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OS ALGORITMOS E A ERRÂNCIA: NOTAS PARA ENSINAR EM UM MUNDO DIGITAL

ALGORITHMS AND WANDERING: NOTES FOR TEACHING IN A DIGITAL WORLD

ALGORITMOS Y ERRANCIA: NOTAS PARA LA ENSEÑANZA EN UN MUNDO DIGITAL

RESUMO

Este ensaio propõe uma reflexão sobre o ensinar e o aprender em meio a um mundo condicionado pelo ecossistema digital algoritmizado contemporâneo. Isso não significa a apresentação de uma metodologia bem-acabada e eficaz contra os efeitos dos algoritmos, mas o esboço de uma ou outra atitude pedagógica que nos parece capaz de, da perspectiva da relação educador-educando, oferecer aos estudantes uma experiência diversa daquela vivida nas plataformas digitais. Para tanto, organizamo-nos em três momentos. No primeiro, sugerimos certa imagem do aprender que se volta à saída de si, à errância, ao abandono de certezas demasiado fixas sobre o mundo e sobre o próprio indivíduo. No segundo, são o funcionamento dos algoritmos digitais e os seus efeitos na subjetividade que entram em cena. Por fim, recorremos à narração de uma experiência particular e à construção de sentidos com base nessa experiência para dar a ver uma disposição pedagógica que, em nosso entendimento, faz frente à lógica das redes.

Palavras-chave
Ensino; Algoritmos digitais; Experiência; Formação

ABSTRACT

This essay proposes a reflection on teaching and learning in the midst of a world conditioned by the contemporary algorithmic digital ecosystem. This does not mean the presentation of a well-defined and effective methodology against the effects of algorithms, but rather the outline of one or another pedagogical approach that seems capable, within the educator-student relationship, of offering students an experience different from the one lived on digital platforms. To do so, we organize ourselves around three moments. In the first one, we suggest a certain image of learning that turns towards self-discovery, wandering, and the abandonment of overly fixed certainties about the world and oneself. In the second moment, it is the functioning of digital algorithms and their effects on subjectivity that come into play. Finally, we resort to the narration of a particular experience and the construction of meaning from it to reveal a pedagogical disposition that, in our view, counters the logic of networks.

Keywords
Teaching; Digital algorithms; Experience; Education

RESUMEN

Este ensayo propone una reflexión sobre la enseñanza y el aprendizaje en medio de un mundo condicionado por el ecosistema digital algorítmico contemporáneo. Esto no significa la presentación de una metodología bien definida y efectiva contra los efectos de los algoritmos, sino más bien el esbozo de uno u otro enfoque pedagógico que parezca capaz, dentro de la relación educador-estudiante, de ofrecer a los estudiantes una experiencia diferente a la vivida en las plataformas digitales. Para hacerlo, nos organizamos en torno a tres momentos: en el primero, sugerimos una cierta imagen del aprendizaje que se orienta hacia la autodescubrimiento, la errancia y el abandono de certezas demasiado fijas sobre el mundo y uno mismo. En el segundo, es el funcionamiento de los algoritmos digitales y sus efectos en la subjetividad los que entran en juego. Finalmente, recurrimos a la narración de una experiencia particular y a la construcción de significado a partir de ella para revelar una disposición pedagógica que, en nuestra opinión, se opone a la lógica de las redes.

Palabras clave
Enseñanza; Algoritmos digitales; Experiencia; Formación

Introdução

É com a imagem de um rio que Michel Serres (1993)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. começa a seção “Aprendizagem”, de seu livro O terceiro instruído. Escreve ele que é atravessando um rio que se pode aprender. “O infinito entra no corpo de quem, demoradamente, atravessa um rio bastante perigoso e largo para conhecer essas paragens longínquas em que, seja qual for a direção que se adote ou decida, a referência está sempre indiferentemente distante” (Serres, 1993SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., p. 23), metaforiza o autor. Aprender, nesse sentido, é afastar-se de referências seguras, é aventurar-se, pôr-se em jogo. De fato, continua Serres (1993)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., nunca se aprendeu nada de que não se tivesse partido; tampouco se ensinou qualquer coisa sem que por meio de um convite ao abandono do ninho. “Partir”, afirma, “exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo à parte que permanece ligada à margem de nascimento, à proximidade de parentesco, à casa e aos costumes próprios do meio, à cultura da língua e à rigidez dos hábitos” (Serres, 1993SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., p. 23). Sem se mexer, não há como aprender. Quem se mexe, todavia, mexe também com algo ao redor.

“Os teus pais correm o risco de te condenarem como um irmão separado”, alerta Serres (1993, p. 23)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.. Antes, afinal, “eras único e assinalado” (Serres, 1993SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., p. 23), bem administrado, confortavelmente instalado num si que, convertido em fórmula, era presa fácil da previsibilidade e do controle. A aprendizagem, todavia, torna o que é uno em vários, “por vezes incoerente, como o universo que no começo, diz-se, explodiu com grande estrondo” (Serres, 1993SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., p. 23). “Nenhuma aprendizagem evita a viagem” (Serres, 1993SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., p. 23). A educação, afirma o autor, pressiona para o exterior, para um “lá fora” em que “faltam todos os abrigos” (Serres, 1993SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., p. 23), mas é preciso partir, sair do ventre materno.

As ideias com que iniciamos a vida “não repetem senão palavras antigas”, e a viagem e o deslocamento são o que traz em si “o sentido despido da palavra grega pedagogia” (Serres, 1993SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., p. 23). “Aprender”, insiste Serres (1993)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., “provoca a errância”, conduz a uma bifurcação: “bifurcar a direção dita natural” (Serres, 1993SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., p. 24), “enveredar por um atalho que conduz a um lugar desconhecido”; “sobretudo”, continua, “nunca tomar facilmente uma rota, atravessar de preferência um rio a nado” (Serres, 1993SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., p. 24). Partir, sair, tornar-se em vários, enfrentar o exterior, bifurcar em qualquer direção: é aí que reside o aprender. “Não existe aprendizagem sem exposição, muitas vezes perigosa, ao outro”, conclui finalmente Serres (1993, p. 24)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993..

Michel de Montaigne (2002)MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1., outro grande do pensamento francês, bem antes de Serres (1993)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., acena para uma exposição parecida. A certa altura de seu ensaio “Da educação das crianças”, ele exorta o preceptor sobre quem escreve a estimular em seu aluno “a frequentação do mundo”. “Estamos todos trancados e encolhidos em nós mesmos e temos a visão limitada ao comprimento de nosso nariz” (Montaigne, 2002MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1., p. 235), alerta o autor. Ensimesmados, então, “únicos e assinalados”, cremos que o que ocorre conosco ou ao nosso redor é, de alguma maneira, o mundo inteiro: “Quando em minha aldeia os vinhedos congelam, nosso padre atribui isso à ira de Deus sobre a raça humana” (Montaigne, 2002MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1., p. 235) como um todo; “ao ver nossas guerras civis”, continua, bradamos “que esta máquina está se desarranjando e que o dia do juízo nos agarra pelo pescoço” (Montaigne, 2002MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1., p. 235); e, finalmente, “para quem lhe cai granizo na cabeça, todo o hemisfério parece estar tempestuoso e tormentoso”, escreve Montaigne (2002, p. 235)MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1..

É por isso que é preciso sair, partir, viajar, errar, frequentar o vasto mundo que não nos oferece nem rimas nem soluções. É no sair de si que é possível encontrar-se com o mundo, confrontar-se com ele: “Quem se representa, como em um quadro, essa grande imagem de nossa mãe natureza em sua total majestade; quem lê em seu semblante uma tão geral e constante variedade”, afirma Montaigne (2002, p. 236)MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1., “apenas esse avalia as coisas em sua justa dimensão”. Ainda em suas palavras:

Este grande mundo, que alguns ainda multiplicam como espécies sob um gênero, é o espelho em que devemos olhar para nos conhecermos da perspectiva certa. Em suma, quero que seja este o livro de meu aluno. Tantos sentimentos, facções, julgamentos, opiniões, leis e costumes nos ensinam a julgar com exatidão os nossos próprios, e ensinam nosso julgamento a reconhecer sua própria imperfeição e fraqueza natural – o que não é uma aprendizagem leviana

(Montaigne, 2002MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1., p. 236).

Tanto para um quanto para outro autor, aprender é sair de si, é frequentar o mundo, abandonar certezas e referências, seja definitivamente, seja para voltar a elas com um juízo mais acertado. Quem não se mexe não aprende. Quem se encerra em si permanece igual, repetição, inércia. E é aí que reside a inquietação que anima este ensaio: o mundo contemporâneo é um mundo convidativo a um tal abandono de si? É um mundo, em outras palavras, que incita esse gênero do aprender?

A hipótese que pretendo desenvolver, se não responde com um categórico não a essas questões, não o faz porque enxerga ainda alguns gestos capazes de fazer emergir de um profundo ensimesmamento brechas para o mundo. Os algoritmos digitais, como quero desenvolver, transformam a realidade num espelho, enredando os usuários das plataformas virtuais em uma versão estática e demasiadamente segura de si mesmos – uma versão, para retomar Michel Serres (1993)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., “única e assinalada”, hostil, portanto, ao que chamaria ao aprender. Os desafios impostos por um tal cenário ao fazer educativo, nesse sentido, não parecem poucos, mas, acredito, tampouco são de impossível enfrentamento, e uma forma de resistir a seus efeitos é que almejo pôr em cena neste texto, por meio de uma curta narrativa. Apresentar essa narrativa e discutir alguns de seus pontos à luz da realidade algorítmica contemporânea e do ensino são meus objetivos principais aqui.

Para tanto, este ensaio está organizado da seguinte maneira: num primeiro momento, em uma breve revisão bibliográfica, que seguirá o fio condutor das explicações elaboradas por Eli Pariser (2012)PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012. em O filtro invisível, apresento o modo de funcionamento dos algoritmos que atuam nas redes de comunicação contemporâneas. Com isso, meu intuito é esboçar como esse modo de operar conduz à erupção de uma espécie de “subjetividade algorítmica” cujas bases são estranhas a um modo de aprender similar ao descrito por Serres (1993)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. e por Montaigne (2002)MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1..

Num segundo momento, mobilizo um relato de experiência na tentativa de fazê-lo dizer uma possibilidade educativa para esse cenário. A breve narrativa aqui oferecida trata de um impasse em que se envolveram dois amigos e da resolução a que chegaram. Narro esse impasse aqui em busca de comunicar uma experiência quase que na forma de um conselho, como o concebe Walter Benjamin (2012)BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012., para quem “aconselhar é menos responder a uma pergunta do que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está se desenrolando” (Benjamin, 2012BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012., p. 216). A história que se desenrola é a da subjetividade algorítmica; o “conselho”, nesse sentido, surge como uma sugestão a professores que se veem nela imersos, como uma oportunidade de interromper, ainda que por alguns instantes, o fluxo que nos parece arrebatar. Interromper e, quem sabe, respirar.

Metodologicamente, sobretudo na segunda parte, alinho-me à hermenêutica conforme a entende Paul Ricoeur (2013)RICOEUR, P. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, 2013.. Para o autor, o sentido dos textos não está encerrado neles mesmos, mas funda-se no encontro do que é lido com o leitor. A partir daí, abrem-se horizontes de sentidos – e, abandonando referências demasiadamente fixas e seguras, é em busca de um desses horizontes que partimos.

O Espelho D’água

Conta-nos Brandão (1987)BRANDÃO, J. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1987. v. 2., recorrendo a Metamorfoses, de Ovídio, que, ao se deitar diante de um lago para matar a sede, outra sede ainda maior Narciso encontra. Julgando corpo o que é sombra, adora a sombra e, sem o saber, pega-se admirando tudo aquilo que nele sempre admiraram. Ingênuo, deseja a si mesmo, mas a um si mesmo que não sabe que o é. “Crédulo menino”, escreve o poeta, “por que buscas em vão uma imagem fugitiva?” (Ovídio apud Brandão, 1987BRANDÃO, J. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1987. v. 2., p 181). “Nada é em si mesma: contigo veio e contigo permanece. Tua partida a dissiparia se pudesses partir” (Ovídio apud Brandão, 1987BRANDÃO, J. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1987. v. 2., p 181). Narciso, todavia, não pode partir; não pode abandonar o encantamento que, embora involuntariamente, em si se instala. Narciso não vê senão a si mesmo e, sem enxergar que não há outro nesse si, afoga-se buscando o idêntico.

Etimologicamente, explica Brandão (1987)BRANDÃO, J. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1987. v. 2., narciso tem a mesma raiz do que viria a desaguar no termo narcótico. O mito, de fato, revela um entorpecimento, um torpor, uma saturação do si consigo próprio. O que o autor narra, todavia, não se represa na tradição e se espraia, de certo modo, para a vida algorítmica contemporânea. Detalho, a seguir, um pouco da paisagem dessa praia.

Ainda que diversas referências possam ser mobilizadas para a apresentação do funcionamento dos algoritmos digitais, tomo como fio condutor aqui um livro publicado em 2011 com um notável poder de predição: trata-se de O fio invisível, de Eli Pariser (2012)PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.. Antes, no entanto, de entrar propriamente em suas reflexões, convém conceituar melhor o que é um algoritmo.

Explica-nos Santaella (2023, p. 33)SANTAELLA, L. Há como deter a invasão do CHATGPT? São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2023. que algoritmo consiste em “um procedimento ou conjunto de regras, instruções passo a passo a serem seguidas nos cálculos, os quais definem como o trabalho deve ser executado para atingir o resultado desejado”, ou, em outras palavras, “um conjunto finito de diretrizes que descrevem como executar uma tarefa”. Isso significa, escreve Meirieu (2021)MEIRIEU, P. Dictionnaire inattendu de pédagogie. Paris: ESF Sciences Humaines, 2021., que os algoritmos não são exclusividade do mundo digital. Um teorema, lembra o autor, é uma espécie de algoritmo. O’Neil (2020)O’NEIL, C. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Tradução: Rafael Abraham. Santo André: Rua do Sabão, 2020. exemplifica de maneira ainda mais cotidiana. Escreve a autora que poderia elaborar um algoritmo que, levando em consideração os preços e os valores nutritivos dos alimentos, os gostos de cada morador de sua casa, o tempo disponível para cozinhar em cada dia, as calorias de cada refeição, fornecesse como resposta ao processamento de todas essas informações um cardápio semanal completo. Mas e nas redes? Como os algoritmos operam?

No mundo virtual, segundo explica Pariser (2012)PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012., os algoritmos tornam-se necessários por causa do volume de informações jamais experienciado. Diferentemente do que ocorria com as mídias tradicionais, em que a seleção dos conteúdos que circulariam ficava nas mãos de poucos grupos, o ambiente virtual permite que indivíduos os mais diferentes possam postar suas ideias e opiniões, possam compartilhar informações e textos.

Han (2018)HAN, B. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018., quanto a essa possibilidade, afirma haver hoje uma espécie de desmediatização, ou seja, vai tornando-se obsoleta a figura do intermediário, do curador: a relação do indivíduo com o mundo é percebida como mais direta, o que aumenta a velocidade com que as impressões de cada um são introjetadas nos mares virtuais. Incha-se, dessa forma, a esfera digital com os mais variados pontos de vista, com as mais variadas pautas. “Não sofremos mais com a raridade do saber: estamos perdidos na própria abundância da informação”, escrevem Lipovetsky e Serroy (2011, p. 80)LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. a esse respeito. Para esses autores, a cultura, que até então “se desenvolvia na ordem do finito e da raridade”, passa a pautar-se “no pleno desenvolvimento e na multiplicação ao infinito” (Lipovetsky; Serroy, 2011LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 80). São a “overdose e o caos” (Lipovetsky; Serroy, 2011LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 80) que, na visão deles, ameaçam a liberdade contemporânea, e é para evitar o “colapso da atenção” decorrente de tão caudaloso rio informacional que os algoritmos, em tese, operariam.

A partir daquilo em que clicamos, das postagens que curtimos e que compartilhamos, dos temas em que se engajam nossos amigos, do tempo que passamos numa página, das reações que deixamos numa ou noutra publicação, as redes digitais criam comandos para selecionar o que, do dilúvio informacional, deve chegar até a superfície de nossos black mirrors portáteis, isto é, até a superfície da tela de nossos dispositivos eletrônicos.

A esse propósito, Pariser (2012, p. 11) argumenta que os filtros digitais “são mecanismos de previsão que criam e refinam constantemente uma teoria sobre o que vamos fazer ou desejar a seguir”. Um pouco mais adiante, afirma ainda que “esses mecanismos criam um universo de informações exclusivo para cada um de nós que altera fundamentalmente o modo como nos deparamos com ideias e informações” (Pariser, 2012PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012., p. 11).

É isso, escreve o autor, que caracteriza a “bolha dos filtros” (Pariser, 2012PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012., p. 11). De dentro de uma delas, sem conhecermos os algoritmos que nos acomodam ali, sem sabermos quais dados foram ou não levados em consideração em sua operação, sem agência nenhuma sobre eles, talvez pensemos sermos “os donos de nosso próprio destino”: aquilo que lemos, o que compramos, as páginas que visitamos nos aparecem como resultado de nossa mais livre decisão – mas não é bem assim, sentencia Pariser (2012)PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.. A personalização engendrada pelos filtros, escreve ele, “pode nos levar a uma espécie de determinismo informativo, no qual aquilo em que clicamos no passado determina o que veremos a seguir – uma história virtual que estamos fadados a repetir” (Pariser, 2012PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012., p. 17). Com isso, conclui: “Ficamos presos numa versão estática, cada vez mais estreita de quem somos – uma repetição infindável de nós mesmos” (Pariser, 2012PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012., p. 17).

Nessa rede sem fim de repetições, todavia, talvez já não exista por onde errar, talvez já não exista como bifurcar.

Pariser (2012)PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012., então, descrevendo o funcionamento das bolhas de uma maneira diametralmente oposta àquela utilizada por Michel Serres (1993)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. para pensar o aprender, chega, finalmente, aos desdobramentos dos algoritmos na construção da subjetividade. Escreve ele, nesse sentido, que essas bolhas, num primeiro momento, nos cercam “de ideias com as quais já estamos familiarizados (e com as quais já concordamos), dando-nos confiança excessiva em nossa estrutura mental” (Pariser, 2012PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012., p. 77). Trata-se, nesse caso, de uma relação do sujeito com o mundo e consigo mesmo pautada na lógica do viés de confirmação: “espelho, espelho meu”, invocaria o moderno usuário das redes antes de perguntar se existe mundo além do seu – a resposta desejada, porém, não envolve o mundo, mas tão somente a reafirmação do próprio si. O sujeito narcísico contemporâneo, conforme descrito por Han (2017, p. 10)HAN, B. Agonia de Eros. Petrópolis: Vozes, 2017., “só reconhece significação ali onde consegue reconhecer de algum modo a si mesmo”. Fora daí, Eros agoniza, afinal, o que não é espelho, canta Caetano Veloso (1985)VELOSO, Caetano. Sampa. In: VELOSO, Caetano. Caetanear. Rio de Janeiro: Polygram, 1985. (Faixa 8.), Narciso acha feio.

No mundo algorítmico, segundo Pariser (2012)PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012., o aumento drástico do viés de confirmação não é um mero efeito colateral inesperado: trata-se da própria função da “bolha dos filtros”. “O consumo de informações que se ajustam às nossas ideias sobre o mundo é fácil e prazeroso; o consumo de informações que nos desafiam a pensar de novas maneiras ou a questionar nossos conceitos é frustrante e difícil” (Pariser, 2012PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012., p. 80), afirma. O que não é difícil é entender o porquê da opção das redes, então, pela manutenção desse mundo fácil e prazeroso.

Recorrendo a Zuboff, Karhawi e Ramos (2023, p. 10)KARHAWI, I.; RAMOS, D. Por uma literacia algorítmica: uma leitura educomunicativa do documentário O dilema das redes. Interin, v. 28, n. 1, p. 6-23, 2023. https://doi.org/10.35168/1980-5276.UTP.interin.2023.Vol28.N1.pp6-23
https://doi.org/10.35168/1980-5276.UTP.i...
explicam que o que forja esse mundo é “o modelo de negócios” das redes, afinal, “se você não está pagando pelo produto, o produto é você”. Nesse sentido, essas redes dependem da “aquisição de dados de usuários como matéria-prima para análise e produção de algoritmos que poderiam vender e segmentar a publicidade por meio de um modelo de leilão exclusivo, com precisão e sucesso cada vez maiores” (Zuboff apud Karhawi; Ramos, 2023KARHAWI, I.; RAMOS, D. Por uma literacia algorítmica: uma leitura educomunicativa do documentário O dilema das redes. Interin, v. 28, n. 1, p. 6-23, 2023. https://doi.org/10.35168/1980-5276.UTP.interin.2023.Vol28.N1.pp6-23
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, p. 10). Quanto mais confortável é o mundo no interior das redes, portanto, mais tempo o usuário passa ali; quanto mais tempo imerso ali, por mais tempo é submetido às publicidades, que são o que de fato paga a operação das redes; quanto mais tempo ali, por outro lado, mais dados e rastros o usuário deixa por onde passa; e, quanto mais dados ele deixa, mais precisas e eficazes tendem a ser essas publicidades, gerando um ciclo vicioso que, talvez, só possa acabar num curto-circuito. Mas voltemos à subjetividade que aí se engendra.

Para permanecermos online, é preciso uma segunda investida contra aquilo que nos faz aprender. Não basta oferecer um cenário confortável: para que este se mantenha como tal, é imperioso bloquear qualquer diferença, qualquer ideia contrária, qualquer pensamento divergente. Pariser (2012, p. 77) explica que os filtros “removem de nosso ambiente alguns dos principais fatores que nos incentivam a querer aprender”. Tudo o que representa uma ameaça ao significado, uma potencial instabilidade, é suprimido. Sem isso, porém, os encontros fortuitos reduzem-se, o acaso míngua. O Google, finaliza o autor, “é ótimo para encontrar o que sabemos que queremos, mas não para encontrarmos o que não sabemos que queremos” (Pariser, 2012PARISER, E. O filtro invisível: o que a internet está escondendo de você. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012., p. 95). Nesses mares virtuais, então, apesar da aparente infinidade de horizontes, parecemos limitar-nos a um navegar compulsório que, com uma precisão jamais vista, fixa no espelho d’água os perfis “assinalados e únicos” de seus navegantes.

Tal paisagem midiática desdobra-se em dois fenômenos que vêm inquietando a pesquisadora Fernanda Bruno (2020)BRUNO, F. Arquiteturas algorítmicas e negacionismo: a pandemia, o comum, o futuro. In: DUARTE, L.; GORGULHO, V. (org.). No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020. p. 254-268. e que, em outra ocasião, investigamos como obstáculos a horizontes fundantes da escola (Coppi, 2023cCOPPI, L. A. C. Em defesa do ensino: o comum e a abertura existencial em meio aos algoritmos digitais. Revista Educação em Questão, v. 61, n. 70, e33919, 2023c. https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n70ID33919
https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v...
). O ecossistema digital contemporâneo, para Bruno (2020)BRUNO, F. Arquiteturas algorítmicas e negacionismo: a pandemia, o comum, o futuro. In: DUARTE, L.; GORGULHO, V. (org.). No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020. p. 254-268., opera o “confisco do comum” e o “sequestro do futuro”.

Quanto ao primeiro aspecto, a autora denuncia que, porque “os conteúdos são compartilhados de forma ágil, massiva e íntima entre grupos com quem se mantém algum grau de confiança”, “somos privados de qualquer visão em comum” (Bruno, 2020BRUNO, F. Arquiteturas algorítmicas e negacionismo: a pandemia, o comum, o futuro. In: DUARTE, L.; GORGULHO, V. (org.). No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020. p. 254-268., p. 258). O resultado, segundo a autora, é que “não é difícil notar como tal arquitetura pode favorecer fenômenos que já se incorporaram ao vocabulário cotidiano como ‘bolhas digitais’, ‘fatos alternativos’ e a experiência de que habitamos ‘mundos paralelos’” (Bruno, 2020BRUNO, F. Arquiteturas algorítmicas e negacionismo: a pandemia, o comum, o futuro. In: DUARTE, L.; GORGULHO, V. (org.). No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020. p. 254-268., p. 258). Os algoritmos das plataformas digitais “nos oferecem uma paisagem personalizada que projeta o que supostamente desejamos ver, consumir, ouvir, ler, conhecer etc.” (Bruno, 2020BRUNO, F. Arquiteturas algorítmicas e negacionismo: a pandemia, o comum, o futuro. In: DUARTE, L.; GORGULHO, V. (org.). No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020. p. 254-268., p. 258), e essa paisagem, por sua vez, altera o que se pode ver. “O visível que se descortina a mim”, afirma Bruno (2020, p. 258), é “baseado num cruzamento das minhas trajetórias online com as trajetórias de pessoas supostamente similares a mim”, e é nesse processo que se confisca o comum. Para a autora,

[...] os algoritmos favorecem um tipo de conexão, marcado sobretudo por similaridade, expropriando uma riqueza coletiva e relacional que potencialmente poderia dar lugar a múltiplos modos de fazer comum, inclusive aqueles gestados em meio a desacordos e diferenças

(Bruno, 2020BRUNO, F. Arquiteturas algorítmicas e negacionismo: a pandemia, o comum, o futuro. In: DUARTE, L.; GORGULHO, V. (org.). No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020. p. 254-268., p. 260).

O segundo fenômeno de que trata a autora e que tem a ver com a forma de operação algorítmica é o que ela chama de “sequestro do futuro”. O modelo de negócios que rege as plataformas digitais, escreve ela, “envolve processos algorítmicos com a promessa e a capacidade de agir sobre os comportamentos enquanto eles acontecem, de modo a intervir sobre o próximo passo” (Bruno, 2020BRUNO, F. Arquiteturas algorítmicas e negacionismo: a pandemia, o comum, o futuro. In: DUARTE, L.; GORGULHO, V. (org.). No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020. p. 254-268., p. 262).

Um exemplo oferecido por Morozov (2018)MOROZOV, E. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2018. a esse respeito é esclarecedor: sugere ele que imaginemos alguém que tem procurado informações acerca do veganismo. Essa demanda, com os conteúdos acessados e o tempo passado em cada site, por exemplo, é “leiloada” para os anunciantes. Se o setor da carne der o maior lance, a próxima publicação a aparecer na timeline desse usuário pode ser uma promoção de uma churrascaria, um estudo sobre os benefícios da ingestão da carne ou qualquer coisa que o valha. “Nossas condutas online são assim constantemente antecipadas”, explica Bruno (2020, p. 262)BRUNO, F. Arquiteturas algorítmicas e negacionismo: a pandemia, o comum, o futuro. In: DUARTE, L.; GORGULHO, V. (org.). No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020. p. 254-268., e isso implica “um sequestro, no nível cotidiano, do nosso campo de ação possível, colocado a serviço da produção de mais e mais engajamento”. Dessa maneira, conclui ela:

A mediação algorítmica não intervém apenas na paisagem atual, mas também na ação seguinte e, portanto, na paisagem por vir, que é constantemente antecipada, projetada de modo a aumentar a probabilidade de que o nosso próximo passo seja na direção de que os algoritmos sutilmente recomendam. Nesse sentido, o futuro e a ação possível, como reserva aberta de possibilidades, de encontros e de inesperado, são sequestrados nessas microantecipações cotidianas nos ambientes e plataformas online

(Bruno, 2020BRUNO, F. Arquiteturas algorítmicas e negacionismo: a pandemia, o comum, o futuro. In: DUARTE, L.; GORGULHO, V. (org.). No tremor do mundo: ensaios e entrevistas à luz da pandemia. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020. p. 254-268., p. 263).

Os efeitos da configuração algorítmica na qual estamos imersos contemporaneamente, então, não parecem conter-se pelas margens dos smartphones e dos computadores pessoais. A fragilização dos laços sociais, a perda da noção de comum, o ensimesmamento, a circulação de fake news e seus impactos na democracia, nas campanhas de vacinação, em processos de linchamento, por exemplo, ilustram como a tecnologia altera formas de pensar, de agir, de sentir.

Neil Postman (1993)POSTMAN, N. Technopoly: the surrender of the culture to the technology. Nova York: Vintage Books, 1993., nesse sentido, sugere que pensemos uma inovação tecnológica como uma alteração ecológica. Quando tem relevância, escreve o autor, uma tecnologia altera o ambiente de forma total: em dado hábitat, a adição ou a supressão de uma lagarta não tem como resultado apenas esse hábitat mais a lagarta ou esse hábitat menos a lagarta, mas sim uma reconfiguração completa das condições alimentares desse ambiente – e o mesmo ocorre com a tecnologia. A Europa, depois da prensa de Gutenberg, reinventou-se totalmente. A prensa, aliás, inventou certa noção de infância que fez emergir novamente a necessidade da escolarização, por exemplo. Daí por diante, a escola mesma não ficou imune às reconfigurações subjetivas operadas pelas tecnologias específicas que foram surgindo. O próprio Postman (1999)POSTMAN, N. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999., além de Corea (2004)COREA, C. Pedagogia del aburrido: escuelas destituidas, familias perplejas. Buenos Aires: Paidós, 2004., por exemplo, trata disso ao analisar os impactos da televisão na infância.

Mais recentemente, o trabalho de Sibilia (2012)SIBILIA, P. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. investiga a maneira como a dispersão na internet faz emergir uma “subjetividade midiática” bastante divergente daquela que, tradicionalmente, fez-se necessária para a pedagogia. Eu mesmo, em três ocasiões, pude sistematizar algumas reflexões sobre isso. Numa delas, interessaram-me os desafios escolares oriundos do excesso de informações decorrentes das redes de comunicação (Coppi, 2023bCOPPI, L. A. C. Do uno ao múltiplo: as didáticas de Comenius e de Montaigne e a diversidade e suas contribuições para a contemporaneidade. Pro-Posições, Campinas, v. 34, p. 1-19, 2023b. https://doi.org/10.1590/1980-6248-2022-0057
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); em outra, o redimensionamento na forma escolar operado pelo ensino remoto durante a pandemia de Covid-19 (Coppi, 2023aCOPPI, L. A. C. A suspensão das suspensões: a “forma escolar” e a “skholé” em tempos de pandemia. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 49, p. 1-15, 2023a. https://doi.org/10.1590/S1678-4634202349265127
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); e, por fim, numa terceira oportunidade, tratei especificamente dessa subjetividade que emerge dos algoritmos a fim de refletir sobre como ela se choca com fundamentos escolares (Coppi, 2023cCOPPI, L. A. C. Em defesa do ensino: o comum e a abertura existencial em meio aos algoritmos digitais. Revista Educação em Questão, v. 61, n. 70, e33919, 2023c. https://doi.org/10.21680/1981-1802.2023v61n70ID33919
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).

É por isso que não parece despropositado imaginar que a arquitetura algorítmica das redes cria as condições para o surgimento de desafios escolares. A acentuação do sujeito em si mesmo, a perda da experiência do comum e a inércia existencial e identitária se impõem como aspectos bastante contrários àqueles esboçados por Serres (1993)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993. e por Montaigne (2012)MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1., por exemplo, que apostam numa educação que leve o estudante a sair de si, a despregar-se de certezas demasiado fixas, a bifurcar e a frequentar o mundo.

É emblemática, nesse sentido, uma passagem do ensaio de Montaigne (2002)MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1. em que ele sugere ao preceptor que exponha o educando à infinidade das opiniões e das visões de mundo: “Ele escolherá se puder; se não, permanecerá em dúvida”, afinal, de “seguros e convictos, há apenas os loucos” (Montaigne, 2002MONTAIGNE, M. Os ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002. v. 1. p. 226). A lógica dos algoritmos digitais faz minguar essa diversidade e, ao fazê-lo, aniquila a dúvida, a indecisão, a errância. Faz soar como um absurdo “permanecer na dúvida”. Entretanto, dados os espraiamentos por essa lógica anunciados, talvez seja preciso desejar a dúvida, a incerteza e a imprecisão. Talvez seja preciso habitar a dúvida, e loucura seria não fazê-lo. Mas como habitá-la?

Sobre Dúvidas, Decisões e Responsabilidades

Foi com um rio que comecei este ensaio. Do rio, passamos a um espelho d’água que traz fatalmente para dentro de si aquele que admira nele o próprio reflexo. E é com mais água que continuo. Com uma água agora rasa, suja, um tanto quanto parada. Uma água que circunda o tempo – ou melhor, um relógio. É diante dela que começa a narrativa que, como me parece, tem algo a ensinar a respeito do ensino de sujeitos afogados em si mesmos.

No centro do Campus Butantã da Universidade de São Paulo, há uma praça, a Praça do Relógio. No meio dela, fica o relógio, e, em torno dele, há uma espécie de lago artificial. Pequeno, quase uma lagoa, uma poça com ares. Dois amigos meus, sem muito o que fazer num começo de tarde preguiçosa, andavam por ali, conforme me contaram, quando um grupo de três meninos – o mais novo com não menos de 8 anos, o mais velho não passando de 11 – os interrompeu em sua caminhada:

  • Tios, nós podemos entrar aí?

  • Na água?

  • É, na água.

Esses dois amigos são também professores – A. é de Matemática; G., de Língua Portuguesa. São esses sujeitos, portanto, que costumeiramente têm as respostas na ponta da língua: um professor, afinal, “tem muito de pregador”, tem um tom professoral que “é uma mistura de austeridade e dogmatismo”, conforme reflete outro educador, Jorge Larrosa (2010, p. 168)LARROSA, J. Pedagogia profana. Belo Horizonte: Autêntica, 2010., enquanto se questiona sobre vestir uma gravata ou um chapéu de bobo em uma conferência importante. Aparentemente, então, nem A. nem G. hesitariam na resposta. A água suja, em tese, não abriria margem para nenhum e se?; a responsabilidade tampouco lhes permitiria desaguar em qualquer orientação diferente daquela expressa por um categórico não.

Mas a tarde era preguiçosa, a gravata já se afrouxava, e o sol batia distraído – irresistivelmente, naquele momento, a dúvida, ou esse nem sempre oportuno e se?, instalou-se.

A resposta correta àquela indagação seria o não, mas, sendo tão evidente, não o seria também para os três garotos? Se sim, por que, então, eles perguntavam? É provável que o não não significasse para eles, por si só, grande coisa diante do desejo de refrescar-se naquela água. As regras impessoais, absolutas e inapeláveis, no fim das contas, guardam um pouco dessa insignificância. Talvez, mais ainda, sejam nocivas: “O que destrói mais rapidamente do que trabalhar, pensar, sentir sem necessidade interna, sem uma profunda escolha pessoal, sem prazer? Como um autômato do ‘dever’?”, questiona-nos um Nietzsche (2016, p. 17)NIETZSCHE, F. O anticristo: maldição ao cristianismo: Ditirambos de Dionísio. São Paulo: Companhia de Bolso, 2016. inconformado com todo “imperativo categórico”.

O fato é que, talvez, um sonoro não ao que pediam os meninos não oferecesse a eles a possibilidade de refletirem, de pensarem, de experienciarem o mundo e de, fazendo-o, conferirem sentido ao que vivessem. Eles poderiam obedecer, acatar o sentido vindo de fora, poderiam resignar-se. A vida continuaria como deveria ser, calma e inerte, como as águas paradas daquela piscina interdita. Ou então, conforme é provável que já viesse acontecendo, os garotos poderiam tão somente esperar que outro adulto por ali passasse para que lhe colocassem a mesma pergunta. Em algum momento, talvez acreditassem, alguém cederia – por pressa, por desinteresse, por indiferença –, e eles finalmente poderiam brincar naquela água.

Não, então, não era uma resposta. Mas e sim?

Responder afirmativamente aos três garotos daria a eles, talvez, a resposta que desejavam. Eles entrariam na água, brincariam ali, realizariam o desejo. Talvez, mais para frente, ficassem doentes. Da doença, talvez aprendessem que não deveriam ter feito o que haviam feito. Algo seria, ainda que a posteriori, ensinado. Isso, no entanto, soa um tanto quanto antigo, um tanto quanto démodé – como hoje defender que é pela dor que se aprende qualquer coisa? Mas não é só essa a questão.

Tanto A. quanto G. sabiam que não era essa a resposta. Deixar que três garotos mergulhassem naquela água suja seria de uma irresponsabilidade atroz. E, aqui, talvez seja pertinente refletir sobre a irresponsabilidade. “Responsabilidade”, no dicionário (Houaiss, 2004HOUAISS, A. Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004., p. 643), significa “dever ou capacidade de responder pelos atos próprios ou de outros”. Irresponsável, portanto, é aquele que não responde por eles. Sabendo dos perigos daquela água, responder sim seria, paradoxalmente, não responder, furtar-se a responder, anular-se de tal forma que entre o desejo dos garotos e a sua satisfação não se encontraria coisa nenhuma, existência nenhuma, que oferecesse ainda que uma mínima resistência que lhes permitisse lembrar que o mundo não é a plasmação imediata de suas vontades.

Como responder, então? Como impedir que a dúvida, as reflexões e os questionamentos paralisassem? Como epígrafe de suas “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, Jorge Larrosa (2014, p. 15)LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. recorre a Kafka e escreve: “No combate entre você e o mundo, prefira o mundo”. Estaria aí uma resposta? Preferir o mundo diante de uma vontade avassaladora que desse continuidade veloz ao desejo do próprio eu, mas também preferir o mundo a um discurso que o codifica em regras, em mandamentos, em interdições descoladas da própria experiência com o mundo. Como preferir o mundo? Sem mais delongas, A. ou G. – nem eles lembram bem quem afinal – disse:

  • Ontem, passeando por aqui, eu vi um rato morto boiando nessa água.

O mundo, então, emergiu.

Quando A. e G. contaram sobre o rato que viram boiando morto no lago, algo de diferente se operou na cena. Algo de vivo veio à tona. O mundo, transfigurado num roedor sem vida, impôs-se e pediu que a ele se respondesse. Ele não estava mais escondido atrás de regras prontas e pretensamente definitivas. Tampouco, por outro lado, foi subsumido numa vontade pessoal ensimesmada e inábil para lidar com aquilo que não a confirmou. Ele ganhou objetividade à medida que passou a ser o encontro das perspectivas dos dois adultos e das três crianças e, ainda que mudo, pediu por uma decisão.

O que se fez a seguir é de uma ordem diferente do que se tinha desenhado no campo das possibilidades até então. Por um lado, se decidissem não entrar, os garotos não o fariam a partir de uma obediência resignada e inelutável a uma ordem vinda do universo adulto. Em outras palavras, não abdicariam do que queriam fazer apenas por uma incapacidade de fazer frente à ordem instituída. Por outro lado, se resolvessem entrar, tampouco o fariam como o resultado de um movimento automático que produz uma ação tão logo surge aquilo que instantaneamente se reivindica como desejo. O futuro abriu-se novamente como possibilidade, como risco, como imprevisível. Assim como é – ou podem ser – a vida e a identidade. O que ensinam os adultos é que há escolha; o que aprendem as crianças é que elas devem responder, é que elas são respostas, mas não respostas previstas nem em busca do engajamento correto. São – ou podem ser – respostas que habitam a dúvida, a incerteza, a incompletude.

A cena narrada aqui e as inferências e questões com que a fui polvilhando não se passam em uma sala de aula. Não é de algoritmos que se trata, e, ainda que envolvam professores e crianças em idade escolar, tampouco é a escola o que está em jogo ali. Parece-me, todavia, incontornável pensar, à luz do que significa ensinar em uma realidade algoritmizada, nos sentidos a que ela dá voz. Talvez não haja como, de nossas salas de aula, interromper a instalação da arquitetura digital no mundo em que vivemos, mas há, entretanto, maneiras de oferecer a nossos alunos, ao menos durante as horas que passamos com eles, uma experiência outra, uma experiência distinta daquela que vivenciam fora dali.

Às perguntas, em lugar de uma resposta pronta e acabada, é possível oferecer o mundo – seja o das fórmulas matemáticas, seja o dos teoremas físicos, seja o das obras literárias, seja o da História, seja o das células, seja o do relevo geográfico –, ainda aberto, ainda polissêmico e pedindo respostas. Pedindo responsabilidade. Às perguntas, em lugar de uma abstenção que faz permanecer uma corrente existencial ensimesmada e solipsista, é possível oferecer um mundo que, tal qual uma pedra lançada numa superfície d’água, desestabiliza o que está parado, inerte. Talvez não haja métodos para isso – e talvez seja importante que não existam. Trata-se de certa postura, de uma disposição particular para enfrentar um modo de existir que, cada vez mais, convoca ao encerramento do sujeito em si mesmo. Uma disposição a convidar a frequentar o mundo, a abandonar o ninho, a perder referências por demais confortáveis. Uma disposição para o que é diverso e difícil de assinalar, de apreender.

Uma disposição, enfim, para errar.

Considerações Finais

Ao longo deste texto, busquei mostrar como a arquitetura algorítmica das redes digitais contemporâneas vaza dos dispositivos eletrônicos e impõe condições subjetivas hostis àquelas mais alinhadas à frequentação do mundo e à errância, conforme certa ideia de educação propõe. Para tanto, por meio de uma revisão bibliográfica, apresentei o funcionamento dos algoritmos nas redes virtuais e, dele, lancei luz à maneira como os algoritmos potencialmente afetam a experiência existencial e identitária em nossos dias. O modelo de negócio das plataformas digitais cria uma experiência online confortável e propícia ao viés de confirmação e à eliminação do que difere, do que desestabiliza, encerrando, portanto, os sujeitos em si mesmos, em suas próprias convicções e fixando-os numa única versão de si.

Contra esse encerramento, propus um mergulho em uma narrativa que, a meu ver, sugere uma forma de resistência. O fato narrado não ocorreu comigo, mas com dois amigos; no entanto, conforme pondera Benjamin (2012, p. 221)BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012., o interesse não era “transmitir o puro em si da coisa narrada, como uma informação ou um relatório”, mas sim mergulhar “a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele”. Como narrador, era só em minhas próprias inquietações que poderia mergulhar o relato que me chegou há alguns anos, e as marcas que pude deixar nele foram as marcas de minhas próprias mãos, interessadas que estavam no ensino em meio à dinâmica algorítmica que vivencio. Do que narrei, então, busquei fazer emergirem sentidos para o ensino capazes de fazer frente ao ensimesmamento. Minha aposta foi, com Larrosa (2014)LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2014., no próprio mundo e em sua abertura: em lugar de regras prontas e inapeláveis e de um desprezo pelo mundo em nome do próprio eu, talvez a resistência possível seja o encontro com o que há, com o que existe. É esse o encontro que demanda um engajamento existencial. É ele que forma.

Para torná-lo possível, contudo, é talvez preciso abandonar certezas fixas e deveres impessoais. É preciso querer frequentar o mundo e os riscos que daí advêm. É preciso abandonar um ninho e bifurcar as direções ditas naturais. Afinal, ao fim e ao cabo, talvez, como coloca Michel Serres (1993)SERRES, M. O terceiro instruído. Lisboa: Instituto Piaget, 1993., não seja possível de fato aprender coisa alguma sem partir, sem partir-se.

Referências

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Editor de Seção: Claudio Almir Dalbosco https://orcid.org/0000-0003-3408-2975

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2023
  • Aceito
    02 Mar 2024
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