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O EXERCÍCIO DA SOCIOANÁLISE NA DOCÊNCIA: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE A SOCIOLOGIA E A PESQUISA-FORMAÇÃO

THE EXERCISE OF SOCIOANALYSIS IN TEACHING: AN ARTICULATION BETWEEN SOCIOLOGY AND ACTION-FORMATION-RESEARCH

EL EJERCICIO DEL SOCIOANÁLISIS EN LA DOCENCIA: UNA ARTICULACIÓN ENTRE SOCIOLOGÍA E INVESTIGACIÓN-FORMACIÓN

RESUMO

O artigo defende que a socioanálise, tida como operacionalização de recursos sociológicos para investigar a trajetória de si, quando mobilizada como ferramenta pedagógica, resulta na confluência de duas tradições das ciências sociais e da educação, a sociologia compreensiva em seus variados matizes e a pesquisa-formação. Em seguida, argumenta que a socioanálise pode colaborar para o entendimento da teia de relações sociais e elementos estruturais que beneficiam ou dificultam a permanência na universidade. Para isso, apresenta excertos de diários de afiliação de dois estudantes da disciplina Sociologia da Educação, voltada para as licenciaturas de uma universidade pública federal. Conclui que o dispositivo, inspirado na etnometodologia de Alain Coulon, oferece a possibilidade de conciliar o saber sociológico com a escuta sensível e inspirar os estudantes a mobilizarem recursos como esse em suas práticas docentes futuras.

Palavras-chave
Socioanálise; Pesquisa-formação; Socialização; Biografia

ABSTRACT

The article argues that socioanalysis, seen as the operationalization of sociological resources to investigate one’s own trajectory, when mobilized as a pedagogical tool, results in the confluence of two traditions of social sciences and education, comprehensive sociology in its varied nuances and action-formation-research. Afterward, it argues that socioanalysis can contribute to capturing the web of social relationships and structural elements that facilitate or hinder staying at university. For this purpose, it presents excerpts from affiliation diaries of two students in the subject Sociology of Education, focused on undergraduated courses at a federal public university. It concluded that the device, inspired by Alain Coulon’s ethnomethodology, offers the possibility of combining sociological knowledge with sensitive listening and inspiring students to mobilize resources like this in their future teaching practices.

Keywords
Socioanalysis; Action-formation-research; Socialization; Biography

RESUMEN

El artículo sostiene que el socioanálisis, visto como la operacionalización de recursos sociológicos para investigar la trayectoria del yo, cuando se moviliza como herramienta pedagógica, resulta en la confluencia de dos tradiciones de las Ciencias Sociales y de la Educación, la sociología compreensiva en sus variados matices y la investigación. formacíon. Luego se sostiene que el socioanálisis puede ayudar a comprender la red de relaciones sociales y elementos estructurales que benefician o dificultan la permanencia en la universidad. Para ello, presenta extractos de “diarios de afiliación” de dos estudiantes de la disciplina sociología de la educación, enfocados en carreras de una Universidad Pública Federal. Concluimos que el dispositivo, inspirado en la etnometodología de Alain Coulon, ofrece la posibilidad de conciliar el conocimiento sociológico con una escucha sensible e inspirar a los estudiantes a movilizar recursos como este en sus futuras prácticas docentes.

Palabras clave
Socioanálisis; Investigación-formación; Socialización; Biografía

Introdução

N este texto, defendemos que a socioanálise, tida como a operacionalização de conceitos e argumentos sociológicos para investigar a própria trajetória, quando mobilizada como ferramenta pedagógica, resulta na confluência de duas importantes tradições das ciências sociais e da educação, a sociologia compreensiva em seus variados matizes e a pesquisa-formação. Além disso, apresentamos um dispositivo pedagógico que tem sido usado por nós, autoras, mas também por outros docentes, embora com algumas diferenças de orientação e formato, no âmbito do curso de Sociologia da Educação para as licenciaturas em uma universidade pública federal da Região Sudeste do Brasil. Tal dispositivo, elaborado pelos estudantes sob orientação dos professores, tem a forma de uma autobiografia sociologicamente orientada. Acreditamos que a sua virtude seja a possibilidade de oferecer ferramentas analíticas de objetivação sociológica e orientações de produção da escrita de si que atuam no sentido da democratização da habilidade de narrar – e compreender – as relações, os contextos e as situações significativos de uma trajetória vital. A articulação, na forma de narrativa, entre as experiências individuais e o espaço social é exercício apto à aquisição de um bem simbólico que Christine Delory-Momberger (2021)DELORY-MOMBERGER, C. Da condição à sociedade biográfica. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, e77147, 2021. https://doi.org/10.1590/0104-4060.77147
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nomeia de “capital biográfico”, o qual é desigualmente distribuído em nossa sociedade, sendo mais comumente apropriado pelas classes médias e altas.

Como docentes, por meio do dispositivo aqui descrito, procuramos ajudar o estudante a fazer um exercício de socioanálise, isto é, buscamos oferecer as ferramentas para que ele possa aprender a objetivar seu ambiente social original, a identificar as principais características do seu universo de socialização, a pensar de maneira relacional, a desnaturalizar os determinantes sociais da trajetória escolar e, como tal, a mobilizar uma postura reflexiva, a fim de que se sinta à vontade e autorizado a falar de e sobre si mesmo. Baseamo-nos no pressuposto de que, como afirma Alain Coulon (2008)COULON, A. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: Editora da UFBA, 2008., o mundo social é constantemente disponível, descritível, inteligível, relatável e analisável. Fazemos isso conscientemente, descrevendo nossas ações, nossos sentimentos, nossas opiniões sobre o mundo. Para o sociólogo, os marcadores mais competentes se expressam, via de regra, na escrita e na oralidade, na inteligência prática, na nossa capacidade ortográfica, lexical e social de registrar o mundo da vida. A atividade de socioanálise é elaborada ao final do curso, mas a atenção à perspectiva biográfica ocorre ao longo de todo o semestre e envolve a escolha da bibliografia, a seleção das demais atividades, que servem de apoio a esse texto final, além do próprio diálogo, construído em sala de aula.

Nas seções seguintes, elaboramos a problematização do tema, propondo um cenário, dos muitos possíveis, dadas a amplitude e a diversidade da produção relativa a ele, cuja perspectiva biográfica atravessa os campos da sociologia e da educação; descrevemos a metodologia por meio da qual operamos a apropriação da autobiografia de orientação sociológica nos nossos cursos; e analisamos alguns excertos de textos autobiográficos produzidos pelos estudantes no âmbito da disciplina Sociologia da Educação.

Problematização do Tema: A Socioanálise como Experiência que Conecta a Sociologia com a Pesquisa-Formação

Nas palavras do sociólogo brasileiro Florestan Fernandes (1963, p. 95)FERNANDES, F. A sociologia numa era de revolução social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963., a sociologia é a “autoconsciência científica do seu tempo”. A especificidade desse tipo de conhecimento está no fato de que ele mostra e altera, ao mesmo tempo, as condições de realização social do que a ciência revela (Martins, 2020MARTINS, J. S. Desafios póstumos da sociologia de Florestan Fernandes. Estudos Avançados, v. 34, n. 100, p. 223-242, 2020. https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.34100.014
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). Na visão de Émile Durkheim (2013), caberia à sociologia decifrar cientificamente a sociedade sobre a qual o trabalho pedagógico deveria incidir. No Brasil, foi essa a concepção que, com a filosofia pragmatista de John Dewey, animou o conjunto de intelectuais que idealizaram a escola pública destinada a grandes contingentes populacionais.

O projeto de articular as ciências sociais e a educação no Brasil é exemplarmente declarado no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (Brasil, 1932BRASIL. Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Brasil, 1932. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me4707.pdf. Acesso em: 26 fev. 2024.
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). Nos Estados Unidos e na França, igualmente, à sociologia era destinada a tarefa de examinar a vida educacional para que políticas de investimento público a aprimorassem. O célebre Relatório Coleman (1966)COLEMAN, J. Equality of educational opportunity. Washington, D.C.: Office of Education; US Department of Health, Education and Welfare, 1966., juntamente com o conjunto de estudos de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (1970)BOURDIEU, P.; PASSERON, J.-C. La reproduction: Eléments pour une théorie du système d’enseignement. Paris: Editions de Minuit, 1970. e de Baudelot e Establet (1971)BAUDELOT, C.; ESTABLET, R. L´école capitaliste en France. Paris: François Maspero, 1971., depois reunidos sob a denominação de “teorias da reprodução”, colaborou para a consagração da ideia de que era preciso examinar cientificamente a vida social para transformá-la, fosse de forma radical, fosse progressiva. Dessa produção intelectual que remonta à fundação da sociologia, herdamos a convicção de que o exame da realidade deve preceder o trabalho educativo. Isso se deu, primordialmente, no âmbito dos diagnósticos sociais que antecederam a elaboração de políticas educacionais.

A sociologia, entretanto, pode ser utilizada também para a compreensão de movimentos que se desdobram em dimensões reduzidas, embora estes sempre possam ser reconstituídos a processos mais amplos e temporalmente mais longos. No caso dos temas educacionais, a redução da escala de análise (quando o que se focaliza são processos ocorridos no âmbito das instituições, das configurações familiares ou mesmo de trajetórias individuais) tem o suporte de métodos de investigação e de teorias sociais que privilegiam a capacidade narrativa e descritiva dos agentes.

São diversas as origens da produção de uma sociologia mais interessada nas formas de percepção, ação e elaboração individuais. Se a fenomenologia de Georg Simmel foi aproveitada por uma pesquisa social atenta ao cotidiano e às trajetórias individuais na escola de sociologia de Chicago, com Alfred Schütz e seu projeto de uma fundamentação fenomenológica da sociologia compreensiva, o potencial analítico de uma sociologia interpretativa foi significativamente alargado. De Harold Garfinkel a Pierre Bourdieu, passando por Erving Goffman, Anthony Giddens, Alain Coulon e pelo construtivismo de Peter Berger e Thomas Luckmann, as bases teóricas oferecidas por Schütz ajudaram a aprimorar uma compreensão da realidade em que as interações sociais e as atitudes individuais merecem ênfase.

As correntes que produziam uma fenomenologia da vida social se afinaram com a microstoria e com pesquisas que analisavam relatos de vida, considerados por Philippe Lejeune (2016)LEJEUNE, P. Je est un autre: L’autobiographie, de la littérature aux médias. Cidade: Média Diffusion, 2016. um gênero híbrido, entre a autobiografia e a biografia. Obra exemplar no uso de relatos de vida são Los hijos de Sánchez (1961), de Oscar Lewis, tida por François Dosse (2009)DOSSE, F. O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo: Edusp, 2009. como um evento editorial modelar para a difusão e legitimação da abordagem. Na mesma época, foi publicado o livro Worker in the Cane: a Puerto Rican Life Story (1960), de Sidney Mintz, uma belíssima utilização das histórias de vida na pesquisa antropológica e uma importante colaboração para os estudos sobre a relação etnográfica, dada a análise da relação da amizade do etnógrafo com Don Taso, personagem central da obra.

Paralelamente a esse processo de enfoque no mundo cotidiano, de valorização do relato dos pesquisados e de interesse nas maneiras de justificação das atitudes e dos discursos individuais, as histórias de vida e narrativas tiveram seu tratamento renovado por um grupo de pesquisadores que integraram um amplo movimento das ciências humanas e sociais nomeado de virada narrativa. Tendo na obra de Paul Ricoeur (1994)RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. v. 1. seu ancoramento matricial, diversas áreas ligadas à saúde, assistência social, psicologia, educação, sociologia etc. se empenharam no aprimoramento da questão ricoeuriana primordial, a da relação entre identidade e narrativa:

A ideia central da abordagem narrativa é a seguinte: é por meio da narrativa que damos sentido ao mundo ao nosso redor, nos situamos nele e construímos nossa identidade, essa “identidade narrativa” pela qual existimos. Esta abordagem anda de mãos dadas com uma visão construtivista, não só do mundo social, mas também dos relatos biográficos. Numa abordagem construtivista consideramos, sem negar a materialidade do mundo, que participamos da sua configuração, da construção dos respectivos lugares e do sentido que os seres assumem, neste caso, por meio de nossas histórias

(Grard, 2017GRARD, J. Approche(s) narrative(s) et récit à la première personne. Généalogie et politiques de l’enquête. Vie Sociale, n. 20, p. 85-98, 2017. https://doi.org/10.3917/vsoc.174.0085
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, p. 88)1 1 Tradução nossa. No original: “L’idée au cœur de l’approche narrative est la suivante: c’est à travers la mise en récit que nous donnons sens au monde qui nous entoure, nous situons en son sein, et construisons notre identité, cette « identité narrative » par laquelle nous existons. Cette approche va de pair avec une vision constructiviste, non seulement du monde social mais aussi des récits biographiques. Dans une démarche constructiviste on considère, sans pour autant nier la matérialité du monde, que nous participons à sa configuration, à la construction des places respectives et du sens que prennent les êtres, dans le cas présent, à travers nos récits”. .

Embora não tenhamos condições de, no espaço deste artigo, nos estendermos sobre as reverberações da virada narrativa na produção sociológica, podemos afirmar que ela impulsionou mudanças importantes, conferindo um novo estatuto aos relatos dos pesquisados e à relação de pesquisa. Antes da virada narrativa, os relatos de vida tinham sua utilização concentrada nas pesquisas que objetivavam explicar um tempo social, um contexto social específico, uma trajetória social excepcional ou de referência para um grupo cultural. Além disso, valorizava-se, como ainda se valoriza, a capacidade de relatos detalhados e abundantes sobre um indivíduo, ou pequenos grupos de pessoas servirem de apoio para a verificação empírica de teorias sociais ou antropológicas. Nesse paradigma, de modo geral, a intenção de pesquisa e a hierarquia nela constituída permanecem presentes, apesar de levemente alteradas pelo lugar de destaque atribuído às falas dos pesquisados e pela explicitação e análise da relação de pesquisa, de que é exemplar, como já mencionado, a análise de Sidney Mintz (1984)MINTZ, S. W. Encontrando Taso me descobrindo. Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 45-58, 1984. sobre a confiança que sustentava a sua relação de amizade com Don Taso.

A virada narrativa reúne um grupo de pesquisadores que oferecem uma nova perspectiva, notadamente para o lugar das elaborações dos interlocutores. Desse modo, o relato passa a expressar as competências dos atores para promoverem sentido e para justificar suas ações, em vez de serem recurso para a decifração de algo maior e mais complexo, inapreensível pelos narradores e explicável pelo sociólogo. O foco, então, passa a ser em como os atores montam seus discursos (incluindo seu encadeamento cronológico), configuram suas narrativas (constroem as relações de causa e efeito dos acontecimentos narrados) e avaliam suas ações. Luc Boltanski, cuja obra sofreu uma inflexão em grande medida motivada pela teoria narrativa de Paul Ricoeur, resume as transformações provocadas por aqueles que embarcaram na virada narrativa como uma passagem da sociologia crítica (tendo em Bourdieu seu representante contemporâneo mais importante) para a sociologia da crítica, ou seja, uma sociologia que toma como objeto a maneira como os atores justificam suas práticas e ações cotidianas. As histórias sobre si são vistas não como expressão de uma “ilusão biográfica”, nas palavras de Bourdieu (1986)BOURDIEU, P. L’illusion biographique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, v. 62-63, p. 69-72, jun. 1986.2 2 “Segundo o sociólogo francês, a biografia sofreria de uma espécie incontornável de mal de origem: ela sempre seria apresentada como um percurso coerente através do qual o biografado busca justificar a sua posição social no momento em que relata a sua história de vida. Daí viriam as ideias de coerência do percurso e de sentido existencial concretizado num projeto original. Este, por sua vez, seria realizado em etapas cronologicamente reconstituíveis. Tratar-se-ia, em suma, da ideologização de uma trajetória” (Coutinho, 2021) , ou “ideologia biográfica”, nas de Bertaux (1997)BERTAUX, D. Histoires de vie ou récits de pratiques? Méthodologie de l’approche biographique en sociologie. Rapport au Cordes. In: BERTAUX, D. Les récits de vie. Paris: Nathan, 1997. p. 1-128., mas como construtos cujo sentido subjacente o sociólogo se empenha em compreender.

Quanto ao campo da educação, ele se aproximou ainda mais da ideia central de Ricoeur (1994)RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994. v. 1., dando à narrativa de si o lugar de formação e autoformação. O filósofo defende que as narrativas nos ensinam algo, a nós que a construímos e aos outros com quem as compartilhamos. O pressuposto que sustenta esse primado teve como “célula melódica” a Poética aristotélica, para a qual as obras caracterizadas pela tessitura de intrigas (escritos que representam – daí a ideia de mimesis – sujeitos em ação) contêm, em comparação com o raciocínio teórico, uma inteligibilidade narrativa mais apta a estender para futuras gerações as lições morais e as tramas culturais presentes ali. Considerando que tomamos ações corriqueira e sucessivamente, mas não possuímos uma memória capaz de associar todas as sucessões da vida, a intriga possibilita o aprendizado na medida em que é resultado da configuração das ações em palavras, bem como das palavras em um formato compreensível e apreensível, de modo que:

Um acontecimento é muito mais que um evento, quer dizer, algo que simplesmente ocorre: o acontecimento é o que contribui tanto para o desenvolvimento do relato quanto para seu início e seu desfecho final. Em relação a isso, a história narrada é sempre mais do que a simples enumeração, em ordem serial ou sucessiva, de incidentes ou eventos, porque a narração os organiza em um todo inteligível

(Ricoeur, 2006RICOEUR, P. La vida: un relato en busca de narrador. Ágora – Papeles de Filosofía, v. 25, n. 2, p. 9-22, 2006., p. 10)3 3 Tradução nossa. No original: “Un acontecimiento es mucho más que uma ocurrencia, es decir, algo que simplemente sucede: el acontecimiento es el que contribuye al desarrollo del relato tanto como a su comienzo y a su final desenlace. En relación a esto, la historia narrada es siempre más que la simple enumeración, en un orden seriado o sucesivo, de incidentes o acontecimientos, porque la narración los organiza en un todo inteligible”. .

Com fundamento no princípio de que a narrativa de si atua como mediação hermenêutica para a constituição da identidade, a virada narrativa está perfeitamente alinhada a correntes do campo educacional que passaram a reivindicar, ainda que por diferentes práticas de trabalho, a produção e a difusão de recursos para a autoformação, fossem eles ligados mais diretamente à pesquisa, fossem ao ensino.

A corrente pedagógico-biográfica4 4 Destacamos as perspectivas intituladas pesquisa biográfica em educação, que tem Christine Delory-Momberger como fundadora, bem como histórias de vida em formação, inaugurada na França na década de 1980 por Gaston Pineau e também conhecida como formação de adultos. A metodologia utilizada permite ao autor do relato construir a história da sua vida, ou seja, (re)conhecer na sua experiência um percurso orientado e finalizado e (re)conhecer-se a si próprio no discurso que constrói. Esse processo de construção identitária é reforçado pelos modos de funcionamento do grupo de formação: produzida em público segundo um protocolo informado antecipadamente, a história torna-se o objeto de diálogo coletivo. , que se constituiu no fim dos anos 1970 e se desenvolveu na década de 1980, explora a abordagem biográfica como um instrumento ao mesmo tempo de formação e de pesquisa, como apoio a uma pedagogia de autoformação que se baseia na experiência de vida dos aprendentes. O conceito de autoformação em ciências da educação foi amplamente trabalhado por diversos autores, tais como Paulo Freire, Carl Rogers, Gaston Pineau e Pierre Dominicé.

Nessa perspectiva, a obra de Gaston Pineau e Marie-Michèle (1983)PINEAU, G.; MARIE-MICHÈLE. Produire sa vie: autoformation et autobiographie. Paris: Edilig; Montréal: St Martin, 1983. Produire sa vie: autoformation et autobiographie é tida como uma contribuição fulcral. Foi escrita em coautoria, por um pesquisador em educação de adultos e por uma mulher, dona de casa, participante da à época emergente pesquisa-formação com histórias de vida, e publicada pela primeira vez em 1983 no Canadá e na França. A obra produziu reflexões metodológicas, epistemológicas e teóricas que problematizam as demarcações entre pesquisador e pesquisado, entre pesquisa e formação e entre saber experiencial e conhecimento erudito. O relato autobiográfico seria não somente uma fonte para o conhecimento sobre processos sociais e percursos individuais, mas também um instrumento de formação e autoformação. Essa diferença tem consequências teóricas, metodológicas e éticas relevantes.

Se na pesquisa em ciências sociais, de maneira geral, não temos nenhuma pretensão especial de autoformação da parte do sujeito de pesquisa, naquelas perspectivas mencionadas, que trabalham a dimensão biográfica em educação, os objetivos de formação “colonizam” os objetivos de pesquisa, fazendo com que se torne necessário repensar a relação entre pesquisador e pesquisado, bem como as hierarquias entre a explicação do pesquisador e o sentido que o pesquisado atribui aos relatos e às descrições produzidos. Munida de protocolos e orientações metodológicas e éticas específicas, que têm como objetivo primordial o direcionamento de uma prática de escrita de si e não a coleta de um relato, a (auto)biografia como pesquisa-formação forma o narrador, que pode então falar de si na posição também de um pesquisador de si. Assim, como afirma Josso (2010, p. 91)JOSSO, M.-C. Caminhar para si. Porto Alegre: ediPUCRS, 2010.:

Quando o instrumento de pesquisa, em primeira e última instância, é o sujeito humano, e quando a observação depende do domínio de qualidades e sensibilidades psíquicas, é necessário introduzir no processo de pesquisa um processo de aprendizagem, de tal sorte que sua coevolução crie as condições mais favoráveis à observação [...]. Por outro lado, as interferências do processo de pesquisa na vida das pessoas obrigam, mais imperativamente ainda que em outros casos, a negociar, e, portanto, a clarear o grau de implicação e os usos do material posto à disposição da reflexão.

Do mesmo modo, os temas a serem enfrentados decorrem mais de uma hierarquia de relevância construída pelo narrador do que dos interesses apriorísticos do pesquisador. Além disso, apresenta-se como imperativo repensar a apropriação analítica do relato, que deixará de ser uma espécie de ilustração das formulações do pesquisador para se tornar uma tarefa de explicitação do sentido e da lógica que o antecedem e subjazem a ele e, ao mesmo tempo, que se modificam enquanto são organizados narrativamente. Enfim, se pensarmos em uma espécie de micropolítica da investigação acadêmica, a pesquisa-formação tende a embaralhar as estabelecidas relações de poder da situação de pesquisa à medida que o narrador/aprendente/pesquisado passa a conhecer o valor que as elaborações produzidas em seu mundo interior possuem para o mundo acadêmico, ao mesmo tempo que tem acesso a maneiras de interpretar a si mesmo e conhece mais profundamente o processo de pesquisa acadêmica.

Nos últimos 40 anos, diversos pesquisadores articularam o interesse pelo exame da vida social aos métodos e primados éticos da pesquisa-formação. Marie-Christine Josso (2010)JOSSO, M.-C. Caminhar para si. Porto Alegre: ediPUCRS, 2010. e Christine Delory-Momberger (2021)DELORY-MOMBERGER, C. Da condição à sociedade biográfica. Educar em Revista, Curitiba, v. 37, e77147, 2021. https://doi.org/10.1590/0104-4060.77147
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destacam-se como precursoras da articulação entre os métodos das perspectivas autobiográficas em educação e o aporte conceitual e os interesses de pesquisa da sociologia.

A obra de Vincent de Gaulejac (2006)GAULEJAC, V. As origens da vergonha. São Paulo: Via Lettera, 2006., fundador da chamada sociologia clínica, também tem sido importante para os textos autobiográficos de nossos estudantes. Sua abordagem articulou as dimensões sociais e psíquicas, utilizando autobiografías de romancistas, entrevistas, relatos orais ou escritos. Muitos desses relatos foram elaborados no âmbito do experimento “Romance familiar e trajetória social”, consistente em grupos de “pesquisa e implicação” (Gaulejac, 2006GAULEJAC, V. As origens da vergonha. São Paulo: Via Lettera, 2006., p. 17), que por 20 anos atuaram com pessoas dispostas não só a compartilhar suas histórias, mas a produzir, juntamente com os grupos, interpretações para elas. A sociologia clínica, assim como a pesquisa formação, desafia-nos em vários aspectos: traz a transferência e a contratransferência no coração da análise – assunto sobre o qual tratou com profundidade Charles Devereux (1980)DEVEREUX, G. De l’angoisse à la méthode dans les sciences du comportement. Paris: Flammarion, 1980. no âmbito da etnopsiquiatria –, ressignificando a relação entre o pesquisador e os seus interlocutores, retomando então criticamente os temas da neutralidade e da objetividade e repensando os desafios da implicação e do engajamento do pesquisador (Gaulejac; Hanique; Roche, 2007GAULEJAC, V.; HANIQUE, F.; ROCHE, P. (dir.). La sociologie clinique: Enjeux théoriques et méthodologiques. Paris: Eres, 2007.).

Como afirma Pineau (2012)PINEAU, G. Histoire de vie et formation de soi au cours de l’existence. Sociétés, n. 4, p. 39-47, 2012., Vincent de Gaulejac desenvolve, com as histórias de vida na sociologia clínica, uma abordagem ao mesmo tempo próxima e diferente da perspectiva das histórias de vida em formação. A dimensão de implicação do pesquisador e do resultado formativo, do ponto de vista do incremento da compreensão de si e de sua trajetória, integra a abordagem de Gaulejac, porém o autor questiona a possibilidade de romper com qualquer hierarquia entre o pesquisador e seus interlocutores, assim como os limites da transparência a ser alcançada na relação de pesquisa (Abels-Eber, 2010ABELS-EBER, C. Gaston Pineau: trajet d’un forgeron de la formation. Regards croisés de compagnes et compagnons de route. Paris: L’Harmattan, 2010.). Muito vinculado à sociologia crítica, notadamente à bourdieusiana, assim como à psicanálise, Gaulejac (2006)GAULEJAC, V. As origens da vergonha. São Paulo: Via Lettera, 2006. desconfia da nossa capacidade, como seres socializados, de deixar de lado toda a violência simbólica integrante na relação de pesquisa. O autor defende a necessidade de que essa relação seja tomada como objeto e examinada, mas não acredita na possibilidade de neutralização das hierarquias a ela subjacentes.

A colaboração metódica entre pesquisa-formação, psicologia e sociologia na compreensão de sentimentos como o amor, a humilhação e a vergonha produz recursos poderosos para refletir sobre a coabitação entre o exterior e o interior, a objetividade e a subjetividade, a realidade e a representação, colocando sob escrutínio os limites disciplinares entre as ciências humanas e sociais. Ao longo dos anos em que trabalhamos com as autobiografias dos estudantes, aprendemos a reconhecer os temas sensíveis às suas trajetórias e temos observado que alguns dos assuntos privilegiados pela sociologia clínica são frequentemente evocados por eles. Um deles é a vergonha, sentimento moral que, por excelência, articula o social e o psíquico.

Sendo um conjunto complexo de afetos, emoções, fantasias, reações e experiências que se amalgamam, o sentimento de vergonha é por isso denominado de metassentimento por Vincent de Gaulejac (2006)GAULEJAC, V. As origens da vergonha. São Paulo: Via Lettera, 2006.. Embora seja facilmente identificável por quem o experimenta no momento mesmo em que acontece, dada sua força emocional, a determinação de suas causas é dificilmente apreendida. Por um lado, o sentimento de vergonha pode envolver aspectos estruturais (ligados à condição de classe, por exemplo) situacionais, interpessoais e intrapessoais. Por outro, costuma guardar uma relação estreita com segredos, omissões e mentiras. Para esse primeiro conjunto de características, a objetivação sociológica mostra-se bastante útil. Assim, a vergonha por não falar uma língua estrangeira, por exemplo, pode ser elaborada e amenizada com a ajuda de explicações das ciências sociais acerca da herança cultural. No caso do segundo grupo de questões, um segredo revelado em um trabalho avaliativo destinado a uma professora de Sociologia capaz de compreender as perturbações pessoais com base em sua relação com problemáticas mais abrangentes, sensível à compreensão da trajetória pessoal conectada com questões sociais e hábil, portanto, a operar um distanciamento zeloso que beneficia a confissão na medida em que suspende o julgamento banal incentiva a autoanálise e opera seu efeito terapêutico.

Desta sorte, reconhecemos nessa abordagem uma intenção cada vez mais imperativa de dissolver as fronteiras que regem, no cotidiano da sala de aula, o existencial e o social. Não ignorar o sofrimento que muitas vezes se materializa, para os estudantes universitários, nas situações de abandono, evasão ou falta de condições para prosseguir, evidencia a importância da sociologia clínica, que se fortalece no método das histórias de vida. Por se estabelecer no coração das articulações entre a análise e o vivido, a objetividade e a subjetividade, a razão e a emoção e o exame analítico e a compreensão de si, acreditamos que a sociologia clínica é um importante apoio para o exercício de socioanálise na formação de professores.

Metodologia: a Descrição de um Dispositivo Pedagógico

Na seção anterior, buscamos problematizar tanto a polimorfia da perspectiva biográfica quanto o vigor da sua utilização. Passaremos agora à análise de como temos nos apropriado desse dispositivo no nosso trabalho como formadoras de professores. Buscamos elucidar um movimento que vem sendo realizado na disciplina Sociologia da Educação direcionada aos alunos de 14 licenciaturas da universidade federal na qual lecionamos. É frequente a avaliação dos estudantes de que, de maneira geral, esses trabalhos são os mais proveitosos do semestre. Acreditamos que a eficácia desse tipo de dispositivo pedagógico se expressa em pelo menos três dimensões:

  • Como recurso para apreensão de conceitos e processos sociológicos centrais do curso;

  • Como desenvolvimento da “imaginação sociológica” a ser aproveitada tanto na atividade docente que desempenharão quanto em outros contextos de suas vidas;

  • Como processo de conhecimento de si, indispensável para o exercício de uma docência reflexiva e que se torna tão mais importante quanto maiores são os desafios a serem enfrentados nas vidas pessoal e profissional.

O aprimoramento da metodologia é feito a cada semestre e recebe adaptações em consideração ao perfil da turma (como nas turmas são reunidos estudantes de vários cursos, a cada semestre a feição da turma varia consideravelmente). Assim, por exemplo, podemos optar por incluir no programa da disciplina materiais que dialoguem de forma mais produtiva com os cursos predominantes, o que repercute nas avaliações finais, consistentes no exercício de socionálise, que pode acontecer na forma de um diário (diário de afiliação), de um relato memorial ou de uma análise autobiográfica dos processos de socialização (estudo de trajetórias). Neste artigo, apresentaremos e analisaremos, na próxima seção, trechos dos trabalhos do primeiro semestre de 2021. Na ocasião, a professora responsável pela disciplina e uma das autoras deste artigo trabalhou com os diários de afiliação, sempre tomando como eixo analítico o repertório sociológico da disciplina ofertada.

O método utilizado nesse recurso pedagógico é inspirado na proposta oferecida por Alain Coulon (2008)COULON, A. A condição de estudante: a entrada na vida universitária. Salvador: Editora da UFBA, 2008.. Em resumo, designa um trabalho de autoanálise das três fases típicas do processo de socialização acadêmica: estranhamento, aprendizagem e afiliação. Os estudantes são chamados a refletirem sobre as causas do estranhamento (o que estimula a reflexão sobre as determinantes sociais dos desejos, condutas e escolhas), a descrever como têm lidado com o aprendizado dos códigos, formas, saberes e relações acadêmicas e a refletir sobre como tem se dado o processo de afiliação5 5 Importa notar que muitas vezes estudantes já no fim do curso de graduação dizem não se sentir afiliados. Problemas financeiros e inseguranças acerca dos recursos culturais e técnicos adquiridos costumam estar presentes nas narrativas daqueles que se sentem desafiliados. , ou seja, a relação com os espaços e tempos universitários, com as regras institucionais, com o retorno dos docentes, com a adesão a diferentes grupos e atividades da vida estudantil, além do desenvolvimento intelectual. Quanto à forma do diário, recomendamos que essas diferentes fases sejam consideradas como fases sucessivas, para aqueles que se identificarem com essa ordenação temporal, ou como dimensões que se apresentam nas diferentes etapas do cursus. Nós incentivamos o exercício de alguma liberdade expressiva. Assim, muitas vezes são acrescentados ao texto imagens, poemas, letras de canções, desenhos etc.

Importa destacar os benefícios para as docentes do curso de Sociologia da Educação. Encontramos nos relatos dos estudantes rico material empírico para o aprimoramento do curso e mesmo para a compreensão dos aspectos mais subjetivos dos processos de socialização familiar, escolar e acadêmica. Além de ser um dispositivo pedagógico eficaz e de proporcionar um aprimoramento muito concreto para os docentes da disciplina, um último e mais delicado motivo se faz presente. Diante de uma ampla crise social que se radicalizou ao longo da pandemia de Covid-19, os relatos autobiográficos e toda a preparação pedagógica que neles culmina possuem, para os alunos que se engajam no processo, um efeito terapêutico que pode colaborar para o processo de afiliação em um curso superior. Nessa dimensão terapêutica, muitos de nós procuramos nos engajar, de maneira às vezes assistemática e experimental, ante a constatação de uma triste realidade que agrava a já amplamente documentada desigualdade educacional brasileira, a do crescimento do adoecimento mental entre os nossos estudantes.

A seguir, recortamos excertos dos diários de afiliação de dois estudantes que cursaram a disciplina Sociologia da Educação no ano de 2021/1. Os textos foram produzidos com o apoio das orientações que sintetizamos no Quadro 1.

Quadro 1
Orientações para o diário de afiliação.

Carlos

Carlos é um aluno do curso de Física. Durante as aulas, expressava-se de maneira tímida e discreta. Em seu diário de afiliação, faz uma análise dolorosa das pequenas violências cotidianas que, para ele, estavam sempre imbricadas entre a casa e a escola. Nas entrelinhas de seu relato, é possível perceber o sentimento de humilhação que o acometia nas tantas vezes em que era submetido à violência física por parte de sua mãe:

Os primeiros anos de vida conjugal dos meus pais foram turbulentos, para dizer o mínimo, e isso me afetou de forma agressiva e direta. Meu pai teve problema com bebidas, e o relacionamento entre os dois ia mal, brigavam muito. Minha mãe, na maior parte do tempo em casa, ocupava-se das tarefas domésticas. Ela era violenta e me batia. Esse cenário fez com que me desprendesse da sensação de pertencimento à família, dos pensamentos e costumes religiosos que tentavam me imprimir. Eventualmente cresci com a percepção de que, além dos problemas no relacionamento, existiam outras coisas pessoais que a afetavam, coisas do passado e que até hoje a mantêm chorando à noite. Por isso e por outras coisas, não me coloco no lugar de me sentir perpetuamente magoado nem numa postura de juiz, nem de minha mãe nem de meu pai, ainda que não possa afirmar que essa época vai algum dia ser esquecida pela dor ou pelas transformações que me causaram.

O início de sua escolarização redobrou seu sentimento de indignidade. As tensões vividas na família não encontram guarida na escola. Ao contrário, a realidade do mundo que se vive demonstra aspereza, engendrando o silêncio e a incompreensão. O menino choroso é logo estereotipado na escola como indisciplinado. Tal qual lembra Gaulejac (2006)GAULEJAC, V. As origens da vergonha. São Paulo: Via Lettera, 2006., a vergonha é um sentimento doloroso e sensível sobre o qual é preferível não falar, entretanto deve ser visto como um sofrimento social e psíquico.

A escola era um terceiro mundo, à parte da minha casa e da vó. Foi onde tive meus primeiros amigos e onde passei a descobrir novas formas de ser, de certa forma não reprimido, como me sentia na minha avó ou em casa. Sendo sincero, na primeira etapa da educação, no ensino fundamental 1, fui um aluno com problemas disciplinares. Certa vez, talvez aos 7 ou 8 anos, chorei na escola por ter apanhado logo antes em casa. Não por dor, mas pelas sensações de raiva e rancor que sentia depois de me sentir violado fisicamente. Acredito que a professora, junto de alguém da diretoria, depois de me ouvir atribuir o choro à agressão da mãe, passaram a associar meu comportamento indisciplinar a um lar instável e violento. Eu não pensava isso antes nem penso hoje, tanto pelas lembranças do que fazia quanto por me parecer muito difícil associar tão diretamente um fato, um motivo aos comportamentos, de forma geral, de uma criança.

A experiência de quase morte ocasionada por um afogamento fez com que Carlos se tornasse um menino ainda mais introvertido. Esse acontecimento aumentou sobremaneira a distância entre suas crenças e valores e os da sua família. Enquanto esta última atribuía ao mundo religioso a sua salvação, Carlos enveredou por um caminho de fechamento sobre si mesmo, de introspecção e de inibição. As pequenas violências cotidianas e o sofrimento vivenciado na família e na escola, o incômodo, o desconforto causado pelo sentimento de indignidade deixaram marcas profundas em Carlos:

No primeiro ano do ensino fundamental 2 tive uma experiência de quase morte. Ao contrário da minha primeira lembrança, quando sofri aquele acidente, ainda tenho a vívida memória da sensação de desespero por ar, enquanto tudo que meus pulmões encontravam eram mais e mais água, os transbordando, até que meus músculos não tivessem mais oxigênio pra se retorcer e finalmente cederam. Depois de reanimado e duas semanas internado, felizmente e surpreendentemente sem sequelas físicas, é difícil dizer o que significa para um pré-adolescente, ou qualquer pessoa, na verdade, uma experiência de quase morte. Certamente pra mim não foi uma experiência religiosa, como foi pra todos os familiares. Eu já estava muito longe desse modo de pensar. Me lembro de me sentir frágil, como se nunca realmente tivesse concebido o que significa morrer. Quanto ao que se pode concretamente perceber, ou seja, o comportamento, tenho a sensação de, colocando de forma simples, “ter me tornado introvertido”, ainda que não tenha me atrapalhado de nenhuma forma a fazer novos amigos nem nada nesse sentido. O quanto pode mudar uma personalidade por causa de um acontecimento?

A mesma escola que parece oprimir ou agudizar a dor causada pela sua família é aquela que se apresenta como um campo de possibilidades. Foi por meio da escola, da disciplina, da vontade de estudar que Carlos conheceu um novo mundo e vislumbrou outro destino para si, que não aquele de seu pai, operador de fundição, cujo corpo era levado sempre à exaustão:

Nessa fase do ensino, que é quando se entra em contato com conhecimentos e estruturas de pensar mais rigorosos e elegantes, foi quando as brincadeiras da infância deixaram pouco a pouco de me apetecer e passei a me apaixonar e ver o valor na cultura do estudo e da apreciação pelas ciências e pelas artes, mesmo sem saber bem disso na época. Apesar de não ter recebido incentivo direto dentro do núcleo familiar quanto aos assuntos da escola, já que nenhum dos meus pais teve a chance de avançar nos estudos além da alfabetização, o fato de não ter sido requerido de mim que trabalhasse fora garantiu a oportunidade de me interessar por esse mundo que estava além das coisas que já havia conhecido. Na verdade, é interessante pensar sobre o motivo de algumas pessoas desse tipo de lar se interessarem com tanta sede por erudição. Certamente vai além da subida na escada social, porque a meu ver não é a forma mais fácil tampouco mais direta de fazê-la.

Uma vez no ensino médio, Carlos conheceu o programa de assistência estudantil da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e começou então a planejar, ou melhor a materializar, segundo as suas palavras, o sonho de ingressar no ensino superior:

Entrando no ensino médio, tive medo de me empregar na mesma profissão que meu pai, operador na fundição, trabalho muito insalubre e com grande oferta na cidade, sendo por isso o destino esperado dos homens pobres dali. Meu irmão acabou seguindo esse mesmo caminho, e por um tempo parecia que era esperado que eu o seguisse também. Sempre tive vergonha e receio de demonstrar o quanto me parecia ignóbil essa ocupação, tanto pela insalubridade, que recentemente causou complicações numa pneumonia sofrida pelo meu pai, quanto pelo cansaço visível que impede que façam uso do tempo fora do trabalho. Não tomei nenhuma postura particularmente ativa ou motivada perante esse cenário. Ainda que pobre, idealizava a continuidade até o terceiro grau, “neurociência, talvez”, disse despretensioso certa vez quando alguém da diretoria me perguntou para onde gostaria de seguir depois do ensino médio. Na verdade, até o terceiro ano, quando conheci o programa de assistência estudantil da UFMG, não conseguia imaginar a materialização dessa idealização da continuidade ao terceiro grau.

Ao longo da narrativa de Carlos, percebemos como essa espécie de escuta ativa o ajudou a trabalhar temas tão delicados e presentes, fazendo com que o jovem se tornasse capaz de objetivar o seu lugar no mundo. Ao pensar na escolha das palavras, como ele mesmo diz, é como se estivesse dando a si mesmo a chance de não se calar mais diante das violências sofridas. Se, como vimos, a vergonha é sempre um incômodo, gera sempre um desconforto, elaborar esse sentimento envolve libertar uma fala. Não é apenas legítimo, mas necessário compreender a sua gênese e o seu desenvolvimento.

Essa sensação vem e vai, de forma que, quando me encontro livre da angústia que nebuliza até os pensamentos mais coerentes, me sinto contente em ter escolhido a área da física ao fim do ensino médio e dentro desse dilema, em época de pandemia, ter escolhido estudar para ser professor, futuro cuja proximidade temporal me conforta e onde acredito poder ter autonomia financeira o bastante para seguir minha evolução na educação e eventualmente atuar como professor no ensino superior, que é o que almejo.

Assim, chego ao fim dessa breve autobiografia com a sensação ter tecido em palavras esses acontecimentos num viés, o da autopercepção no âmbito da trajetória escolar, em meio a um oceano de outros possíveis. Esses ditos acontecimentos, que em outros tempos e contextos na minha vida se desdobravam de diversas maneiras, acabaram por tomar essa forma aqui presente, tão explícita e objetiva. Passei a perceber, durante a escrita do diário, como essa explicitação, essa escolha de palavras para se tratar dessas coisas de natureza tão pessoal e tão frequentemente não ditas, podem trazer uma lucidez quanto a si. Por isso deixo aqui meu agradecimento à professora pelo brilhante incentivo.

Bianca

Bianca é aluna da Escola de Belas-Artes. Seu relato também evoca os sentimentos de não pertencimento e de humilhação sentidos por muitos estudantes distantes culturalmente do universo acadêmico. Seu diário demonstra as inúmeras contradições que marcam a chegada do estudante pobre à universidade. A descrição do lugar que habitava parece ter a intenção de descrever a origem dos seus antepassados. Segundo suas próprias palavras, descrever o espaço geográfico no qual cresceu é importante para a sua biografia. Ela cita:

“É o caso onde o homem é agenciado pelo ambiente geográfico: ele sofre a influência do clima, do relevo, do meio vegetal. Ele é montanhês na montanha, nômade na estepe, terrestre ou marinho. A natureza geográfica o lança sobre si mesmo, dá forma a seus hábitos, suas ideias, às vezes a seus aspectos somáticos”

(Dardel, 1990, p. 9).

Bianca descreve o quintal, as plantas, as flores e as árvores, assim como os rios, para falar da natureza, evocando o mundo sensorial, que passa sobretudo pelos filtros do olhar e do olfato:

No fundo do quintal da minha tia, que também era o fundo do quintal da minha avó e também era o fundo do quintal da minha outra tia e, se andasse um pouquinho mais, também era o fundo do quintal de uns oito tios e primas, tinha uma área verde. Do lado esquerdo era uma APP, área de preservação permanente, que se estendia dali até o alto de um morro onde começava o pasto. No centro, tinha um quintal de terra com dois bambus fincados que era uma rede de vôlei (minha tia jurava que era um varal).

Depois da rede, entrando num trilho curtinho que só cabia um pé de cada vez, tinha uma horta com tudo que você imaginar: alface crespa, lisa e roxa; couve; rabanete; mostarda; cenoura; salsinha; cebolinha; e muitas outras coisas verdes. Depois da horta, ainda caminhando em linha reta, havia um córrego que descia de uma nascente que brotava de dentro de um buracão feito pela antiga olaria (dentro da APP). Ao lado do córrego, uma fileira de jabuticabeiras perfeitamente alinhadas adornava o campinho de futebol (meu tio jurava que era pasto para as vacas).

Ainda em linha reta, depois do campo, tinha um riacho, que também vinha da mesma nascente, mas era um pouco maior. No fundo, tinha milhares de pedras redondinhas, e duas quedas de menos de 1 metro se formavam em dois pontos distintos do curso d’água (a gente jurava que eram cachoeiras). O riacho era bem protegido por bambuzeiros enormes e várias cobras que moravam em seus lindos e esculpidos buracos na beira da água. Depois do riacho tinha um cafezal, aí já era propriedade privada de gente que a gente só conhece o sobrenome, nunca viu, nunca sentiu o cheiro e nunca desceram tanto a ponto de nos ver soltando pipa no pasto.

Do lado direito, uma fileira de casas se desenhava dentro de uma estrada de terra. Todos da família. Mais próximo dessas casas, meus tios fizeram dois poços para criar tilápia. Fui lá só uma vez, porque entrava dentro de um brejo muito grande e eu ainda era pequena, engraçado porque hoje eu tenho muito mais medo de entrar no mato do que naquela época. Antes de chegar no brejo, tinha um grupo de árvores, mais algumas jabuticabeiras, outras que eu não sei o que eram, mas o que importava mesmo era a castanheira. Enorme. Eu amava tanto aquela árvore que mesmo tão nova eu já tinha medo que aquilo ali acabasse. Sentia aflição quando ficava perto dela, tanto porque era enorme e pra uma criança perceber que seu corpo é minúsculo soa amedrontador tanto porque temia muito sua morte.

A gente catava as castanhas e pedras grandes pra poder quebrar a casca. Era uma alegria quando conseguia tirar ela inteira e uma tristeza quando comia alguma já passada com gosto de ranço. Debaixo da castanheira tinha a casa da minha bisa, todo mundo fala muito bem dela, não cheguei a conhecer. A casa era linda. Telhado de telha marrom em formato de pirâmide, janelas alongadas de madeira e as paredes amarelas. Não dava medo nenhum, ela devia ser muito alegre, a casa dela era.

Assim como a castanheira e tantas outras árvores, Bianca descreve suas origens como uma metáfora para falar das suas raízes, da origem no campo e do orgulho que sente de gerações que cuidaram da terra e da natureza para que ela tivesse a chance de florescer. Florescer significa ser a primeira geração a ingressar em uma universidade pública federal.

A primeira geração a colocar os pés na federal. Em uma capital, o que também significa muita coisa. Acredito que meu processo de afiliação começa na descoberta da universidade. Por conta da realidade do meu bairro e da minha família, meus pais sempre incentivaram a mim e as minhas irmãs a estudar. Eles tinham medo, porque aqui ocorre exatamente como no texto de Daniel Thin quando ele descreve a lógica de socialização da família popular, onde tem ambientes como a escola ou até mesmo [organizações não governamentais] ONGs e instituições de assistência que morrem de medo das crianças e adolescentes ficarem entregues às ruas. Meus pais sempre tiveram esse medo e, na maioria das vezes, com razão. Estudei muito no ensino fundamental, assim como no Médio. Ao finalizar o 5º ano em uma escola municipal, passei em uma prova de bolsas para uma escola particular, onde me formei. Foi nessa instituição privada que eu descobri o que era [Exame Nacional do Ensino Médio] Enem. No 6º ano eles já comentavam sobre o Enem com os alunos, coisa que meus amigos da escola pública foram ouvir apenas no ensino médio, e se ouviram. Por isso acho que minha afiliação se inicia aí, porque antes disso ainda não tinha sido criada nenhuma imagem da universidade dentro da minha cabeça, literalmente.

Mas ser a primeira geração a chegar à tão sonhada universidade não é um caminho sem desencantos. Aqui se descobre o preconceito de classe e de raça e, com ele, a sensação de não pertencer a esse mundo. Há certo desencantamento em relação à posição conquistada que faz Bianca ter receio de não merecer estar nesse lugar. A jovem é frequentemente acometida por um sentimento de ilegitimidade que lhe provoca raiva e tristeza. Parecer não pertencer a esse lugar conquistado revela os efeitos da ausência de saberes prévios, assim como certo manejo do letramento acadêmico.

Foi ainda nesse ano que ocorreram situações que me fizeram duvidar desse processo universitário. Uma de minhas amigas sofreu ataques racistas advindos de dois professores. Nós entramos em um processo superdifícil. Lembro-me de estar voltando para uma aula à tarde e ela estava saindo, bem ali perto do sinal eu olhei pra ela e percebi que algo estava errado. Perguntei se estava tudo bem, ela começou a chorar e nos abraçamos. Percebe esse detalhe? Na entrada principal da universidade uma graduanda que passou por todos os processos legais chora por sofrer algo que é considerado crime. Será mesmo que esse ambiente é acolhedor para todos? Transformamos a acolhida em receio. Receio de ir à aula daquele professor que já poderia ter se aposentado há mais de 20 anos. Receio de ir à aula daquela outra que realmente acredita que a vida é um conto de fadas, como diria Slipmami6 6 Nome artístico da rapper brasileira Yasmin. : “Não gosto de tu porque tu acha que a vida é um morango”.

Outro dia desses fui eu quem voltou chorando para casa. Nós estávamos montando a exposição coletiva no final no corredor do terceiro andar. Minha professora surtou quando viu meu quadro pintado com bordas brancas: “Pintura não tem borda! Onde já se viu pintura ter borda”. O problema é que eu não sabia disso. Porque não posso aprender com meu erro? Fui totalmente esculachada em frente à turma e ainda ouvi: “Ou você pinta essa borda agora ou não vamos colocar seu quadro”. Simples. EU NÃO PINTEI. Sabia das minhas intenções, sabia o que queria com aquela borda, ela foi fruto de estudo e pesquisa mesmo. Voltei pra casa chorando de raiva.

No dia seguinte, dia da avaliação final, a mesma professora que havia surtado disse: “Nossa, Bianca! Estava olhando depois, e eu gostei da borda. Ela deu uma ótima vibração com a parede branca”. ÓTIMO! Dessa vez eu ri. Ri porque achei muito engraçado ela ter esquecido que arte choca e que a arte não tem regras de postura e que arte serve para te tirar da zona de conforto e que arte liberta amarras construídas e que a arte não tem convenções ou um livreto para seguir. Eu ri muito. Lembrei a minha professora que a gente estava fazendo arte e não suprindo expectativas.

Nesse processo de autodescoberta sobre o seu verdadeiro lugar na universidade, Bianca compreendeu o peso das expectativas dos outros (via de regra, do professor) sobre si mesma. No espectro da sociologia, os estudos sobre a relação com o saber mostram que os alunos não interpretam da mesma forma as expectativas dos professores. Essa espécie de decodificação demanda uma expertise linguística para saber interpretar as expectativas e eventualmente subvertê-las. Alguns alunos de origem popular resistem menos do que outros aos rótulos estigmatizantes quando a relação cotidiana com o conhecimento não é satisfatória, levando-os muitas vezes à incompreensão e ao fracasso. Não foram poucas as vezes que Bianca pensou em desistir da tão sonhada universidade, lugar de interdição para as gerações que a precederam. Em seu diário, a jovem dá sentido à sua história, conferindo a essas experiências uma forma própria na qual ela consegue não somente reconhecer-se a si mesma como também ser reconhecida pelos outros.

Considerações Finais: Desafios da Docência e Esforço Biográfico

Neste artigo, defendemos que a sociologia serve não somente às pesquisas que elaboram diagnósticos acerca de problemas macrossociais ou em contextos reduzidos. Ela também pode ser instrumento de autocompreensão e autoformação. Acreditamos que a defesa do potencial transformador da narrativa de si e a apropriação dessa ideia pela pesquisa-formação podem ser fonte de interessantes articulações com a sociologia reflexiva, ou seja, aquela que se debruça sobre as estruturas que produzem os condicionamentos aos quais estamos submetidos. Uma vez que mapeamos e compreendemos tais condicionamentos, aproximamo-nos da possibilidade de nos emanciparmos de determinações que são tão mais eficazes quanto mais naturalizadas elas se apresentam ao nosso espírito.

Por mais contraditório que pareça, Pierre Bourdieu (1986)BOURDIEU, P. L’illusion biographique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, v. 62-63, p. 69-72, jun. 1986., o mesmo autor que defendeu a sociologia reflexiva (Bourdieu; Wacquant, 1992BOURDIEU, P.; WACQUANT, L. An invitation to reflexive sociology. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.) como ferramenta de emancipação pessoal, afirmou ser ilusória qualquer tentativa de dar sentido, coerência e autenticidade aos percursos individuais. A chave que destrava a confusão entre sociologia reflexiva e biografia como invenção de si (ilusão biográfica) é a consideração de que somos fabricados antes e enquanto fabricamos uma identidade narrativa, nos casos em que existem as condições de possibilidade para essa fabricação (letramento, disponibilidade de tempo, necessidade cultural ou desejo de autoconhecimento, incentivo escolar ou acadêmico para o desempenho dessa tarefa).

No que se refere à experiência das autoras deste artigo, estamos ainda testando formas de bem conciliar, na nossa prática, os registros da sociologia e os da pesquisa-formação. Acreditamos que não podemos abrir mão da objetividade do mundo social, aquela que a nós nos escapa e a qual acessamos por meio de estudos que desvelam a estrutura dinâmica e não transparente dos fenômenos sociais que é marca da sociologia. Por outro lado, entendemos ser fundamental que ofereçamos aos nossos estudantes maneiras eficazes de autoexame das suas trajetórias.

Um dos maiores desafios encontrados na utilização da perspectiva biográfica em cursos de formação de professores é a necessidade de se debruçar sobre um inventário de princípios, capaz de organizar tais práticas. Assim, reconhecemos que em uma disciplina com carga horária de 60 horas há ainda muito por fazer. Por outro lado, reconhecemos que, mesmo em um tempo exíguo, os efeitos produzidos por meio das narrativas superam os desafios e as limitações já identificados.

Como afirma Grard (2017)GRARD, J. Approche(s) narrative(s) et récit à la première personne. Généalogie et politiques de l’enquête. Vie Sociale, n. 20, p. 85-98, 2017. https://doi.org/10.3917/vsoc.174.0085
https://doi.org/10.3917/vsoc.174.0085...
, a perspectiva biográfica tornou-se uma tendência transversal a diversas disciplinas. Suas virtudes éticas, políticas e epistemológicas são significativas e passam pelo protagonismo atribuído à memória das pessoas comuns (e do consequente questionamento da História oficial), pelo privilegiamento metodológico do relato em primeira pessoa, pela invenção de modelos de análise que se voltam menos para a explicação e mais para a explicitação. No caso do uso dessa perspectiva pela sociologia, é preciso ter atenção aos limites entre o relato e a interpretação sociológica. Assim, se como pesquisadoras tratamos o relato como um objeto em si mesmo, renunciando à tarefa analítica que nos concerne, abandonaremos nosso ofício de sociólogas. Do ponto de vista do emprego da perspectiva biográfica como recurso didático, nossa função é, portanto, não somente nos assegurarmos de termos feito o bom exercício do ensino da imaginação sociológica e do pensamento conceitual minimamente rigoroso ao longo do curso, mas também objetivarmos a escolha de utilização desse dispositivo.

Se pretendemos destacar aqui os efeitos terapêuticos da abordagem, é preciso ressaltar também que as perturbações individuais vividas e relatadas pelos estudantes possuem causas muito concretas e objetivas que passam pela pauperização de grande parte da população, pelo abandono da educação pública no Brasil e por instabilidades econômicas e institucionais que geram ou agravam perturbações pessoais. Assim, destacamos a dimensão formativa e terapêutica do exercício de socioanálise na formação de professores não simplesmente para fazer um elogio à perspectiva biográfica, mas sim para admitir que muitas vezes, diante de tantos dilemas, esse recurso é o que nos oferece a possibilidade de conciliar o saber sociológico com a escuta sensível e o aprimoramento do exame de si mesmo. Por outro lado, acreditamos que tal abordagem pode inspirar nossos alunos a mobilizarem esse tipo de dispositivo e a sensibilidade que o acompanha em suas práticas docentes futuras.

Notas

  • 1
    Tradução nossa. No original: “L’idée au cœur de l’approche narrative est la suivante: c’est à travers la mise en récit que nous donnons sens au monde qui nous entoure, nous situons en son sein, et construisons notre identité, cette « identité narrative » par laquelle nous existons. Cette approche va de pair avec une vision constructiviste, non seulement du monde social mais aussi des récits biographiques. Dans une démarche constructiviste on considère, sans pour autant nier la matérialité du monde, que nous participons à sa configuration, à la construction des places respectives et du sens que prennent les êtres, dans le cas présent, à travers nos récits”.
  • 2
    “Segundo o sociólogo francês, a biografia sofreria de uma espécie incontornável de mal de origem: ela sempre seria apresentada como um percurso coerente através do qual o biografado busca justificar a sua posição social no momento em que relata a sua história de vida. Daí viriam as ideias de coerência do percurso e de sentido existencial concretizado num projeto original. Este, por sua vez, seria realizado em etapas cronologicamente reconstituíveis. Tratar-se-ia, em suma, da ideologização de uma trajetória” (Coutinho, 2021COUTINHO, P. O. Reflexões conceituais e metodológicas sobre o “barroco” das biografias. Educar em Revista, abr. 2021. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/educar/article/view/75644. Acesso em: 26 jan. 2024.
    https://revistas.ufpr.br/educar/article/...
    )
  • 3
    Tradução nossa. No original: “Un acontecimiento es mucho más que uma ocurrencia, es decir, algo que simplemente sucede: el acontecimiento es el que contribuye al desarrollo del relato tanto como a su comienzo y a su final desenlace. En relación a esto, la historia narrada es siempre más que la simple enumeración, en un orden seriado o sucesivo, de incidentes o acontecimientos, porque la narración los organiza en un todo inteligible”.
  • 4
    Destacamos as perspectivas intituladas pesquisa biográfica em educação, que tem Christine Delory-Momberger como fundadora, bem como histórias de vida em formação, inaugurada na França na década de 1980 por Gaston Pineau e também conhecida como formação de adultos. A metodologia utilizada permite ao autor do relato construir a história da sua vida, ou seja, (re)conhecer na sua experiência um percurso orientado e finalizado e (re)conhecer-se a si próprio no discurso que constrói. Esse processo de construção identitária é reforçado pelos modos de funcionamento do grupo de formação: produzida em público segundo um protocolo informado antecipadamente, a história torna-se o objeto de diálogo coletivo.
  • 5
    Importa notar que muitas vezes estudantes já no fim do curso de graduação dizem não se sentir afiliados. Problemas financeiros e inseguranças acerca dos recursos culturais e técnicos adquiridos costumam estar presentes nas narrativas daqueles que se sentem desafiliados.
  • 6
    Nome artístico da rapper brasileira Yasmin.
  • Os dados contidos neste artigo fazem parte de uma pesquisa mais ampla aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais sob o registro no 68639523.2.0000.5149. Entre os compromissos acordados, optamos por preservar a identidade dos entrevistados, utilizando prenomes fictícios. Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico pelo apoio recebido (Processo 311496/2023-7).

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Editora de seção: Débora Mazza https://orcid.org/0000-0002-8968-4597

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Fev 2023
  • Aceito
    26 Jan 2024
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