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PENSAR A MEMÓRIA E A FUNÇÃO DO ARQUIVO TELEVISIVO NA ERA DO STREAMING: UM OLHAR PARA A PLATAFORMA GLOBOPLAY

Thinking about memory and the function of the television archive in the streaming era: a look at the Globoplay platform

Pensando la memoria y la función del archivo televisivo en la era del streaming: una mirada a la plataforma Globoplay

RESUMO

Este artigo propõe uma reflexão acerca do projeto de retorno das telenovelas antigas do Grupo Globo na plataforma de streaming Globoplay, discutindo sobre seu impacto na constituição e manutenção da(s) memória(s). Para isso, foram empregados o método bibliográfico exploratório, utilizando-se da abordagem qualitativa, e o método de análise indutivo. Os dados obtidos com a pesquisa permitem enxergar o arquivo televisivo além da força mercadológica contida no projeto de retorno das telenovelas antigas. Verifica-se que o resgate dessas obras atua como meios de evocação, potencialização e, sobretudo, manutenção das memórias.

PALAVRAS-CHAVE:
Memória; Televisão; Globoplay; Telenovela; Laço Social; Streaming

ABSTRACT

This article aims to propose a reflection on the return project of Grupo Globo’s old soap operas, on the Globoplay streaming platform, discussing its impact on the constitution and maintenance of memory(s). To that end, the exploratory bibliographic method, using the qualitative approach, and the inductive analysis method were used. The date found by the research allow us to see the television archive beyond the marketing force contained in the project to return the old soap operas. It appears that the rescue of these productions acts as a means of evoking, enhancing, and, above all, maintaining memories.

KEYWORDS:
Memory; Television; Globoplay; Soap opera; Social bond; Streaming

RESUMEN

Este artículo propone reflexionar sobre el proyecto de retorno de las antiguas telenovelas del Grupo Globo en la plataforma de streaming Globoplay para discutir su impacto en la constitución y mantenimiento de la(s) memoria(s). En este esfuerzo investigativo, se movilizan el método bibliográfico exploratorio, utilizando el enfoque cualitativo, y el método de análisis inductivo. Los hallazgos de la investigación permiten ver el archivo televisivo más allá de la fuerza de mercadotecnia contenida en el proyecto de devolución de telenovelas antiguas. Parece que el rescate de estas obras actúa como un medio para evocar, potenciar y, sobre todo, mantener los recuerdos.

PALABRAS CLAVE:
Memoria; Televisión; Globoplay; Telenovela; Lazo Social; Streaming

INTRODUÇÃO

Diariamente, milhões de telespectadores são impactados pelas telenovelas. Desde a chegada da televisão no Brasil, em meados da década de 1950, essas obras se tornaram um dos maiores trunfos da programação televisiva. Trata-se de produções ficcionais que abordam assuntos relacionados ao cotidiano, política, entre outras questões culturais que circulam no dia a dia dos indivíduos. Maria Immacolata Lopes (2011)LOPES, M. I. V. Telenovela como recurso comunicativo. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 21-47, 2011. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v3i1p21-47.
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acredita que as telenovelas são compreendidas, sobretudo, como um típico produto cultural brasileiro.

Com um mercado consolidado, nos últimos anos, o retorno de telenovelas antigas na grade de programação das emissoras tem sido contemplado em numerosos estudos sob diferentes perspectivas. Para Holdsworth (2011)HOLDSWORTH, A. Television, memory and nostalgia. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011., trata-se de um retorno seguro ao passado que estimula um consumo afetivo para quem assiste e, também, um risco seguro às indústrias televisivas. De acordo com Bressan Júnior (2019)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019., esses títulos antigos se tornaram extremamente rentáveis às indústrias televisivas, dado o alto valor afetivo atribuído a eles pelos telespectadores.

Entretanto, as reconfigurações no ecossistema midiático televisivo provocadas pela força do streaming apresentaram novas possibilidades de compreensão da memória no que diz respeito ao compartilhamento desses títulos na era da convergência midiática (Jenkins, 2009)JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.. Lemos e Rocha (2022: 47)LEMOS, L. P.; ROCHA, L. L. F. Ficção televisiva brasileira e covid-19: reconfigurações e estratégias de programação. Lumina, Juiz de Fora, MG, v. 16, n. 1, p. 45-60, 2022. DOI: https://doi.org/10.34019/1981-4070.2022.v16.33616. observam inclusive que, dentre uma sequência de alterações impostas à televisão durante o período pandêmico, o retorno das telenovelas antigas neste cenário provocou alterações estruturais “nos modos de fazer e de assistir à teledramaturgia”. Desse modo, pensar a memória e a função do arquivo televisivo na era do streaming nos convida a tecer um recorte específico capaz de nos direcionar a possíveis questionamentos.

Neste trabalho em particular, focalizamos nossas discussões no serviço de streaming Globoplay, subsidiado pelo Grupo Globo. Nos últimos anos, nota-se que o Globoplay tem atuado de forma a ampliar as possibilidades de consumo televisivo dos materiais produzidos pela organização ao longo dos anos. Desde seu lançamento, em 2015, a empresa adotou alguns reposicionamentos de mercado ao reforçar seus pontos fortes em relação às suas principais concorrentes no setor do streaming audiovisual (Santos Neto; Strassburger, 2019)SANTOS NETO, V.; STRASSBURGER, D. O reposicionamento do Globoplay: um estudo de caso sobre a reconfiguração de identidade da plataforma de streaming da Rede Globo. Temática, João Pessoa, ano 15, n. 6, p. 112-130, 2019. DOI: https://doi.org/10.22478/ufpb.1807-8931.2019v15n6.46384.
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, com um vasto catálogo de obras antigas, entendido como um grande diferencial competitivo graças aos impactos cultural e social das telenovelas no imaginário e na memória coletiva do telespectador brasileiro.

Evidente que nessa retomada dos títulos antigos do Grupo Globo, existem lógicas e premissas de interesses particulares da organização. No entanto, além dessas questões de matrizes mercadológicas, observamos que o compartilhamento desses títulos antigos apresenta, sobretudo, outros aspectos interessantes, os quais devem ser melhor contemplados a partir do potencial impacto do projeto no que diz respeito à constituição e manutenção da(s) memória(s).

Nesta direção, este trabalho apresenta os seguintes questionamentos: de que maneira se verifica o poder de agenciamento da plataforma ao propiciar o desencadeamento de determinadas memórias coletivas a partir dos interesses mercadológicos da organização com o compartilhamento dos arquivos televisivos do Grupo Globo? Como se configura a função socializadora da plataforma ao ampliar o acesso do telespectador a esses conteúdos audiovisuais e, assim, possibilitar a rememoração via streaming? A partir dessas questões, o presente artigo tem como objetivo propor uma reflexão acerca do projeto de retorno das telenovelas antigas do Grupo Globo na plataforma de streaming Globoplay, discutindo sobre seu impacto na constituição e manutenção da(s) memória(s). Além disso, também se busca verificar os atravessamentos que são intrínsecos e extrínsecos ao projeto, sobretudo face ao crescimento do setor de streaming no país.

Nesse estudo, apresentamos algumas reflexões a partir do método bibliográfico exploratório, utilizando-se da abordagem qualitativa e do método de análise indutivo. Para isso, olhamos para o impacto cultural das telenovelas no telespectador, sobretudo para o potencial afetivo contido nesses produtos na evocação de memórias, e, assim, buscamos referendar a força e magnitude dessas produções inseridas dentro do processo de construção e manutenção da memória coletiva.

Partimos da concepção de laço social de Wolton (1996)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996. para compreender os efeitos afetivos e socializadores da televisão; com Bressan Júnior (2019), explicamos a relação teleafetiva da memória da/na audiência, com a evocação de lugares, tempo e pessoas a partir de suas imagens. Ainda em relação aos estudos de memória, adotamos como enquadramento teórico autores como Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992., Huyssen (2000)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992., Halbwachs (2003)HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003. e Barbosa e Ribeiro (2007)BARBOSA, M.; RIBEIRO, A. P. G. Memória, relatos autobiográficos e identidade institucional. Comunicação e Sociedade, São Bernardo do Campo, SP, v. 28, n. 47, p. 99-114, 2007. DOI: https://doi.org/10.15603/2175-7755/cs.v28n47p99-114
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Além destes aparatos teórico e metodológico, avançamos em nossas reflexões e olhamos além das telinhas, nas interlocuções entre o mercado e a academia, nos olhares atravessados entre a ficção e realidade, que, por meio do retorno desses títulos, possibilitam pensar e discutir a memória na era do streaming audiovisual.

O GÊNERO TELENOVELA COMO CATALISADOR DE MEMÓRIAS (TELE) AFETIVAS

Para que possamos entender o impacto do gênero telenovela no contexto da televisão brasileira, é necessário que discorramos, inicialmente, sobre o lugar da própria televisão na sociedade brasileira. Wolton (1996)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996. destaca que a chegada dos televisores ao Brasil representou quase um milagre, o “milagre da imagem”. Segundo o autor,

não só o espetáculo em imagem seduzia imediatamente, como também a janela para o mundo proporcionada pela informação, pelos documentários, filmes e espetáculos estrangeiros fizeram da televisão um dos meios instrumentais da emancipação cultural (Wolton, 1996: 5)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996..

Os primórdios da televisão no Brasil se iniciaram com a inauguração da TV Tupi de São Paulo, entendida também como a primeira emissora a operar na América do Sul. Inaugurada oficialmente em 18 de setembro de 1950, a emissora promoveu uma revolução nos sistemas de comunicação do país. Ao longo das décadas, novas emissoras surgiram e, dessa forma, a TV brasileira potencializou sua relevância, comportando-se não somente como elemento constituinte da nossa cultura, mas também da história do país.

Nas coberturas jornalísticas, nos trabalhos documentais ou nas produções ficcionalizadas, a televisão mostra representações da sociedade que atuam como fundamentos sobre os quais a memória do país é construída. Dessa forma, a imagem televisiva é história e memória, pois marca a vida dos espectadores de modo que certos fatos somente são recordados por meio da repercussão e das coberturas televisivas. Contudo, através desses processos de evocação e recordação, a história também se ancora e se reinventa a partir das memórias coletivas.

Nessa perspectiva, Wolton (1996)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996. afirma que a ideia de televisão deve ser concebida a partir de dois aspectos centrais que se associam para estabelecer a principal força do meio televisivo: a dimensão técnica e a dimensão social. Enquanto a técnica seria representada pela ideia de divertimento e espetáculo propiciados pela imagem, a social estaria ligada a uma espécie de fio invisível que conecta o público, um laço social que dá aos telespectadores a possibilidade de participarem individualmente de uma atividade coletiva. Sob essa ótica, compreendemos o laço social como um dos papéis eficazes desempenhados pela televisão. É por meio da constituição desses laços que a TV se estabelece como objeto de conversação, de modo que mais importante do que as imagens exibidas é o fato de haver pessoas falando sobre elas. Para o autor, “a força da televisão está no religamento dos níveis da experiência individual e da coletiva” (Wolton, 1996: 16)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996..

Diante desse contexto, chamamos a atenção para as telenovelas brasileiras que, de acordo com Lopes (2011)LOPES, M. I. V. Telenovela como recurso comunicativo. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 21-47, 2011. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v3i1p21-47.
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, são vistas como um fenômeno social e de audiência. Surgindo quase concomitantemente à estreia da TV no Brasil, o gênero telenovela ou os folhetins novelescos apresentaram um fator de inovação por contarem, na maior parte das vezes, com obras abertas cujos enredos se alteram de acordo com a recepção do público. É também por meio da relação com a audiência que a teledramaturgia reforça a ideia de um laço social televisivo, uma vez que, segundo Wolton (1996)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996., todo mundo conversa sobre as novelas. Para o autor,

O mais surpreendente é o caráter realmente popular desses folhetins. Sem dúvida, segundo os horários, os produtos são muito diferentes, mas resta um ponto em comum: todas as classes sociais assistem às novelas. Temos aí, sem dúvida, uma das verificações experimentais mais naturais da teoria da televisão como laço social (Wolton, 1996: 164, grifo do autor)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996..

Ao promover uma espécie de ida e volta entre a ficção e a realidade, a teledramaturgia opera não somente como um espelho da sociedade, mas também como fator estruturador da identidade brasileira (Wolton, 1996)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996., o que demonstra a influência da televisão na constituição de quem somos e, consequentemente, de nossas memórias. Embora tratemos aqui de produções ficcionais, as telenovelas incorporam tramas e fatos do cotidiano do brasileiro que comportam uma lógica à qual interessa, sobretudo, o fator audiência (Santos Neto; Bressan Júnior, 2021)SANTOS NETO, V.; BRESSAN JÚNIOR, M. A. Deus salve a rainha!: o laço social televisivo e a memória coletiva na série The Crown. Memorare, Tubarão, SC, v. 8, n. 2, p. 22-38, 2021. DOI: https://doi.org/10.19177/memorare.v8e2202122-38.
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Desse modo, as telenovelas também nos auxiliam na constituição das nossas memórias em relação à vida real. Se para Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992. a memória é sempre uma construção do passado sob a ótica do tempo presente, ora, as telenovelas aqui são vistas como espaços que influem sobre as nossas percepções e sobre a constituição e evocação de nossas memórias.

As telenovelas antigas, como verificado em diversos trabalhos (Holdsworth, 2011;HOLDSWORTH, A. Television, memory and nostalgia. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011. Ribeiro, 2018)RIBEIRO, A. P. G. Mercado da nostalgia e narrativas audiovisuais. E-Compós, Brasília, DF, v. 21, n. 3, p. 1-15, 2018. DOI: https://doi.org/10.30962/ec.1491.
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, mobilizam o consumo graças ao potencial afetivo contido nesses produtos televisivos. Isto é, existe uma dimensão afetiva que, para além do seu caráter mercadológico, direcionam ao consumo televisivo em decorrência dessa busca ou curiosidade pelo retorno do passado, como pontua Holdsworth (2011)HOLDSWORTH, A. Television, memory and nostalgia. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011.. Ao abordar essa temática, Bressan Júnior (2019: 96)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019. nos apresenta o conceito de memória teleafetiva, sendo essa “[…] a responsável por recuperar e reformular reminiscências reconstituídas a partir das imagens exibidas na televisão e pelos afetos em torno das vibrações provocadas por ela”. Partindo dessa ideia, observamos o efeito provocados pela televisão ao estimular e evocar recordações por meio de pulsões afetivas acionadas pelas imagens televisivas, fenômeno que é ampliado diante da experiência coletiva de assistir à televisão.

A ideia de uma memória teleafetiva se apresenta de maneira interessante nos escritos de Wolton (1996)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996. a respeito do laço social televisivo. Segundo o autor, os laços do passado são reconstituídos por meio das reminiscências produzidas pela televisão, que possibilitam, ainda, a constituição de novos laços sociais. Referindo-se especificamente às telenovelas, Bressan Júnior (2019)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019. defende que esse gênero televisivo está tão fortemente representado nos contextos imaginário e social que, mesmo aqueles que assistem a um folhetim pela primeira vez, são capazes de evocar reminiscências. Na perspectiva do autor,

A memória é social e coletiva e, desta forma, é construída com os discursos e as representações. O telespectador que assiste […] pela primeira vez uma telenovela sabe que se trata de uma reexibição, que apresenta um contexto fora de sua época. No entanto, carrega consigo elementos discursivos e representativos que podem ter sido atribuídos por outras pessoas (Bressan Júnior, 2019: 208)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019..

Isso acontece, pois, de acordo com Huyssen (2000: 9)HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000., a busca constante pelo passado “triunfou sobre o presente e bloqueou qualquer imaginação de futuros alternativos”. Para o autor, o boom da memória evidencia, cada vez mais, a valorização do passado na contemporaneidade, sinalizando uma obsessão das instâncias culturais e midiáticas pela instrumentalização da memória. Está ligada à temporalidade e à crise existencial do nosso tempo presente (Huyssen, 2000;HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. Ribeiro, 2018)RIBEIRO, A. P. G. Mercado da nostalgia e narrativas audiovisuais. E-Compós, Brasília, DF, v. 21, n. 3, p. 1-15, 2018. DOI: https://doi.org/10.30962/ec.1491.
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Em vista disso, percebemos a importância que a programação televisiva do passado exerce em nossas lembranças, as quais passam a influir sobre a formulação das memórias. Mais do que ficcionalizar histórias do cotidiano e levá-las para a telinha, as novelas são representações da realidade que ajudam na compreensão de quem somos, dos lugares que ocupamos e dos papéis que exercemos socialmente (Lopes, 2011)LOPES, M. I. V. Telenovela como recurso comunicativo. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 21-47, 2011. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v3i1p21-47.
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. São ainda capazes de unir indivíduos de idades, culturas e posições socioeconômicas distintas, gerando uma atividade coletiva entre grupos que, de outra forma, talvez nunca vivenciassem essa ligação. Eis aí a função socializadora da televisão (Wolton, 1996)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996..

De acordo com Ferrés (1998)FERRÉS, J. Televisão subliminar: socializando através de comunicações despercebidas. Porto Alegre: Artmed, 1998., a televisão carrega consigo traços peculiares que a faz ser um dos únicos meios de comunicação capazes de exercer efeitos inadvertidos ao telespectador. Essas sensações muitas vezes não são compreendidas conscientemente pela ordem da racionalidade, mas atuam, segundo Bressan Júnior (2019)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019., na composição de memória afetivas sob a ordem da sensibilidade.

Bressan Júnior (2019)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019. escreve que a memória afetiva é sempre aquela que vem carregada de sentimentos, “pulsa” ao ser rememorada e está sempre articulada com outras pessoas. Assim, a televisão, por fazer parte de um determinado repertório cultural, enriquece as relações afetivas e sociais entre os indivíduos perante as rememorações.

Se entendemos que a telenovela exerce força e pressão na constituição e reconstituição da memória, é necessário que olhemos para o tempo presente de modo a compreender como essas evocações são agenciadas pelas instâncias midiáticas. Neste caso em específico, lançamos nosso olhar para a plataforma de streaming Globoplay, responsável por disponibilizar os títulos antigos do Grupo Globo, de modo a tecer algumas reflexões a respeito o arquivo televisivo no contexto do streaming audiovisual e seu impacto na memória.

O GLOBOPLAY E O ARQUIVO TELEVISIVO NA ERA DO STREAMING

Desde a década de 1980, nota-se a obsessão das indústrias culturais pela memória enquanto estratégia midiática e mercadológica. Na TV Globo, verifica-se, por exemplo, a força do Vale a Pena Ver De Novo, sessão de reprises de telenovelas que marcaram época na Rede Globo, no ar desde 1980. Observa-se, também, o programa Vídeo Show (1983-2019), com quadros dedicados a exibir imagens de bastidores e momentos marcantes da televisão. Entretanto, a popularização da internet ampliou as possibilidades de consumo audiovisual, bem como refletiu em novos desafios ao Grupo Globo para repensar o compartilhamento desses materiais na era da convergência midiática.

Nos últimos anos, a Globo buscou soluções para facilitar o acesso dos telespectadores a essas obras. Desse modo, algumas iniciativas foram pensadas pela organização, como a criação do canal por assinatura Viva que, desde 2010, conta com uma programação composta predominantemente pela reexibição de seriados, novelas e programas de variedades produzidos pela emissora. Nesse caso, observamos um consumo condicionado a um fluxo televisivo respaldado pela lógica do broadcasting (Scolari, 2014)SCOLARI, C. A. This is the End: as intermináveis discussões sobre o fim da televisão. In: CARLÓN, M; FECHINE, Y. (Orgs.). O fim da televisão. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2014., que limita as possibilidades do telespectador ao restringir o acesso a determinados produtos ofertados pela grade definida pela emissora.

No entanto, dentro desse panorama, parece-nos seguro afirmar que a força do streaming reconfigurou, em diversos níveis, as relações de consumo entre as instâncias televisivas e seus telespectadores (Jenkins, 2009)JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.. Vários estudos discutem, inclusive, o potencial do streaming nesse contexto marcado pela migração dos meios tradicionais para os novos suportes enquanto forma de garantir a existência da televisão.

Com o fortalecimento dos serviços de streaming no país, desde o início da década de 2010, o Grupo Globo buscou formas de se adequar rapidamente aos novos suportes com vistas a tornar público os seus conteúdos e, também, oportunizar novas experiências de consumo audiovisual aos seus usuários.

Após longos períodos de testes com o Globo.TV+, o Grupo Globo lança oficialmente, em novembro de 2015, o Globoplay. Inicialmente, a plataforma começou suas atividades com vistas a contemplar quatro objetivos centrais: 1) Propor uma ampliação e oferta da grade televisiva da emissora por meio da transmissão simultânea ( simulcasting); 2) Intensificar a produção audiovisual original, sob a chancela do selo Originais Globoplay; 3) Atuar como repositório dos produtos exibidos linearmente com a programação ( catch-up); e 4) Oportunizar ao público acesso às produções antigas que compõem o acervo da organização (Globo…, 2015)GLOBO lança serviço de streaming “Globo Play”, com conteúdo ao vivo e on demand. NSC Total, Florianópolis, 26 out. 2015. Disponível em: https://www.nsctotal.com.br/noticias/globo-lanca-servico-de-streaming-globo-play-com-conteudo-ao-vivo-e-on-demand. Acesso em: 31 ago. 2022.
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Os anos iniciais da plataforma funcionaram especialmente como um catch-up da emissora, ao atuar apenas como um repositório dos produtos exibidos ao longo da grade de programação. Entretanto, nos últimos anos a plataforma vem realinhando suas estratégias em sintonia com as transformações provocadas pela convergência midiática, com ênfase na migração do público tradicional para os novos suportes (Santos Neto; Strassburger, 2019)SANTOS NETO, V.; STRASSBURGER, D. O reposicionamento do Globoplay: um estudo de caso sobre a reconfiguração de identidade da plataforma de streaming da Rede Globo. Temática, João Pessoa, ano 15, n. 6, p. 112-130, 2019. DOI: https://doi.org/10.22478/ufpb.1807-8931.2019v15n6.46384.
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. Dentre essas reconfigurações, a grande virada da plataforma acontece sobretudo em 2020, quando se inicia um processo de unificação all-in-one das marcas do Grupo Globo, período em que se localiza o objeto de nossa discussão e começa a pandemia de covid-19 (Lemos e Rocha, 2022)LEMOS, L. P.; ROCHA, L. L. F. Ficção televisiva brasileira e covid-19: reconfigurações e estratégias de programação. Lumina, Juiz de Fora, MG, v. 16, n. 1, p. 45-60, 2022. DOI: https://doi.org/10.34019/1981-4070.2022.v16.33616..

Segundo estudo realizado pela NZN Intelligence (Pandemia…, 2022)PANDEMIA influenciou aumento nas assinaturas de streaming. Meio e Mensagem, São Paulo, 24 fev. 2022. Disponível em: https://www.meioemensagem.com.br/midia/pandemia-influenciou-aumento-nas-assinaturas-de-streaming. Acesso em: 29 mar. 2022.
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, o boom do streaming no Brasil ocorreu durante o período de pandemia em função do isolamento social. Dados divulgados pelo instituto de pesquisa Nielsen (Consumo…, 2020)CONSUMO de streaming é hábito diário para 43% dos brasileiros durante a pandemia. Mercado & Consumo, São Paulo, 24 set. 2020. Disponível em: https://mercadoeconsumo.com.br/25/09/2020/noticias/consumo-de-streaming-e-habito-diario-para-43-dos-brasileiros-durante-a-pandemia/. Acesso em: 29 mar. 2022.
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apontam que o consumo de conteúdos on-demand, após o início da pandemia, tornou-se um hábito para cerca de 42,8% dos brasileiros; 43,94% consomem ao menos uma vez na semana.

Durante esse período, observou-se que, com a interrupção das tramas inéditas na televisão aberta, os índices de audiência obtidos pelas reprises de telenovelas na grade de programação da TV Globo foram satisfatórios e interessantes para a organização (Jacks et al., 2020) JACKS, N.; LIBARDI, G.; CAROLINE, J.; SCALEI, V. Telenovela e memória: “Vale a pena ver de novo?”, reprises em tempo de pandemia. Rumores, São Paulo, v. 14, n. 28, p. 46-76, 2020. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-677X.rum.2020.174427.
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– o que viria a ser um fator determinante para o desenvolvimento do projeto de retorno das telenovelas antigas no streaming (Lemos; Rocha, 2022)LEMOS, L. P.; ROCHA, L. L. F. Ficção televisiva brasileira e covid-19: reconfigurações e estratégias de programação. Lumina, Juiz de Fora, MG, v. 16, n. 1, p. 45-60, 2022. DOI: https://doi.org/10.34019/1981-4070.2022.v16.33616.. Anunciado oficialmente em abril de 2020, o projeto de retorno aos títulos antigos da emissora previa o lançamento de uma telenovela a cada duas semanas, totalizando 50 produções até o final desse primeiro ano (Lopes, F., 2020)LOPES, F. Globoplay prepara 50 novelas antigas para seu catálogo; A Favorita será a primeira. Notícias da TV, São Paulo, 21 maio 2020. Disponível em: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/novelas/globoplay-prepara-50-novelas-antigas-para-seu-catalogo-favorita-sera-primeira-37075.. Acesso em: 31 ago. 2022.
https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/...
. Desde a estreia do projeto, em atividade até a finalização deste artigo, centenas de produções foram recuperadas e disponibilizadas na íntegra pela plataforma, além das obras exibidas durante a programação linear no canal Viva.

Lemos e Rocha (2022: 47)LEMOS, L. P.; ROCHA, L. L. F. Ficção televisiva brasileira e covid-19: reconfigurações e estratégias de programação. Lumina, Juiz de Fora, MG, v. 16, n. 1, p. 45-60, 2022. DOI: https://doi.org/10.34019/1981-4070.2022.v16.33616. destacam que, dentre uma sequência de alterações que acometeram a televisão durante o período pandêmico, o retorno das telenovelas antigas neste período provocou alterações estruturais “nos modos de fazer e de assistir à teledramaturgia”. Em termos de audiência, de acordo com dados divulgados pela plataforma, de janeiro a outubro de 2020 verificou-se um aumento de 150% de horas consumidas em comparação com o mesmo período de 2019 (Clássicos…, 2021)CLÁSSICOS das novelas no streaming mudam forma de consumo dos capítulos. Exame, São Paulo, 11 jan. 2021. Disponível em: https://exame.com/casual/classicos-das-novelas-no-streaming-mudam-forma-de-consumo-dos-capitulos/. Acesso em: 31 ago. 2022.
https://exame.com/casual/classicos-das-n...
. Ainda no mesmo ano, observou-se também um aumento de 145% na base de assinantes da plataforma em relação ao ano anterior (Guimarães, 2020)GUIMARÃES, A. Base de assinantes do Globoplay disparou 145% em 2020. Minha Operadora, Recife, 25 dez. 2020. Disponível em: https://www.minhaoperadora.com.br/2020/12/base-de-assinantes-do-globoplay-disparou-145-em-2020.html. Acesso em: 29 mar. 2022.
https://www.minhaoperadora.com.br/2020/1...
. Evidentemente que parte deste crescimento deriva do cenário otimista em relação ao segmento de streaming audiovisual.

Jacks et al. (2020: 58) JACKS, N.; LIBARDI, G.; CAROLINE, J.; SCALEI, V. Telenovela e memória: “Vale a pena ver de novo?”, reprises em tempo de pandemia. Rumores, São Paulo, v. 14, n. 28, p. 46-76, 2020. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-677X.rum.2020.174427.
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apontam que as telenovelas antigas são exploradas pela organização como forma de reter a atenção do telespectador, de modo “com que o público permaneça mais tempo em sua plataforma”. Portanto, a mobilização dessas obras funciona como grandes aliadas dentro dessa escalada do serviço em território brasileiro, reforçando a cultura da memória, uma obsessão pelo passado, conforme apontado por Huyssen (2000)HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000..

Com a recepção positiva do público, diversas estratégias publicitárias e editoriais foram mobilizadas na publicização dessas obras com foco no público jovem – como mencionado por Erick Bretas, diretor de mídia do Globoplay (Jacks et al., 2020) JACKS, N.; LIBARDI, G.; CAROLINE, J.; SCALEI, V. Telenovela e memória: “Vale a pena ver de novo?”, reprises em tempo de pandemia. Rumores, São Paulo, v. 14, n. 28, p. 46-76, 2020. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-677X.rum.2020.174427.
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. Inserido no contexto da cultura participativa, o público jovem exerce grande força na publicização desses produtos nas redes sociais, passando a atuar em consonância com as instituições midiáticas como produtores e disseminadores de conteúdos (Jenkins, 2009;JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. Lipovetsky; Serroy, 2009)LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermodena. Porto Alegre: Sulina, 2009.. Além disso, o interesse do público jovem em narrativas que contextualizam períodos passados gera uma curiosidade implícita neste telespectador em reviver determinados períodos (Bressan Júnior, 2019;BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019. Holdsworth, 2011)HOLDSWORTH, A. Television, memory and nostalgia. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011..

Nesta perspectiva, o que parece especial durante os meses subsequentes da pandemia, fase em que se localiza o projeto de retorno dos títulos antigos do Grupo Globo, é um “novo olhar” por parte da organização para esse arquivo televisivo, dado seu valor afetivo e suas possibilidades de instrumentalização no streaming.

A experiência afetiva possibilitada pelas telenovelas antigas pode ser compreendida não pela racionalidade, mas, como expõe Ferrés (1998)FERRÉS, J. Televisão subliminar: socializando através de comunicações despercebidas. Porto Alegre: Artmed, 1998., pelos percursos emocionais provocados pela televisão. Se há um processo de sedução, como aponta o autor, perante um sentido inadvertido, o Globoplay, ao trazer de volta determinados títulos em seu catálogo, transfere um duplo laço social. Ao ser exibida pela primeira vez na televisão aberta, Bressan Júnior (2019)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019. destaca que um laço social fora formalizado; com a reexibição no streaming observaremos, portanto, uma reconstituição desse laço social, esse último com interferências pessoais e sociais do telespectador constituída ao longo dos anos.

Inclusive, aqueles que não vivenciaram determinados períodos, neste momento de convergência midiática desfrutam do privilégio e da facilidade de viver experiências de passado, ainda que tais relações sejam mediadas pelas telas. Neste caso, veremos a constituição de um primeiro laço social com base nas percepções que o indivíduo constrói sobre esse passado. Desse modo, estamos discorrendo sobre possibilidades de constituição de memórias mediadas por telas e pelos dispositivos imagéticos que fazem parte desta cultura telânica, como defende Lipovetsky e Serroy (2009)LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A tela global: mídias culturais e cinema na era hipermodena. Porto Alegre: Sulina, 2009..

Por conta disso, Bressan Júnior (2019)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019. destaca que a memória teleafetiva apresenta um valor grandioso tanto para o Grupo Globo quanto para os telespectadores. A memória reconfigura essas experiências e pode oferecer um sentido nostálgico para quem assiste e rememora (Ribeiro, 2018)RIBEIRO, A. P. G. Mercado da nostalgia e narrativas audiovisuais. E-Compós, Brasília, DF, v. 21, n. 3, p. 1-15, 2018. DOI: https://doi.org/10.30962/ec.1491.
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. Vemos, assim, que a memória teleafetiva se configura como um recurso eficaz para o atual caminho da televisão. Para Bressan Júnior (2019: 66)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019., a “televisão integra, como instrumento cultural e social, esta convivência em grupos […] permitindo partilha e experimentações comuns, através das afeições positivas e negativas transmitidas pelos programas de TV”. Nesse sentido, Lemos e Rocha (2022: 56)LEMOS, L. P.; ROCHA, L. L. F. Ficção televisiva brasileira e covid-19: reconfigurações e estratégias de programação. Lumina, Juiz de Fora, MG, v. 16, n. 1, p. 45-60, 2022. DOI: https://doi.org/10.34019/1981-4070.2022.v16.33616. afirmam que as reprises, bem como os arquivos televisivos, “podem restaurar sentimentos nostálgicos, afetivos e identitários, têm potencial para transformarem-se em clássicos por fazerem parte das histórias da televisão, de um determinado tempo e, também da própria vida do espectador”.

Se na audiência a televisão aberta sempre esteve presente por meio dessas sensações emocionais, no streaming esse movimento de revisitar suas narrativas preferidas destaca um contexto hedônico, de busca pelo próprio prazer, segundo Lipovetsky (2004)LIPOVETSKY, G. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004., à medida que o telespectador oferece a si mesmo uma dose do passado. O endosso nostálgico do projeto de retorno dos títulos antigos, ligado a esse crescente mercado da nostalgia (Ribeiro, 2018)RIBEIRO, A. P. G. Mercado da nostalgia e narrativas audiovisuais. E-Compós, Brasília, DF, v. 21, n. 3, p. 1-15, 2018. DOI: https://doi.org/10.30962/ec.1491.
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, reforça os interesses da plataforma pelo arquivo televisivo enquanto um artifício mercadológico. Assim, destacamos a dimensão afetiva que se manifesta nesses arquivos e que se colocam além do valor puramente arquivístico, com fins de catalogação e preservação.

Ao flexionarmos essa discussão para a questão da memória, no próximo tópico pretendemos discutir de que maneira a plataforma atua enquanto esse espaço de memória capaz de acionar lembranças e propiciar uma atualização e manutenção das memórias.

A PLATAFORMA GLOBOPLAY ENQUANTO ESPAÇO DE MEMÓRIA

Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992. argumenta que os espaços de memória funcionam como meios de recordação. São monumentos, lugares, espaços em que as lembranças vêm à tona. Eis, portanto, um ponto interessante tratado por Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992. a respeito da memória: os recortes, os fragmentos se colocam assim como um jogo, capaz de dominar, delimitar a(s) memória(s); são peças de um tabuleiro de xadrez que se movimentam, direcionam e alteram os sentidos, as percepções que são constituídas pelo indivíduo.

Afinal, como bem elucida Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992., nossas memórias são construções e atualizações do passado sob a ótica do nosso tempo, baseados em nossos repertórios culturais e nas vivências que adquirimos ao longo dos anos. O que implica concordar com a existência de um modus operandi na indústria televisiva que condiciona e, inclusive, agencia quais temas devem ser evocados e tratados pela/na contemporaneidade.

Nesse sentido, além da força afetiva desses produtos, destacamos as implicações desse retorno no que diz respeito à memória do telespectador, ao seu acionamento e, principalmente, aos desdobramentos desse retorno ao passado. Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992. observa que a memória, em suas distintas formas, está sempre inserida em espaços de conflitos e interesses. Retornar ao passado implica concordar que, dentro desse processo de revisitação, somos interpelados pelo tempo presente e pelas forças e pressões externas que nos são impostas por agentes e organizações (Pollak, 1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992..

Como bem explicita Halbwachs (2003)HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003., ao tratar da memória, fatos e registros não se conservam em nenhum lugar da nossa mente e do nosso espírito. As lembranças não são entendidas, assim, como dados concretos que podem ser acessados a qualquer instante; são sementes de rememoração que possibilitam a reconstituição da memória a partir de fragmentos que auxiliam nesse processo. Para Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992., o presente é a força motriz necessária para que os traços que constituem essas lembranças se reformulem e se reconstituam, moldando a imagem que temos do passado.

Com base nesse argumento, Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992. defende, a título de exemplificação, que as memórias nacional, cultural e social sempre competem e concorrem entre si na busca pela “consagração” de uma memória oficial em decorrência dessas reformulações no tempo presente. Portanto, a essa memória interessam recortes e fragmentos que possibilitem aos indivíduos retrabalharem a imagem dessas recordações no sentido coletivo. Assim, entendemos que o retorno das telenovelas antigas, ainda que sustentado por essa lógica mercantil, esbarra em aspectos cruciais na reformulação das nossas lembranças (Huyssen, 2000)HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. – e influi na constituição das memórias.

Por essa perspectiva, compreendemos que a retomada das telenovelas antigas se coloca além de um esforço mercadológico. Nesta conjuntura, vamos observar que a nostalgia 1 1 Cabe observar que a nostalgia tem se consolidado como um campo de pesquisa e reflexão cada vez mais profícuo. Entretanto, sob a perspectiva dos estudos da memória, entendemos a nostalgia enquanto um sentimento possibilitado por essas retomadas do passado e, consequentemente, pelo acionamento das lembranças afetivas que são estimuladas por essa revisitação. e a contemplação do passado, as quais direcionam e mobilizam o consumo televisivo, interferem, também, nesses arranjos e desarranjos da memória (Pollak, 1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992.. Nesta interpelação do/pelo tempo presente, o retorno desses produtos também desponta como meio de “reenquadrar” as memórias coletivas ao direcionar nossos olhares para recortes e fragmentos que contrastam com o tempo presente.

Nesta direção, Barbosa e Ribeiro (2007)BARBOSA, M.; RIBEIRO, A. P. G. Memória, relatos autobiográficos e identidade institucional. Comunicação e Sociedade, São Bernardo do Campo, SP, v. 28, n. 47, p. 99-114, 2007. DOI: https://doi.org/10.15603/2175-7755/cs.v28n47p99-114
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argumentam que os meios de comunicação atuam como instâncias midiáticas que, ao tecerem os recortes necessários para agenciar esse retorno seguro ao passado, ditam, sobretudo, o que e quando as lembranças devem ser rememoradas.

Ainda que possa existir por parte das instituições o desejo de construir versões totalizadoras sobre o seu passado, as suas práticas de memória devem ser pensadas como processos constantes de construção e negociação. Deve-se considerar também a tensão que associa memória e amnésia no contexto da cultura contemporânea. Além disso, não se pode esquecer que, na atualidade, os meios de comu- nicação – como empresas que lembram – são um tipo de instituição particular, que não funciona apenas como lugares de memória de si mesmas, mas também como lugares de memória do mundo. Na contemporaneidade, marcada pelo esquecimento, mas também pela multiplicação de formas, espaços e discursos que visam construir a memória, os media funcionam como um dos principais articuladores de experiências sociais, contribuindo para a afirmação e a emergência de identidades: as suas próprias e as dos outros (Barbosa; Ribeiro, 2007: 113)BARBOSA, M.; RIBEIRO, A. P. G. Memória, relatos autobiográficos e identidade institucional. Comunicação e Sociedade, São Bernardo do Campo, SP, v. 28, n. 47, p. 99-114, 2007. DOI: https://doi.org/10.15603/2175-7755/cs.v28n47p99-114
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Dentro do projeto de retorno das telenovelas antigas, observa-se, portanto, que o retorno de obras como O bem-amado (1973) e Roque Santeiro (1985) 2 2 Produções como O bem-amado(1980) e Roque Santeiro(1985) são consideradas as primeiras telenovelas brasileiras a tratarem do regime militar no Brasil, utilizando o humor e a sátira para discutir temas sociais relevantes sob pena de censura. não evoca no telespectador apenas as memórias afetivas atreladas às respectivas obras; o retorno dessas produções no catálogo do Globoplay permite, também, tecer novas angulações sobre os elementos que constituem esse “passado que retorna”, com base nos fragmentos contemporâneos que nos interpelam e reenquadram nossas memórias à medida em que passamos a confrontá-las.

O retorno dessas produções aciona, por exemplo, a memória cultural sobre os regionalismos brasileiro, a memória social de povos e comunidades, como se verifica em trabalhos. Destacamos obras que discutem questões raciais, como aparece em Da cor do pecado (2004); movimentos migratórios apresentados em América (2005) e outras temáticas que são agenciadas pela instituição e, assim, retrabalhadas com base nos repertórios culturais vigentes. Sob a perspectiva de Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992., os arquivos fornecem sedimentos necessários para que possamos discutir e repensar determinadas memórias. É com base nesses fragmentos, na predileção da plataforma pelos títulos, que verificamos as formas de agenciamento memorialísticos sob posse da organização.

Nessa direção, como discutido por Barbosa e Ribeiro (2007)BARBOSA, M.; RIBEIRO, A. P. G. Memória, relatos autobiográficos e identidade institucional. Comunicação e Sociedade, São Bernardo do Campo, SP, v. 28, n. 47, p. 99-114, 2007. DOI: https://doi.org/10.15603/2175-7755/cs.v28n47p99-114
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, entendemos que o Globoplay funciona, dentro desses ditames, como um local de memória que se expande de acordo com premissas e lógicas que lhe são pertinentes. Trata-se de um movimento, ainda que mercadologicamente arquitetado, capaz de acionar as lembranças de seus usuários, o que é possível por meio dessa força da revisitação, do laço social que incide sobre a televisão (Wolton, 1996;BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019. Bressan Júnior, 2019)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996..

Entretanto, além desse entendimento do Globoplay enquanto um espaço responsável pelo acionamento de memórias afetivas, devemos pensar sobretudo o impacto desse projeto e a função socializadora da televisão na constituição/reconstituição das memórias, como observam Barbosa e Ribeiro (2007)BARBOSA, M.; RIBEIRO, A. P. G. Memória, relatos autobiográficos e identidade institucional. Comunicação e Sociedade, São Bernardo do Campo, SP, v. 28, n. 47, p. 99-114, 2007. DOI: https://doi.org/10.15603/2175-7755/cs.v28n47p99-114
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, em especial, quando refletimos acerca das políticas de agenciamento dessa memória, ligada a uma ideia de influência e manutenção da organização ao estimular o desencadeamento dessas lembranças (Barbosa; Ribeiro, 2007)BARBOSA, M.; RIBEIRO, A. P. G. Memória, relatos autobiográficos e identidade institucional. Comunicação e Sociedade, São Bernardo do Campo, SP, v. 28, n. 47, p. 99-114, 2007. DOI: https://doi.org/10.15603/2175-7755/cs.v28n47p99-114
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, que dependem e perpassam diversas decisões estratégicas, editoriais e mercadológicas referentes ao projeto de retorno das telenovelas antigas. São escolhas que residem desde a predileção dos produtos a serem ofertados até nas possibilidades de reflexão que esses produtos podem vir a desencadear no público a depender do período em que retornam à plataforma.

MEMÓRIA(S) EM DISPUTA(S) E A FUNÇÃO SOCIALIZADORA DO GLOBOPLAY

Huyssen (2000)HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. destaca que, com certa frequência, organizações e instâncias midiáticas se apropriam da força das imagens, das narrativas míticas do passado, para constituir um passado mais vendável e especialmente agradável ao usuário. Memórias podem ser reformuladas de acordo com os interesses daqueles que detêm os artifícios e os agentes de controle necessários para isso (Huyssen, 2000;HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000. Pollak, 1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992., visto que estão sujeitas às interferências e pressões exteriores, e tampouco podem ser consideras estáveis.

De tal modo, a “dimensão estratégica da memória e o seu papel na construção das identidades institucionais” (Barbosa; Ribeiro, 2007: 101)BARBOSA, M.; RIBEIRO, A. P. G. Memória, relatos autobiográficos e identidade institucional. Comunicação e Sociedade, São Bernardo do Campo, SP, v. 28, n. 47, p. 99-114, 2007. DOI: https://doi.org/10.15603/2175-7755/cs.v28n47p99-114
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são entendidas como tentativas de reenquadramento da memória. Nesse sentido, são, em certa escala, parte dessa política de agenciamento de memória adotada pela instituição ao determinar quais passados devem ser rememorados.

Como demonstrado, parte do crescimento do Globoplay nos últimos anos está atrelado ao projeto dos títulos antigos. Entre 2020 e 2021, as telenovelas antigas ocuparam o ranking dos títulos mais assistidos, a frente de produções inéditas e mais recentes produzidas pela plataforma. O sucesso de (re)estreias como Tieta (1989) e Mulheres de areia (1993) evidencia o interesse do público em tais produções (Neblina, 2020;NEBLINA, D. Globoplay divulga quais foram as produções mais assistidas em 2020. Observatório da TV, São Paulo, 17 dez. 2020. Disponível em: https://observatoriodatv.uol.com.br/noticias/globoplay-divulga-quais-foram-as-producoes-mais-assistidas-em-2020. Acesso em: 28 mar. 2022.
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Mulheres…, 2021)MULHERES de Areia é a novela campeã de audiência no Globoplay. Notícias da TV, São Paulo, 1 maio 2021. Disponível em: https://noticiasdatv.uol.com.br/noticia/novelas/mulheres-de-areia-e-novela-campea-de-audiencia-no-globoplay-veja-o-top-10-56607. Acesso em: 28 mar. 2022.
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. Impulsionada pelo sucesso das reprises na TV aberta, a busca pelos títulos antigos neste segmento do streaming parece ter ampliado as possibilidades de mercantilização e instrumentalização do arquivo televisivo pela organização.

Diante desse contexto de convergência midiática apontado por Jenkins (2009)JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009., as plataformas digitais funcionam como espaços em que as memórias podem ser acionadas e reformuladas em coletividade, o que reforça a teoria de Wolton (1996)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996. a respeito da função socializadora da televisão. Com a força da conversação em rede (Jenkins, 2009)JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009., característica dessa televisão descentralizada, numerosos trabalhos demonstram a força das redes sociais neste processo de evocação, rememoração e manutenção das memórias.

Sob a ótica de Halbwachs (2003)HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003., entendemos que o arquivo televisivo se configuraria, a partir dessas premissas, como uma semente de rememoração capaz de acionar lembranças e “possíveis lembranças”, de modo que as memórias sejam trabalhadas e retrabalhadas no tempo presente. Esses materiais atuam de maneira a estimular os questionamentos, as discussões e, assim, influir sobre nossas percepções, o que corrobora as proposições de Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992.. Observa-se que, “ao recuperar essas lembranças, […] a televisão também fornece ao telespectador diversos recortes de um determinado passado que possibilita o acionamento de determinadas lembranças e sentimentos de quem assiste” (Santos Neto; Bressan Júnior, 2021: 33)SANTOS NETO, V.; BRESSAN JÚNIOR, M. A. Deus salve a rainha!: o laço social televisivo e a memória coletiva na série The Crown. Memorare, Tubarão, SC, v. 8, n. 2, p. 22-38, 2021. DOI: https://doi.org/10.19177/memorare.v8e2202122-38.
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Contudo, além das memórias que são afetivas e que compõem nossos quadros de referências, podemos pensar em memórias que são, sobretudo, da ordem pública, coletiva, cultural e que compõem os quadros de referências em larga escala. Parece-nos, assim, que as políticas de agenciamento de memória adotadas pela plataforma, além da sua dimensão mercadológica, colocam-se de maneira estratégica, de modo que determinadas memórias sejam acionadas e reformuladas a partir dos interesses da própria organização, e passam, assim, a dialogar com outras memórias exteriores à plataforma – a memória nacional, a memória cultural etc. –, alvos de disputas em/por diversas instâncias (políticas, institucionais etc.) (Pollak, 1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992..

Como destacado por Lopes (2011)LOPES, M. I. V. Telenovela como recurso comunicativo. Matrizes, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 21-47, 2011. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v3i1p21-47.
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, as telenovelas dialogam com o cotidiano do sujeito midiatizado, tratam de questões culturais, sociais e políticas. E, como bem sabemos, geralmente são produções abertas que se desdobram a partir das demandas que emanam das discussões sociais e das pautas culturais, determinadas pelas condições de produção de cada época.

Acontece que o retorno desses títulos, ao carregar essas “sementes de rememoração”, também é responsável por despertar questionamentos e provocações no tempo presente, ao evocar a memória teleafetiva do telespectador (Bressan Júnior, 2019)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019.. É a partir desse retorno enfático ao passado, dessa força socializadora do arquivo televisivo, que as memórias passam a ganhar novos contornos e nuances.

Dessa forma, compreendemos, assim, que as estratégias de predileção da plataforma se constituem como formas possíveis de agenciamento de memórias. Existe aí, sobretudo, um espaço em que se observa um atravessamento e entrecruzamento de memórias, de distintas ordens, que se subalternam e se reformulam constantemente. Como observa Huyssen (2000)HUYSSEN, A. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000., as retomadas do passado – ou os retornos ao passado – são cruciais para a coesão e “estabilidade” da memória, visto que a instrumentalização do arquivo apresenta outros questionamentos para além do objetivo mercadológico ao qual fora designado, e que se coloca capaz de desestabilizar ou referendar as lembranças que compõem as memórias coletivas. Para essa questão, o olhar de Pollak (1992)POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-215, 1992. traz uma perspectiva de que é preciso considerar como as instâncias culturais trabalham e retrabalham a memória na contemporaneidade.

Ora, recorrer ao arquivo televiso enquanto um artifício mercadológico nos permite inferir que há, além dos interesses previamente delineados pela organização, disputas pela(s) memória(s) em jogo. Sabe-se que a memória não se esgota nas lembranças e nos fatos que a compõem. Vemos, sob essa ótica, memórias que são formuladas e reformuladas coletivamente; são institucionalizadas, instrumentalizadas e estão sob influência da organização.

Evidentemente, existe algo ainda mais sintomal diante dessas possibilidades de rememoração viabilizadas pela plataforma quando consideramos os efeitos provocados pelo arquivo televisivo na constituição da memória daqueles usuários, os quais, inseridos dentro dessa convergência midiática, estão em processo de constituição de suas memórias com base nesses recortes apresentados pela mídia. Ou seja, há a formalização deste primeiro laço social defendido por Wolton (1992) e Bressan Júnior (2019)BRESSAN JÚNIOR, M. A. Memória teleafetiva. Florianópolis: Insular, 2019..

Nesse caso, devemos questionar os desdobramentos que esses recortes podem reverberar em outros ambientes para além dos espaços de controle da plataforma – redes sociais, fóruns de discussão e outras possibilidades, as quais necessitam de trabalhos de maior envergadura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, propomos uma reflexão acerca do projeto de retorno das telenovelas antigas do Grupo Globo na plataforma de streaming Globoplay, de modo a discutir sobre seu impacto na constituição e manutenção da(s) memória(s) coletiva(s). Para além das telinhas, o que ressaltamos neste trabalho são as potencialidades intrínsecas à plataforma em propiciar, de certa forma, que nós, enquanto pesquisadores da memória, passemos a olhar para questões além da força mercadológica dos títulos antigos neste imaginário e na memória coletiva do telespectador brasileiro. Sobretudo, vemos um movimento que, embora atrelado à lógica mercantil, dinamiza, acelera e viabiliza o acionamento e a manutenção das memórias.

Percebemos que a função da plataforma Globoplay no streaming, a partir das memórias coletiva e afetiva, é manter atuante o laço social formado na primeira exibição televisiva e otimizar arquivos para que o telespectador possa rememorar quando quiser e como desejar as suas narrativas.

O arquivamento da televisão cumpre a função de trazer de volta um tempo, espaço e lugares. A audiência se vê e revê na televisão, a partir do que chamamos um laço social revisitado. Acreditamos ser essa a lógica atual desse tipo de estratégia. A memória é utilizada para vender, com o retorno de lembranças formadas pela TV, e redesenhada pela “teia invisível” definida por Wolton (1996)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996.. A diferença é que essa teia passa a ser visível e identificada na era convergente da cultura participativa.

Desse modo, percebemos que o streaming, no caso do Globoplay, ao trazer conteúdos antigos, potencializa a memória teleafetiva e demonstra uma nova função: a de manter vivas as memórias coletivas e afetivas. O laço social de Wolton (1996)WOLTON, D. Elogio do grande público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996. talvez possa ser visualizado como uma semente, pensado aqui como um discurso metafórico, para concluir a atuação do streaming diante da potência mnemônica das imagens.

A semente é plantada em terra fértil. Nesse caso, quando vimos pela primeira vez a programação televisiva, somos a terra propensa a receber essas “sementes” e permitir seu crescimento. A raiz da planta que cresce são nossas memórias que ficam fixas, algumas mais visíveis, outras mais subterrâneas, mas que sustentam o caule que dará origem aos frutos e folhas. O Globoplay, por meio do streaming, “rega a terra” e “nutre a raiz”. A partir daí, folhas e frutos renascem constantemente, basta que sejam “alimentados”, ou melhor, evocados.

Traçamos, nesse estudo, o redesenho de um laço social, uma teia não mais invisível, intensificada pela memória coletiva do telespectador. No Globoplay, observamos que esse caminho funciona e traz resultados: a televisão muda o seu modo de exibição, mas nunca altera as relações e mediações formadas entre ela e sua audiência.

Discutir a memória, ou esse entrecruzamento da memória, requer uma análise densa, de amplo espectro. Dentre as reflexões propostas por este estudo, parece-nos interessante pensar como as estratégias de predileção dos títulos antigos a serem ofertados influem sobre a manutenção da(s) memória(s), e de que maneira essas narrativas reconfiguram as discussões nos espaços de conversão em rede. Nestes movimentos iniciais da pesquisa, cortejamos determinados aspectos que permitirão delinearmos projetos de investigações mais robustos a respeito dos desdobramentos ocasionados pelo compartilhamento do arquivo televisivo nesta sociedade midiatizada.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Cabe observar que a nostalgia tem se consolidado como um campo de pesquisa e reflexão cada vez mais profícuo. Entretanto, sob a perspectiva dos estudos da memória, entendemos a nostalgia enquanto um sentimento possibilitado por essas retomadas do passado e, consequentemente, pelo acionamento das lembranças afetivas que são estimuladas por essa revisitação.
  • 2
    Produções como O bem-amado(1980) e Roque Santeiro(1985) são consideradas as primeiras telenovelas brasileiras a tratarem do regime militar no Brasil, utilizando o humor e a sátira para discutir temas sociais relevantes sob pena de censura.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2022
  • Aceito
    01 Dez 2022
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