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MEMÓRIAS IMPROVÁVEIS OU IMPOSSÍVEIS? RESTOS DE VIDA EM DIÁLOGOS COMUNICACIONAIS

Improbable or impossible memories? Life remains in communicational dialogues

¿Improbables o imposibles recuerdos? Vestigios de vida en diálogo comunicacional

RESUMO

A partir da articulação teórica entre memória, comunicação e história, o artigo procura refletir sobre vinculações entre comunicação e memória, mediante exercício da recuperação de vidas de escravizados brasileiros do século XIX. A reinscrição dessas vidas, que figuram como listas nos arquivos penais, mostra o comunicacional como possibilidade de produzir outros sentidos para o passado. Do ponto de vista metodológico, através da análise documental, interpreta-se fichas prisionais da Casa de Detenção do Rio de Janeiro, procurando identificar elementos para compreender um “poderia ter sido” do passado. A partir das informações das listas, mostramos vidas em atos memoráveis, relacionando memória, comunicação e história.

PALAVRAS-CHAVE:
Memória; Comunicação; História; Prisioneiros; Escravizados; Século XIX

ABSTRACT

In the theoretical articulations between memory, communication, and history, this article tries to think about the links between communication and memory, by an exercise of recovering Brazilian slaves’ lives from the XIX century. The inscription of these lives, which appear as lists in criminal files, shows communication as a possibility of producing other meanings for the past. From a methodological point of view, with documental analysis, it interprets prison files from the Casa de Detention in Rio de Janeiro, seeking to identify elements to also interpret a “could have been” from the past. Based on the information from the lists, we show lives inscribed in memorable acts, relating memory, communication, and history.

KEYWORDS:
Memory; Communication; History; Prisoners; Slaves; XIX Century

RESUMEN

Desde la articulación teórica entre memoria, comunicación e historia, este artículo reflexiona sobre los vínculos entre comunicación y memoria a partir del ejercicio de recuperación de la vida de los esclavizados brasileños en el siglo XIX. La reinscripción de estas vidas, que aparecen listadas en los archivos criminales, se presenta como una posibilidad de producir otros sentidos sobre el pasado. Desde un punto de vista metodológico mediante el análisis documental, se interpretan los registros penitenciarios en la Casa de Detención de Río de Janeiro, con el fin de identificar los elementos que puedan interpretar un “podría haber sido” del pasado. A partir de la información contenida en estos listados, se muestran vidas en hechos memorables, relacionando memoria, comunicación e historia.

PALABRAS CLAVE:
Memoria; Comunicación; Historia; Prisioneros; Esclavizados; Siglo XIX

INTRODUÇÃO

O ponto de partida para a estruturação de uma pesquisa que pretende construir o que denominamos biografias improváveis dos escravizados brasileiros do século XIX e do qual este artigo é o primeiro exercício foi a constatação da ausência de biografias dos escravizados brasileiros, ainda que haja, sobretudo nas Américas, uma longa produção de textualidades dessa natureza, muitas em primeira pessoa, em diversos territórios, como nos Estados Unidos e em países da América Central 1 1 A única biografia de escravizados brasileiros que se conhece é a autobiografia de Mahommah Gardo Baquaqua (2017). Por sua vez, sobretudo nos países de língua inglesa, a produção de biografias dos escravizados ampliou-se pela tradição dos estudos literários norte-americanos, o que se conhece como North American Slave Narratives. As Slave Narratives têm longa tradição na literatura norte-americana, começando a ser publicadas em fins do século XVIII, ampliando-se ao longo do século XIX no mundo anglofônico. Algumas dessas autobiografias serviram de base para pesquisas historiográficas ao longo do século XX, como Lovejoy (1997; 2010) e Carretta (2010). No Brasil, existem, principalmente na história, diversos estudos que também tematizam a vida dos escravizados. Ver, entre outros: Silva (1997), Azevedo (1999), Graham (2005), Reis (2008), Machado (2010) e Farias (2012). . A inquietação, acoplada às perguntas “por que há esta ausência?” e “o que significaria remontar as escritas dos escravizados?”, levou-nos a pensar que poderíamos, pelos caminhos teóricos e metodológicos da comunicação, construir, mesmo sem a outorga nem a experiência desses sujeitos históricos, essas biografias.

A questão do memorável é, portanto, ponto de partida para a construção do projeto. O esquecimento profundo (Ricceur, 2007)RICCEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007., aqui representado pela ausência de histórias de vidas que merecem ser contadas, e as lacunas de uma trama escriturária sob a forma do “si mesmo” (Ricceur, 1990)RICCEUR, P. Soi-même comme un outre. Paris: Seuil, 1990., ainda que dependente das articulações textuais produzidas por um outro, são os aportes teóricos centrais. Traços duradouros, como práticas de um mundo que é sempre comunicacional, por outro lado, permitem arquitetar biografias improváveis. São muitos os nexos e as relações entre comunicação e memória que se apresentam e que serão explicitados ao longo do texto.

Há que se remarcar nos últimos anos a profusão de estudos que colocam em prevalência as articulações mídia e memória 2 2 Há na comunicação uma longa tradição de articulação dos estudos com a questão da memória, numa pluridimensionalidade de abordagens que remonta ao início dos anos 1990. Nessas reflexões, destacam-se os vínculos entre comunicação e história, incluindo os usos do passado pelos meios de comunicação, a articulação com as comemorações e políticas de esquecimento, entre diversas outras. Podemos dizer que num primeiro momento as pesquisas dialogavam, sobretudo, com as reflexões em torno da memória social (Halbwachs, 1990), do esquecimento e das proposições de uma memória enredada em laços culturais (Assmann, A., 2011). Além disso, sobressaem-se nesse momento os trabalhos que reafirmam a condição de lugar de memória (Nora, 1984-1993) para os meios de comunicação. Na sequência, passam a salientar a polifonia presente na dimensão memorável, a memória comunicacional (Assmann, J., 2016) e o conceito de “entangled memory” (Feindt, 2014), bem como os vínculos com as “imagens sobreviventes”, propostos nos estudos de Didi-Huberman (2013). Remarca-se também a relação entre nostalgia, cultura da memória e cultura da mídia (Ribeiro, 2018). Sobre um inventário mais detalhado, ver Barbosa (2021b). . Aqui identificamos excesso de trabalhos, alguns dependentes ao extremo da visão representacional da mídia, o que pode ser também sintoma de uma compulsão de repetição (Freud, 2016)FREUD, S. Repetir, recordar e elaborar (1914). In: FREUD, S. Obras completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 193-210. v. 10., igualmente importante para a compreensão do conceito de memória. Se, por um lado, o movimento evidencia algumas das características do mundo contemporâneo, no qual a centralidade midiática é articuladora privilegiada da dimensão do memorável, por outro há que se considerar que essa repetição impede, muitas vezes, o aprofundamento crítico. Pela repetição, interdita-se, a rigor, a aproximação memória/mídia em toda a sua complexidade. O excesso pela repetição e os clássicos estudos de memória mostram isso; não se permite atingir a rememoração (Ricceur, 2007)RICCEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.3 3 Não negamos o vínculo estreito entre mídia e memória; apenas alertamos quanto a pensar as razões do excesso nos cenários contemporâneos. Na associação científica que reúne os programas de pós-graduação em Comunicação, há um grupo de pesquisa especificamente destinado ao tema que se chamava Memória nas Mídias e que, no último processo de reclivagem, em 2022, passou a denominar-se Estudos de Memória e Comunicação. . O artigo possui, portanto, dois objetivos. Num primeiro momento, procura alargar as possibilidades de vínculos entre comunicação e memória, mediante o exercício de recuperação das vidas de escravizados brasileiros do século XIX. No segundo, por intermédio do exercício em torno dessas vidas anônimas e inomináveis, que figuram como listas nos arquivos penais, mostra como o comunicacional, ao se constituir como fluxo possível do memorável, se apresenta como possibilidade de produzir outros sentidos para o passado. Diversas tramas comunicacionais colocadas em relação, do passado até o presente, tornam possível a recuperação de personagens anônimas que vão ganhando vidas improváveis pelos restos comunicacionais que permaneceram em diferentes suportes.

Com base nos arquivos dos escravizados conduzidos para a Casa de Detenção da CorteCASA DE DETENÇÃO DA CORTE. Matrículas de detentos: escravos. Rio de Janeiro: Casa de Detenção da Corte, 1880. Arquivo do Estado do Rio de Janeiro (AERJ), BR RJAPERJ CDC.0.0.MD.LL-10, série: Matrículas de Detentos (MD), subsérie: Livres e Libertos (LL), dossiê: Homens, Mulheres, Menores de 21 Anos (10). Disponível em: https://aperj.godocs.com.br/apps/viewer.v3/view.php?id=L3N0b3JhZ2UvaW1hZ2Vuc19jbGllbnRlcy9BUEVSSi8wMDAwMDE0Ni8wMDAwMDAwMS5qcGc&pags=0&ini=2&titulo=LOTE:%2000000146. Acesso em: 7 jul. 2022.
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, no início da década de 1880, restauramos também a dimensão imaginativa da memória sobrevivente nas tramas comunicacionais, considerando pedaços da vida de personagens que sequer tinham nomes. Os inomináveis são conhecidos pelos nomes que diziam ter, mas que, mesmo assim, não são nem acreditados nem registrados; pelos nomes atribuídos em função de um território que se transforma, pela indefinição, num nome-continente (os africanos); e, o mais comum, nomes curtos, de poucas sílabas, aos quais se acopla a designação do porto onde foram embarcados, transformando-se numa identificação sem identidade e que perdura por séculos: são os minas, os monjolos, os congos e os moçambiques. Além disso, muitos tinham vinculada ao nome a denominação crioulo, ou seja, aquele que já nascera no Brasil 4 4 Embora tenhamos reproduzido uma definição amplamente difundida do termo crioulo, a rigor, crioulo, pardo, mulato, mestiço, cabra, entre outros nomes, marcam diferenças não apenas pela pigmentação da pele, mas revelando também posições sociais e múltiplos estereótipos. Sobre o tema, ver: Rezende (2013). , e para muitos outros se destacava o nome pardo 5 5 A questão da designação da cor, abordada por diversos historiadores, não será tratada neste artigo. Ver, por exemplo, Ferreira (2005). .

VÍNCULOS COMUNICACIONAIS E MEMÓRIA

Modos de comunicação e diálogos produzidos no passado e, sobretudo, a premissa da possibilidade de construção do biográ- fico pela produção de vínculos comunicacionais (Sodré, 2014)SODRÉ, M. A ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. são o ponto de partida que permite o exercício de reconstruir vidas. Para isso, dois movimentos concomitantes são realizados: a recriação de seus modos de comunicação produzidos no passado e a permissão da imaginação histórica como possibilidade metodológica 6 6 Um breve exercício metodológico de como pretendemos desenvolver essas biografias dos escravizados brasileiros do século XIX pode ser encontrado em Barbosa (2021a). .

É a vinculação comunicacional que nos leva a perceber essas vidas, estabelecendo camadas temporais, criando um entretempo memorável que, do presente, reinstaura o passado como um poderia ter sido, restabelecendo a imagem/imaginação do passado. Essas duas ações/interpretações (passado como um poderia ter sido e sua reconstrução por imagens/imaginação) permitem o gesto de reconstruir vidas memoráveis em escrituras (Barthes, 2004a,BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004b. 2004b)BARTHES, R. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004a. de si mesmo elaboradas por um outro. A escritura ocorre pela interação entre os domínios do mundo real e suas qualificações éticas e o mundo imaginário e suas qualificações estéticas (Barthes, 2004a: 64-68)BARTHES, R. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004a.. Esse é o movimento que propomos nessas biografias improváveis, em que fontes históricas serão usadas de maneira intercambiável com as fontes imaginativas/comunicacionais, trazendo à tona vidas infinitas.

Na pesquisa, baseamo-nos na exposição de alguns escravizados quando ganham as páginas dos principais periódicos, sobretudo no fim do século XIX, por ter sido imputado a eles um ato violento: um crime que instaura a quebra da normalidade presumida. Assim, atos violentos constroem o improvável não apenas como permissividade para chegar à morte e à vingança localizadas no passado, mas como possibilidade de reinstaurar entretempos, localizados no tempo de vida do pesquisador. O presente apresenta-se como “contratempo” (Robin, 2016)ROBIN, R. A memória saturada. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016. aberto a todos os passados, articulando sempre múltiplas temporalidades, marcadas pela polifonia rítmica e pela heterogeneidade. São passados, como enfatiza Robin (2016: 40)ROBIN, R. A memória saturada. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016., “que nos esforçamos para gerir, perseguir, ou, ao contrário, para reavivar em ilusões de ressureição, para restaurar, para contornar”, mas serão sempre “passados esburacados”, governados pelo aleatório dos arquivos, “distorcidos, reescritos, reinventados, simplesmente esquecidos, inacessíveis” (Robin, 2016: 40)ROBIN, R. A memória saturada. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016..

O escravizado será escolhido em função da visibilidade pública possibilitada pelo ato comunicacional. A partir daí, do futuro do passado indo em direção ao passado do passado (ou seja, a sua vida anterior), procura-se reconstruir vidas de alguns que tiveram seu nome pronunciado e tornado audível pela presunção de uma falta, que foi guardada como ato memorável nos periódicos de outrora. Relacionando o verossímil que o documento apresenta com infinitas doses imaginativas, propomos escrever a história de vida (imaginando existências) de homens e mulheres que foram colocados no lugar da subalternidade absoluta, mas que, ao terem resgatados no futuro suas vozes, seus gestos, seus medos, suas emoções, provam que vidas importam sempre. Se esse é o movimento mais amplo da pesquisa, aqui, neste texto, outro se insinua: os inomináveis só ganham possibilidade de existência por meio de rastros fixados pelas instituições e que perduraram como restos do passado (Ginzburg,2007;GINZBURG, C. Os fios e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Heller,1993;HELLER, A. Uma teoria da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. Ricceur, 2007)RICCEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007..Não temos a pretensão (talvez tenham os a inspiração, o que não é pouco) derepetir o gesto de Foucault(2006),quando sede bruçou sobre as vidas dos homens que chamou de infames. Nelas, ele também viu“vidas breves, encontradas por acaso em livros e documentos”, que localizava “o efeito misto de beleza e terror”, em “vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem nome, juntadas em um punhado de palavras” (Foucault, 2006: 203). Talvez seja apenas o fato de terem sido vidas guardadas e gravadas pelo gesto comunicacional, que agora se transformam em memoráveis, que possa aproximar dimensões teóricas tão diametralmente opostas.

No caso das vidas rastreadas dos que não tinham sequer um nome a ser designado (e fixado) pela instituição carcerária, presentes na segunda parte do artigo, deles nada foi dito: apenas uma suposta aparência, uma roupa que se repetia, uma condição de prisão (bem como lugares) que se intercambiavam de uns para outros. São indivíduos, como diz Foucault (2006: 209)FOUCAULT, M. A vida dos homens infames (1977). In: FOUCAULT, M. Ditos e escritos IV. Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 203-222. em relação aos homens infames que rastreou, que “só terão existência ao abrigo precário dessas palavras […]. Essa pura existência verbal faz desses infelizes ou desses facínoras seres quase fictícios”. Porém as condições de permanência do memorável, as repetições que do passado se reinstauram no presente, no que diz respeito aos escravizados, transformam em vidas reais esses pedaços inscritos nos documentos do passado.

Os traços documentais do passado fazem da ausência uma espécie de ausência da presença (com base também na característica lacunar do registro e na perda de traços dessa vida até a possibilidade escriturária do presente, entre outras fulgurações dessa metáfora conceitual), fazendo emergir como ponto inflexivo a noção de rastro, conceito determinante para a questão do memorável, conforme já dito anteriormente. Serão, portanto, a persistência dos rastros e o desejo de percebê-los como inscrições do passado que nos levarão a vidas por meio dos indícios, que passam a ser testemunhais dos tempos de outrora.

Ricceur (2007)RICCEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007., ao apresentar a memória como mneme, surgimento das lembranças, e anamnesis, trabalho de rememoração (ou reelaboração, no sentido freudiano), destaca o esquecimento como a condição de possibilidade da memória. Penetrar na área do esquecimento, para ele, é perceber a “ambiguidade primordial”, ou seja, como se a sua “dupla valência de destruição e da perseverança se perpetuasse até as camadas superficiais do esquecimento” (Ricceur, 2007: 449)RICCEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.. Para vencer a destruição com a perseverança, indica que, ao esquecimento destruidor, se deve contrapor “o esquecimento que preserva” (Ricceur, 2007: 449)RICCEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.. E magistralmente conclui: “O esquecimento reveste-se de uma significação positiva na medida em que o tendo-sido prevalece sobre o não mais ser na significação vinculada à ideia do passado. O tendo sido faz do esquecimento o recurso imemorial oferecido ao trabalho da relembrança” (Ricceur, 2007: 451)RICCEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007..

Entre as diversas modalidades de trabalho de rememoração, como polo positivo, no sentido de reencontrar memórias perdidas por vezes indisponíveis, o que não as transformam em irremediavelmente desaparecidas, estão as reapropriações do passado realizadas pela história.

Pelas reflexões que fizemos ao longo do tempo, parece claro que a maneira de olhar o passado de uma perspectiva histórica não significa a presunção do encontro com uma possível verdade do passado, já que articulá-lo historicamente não instaura a possibilidade de sua recuperação, mas sempre do “poderia ter sido”. Como remarca Benjamin (1985: 156)BENJAMIN, W. Teses sobre filosofia da história. In: KOTHE, F. (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. p. 153-164., “articular historicamente algo passado não significa reconhecê-lo como efetivamente ele foi. Significa captar uma lembrança como ela fulgura num instante de perigo”.

O instante de perigo a que se refere Benjamin (1985)BENJAMIN, W. Teses sobre filosofia da história. In: KOTHE, F. (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. p. 153-164. diz respeito ao tempo presente. É do presente que o historiador, mantendo relação específica com o passado para o qual lança seu olhar e para ele se volta, identifica a produção do esquecimento e da denegação, que pode impedir até mesmo a eclosão de um nome. Faz-se necessário então produzir uma ação contra a “vontade de anulação”, usando aqui o argumento de Primo Levi (2011)LEVI, P. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 2011., em É isto um homem?. É preciso voltar-se contra o esquecimento dos mortos, ou antes, o esquecimento dos nomes, dos rostos daqueles que estavam vivos e se transformaram em mortos sem deixar rastros encadeados, como narrativa de uma existência. Há que se acrescentar, no caso dos escravizados, a política duradoura de negação presente no racismo da sociedade brasileira, que permite, ainda hoje, assassinatos em massa de um grupo que no passado (e no presente) viveu (vive) toda a sorte de extermínio, incluindo ver apagados os seus nomes.

A tarefa do pesquisador consiste então em transmitir o inenarrável, mesmo quando não conhecemos seus nomes. E, como tal, fabula aqueles instantes. Porém, como ficcionalizar a história sem ferir o regime de conhecimento que lhe é próprio 7 7 Roger Chartier (2022), em texto que coloca em relação história, retórica, literatura e memória, enfatiza a necessidade de a história reafirmar sua diferença em relação aos poderosos discursos ficcionais ou memoriais e diante das falsificações das realidades presentes e passadas, tão comuns no nosso tempo de produção de “verdades alternativas”. Com veemência (a qual compartilhamos), afirma: “Cabe as ciências da sociedade e do passado assumirem a responsabilidade que lhes compete: fazer inteligíveis as heranças e as descontinuidades que nos tornaram o que somos tanto como indivíduos quanto como sociedade. Nessa perspectiva, a história sempre deve ser o saber que desmascara as verdades alternativas, que rechaça as negações do que foi ou do que é, que estabelece um conhecimento comprovado. Assim, pode contribuir a apaziguar as feridas que deixou em nosso presente um passado que foi amiúde injusto e cruel. Assim, pode desempenhar seu papel cívico e ético” (Chartier, 2022: 20). Mais uma vez, Ricceur é chamado para auxiliar nessa empreitada. Ao propor a substituição da ideia de referência por refiguração, desdobrando essa noção, indica uma ficção que “remodele a experiência do leitor pelos únicos meios de sua irrealidade, a história o fazendo em favor de uma reconstrução do passado sobre a base dos rastros deixados por ele” (Ricceur, 1995 apudGagnebin, 2006: 43)GAGNEBIN, J. M. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006..

Devemos acrescentar a possibilidade de considerar, na esteira do texto de Benjamin (1985: 51)BENJAMIN, W. Teses sobre filosofia da história. In: KOTHE, F. (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. p. 153-164., o historiador como uma espécie de “sucateiro”, ou seja, aquele que deve apanhar tudo o que foi deixado de lado, aquilo de que a história oficial não quer se ocupar, elementos de sobras do discurso histórico. Cabe, por fim, refletir sobre o sofrimento – um sofrimento tão duradouro que repete, com inflexões exponenciais, um passado indizível: o da escravidão de homens e mulheres por séculos, num processo que precisa de reparação. Não por alguns, mas por todos, inclusive os historiadores sucateiros.

OS INOMINÁVEIS

Felizarda. Esse é o nome (seria ironia do destino?) que aparece em primeiro lugar no livro de registros dos escravizados que deram entrada na Casa de Detenção da CorteCASA DE DETENÇÃO DA CORTE. Matrículas de detentos: escravos. Rio de Janeiro: Casa de Detenção da Corte, 1880. Arquivo do Estado do Rio de Janeiro (AERJ), BR RJAPERJ CDC.0.0.MD.LL-10, série: Matrículas de Detentos (MD), subsérie: Livres e Libertos (LL), dossiê: Homens, Mulheres, Menores de 21 Anos (10). Disponível em: https://aperj.godocs.com.br/apps/viewer.v3/view.php?id=L3N0b3JhZ2UvaW1hZ2Vuc19jbGllbnRlcy9BUEVSSi8wMDAwMDE0Ni8wMDAwMDAwMS5qcGc&pags=0&ini=2&titulo=LOTE:%2000000146. Acesso em: 7 jul. 2022.
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, na década de 1880, o primeiro da série “Dossiê Homens e Mulheres, subsérie Escravos”, que enumera aqueles que lá ingressaram no período de 23 de dezembro de 1882 a 5 de fevereiro de 1883 (Figura 1). São 501 páginas, cabendo em cada uma delas três registros, o que perfaz a estonteante cifra de 1.503 escravizados que por lá passaram em apenas 44 dias (em média, 34 por dia).

Figura 1 –
Primeira Página do Livro de Registro dos Presos Escravizados.

Diante da enormidade numérica, cuja análise não caberia no escopo de um artigo, vamos nos deter nos registros de apenas sete dias de prisão presentes no documento da casa de detenção: a última semana de fevereiro de 1882. Vinte e nove escravizados ingressaram nas suas dependências durante esses sete dias: 11 mulheres e 18 ®homens. Foram presos, quase sempre, por faltas banais, até mesmo se considerarmos a gravidade dos crimes presentes no Código Criminal do Império do Brasil de 1830 8 8 As prisões davam-se também pela aplicação do Código de Posturas (de 1830 e que passou por revisão e ampliação em 1838), que prendia recorrentemente em função de infração de postura, isto é, comportamentos “desordeiros” (Lazarim, 2017: 22). . Banais para os não escravizados, mas para esses indivíduos não havia crimes banais.

Cabe esclarecer que a Casa de Detenção do Rio de Janeiro, criada em 1856 e instalada nas dependências da Casa de Correção, subordinada ao chefe de polícia da Corte, mantinha detidos presos que ainda não tinham sido condenados ou que tivessem delitos sem pena, ou seja, detenções de curta duração, ainda que a casa pudesse também abrigar presos condenados (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2001)ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Inventário preliminar do Fundo: Casa de Detenção do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2001.9 9 Ver também Araújo (2009) e Lazarim (2017). .

Nessa semana, que começa em 22 e termina em 28 de fevereiro de 1882, duas das prisões foram feitas por faltas qualificadas como de maior gravidade: a de Felizarda, a primeira que foi registrada, por estar de posse de “armas proibidas”; e a de Noé, mina, por estar incurso no artigo 257 do Código Criminal (Brasil, 1831)BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Codigo Criminal. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado dos Negocios da Justiça, 1831. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em: 1 jul. 2022.
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. O referido artigo refere-se ao “crime de injúria cometido por algum dos meios mencionados no artigo duzentos e trinta” (“crime de calúnia cometido por meio de papéis impressos, litografados ou gravados, que se distribuem por mais de quinze pessoas contra corporações”) (Brasil, 1831)BRASIL. Lei de 16 de dezembro de 1830. Manda executar o Codigo Criminal. Rio de Janeiro: Secretaria de Estado dos Negocios da Justiça, 1831. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm. Acesso em: 1 jul. 2022.
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. Noé, que era padeiro, foi identificado como um homem de 50 anos usando calça parda e camisa de riscado, além de paletó preto. Teria ele distribuído papéis impressos para outros padeiros contra os patrões? Poderia ter sido algum dos jornais operários que circulavam por aqueles dias em que se vivia, na cidade, a intensidade das greves operárias? Seria ele próprio um dos produtores desses jornais? Tramas do passado perdidas no tempo.

Fugir era a razão mais frequente das prisões: 15 dos presos o foram por terem fugido do cativeiro (ou serem “suspeito de fugido”). Na sequência, vinham as ações qualificadas como desordem (5) e por andar “fora de horas” (5), isto é, no período noturno, em que era terminantemente proibido a eles estarem nas ruas. A qualificação de “desordem” bastava na maioria das vezes, mas em algumas acrescentavam outras ações que ampliavam a falta original: embriaguez e insubordinação, por exemplo. Por vezes, podiam ser aprisionados por acumularem duas atitudes consideradas criminosas: fugir e desordem, além de estar na rua “fora de horas”. Ainda havia aqueles que eram presos por “queixar-se de ser maltratada”, como ocorreu com Maria; ou retornaram à cadeia depois de terem passado um tempo doentes em hospitais. Rosa Moçambique 10 10 Optamos por usar o segundo designativo (moçambique, crioulo, pardo) em letra maiúscula, porque muitas vezes estava dessa forma expresso no documento, mas sobretudo pelas razões que serão explicitadas no decorrer do texto. , lavadeira, que aparentava ter 50 anos, foi uma delas, assim como João Moçambique, carpinteiro, solteiro, com barba falhada e que se presumia ter 60 anos. Na sua ficha, a falta da anotação do dia em que foi solto (presente nas outras) e uma data sem maiores explicações (27 de março) parecem indicar que não resistiu à doença que o levou de volta à Casa de Detenção. A maioria era jovem, na faixa de 20 e 30 anos, mas também havia crianças e velhos que eram conduzidos quase que diariamente para a prisão.

Quase todos tinham sido detidos nas freguesias centrais da cidade do Rio de Janeiro: Sacramento, Santa Rita, Candelária, São José e Santana. Mas havia aqueles que vinham de localidades mais longínquas, como o Engenho Velho e o Engenho Novo. Os fugitivos eram capturados nas freguesias mais distantes, enquanto os que andavam “fora das horas” estavam nas ruas em busca do que a cidade nos seus lugares mais fervilhantes tinha a lhes oferecer. Situadas na parte mais central do Rio de Janeiro e que se estendia da Rua do Ouvidor até o Campo de Santana, era nas freguesias do Sacramento e de Santa Rita (também no miolo da cidade, mas que se estendia até a Gamboa, já nas proximidades do Cais do Porto) onde se efetuou a maioria dessas prisões.

Joss, o Pardo foi preso por “fugido” na Candelária, tinha 16 anos como idade aproximada, era imberbe, se disse “trabalhador”. Os cabelos – como de todos, sem uma única exceção – foram designados como “carapinhas”. Vestia calças e camisa de cor (qual seria a cor?). Romualdo, cujo nome acoplado à primeira designação é, mais uma vez, Pardo, era ainda mais jovem. A idade aproximada era 10 anos, a cor foi registrada como morena, e seu ofício era copeiro. Vestia também calça de cor, mas uma camisa branca. Pharaó Pardo tinha 14 anos como “idade aproximada”, imberbe, copeiro, vestia, tal como Romualdo, calça de cor e camisa branca. Guilherme Crioulo, nascido no Rio de Janeiro, 12 anos, também copeiro, foi preso vestindo uma calça escura e uma camisa de chita, e Lourenço Crioulo, nascido em Sergipe, também com 12 anos, exercendo o ofício de copeiro, trajava calça de riscado, camisa de chita, paletó de cor e chapéu velho.

Essas são as descrições dos escravizados crianças que naquela semana chegaram (e ficaram vários dias) à Casa de Detenção. Com exceção de Lourenço, todos foram presos por terem fugido ou por sobre eles pesarem a “suspeita de fugido”. Lourenço, não. Metera-se em “desordem” nas bandas da Freguesia do Sacramento. Pela forma como se vestia (calça de riscado, camisa e paletó, além de chapéu, ainda que velho), podemos supor que fora para as ruas em busca de diversão. Teria se metido em alguma briga? Qual teria sido a desordem que teria promovido? No dia seguinte à sua prisão, o Major Mendes, de quem era escravo, veio buscá-lo. Lourenço acompanhou-o, e com ele se foram os traços de uma vida que existiu e ficou guardada em restos esparsos, mas que continua pela dimensão do memorável produzindo o “poderia ter sido” do passado.

Nas designações não apenas dos jovens, mas de todos, observa-se o ato de se registrar, ao lado do primeiro nome, outro designativo que marca, pelo nome, sua condição de escravizado e que os atravessam do passado até o presente. Esses designativos escritos ao lado do nome e, muitas vezes, com letras maiúsculas (Moçambique, Pardo, Crioulo, Mina, Conga etc.), por outro lado, fazem com que sejam uma das escrituras que produzem o apagamento de seus nomes. Assim, ainda que tenham nomes diversos, sobressai o designativo, que os transforma em inomináveis. Designativos que apagam o primeiro nome, substituído pelo indefinido postado invariavelmente ao lado do seu nome 11 11 Ao construir a noção de “grupos de procedência”, Soares (2007: 116) enfatiza que as definições dos grupos de origem, ditas “nações”, tais como nagô, mina, congo e outras, foram criadas pelo tráfico e, portanto, são critérios de filiação que foram definidos aqui e não na África. .

As mulheres, como Felizarda, a quem já nos referimos quando iniciamos as descrições deste item, também eram em sua maioria jovens. Quase todas lavadeiras (mas também havia as passadeiras e as que faziam indistintamente serviços domésticos). Solteiras. Das 11 registradas no período, três foram presas por terem fugido: Catharina Conga, Faustina Crioula e Leocádia Crioula. Três outras por estarem nas ruas “fora de horas”: Margarida, Thereza e Maria (a quem também foi acoplado o nome Crioula como designativo depois do nome). Além delas, Maria Parda, por ousar “queixar-se de ser maltratada”, e Rosa Moçambique, “quando teve alta do Hospital da Misericórdia”. À lista, soma-se outra Maria, natural de Itaguaí, de 20 anos, cujo motivo da prisão foi o misto de “embriaguez e desordem”. Vestiam quase sempre, como conjunto das saias de chita, um paletó que podia ser “de cor”, “branco”, “escuro”, de “chita”, porém “velho”. Às vezes, traziam também sob o corpo xales de cor ou de lã 12 12 As condições urbanas da escravidão no Rio de Janeiro se refletem nas suas ocupações, quase sempre relacionadas aos ofícios destinados ao funcionamento e à manutenção das residências. Há que se considerar também a predominância dos ofícios daqueles que eram também escravos de ganho, bem como os de aluguel. Há importantes estudos sobre as ocupações dos escravos, que abordam essa questão, que não cabem no escopo deste artigo. Da mesma forma, as indumentárias dos escravizados já foram objeto de estudos minuciosos. Sobre o tema, ver: Souza (2011). .

Os fugidos não tinham um período determinado para permanecerem encarcerados: dependiam sempre de os senhores saberem de suas prisões e de que lá fossem buscá-los (ou seria melhor dizer recuperá-los?). Podia ser de um a três dias, ou semanas. Em alguns casos, como de Maria Crioula, não conseguimos saber se o indivíduo foi solto ou não, pois na sua ficha não há nenhuma menção à data da soltura. Nascida na Paraíba, solteira, com 26 anos, vestindo saia de chita, paletó de cor, xale de lá, quanto tempo Maria lá permaneceu? Qual a razão da sua não libertação: será que viera fugida desde a Paraíba, e a distância, por aqueles dias, dificultou a comunicação com o lugar onde originalmente era escravizada?

Os casos de longas permanências nas prisões de escravizados fugidos, em função de não serem “reclamados por seus senhores”, mesmo com a publicação de seus paradeiros nos ofícios do Diário Oficial, proliferam nos periódicos. Foi o que noticiou, por exemplo, a Gazeta de Notícias de 17 de janeiro de 1882 GAZETA DE NOTÍCIAS. Rio de Janeiro: [s. n.], ano 8, n. 40, p. 1, 17 jan. 1882, em relação a Antonio dos Santos, detido desde 1870; João Vicente, desde 1878; Isidoro, fugido desde agosto de 1879; Agostinho, que entrou na prisão em fevereiro de 1881; Felippa, presa em abril do mesmo ano; e Joanna, “detida por fugida” desde julho de 1881. Alguns, portanto, havia mais de 10 anos.

Se entre os fugidos e os que andavam “fora de horas” havia uma igualdade numérica na amostragem entre mulheres e homens, entre os que promoviam “desordens” se sobressaíam os homens jovens, alguns imberbes, como Lourenço, de 12 anos, copeiro, aprisionado em 28 de fevereiro de 1882. No mesmo dia e pelo mesmo motivo, Maria Crioula, que julgaram como embriagada, de apenas 20 anos e com um vestido de chita, também foi para o cárcere. Lá ficou por quatro dias. Prudêncio, cocheiro, Freguesia de Santana. Ficou um mês na prisão. Por que tanto tempo, se comparado a outros que pela mesma falta permaneceram por lá no máximo três dias?

Também com 20 anos, o cozinheiro Manoel foi parar na prisão e lá ficou por dois dias, por uma infração dupla: a “desordem” imputada pelas determinações do Código de Postura do município e por estar nas ruas “fora de hora”. O paletó que trajava, completado pelo colete, sobre a camisa branca, além do chapéu preto e da calça, também escura, denotava o esmero com que saíra de casa para andar, à noite, pelas ruas do Engenho Novo. O que ele buscava vestido daquela forma, numa localidade tão distante e que poderíamos presumir, apressadamente, sem nenhum atrativo? Entretanto, seguidamente, as notícias dos jornais mostravam que era ali, no Engenho Novo, que ficava um concorrido clube de danças e onde era possível escutar músicas até altas horas da noite (Barbosa, 2021a)BARBOSA, M. Biografias improváveis: o si mesmo de um outro como imaginação historiadora. Revista Brasileira de História da Mídia, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 27-47, 2021a. https://doi.org/10.26664/issn.2238-5126.102202112958
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. Estaria indo a um desses lugares ou voltando de lá quando foi flagrado andando pelas ruas?

Não obstante todas as proibições e os enquadramentos previstos no Código de Posturas, as ruas, os largos e as praças da cidade, sobre tudo as dasfreguesias mais centrais,continuavam sendo usado se apropriados pelos escravizados de maneira autônoma e informal. Era ali, nas ruas, que circulavam, trocavam informações, conversavam e desempenhavam diferentes atividades. Usufruíam, enfim, uma possível liberdade em momentos de lazer ou de descanso. Criavam possibilidades, mesmo que isso pudesse significar serem aprisionados como insubordinados ou desordeiros. Os atos de desobediência constituem, portanto, invenções cotidianas, recriações de possibilidades que as vidas ofereciam em brechas e adaptações das maneiras possíveis de viver um dia após o outro.

Apesar dessa existência real, as personagens aqui presentes são inomináveis por vários motivos. Algumas vezes, chegavam ao extremo de dizer o nome que possuíam, embora não fossem acreditados. Foi o que aconteceu com Jesuíno, que teve esse nome gravado na lista de prisioneiros, mesmo dizendo chamar-se Zeferino. Tinha 60 anos e foi registrado como solteiro. Calça, paletó, camisa de chita e chapéu preto, foi assim que chegou. Ficou preso por longos 12 dias. Zeferino não teve escutado nem acreditado o nome que afirmava ter.

Outros não possuíam sequer o primeiro nome.Foram designados por africanos.Seus restos de vida foram fixados em outra lista:a dos presos para os quais, em princípio, não se provou a condição de escravizados e, em função disso, estavam misturados com os considerados “livres” (Casa de Detenção da Corte,1880)CASA DE DETENÇÃO DA CORTE. Matrículas de detentos: escravos. Rio de Janeiro: Casa de Detenção da Corte, 1882-1883. Arquivo do Estado do Rio de Janeiro (AERJ), BR RJAPERJ CDC.0.0.MD.ES-04, série: Matrículas de Detentos (MD), subsérie: Escravos (ES), dossiê: Homens e Mulheres. Disponível em: https://aperj.godocs.com.br/apps/viewer.v3/view.php?id=L3N0b3JhZ2UvaW1hZ2Vuc19jbGllbnRlcy9BUEVSSi8wMDAwMDExOS8wMDAwMDAwMS5qcGc=&pags=0&ini=2&titulo=LOTE:%2000000119. Acesso em: 7 jul. 2022.
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.Africano,“que se diz livre”,ignorava o nome dos pais,já que no registro dos livres,ao contrário dos escravizados,havia lugar na ficha para a filiação. Tinha 60 anos. O motivo da prisão: vagabundagem. Mas quando lhe foi perguntada a profissão, respondeu “trabalhador”. Foi preso por estar dormindo na rua e dizia morar na Gamboa.

A maioria é inominável, porque, mesmo tendo um nome individualizado, é amalgamada por outra palavra, que cria, de forma não vinculativa, um sujeito inexistente e marcado pela sujeição. São os moçambiques, os congos, os monjolos, os minas, entre outros, que definitivamente encobrem o nome por uma designação atribuída com base no cativeiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na introdução de Os fios e os rastros, Ginzburg (2007: 7)GINZBURG, C. Os fios e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. afirma que, “escavando os meandros dos textos, contra as intenções de quem os produziu, podemos fazer emergir vozes incontroladas”. As vozes incontroladas a que ele se refere estavam contidas nos processos penais, encobertas pelos porta-vozes da justiça, os juízes, que detinham a fala pública. Papéis que ficaram adormecidos em arquivos como documentos-testemunho de uma época. Deles, podem igualmente emergir as vozes dos presos, e, pelas brechas, elas se insinuavam, rastros de um passado que constroem outros fios para a história.

No exercício que fizemos em relação às listas dos escravizados que ingressaram como prisioneiros na Casa de Detenção do Rio de Janeiro, no início dos anos 1880, última década da escravidão. Embora não sejam documentos que deixam visíveis vozes como tramas escritas encadeadas, também ali, em simples listas que presumiam uma identificação e as razões da prisão, podemos encontrar, escavando esses restos de um tempo (e, mais uma vez, contra as intenções de quem as produziu), vozes incontroladas. São textos igualmente entranhados de história.

Para que desses documentos possam emergir rostos, vozes, vidas presumidas, há que os perceber como “testemunhos históricos”, deles fazendo uma leitura a “contrapelo”, tal como sugeriu Benjamin (1985)BENJAMIN, W. Teses sobre filosofia da história. In: KOTHE, F. (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. p. 153-164.. Para este, o passado é sempre um “fato de memória” (Benjamin, 1985: 194-195)BENJAMIN, W. Teses sobre filosofia da história. In: KOTHE, F. (Org.). Walter Benjamin. São Paulo: Ática, 1985. p. 153-164., em permanente movimento, tanto psíquico como material, e, como tal, transforma-se em fato da história que só existe no presente. Dessa forma, devemos renunciar a hierarquias, colocando de um lado fatos objetivos contra fatos subjetivos, e seguir a seta indicada por Didi-Huberman (2017)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo. Lisboa: Orfeu Negro, 2017., com base na excepcional leitura que faz de Benjamin: adotar “a escuta flutuante do psicanalista atento às redes de pormenores, às tramas sensíveis formadas pelas relações entre as coisas” (Didi-Huberman, 2017: 128)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo. Lisboa: Orfeu Negro, 2017..

Nomes que se sucedem e nos quais são adicionados uma segunda denominação, que, de tão forte, encobre o próprio nome, fazendo das personagens da trama deste artigo inomináveis; presunções das maneiras como se movimentavam pelas ruas da cidade, escondendo-se ou querendo ser cada vez mais visíveis, índices contidos também nas roupas que vestiam; aparência física; o tempo- hiato iniciado com sua entrada no cárcere, por faltas que presumimos hoje banais, ainda que para os escravizados não houvesse faltas banais. Muitos são os cenários que podem emergir de simples listas, mas que deixam à mostra formas de vida inscritas em atos memoráveis do passado que uma escritura comunicacional pode revelar. Esse foi o principal movimento realizado ao longo do texto, que procurou colocar em relação memória, comunicação e história.

Podemos pensar a escravidão no Brasil como um fato de memória, que nunca se transformou e, usando mais uma vez uma expressão de Didi-Huberman (2017)DIDI-HUBERMAN, G. Diante do tempo. Lisboa: Orfeu Negro, 2017., como um “acontecimento histórico incontornável”, como chamou o Holocausto. Para a escravidão, ao contrário, e submetido a infinitas reelaborações memoráveis, não há falha ou incompletude. A visibilidade da falta dessa reelaboração necessária, nos atos de memória, aparece com tintas dramáticas no nosso cotidiano, e a morte de incontáveis corpos negros quase todos os dias pela ação violenta do Estado ou pela falta de ação deste é apenas um dos muitos exemplos que poderíamos dar.

Nesses tempos de hoje, porém, parece ser cada vez mais visível que estão em curso processos decisivos de “reelaboração” desse acontecimento histórico, para que seja elevado à categoria de “incontornável”. O movimento de acirramento, que por vezes chega às raias do extremismo (necessário), em torno de reflexões “justas”, empregadas aqui no sentido da “justa memória” (Ricceur, 2007)RICCEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007., empreendidas pelos movimentos e coletivos em torno das racialidades, deixa isso visível. Essas ações mostram, todos os dias, a emergência do que pode ser qualificado como um “lembrar ativo”. Um trabalho de elaboração e de luto em relação ao passado que se dá pela compreensão e pelo esclarecimento do passado no presente (Gagnebin, 2006: 105)GAGNEBIN, J. M. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006., ou do presente em direção ao passado.

Esse movimento está contido também nestas poucas páginas. Pelo menos foi essa a intencionalidade do texto.

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  • LOVEJOY, P. Autobiography and Memory: Gustavus Vassa, alias Olaudah Equiano, the African. In: BROWN,C.A.; LOVEJOY, P. (Org.). Repercussions of the Trans-Atlantic Slave Trade: The Interior of the Bight of Biafra and the African Diaspora. Toronto: Africa World Press, 2010. p.317-347.
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    A única biografia de escravizados brasileiros que se conhece é a autobiografia de Mahommah Gardo Baquaqua (2017)BAQUAQUA, M. Biografia de Mahommah Gardo Baquaqua: um nativo de Zoogoo, no interior da África. São Paulo: Uirapuru, 2017.. Por sua vez, sobretudo nos países de língua inglesa, a produção de biografias dos escravizados ampliou-se pela tradição dos estudos literários norte-americanos, o que se conhece como North American Slave Narratives. As Slave Narratives têm longa tradição na literatura norte-americana, começando a ser publicadas em fins do século XVIII, ampliando-se ao longo do século XIX no mundo anglofônico. Algumas dessas autobiografias serviram de base para pesquisas historiográficas ao longo do século XX, como Lovejoy (1997;LOVEJOY, P. Biography as Source Material: Towards a Biographical Archive of Enslaved Africans. In: LAW, R. (Org.). Source Material for Studying the Slave Trade and the African Diaspora. Stirling: Centre of Commonwealth Studies, University of Stirling, 1997. p. 119-40. 2010)LOVEJOY, P. Autobiography and Memory: Gustavus Vassa, alias Olaudah Equiano, the African. In: BROWN,C.A.; LOVEJOY, P. (Org.). Repercussions of the Trans-Atlantic Slave Trade: The Interior of the Bight of Biafra and the African Diaspora. Toronto: Africa World Press, 2010. p.317-347. e Carretta (2010)CARRETTA, V. Questioning the Identity of Olaudah Equiano or Gustavus Vassa, the African. In: BROWN, C. A.; LOVEJOY, P. E. (Orgs.). Repercussions of the Trans-Atlantic Slave Trade: The Interior of the Bight of Biafra and the African Diaspora. Toronto: Africa World Press, 2010.. No Brasil, existem, principalmente na história, diversos estudos que também tematizam a vida dos escravizados. Ver, entre outros: Silva (1997)SILVA, E. Dom Obá II D’África, o príncipe do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., Azevedo (1999)AZEVEDO, E. Orfeu da Carapinha: a trajetória de Luís Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp, 1999., Graham (2005)GRAHAM, S. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005., Reis (2008)REIS, J. J. Domingos Sodré: um sacerdote africano. São Paulo: Companhia das Letras, 2008., Machado (2010)MACHADO, M. H. Corpo, gênero e identidade no limiar da abolição: a história de Benedicta Maria Albina da Ilha ou Ovídia, escrava (sudeste, 1880). Afro-Ásia, Salvador, v. 42, p. 157-193, 2010. https://doi.org/10.9771/aa.v0i42.21212
    https://doi.org/10.9771/aa.v0i42.21212...
    e Farias (2012)FARIAS, J. Mercados Minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890). 2012. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012..
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    Há na comunicação uma longa tradição de articulação dos estudos com a questão da memória, numa pluridimensionalidade de abordagens que remonta ao início dos anos 1990. Nessas reflexões, destacam-se os vínculos entre comunicação e história, incluindo os usos do passado pelos meios de comunicação, a articulação com as comemorações e políticas de esquecimento, entre diversas outras. Podemos dizer que num primeiro momento as pesquisas dialogavam, sobretudo, com as reflexões em torno da memória social (Halbwachs, 1990)HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990., do esquecimento e das proposições de uma memória enredada em laços culturais (Assmann, A., 2011)ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.. Além disso, sobressaem-se nesse momento os trabalhos que reafirmam a condição de lugar de memória (Nora, 1984-1993)NORA, P. Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984-1993. para os meios de comunicação. Na sequência, passam a salientar a polifonia presente na dimensão memorável, a memória comunicacional (Assmann, J., 2016)ASSMANN, J. Memória comunicativa e memória cultural. História Oral, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 115-127, 2016. e o conceito de “entangled memory” (Feindt, 2014)FEINDT, G et al. Entangled Memory: Toward a Third Wave in Memory Studies. History and Theory, Middletown, v. 53, n. 1, p. 24-44, 2014. https://doi.org/10.1111/hith.10693
    https://doi.org/10.1111/hith.10693...
    , bem como os vínculos com as “imagens sobreviventes”, propostos nos estudos de Didi-Huberman (2013)DIDI-HUBERMAN, G. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.. Remarca-se também a relação entre nostalgia, cultura da memória e cultura da mídia (Ribeiro, 2018)RIBEIRO, A. P. G. Mercado da nostalgia e narrativas audiovisuais. E-Compós, Brasília, DF, v. 21, n. 3, p. 1-15, 2018. https://doi.org/10.30962/ec.1491
    https://doi.org/10.30962/ec.1491...
    . Sobre um inventário mais detalhado, ver Barbosa (2021b)BARBOSA, M. Mídia e memória: entrelaçamentos. Comunicação e Memória, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 16-23, 2021b..
  • 3
    Não negamos o vínculo estreito entre mídia e memória; apenas alertamos quanto a pensar as razões do excesso nos cenários contemporâneos. Na associação científica que reúne os programas de pós-graduação em Comunicação, há um grupo de pesquisa especificamente destinado ao tema que se chamava Memória nas Mídias e que, no último processo de reclivagem, em 2022, passou a denominar-se Estudos de Memória e Comunicação.
  • 4
    Embora tenhamos reproduzido uma definição amplamente difundida do termo crioulo, a rigor, crioulo, pardo, mulato, mestiço, cabra, entre outros nomes, marcam diferenças não apenas pela pigmentação da pele, mas revelando também posições sociais e múltiplos estereótipos. Sobre o tema, ver: Rezende (2013)REZENDE, R. C. Crioulos e crioulizações em Minas Gerais: designações de cor e etnicidades nas Minas sete e oitocentista. 2013. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2013..
  • 5
    A questão da designação da cor, abordada por diversos historiadores, não será tratada neste artigo. Ver, por exemplo, Ferreira (2005)FERREIRA, R. G. Pardos: trabalho, família, aliança e mobilidade social. Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850. 2005. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005..
  • 6
    Um breve exercício metodológico de como pretendemos desenvolver essas biografias dos escravizados brasileiros do século XIX pode ser encontrado em Barbosa (2021a)BARBOSA, M. Biografias improváveis: o si mesmo de um outro como imaginação historiadora. Revista Brasileira de História da Mídia, São Paulo, v. 10, n. 2, p. 27-47, 2021a. https://doi.org/10.26664/issn.2238-5126.102202112958
    https://doi.org/10.26664/issn.2238-5126....
    .
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    Roger Chartier (2022)CHARTIER, R. Verdade e prova: história, retórica, literatura, memória. Revista História, São Paulo, n. 181, p. 1-22, 2022. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2022.181759
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141....
    , em texto que coloca em relação história, retórica, literatura e memória, enfatiza a necessidade de a história reafirmar sua diferença em relação aos poderosos discursos ficcionais ou memoriais e diante das falsificações das realidades presentes e passadas, tão comuns no nosso tempo de produção de “verdades alternativas”. Com veemência (a qual compartilhamos), afirma: “Cabe as ciências da sociedade e do passado assumirem a responsabilidade que lhes compete: fazer inteligíveis as heranças e as descontinuidades que nos tornaram o que somos tanto como indivíduos quanto como sociedade. Nessa perspectiva, a história sempre deve ser o saber que desmascara as verdades alternativas, que rechaça as negações do que foi ou do que é, que estabelece um conhecimento comprovado. Assim, pode contribuir a apaziguar as feridas que deixou em nosso presente um passado que foi amiúde injusto e cruel. Assim, pode desempenhar seu papel cívico e ético” (Chartier, 2022: 20)CHARTIER, R. Verdade e prova: história, retórica, literatura, memória. Revista História, São Paulo, n. 181, p. 1-22, 2022. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2022.181759
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141....
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    As prisões davam-se também pela aplicação do Código de Posturas (de 1830 e que passou por revisão e ampliação em 1838), que prendia recorrentemente em função de infração de postura, isto é, comportamentos “desordeiros” (Lazarim, 2017: 22)LAZARIM, A. S. Rotinas do cárcere: uma história social da Casa de Detenção da Corte entre 1856 e 1889. 2017. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, 2017..
  • 9
    Ver também Araújo (2009)ARAÚJO, C. E. M. Cárceres imperiais: a Casa de Correção do Rio de Janeiro. Seus detentores e o sistema prisional no Império, 1830-1861. 2009. Tese (Doutorado em História) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2009. e Lazarim (2017)LAZARIM, A. S. Rotinas do cárcere: uma história social da Casa de Detenção da Corte entre 1856 e 1889. 2017. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, 2017..
  • 10
    Optamos por usar o segundo designativo (moçambique, crioulo, pardo) em letra maiúscula, porque muitas vezes estava dessa forma expresso no documento, mas sobretudo pelas razões que serão explicitadas no decorrer do texto.
  • 11
    Ao construir a noção de “grupos de procedência”, Soares (2007: 116)SOARES, M. C. Rotas atlânticas da diáspora africana: da baía do Benin ao Rio de Janeiro. Niterói, RJ: Eduff, 2007. enfatiza que as definições dos grupos de origem, ditas “nações”, tais como nagô, mina, congo e outras, foram criadas pelo tráfico e, portanto, são critérios de filiação que foram definidos aqui e não na África.
  • 12
    As condições urbanas da escravidão no Rio de Janeiro se refletem nas suas ocupações, quase sempre relacionadas aos ofícios destinados ao funcionamento e à manutenção das residências. Há que se considerar também a predominância dos ofícios daqueles que eram também escravos de ganho, bem como os de aluguel. Há importantes estudos sobre as ocupações dos escravos, que abordam essa questão, que não cabem no escopo deste artigo. Da mesma forma, as indumentárias dos escravizados já foram objeto de estudos minuciosos. Sobre o tema, ver: Souza (2011)SOUZA, P. M. Visualidade da escravidão: representações e práticas de vestuário no cotidiano dos escravos na cidade do Rio de Janeiro oitocentista. 2011. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    06 Ago 2022
  • Aceito
    01 Dez 2022
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