicam, pois mudanças diárias nos eventos dos cotidianos reterritorializam os fazeres e as pessoas, que estabelecem essas relações de poder e resistências, atribuem múltiplos olhares para a vida. Elas são devires que “só são pensáveis em meio a uma multiplicidade, e o seu tempo é função dessa multiplicidade” (PELBART, 1998PELBART, P. P. O tempo não-reconciliado. São Paulo: FAPESP, 1998., p. 20).

Os próprios movimentos, potencializados pelos coletivos de contestação, dimensionam legítimas defesas desses devires e emergem outros conceitos das produções dos conhecimentos. Nessa perspectiva, concebendo a escola como espaços dessas produções, são esses tempos múltiplos e flexíveis que devem transitar nesses universos. São nesses tempos de formação humana que podem-se garantir paradigmas que agreguem as diversidades.

Os processos educativos escolares, formais e informais, denotam práticas, currículos e relações que afirmam tempos contínuos, processuais e regulares. As singulares e multiplicidades dos modos de vida insurgentes com outros tempos e corporalidades, rompem com estas. As problematizações dessas temporalidades e corporalidades travestis somam-se aos meandros que acreditamos sobre as potências de vidas mapeadas nos cotidianos escolares e mesmo porque, de acordo com Peres (2002PERES, W. S. Subjetividade das travestis brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania. Rio de Janeiro: PPG/Saúde Coletiva/UERJ, 2002., p. 12),

[…] apesar das experiências de exclusão nas quais as travestis são expostas, que lhes negam direitos essenciais à vida, tal como o de se relacionar de forma igual a todo mundo, as travestis vão compondo um mundo no qual é possível inclusive produzir felicidade, dentro de uma subcultura que vai conquistando espaços e construindo novas práticas de solidariedade e tolerância, rumo à promoção e à educação para uma cultura de paz.

Logo, trazer para as arenas das ideias e produções, que potencializem as travestilidades, seus tempos flexíveis, seus corpos fluídos, vibráteis, expressões de gêneros nômades, vidas precárias e sexualidades múltiplas, é positiva-las, assumi-las, contemplá-las e respeitá-las. É romper com uma supremacia, há tempos, perpetuada em nossa sociedade, que hierarquiza os conceitos binários essencialistas, que estigmatiza as feminilidades, as masculinidades, as práticas sexuais dos corpos não biologizados e que busca marginalizar, via discursos institucionalizados, como os da escola, os desejos e as estilísticas de vida enquanto melhores ou piores.

Fazer emergir alguns aspectos dessas e outras travestilidades, nos contextos acadêmicos, dialogando com as mais interessadas sobre essas problematizações, as próprias travestis, é se comprometer, eticamente e politicamente, com produções psicossociais, educacionais e científicas, de maneira a garantir que os direitos básicos de todas as pessoas sejam contemplados por essas dinâmicas de problematizar algumas nuances sobre as múltiplas vidas potentes e tempos singulares.

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  • 1
    . Intercessor é para Deleuze (DELEUZE; PARNET, 1992, p. 156) “O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Podem ser pessoas - para um filósofo, artistas ou cientistas; para um cientista, filósofos ou artistas - mas também coisas, plantas, até animais, como em Castañeda. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso fabricar seus próprios intercessores.”
  • 2
    Sigla que representa as pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2015
  • Aceito
    04 Out 2016
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