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De pai para filho: transmissão, permanência e mudança em “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa1 1 O presente artigo é fruto do trabalho de pesquisa Figurações da família na literatura brasileira do século XX, desenvolvido entre agosto de 2019 e janeiro de 2020 graças a uma bolsa do Programa Ano Sabático do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP).

RESUMO

O artigo desenvolve uma reflexão sobre as “cadeias de transmissão” implicadas nas narrativas de Guimarães Rosa. Trata, nesta perspectiva, dos “causos” narrados oralmente pelos viajantes sertanejos na venda do sr. Florduardo Rosa, pai do romancista, que foram transmitidos a ele através da correspondência trocada entre os dois e posteriormente refundidos em suas estórias. Os processos de permanência e mudança nessa cadeia de transmissão das narrativas que inclui o trabalho literário e os leitores são aproximados dos transtornos da transmissão entre o pai, o filho, a estória e seus leitores no conto “A terceira margem do rio”. A argumentação utiliza-se de um referencial tomado à “psicanálise dos vínculos”, que pensa a família como espaço privilegiado da transmissão de mensagens entre as gerações. Com base nesse referencial teórico, a autora considera que a mensagem indecifrável legada pelo pai - o motivo de ele abandonar a família e isolar-se na canoa, sem efetivamente partir para lugar nenhum - teria calado o filho, mas se tornado narrativa, deslocando a cadeia de transmissão do filho para o texto literário e seus leitores.

PALAVRAS-CHAVE:
Guimarães Rosa; A terceira margem do rio; Transmissão geracional

ABSTRACT

The paper reflects on the “chains of transmission” in the narratives of Guimarães Rosa. It deals, from this perspective, with the “causos” (tales) narrated orally by backcountry travelers in the store of Mr. Florduardo Rosa, father of the writer, which were conveyed to him in their correspondence and which he later recast in his stories. The processes of permanence and change in this chain of transmission (which includes the literary work and the readers) are brought to bear on the disruptions in the transmission between father, son, story and its readers in the short story “The third bank of the river”. The argument uses a reference taken from the “psychoanalysis of bonds”, which conceives the family as a privileged space for the transmission of messages between generations. Based on this theoretical framework, we propose that the indecipherable message bequeathed by the father - the reason for him abandoning his family and isolating himself in the canoe, without actually going anywhere - might have silenced the son, but become a narrative, shifting the chain of transmission from the son to the literary text and its readers.

KEYWORDS:
Guimarães Rosa; The third bank of the river; Generational transmission

Ao Enrique

O pai de João Guimarães Rosa, Sr. Florduardo Pinto Rosa - ou Flor, como era conhecido na pequena cidade de Cordisburgo, Minas Gerais, onde o escritor nasceu no ano de 1906 -, era dono de um armazém local onde paravam para descanso, prosa, comida e tudo o mais que uma venda de interior fornece os homens que viajavam pelo sertão de Minas. Ali, na parada, os viajantes sertanejos contavam ao Sr. Flor as histórias que viam e recolhiam no caminho. Diz Walnice Nogueira Galvão (2008b_______. O nome do pai. In: ___. Mínima mímica. Ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Cia. das Letras, 2008b., p.190), em “O nome do pai”: “na venda: nesse misto de foco da sociabilidade masculina, central de informações e banco de dados da história oral”. O filho João, de criança, ouvia essas histórias que, já fora de Cordisburgo e por toda a vida, serviriam de matéria à sua literatura. Mais tarde e ao longo dos anos - o escritor já longe da terra natal -, pai e filho compensavam a distância entre eles, bem como a distância do tempo da infância, com a troca de missivas nas quais o escritor solicitava detalhes das lembranças daquelas histórias e dados diversos da vida local, de seus viajantes, habitantes e modos de vida, tudo o que informava as estórias2 2 Manteremos aqui a grafia estória em vez de história quando estivermos tratando dos escritos de Guimarães Rosa, seguindo assim a advertência formulada por ele na epígrafe de Tutaméia (Terceiras estórias) (Rosa, 1967): “a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História” (apud Portella, 1983). narradas em seus livros e contos. Em carta enviada ao pai em 1946, logo após a publicação de Sagarana, do qual lhe envia um exemplar, Guimarães Rosa escreve: “O senhor irá gostar, e muito, estou seguro, pois nele verá muita coisa do interior, muitas cantigas, como epígrafes... muita coisa, enfim, que lhe dará boas recordações” (apud Galvão, 2008b, p.190). E em outra carta, após a publicação de Corpo de baile (1956), o escritor diz: “Também fiquei contente por o senhor ter recebido os livros e estar gostando de Corpo de baile. Como o senhor não deixará de ter notado, ele está cheio de coisas que o senhor me forneceu naquelas cartas e notas, extremamente valiosas para mim” (apud Galvão, 2008b, p.194). Temos notícia assim de uma cadeia de transmissão: os episódios contados oralmente pelos sertanejos de Minas para o Sr. Flor assumem a forma de “causos” nas cartas enviadas ao filho, que os reconfigurava em narrativas. Seus livros, por sua vez, permitem que as estórias voltem ao pai reelaboradas pela imaginação do escritor, mostrando-se ainda capazes de reavivar suas memórias. Pode-se imaginar o tanto de mudanças ocorridas nessas veredas de idas e vindas: dos eventos supostamente ocorridos às narrativas orais, dessas às missivas do pai, delas aos textos do escritor - que as registrava como guardião de um tempo, de localidades e homens passados -, e de novo ao pai. Quem sabe esse, que parecia apreciar os livros do filho, não falava também deles aos viajantes, mostrando-lhes orgulhoso o registro escrito da oralidade partilhada na venda? Mas isso já é imaginação de quem lê, que afinal tem também o seu lugar nessa cadeia de transmissão. O que sem dúvida atesta a correspondência (Galvão, 2008b) é que Guimarães Rosa foi um pesquisador profundo dessas estórias e modos de vida. O mesmo pode ser depreendido a partir da fortuna crítica de sua obra (Galvão, 2008b) ou dos registros das expedições pelo sertão mineiro a que o escritor se juntou desde os anos 1940 - quando já vivia e trabalhava em capitais europeias -, nos quais, feito um explorador saudoso que retorna à própria terra, anotava lugares, plantas, animais, nomes que recolhia numa verdadeira etnografia do sertão a que convidava o pai a participar: “Fiquei muito contente com a ida de Papai, que já deve ir recordando e alinhando lembranças interessantes de coisas vistas e ouvidas na roça - caçadas, etc. - que possam servir de elementos para outro livro, que vou preparar” (apud Galvão, 2008b, p.191). Ou seja, pai e filho andaram juntos explorando as suas origens.

Na cadeia de transmissão dos conhecimentos, cada um ao seu modo - o sertanejo viajante, o pai, o filho escritor, o leitor - ativamente (re)elabora as narrativas a partir de seus lugares singulares de escuta e fala. Cada um ao seu modo - o que possibilita a construção de uma identidade singular no interior da cadeia de transmissão, pelos diversos sujeitos que falam e escrevem uns aos outros, na sociabilidade da venda, da família e da literatura. Guimarães Rosa, numa entrevista a Ascendino Reis por ocasião do lançamento de Sagarana (apud Galvão, 2008b_______. O nome do pai. In: ___. Mínima mímica. Ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Cia. das Letras, 2008b., p.197), expõe em “certo desabafo... num lance em que o entrevistado visivelmente está querendo se livrar da insistência e da impertinência do interlocutor”, sua necessidade de isolamento para poder criar a partir das narrativas ouvidas e lidas:

Não gosto de falar da infância. É um tempo de coisas boas, mas sempre com pessoas grandes incomodando a gente, intervindo, comentando, perguntando, mandando, comandando, estragando os prazeres. Recordando o tempo da infância, vejo por lá um excesso de adultos, todos eles, mesmo os mais queridos, ao modo de soldados e policiais do invasor, em pátria ocupada... Gostava de estudar sozinho e de brincar de geografia. Mas, tempo bom, de verdade, só começou com a conquista de algum isolamento, com a segurança de poder fechar-me num quarto e trancar a porta. Deitar no chão e imaginar estórias, poemas, romances, botando todo mundo conhecido como personagens, misturando as melhores coisas vistas e ouvidas, numa combinação mais limpa e mais plausível, porque - como muita gente já compreendeu e já falou - a vida não passa de histórias mal-arranjadas, de espetáculo fora de foco. (ibidem)

Ou seja: o escritor precisa estar só para elaborar o material que herda dos que o cercam, frente ao qual se sente responsável por melhor arranjá-lo, limpá-lo e dar-lhe foco. Os causos ouvidos e narrados pelos adultos o nutrem, mas também o invadem com seu excesso, o que torna não só prazerosa, mas também traumática e necessária sua reelaboração a sós. Tal elaboração está no centro de seu trabalho literário, um paciente exercício de apropriação que toma uma vida, e que é também um passo além na cadeia das transmissões que vem dar nos leitores, destinatários de textos que se configuram como palimpsestos de vozes e narrativas, casos vividos e fantasiados que se entretecem na versão e invenção do escritor, e que incitam por sua vez a imaginação dos leitores. Tudo o que quer dizer que a escrita e a leitura são feitas de permanência e mudança, numa cadeia que, se prende cada um dos sujeitos que são seus elos às narrativas contadas e registradas, e se forma o campo semântico em que se movem e os delimita, é também via de passagem e da possibilidade de formação de novas subjetividades.

Quero aqui examinar a dialética entre permanência e mudança no conto “A terceira margem do rio” - publicado por Guimarães Rosa em 1962, em Primeiras estórias -, aproximando-a da cadeia de transmissões que envolvem o escritor e o pai, de que trato acima. Já o título do livro pode ser interpretado com referência às primeiras estórias ouvidas na infância e ao esforço de registrar o seu caráter primevo, os modos de ser e falar tradicionais do sertão de Minas - de que puxa o pai pela memória -, enquanto também cria uma linguagem literária própria para o registro das narrativas que, se trazem novos termos que saem de forma original de sua pena - a partir da fusão e desmembramento de palavras e de uma verdadeira (re)modelagem dos nomes sertanejos -, resgatam, registram e guardam nessa criação a oralidade e a nomenclatura primeiras do sertão mineiro. No conteúdo e na forma da narrativa há permanência e mudança.

O ano da primeira publicação dessa coletânea de contos é importante para o nosso tema: 1962, dois anos depois da fundação de Brasília, marco da urbanização modernizadora brasileira. Primeiras estórias começa e termina com contos que se passam na nova capital, quem sabe o escritor mobilizado de partida por esses processos de modernização e pressentindo com eles o fim das primeiras estórias. No primeiro conto, “As margens da alegria”, “ia um menino, com os Tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade” que “apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão” (Rosa, 1964aROSA, J. G. As margens da alegria. In: ___. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964a., p.3-4), e

[...] mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: [...] as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço. (ibidem, p.6)

Daí a urgência do registro das Primeiras estórias, que a um só tempo guardam a primeiridade do sertão e contam da ameaça de seu fim. Em outra dessas estórias, “Sorôco, sua mãe, sua filha”, é um trem novo, o “trem do sertão”, que vai buscar a mãe e a filha de Sorôco para levá-las a Barbacena, onde, “para longe, para sempre” (Rosa, 1964c_______. Sorôco, sua mãe, sua filha. In: ___. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964c., p.15), ficarão internadas na colônia psiquiátrica, que oferecia novos tratamentos para as mazelas psíquicas brasileiras. O novo trem do sertão, enviado pelo governo, ia buscar os doentes pobres por todo o país.

O próprio escritor, tendo se socializado na infância em Cordisburgo, é também fruto desses processos de modernização: diferentemente do pai, que passou a vida na cidade do interior mineiro, com pouca ou nenhuma educação formal, Guimarães Rosa desde os 6 anos aprendeu (muitas!) línguas, foi adolescente estudar na capital do estado, tornou-se médico, viveu no exterior como diplomata e conheceu na Alemanha a barbárie tecnocrata do genocídio nazista. É na corrente dos processos de modernização, urbanização e industrialização do Brasil que ele publica Primeiras estórias, nas quais realiza seu retorno à primeiridade, sobre a qual vê o impacto das transformações econômicas, sociais e culturais do sertão - um impacto que ele procura depreender na interioridade dos sujeitos, das famílias e da vida comunitária.

“A terceira margem do rio” conta de um pai de família que, em certo momento, inesperada e inexplicavelmente para os seus, deixa a casa e o trabalho para entrar sozinho numa pequena canoa, “toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos” (Rosa, 1964b_______. A terceira margem do rio. In: ___. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964b., p.32), de modo a ficar para sempre no grande e fundo rio próximo, do qual conhecia cada canto: “e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele” (ibidem, p.34). Ele nunca voltou, até porque “não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais” (ibidem, p.33). O pai vai embora para o rio, para permanecer para sempre nele.

O rio, como todo rio, é fluxo, correnteza, mudança, “água que não para”, mas também é permanência: “o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre... o rio-rio-rio, o rio - pondo perpétuo” (ibidem, p.32, 36). O rio é sempre o mesmo rio, conhecido do pai em cada canto, mas também é correnteza e mudança, frente ao que, para permanecer, era preciso da “constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso...” (ibidem, p.34-5).

A propósito da dupla natureza do rio, de fluir e de permanecer, retomamos brevemente as discussões entre os gregos Heráclito e Parmênides.3 3 Escutei de Yudith Rosenbaum, em nossas aulas na disciplina de pós-graduação Figurações da família: Psicanálise e Literatura Brasileira, ministrada pela primeira vez em 2017, essa referência aos filósofos gregos cuja discussão dá figuração à dupla natureza do rio. Para um aprofundamento das tendências opostas entre Heráclito e Parmênides, ver, por exemplo, Chauí (2000, p.227-8). Para o primeiro, tudo flui e nada permanece; tudo se afasta e nada fica parado, você não consegue se banhar duas vezes no mesmo rio, pois outras águas e ainda outras sempre vão fluindo: nada é permanente, tudo está em mutação, incessantemente. Para Parmênides, prevalece o princípio da identidade: o rio é o rio e não foi e nunca será outra coisa, ele é imóvel em sua totalidade. O rio não tem como se tornar não-rio, ele é, portanto, o mesmo, sempre. O rio é o rio, eternamente.

O pai que “não voltou” porque “não tinha ido a nenhuma parte” exprime em seu ato a dupla natureza do rio: para permanecer na eternidade do mesmo rio, ele resiste ao fluxo de suas mudanças e à passagem do tempo. Contra o que ocorre na travessia humana que é a História, feita de permanência e mudança, o pai permanece como um ser do rio, “com o aspecto de bicho” (ibidem, p.35), na canoa que também é do rio, “feito um jacaré, comprida longa” (ibidem, p.33). Ele se finca no pré-histórico.

O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos - sem fazer conta do se-ir do viver. (ibidem, p.34)

Em um tempo em que o que era se vê ameaçado de não ser mais, em que o trem da modernidade invade o sertão, rompe a vida e os vínculos familiares, os costumes e as formas tradicionais da sociabilidade, leva pessoas de um lado para o outro do país em novos fluxos migratórios, em que brasileiros e brasileiras são confrontados com novas realidades urbanas, novas arquiteturas, novas rotinas, ofícios e linguagens, Guimarães Rosa cria a personagem de um pai, “que nem Noé”, mas que, diferentemente deste, “solto solitariamente” dentro de uma pequena canoa, resiste ao dilúvio da passagem do tempo e de suas mudanças, que ameaçam destruir tudo. E que o faz como se o próprio tempo tivesse parado, “sem fazer conta do se-ir do viver” (ibidem, p.34), sendo confrontado tão somente às naturais mudanças do tempo e das estações, aos dias e às noites, numa outra dimensão, agora cíclica, da passagem do tempo. O pai permanece no rio a ponto de riscar nele, com a canoa, uma terceira margem, “de meio a meio”, instável talvez, fugidia, como a rasura que um barco faz nas águas e, logo em seguida, some. Como o escritor risca no papel essa estória, com mãos e braços no esforço de fazê-la permanecer na História. Já a família muda:

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. (ibidem, p.35)

Os membros da família (com exceção do pai e do filho narrador) seguem o fluxo do tempo tradicional - o casamento da irmã, o nascimento de um filho, o envelhecimento da mãe -, agora na corrente dos processos de urbanização do país, que ao final os leva para longe dali, “para uma cidade”. E, por mais que pensassem e ouvissem diferentes pessoas, nunca puderam compreender o motivo da ação do pai. Teria sido “doideira”, “pagamento de promessa”, “lepra”, para se desertar “para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele” (ibidem, p.33)? Também não dava para entender como ele sobrevivia, “o severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele aguentava”. E se, na separação, o pai fica na canoa e a família muda, o conhecimento longamente acumulado que o pai tem do rio e que lhe permite permanecer firme nele, bem como o próprio sentido da sua decisão e ação, ficam soltos solitariamente com ele. Algo na cadeia da transmissão entre as gerações se interrompe, deixando as perguntas dos filhos sem respostas do pai, com quem finda também o conhecimento profundo do rio - “só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele” (ibidem, p.34). O filho narrador fica na margem (nem vai na canoa, porque o pai não deixou; nem vai embora com a família), preso ao enigma que o pai para sempre, dali em diante, instala.

O psicanalista francês Jean Laplanche (1988LAPLANCHE, J. Teoria da sedução generalizada e outros ensaios. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.) cunhou o termo significante enigmático para falar das mensagens que os pais desde muito cedo transmitem aos filhos, cuja característica peculiar e central é a de serem de muito difícil - ou impossível - decifração. São mensagens brutas, concretas, a que faltam sentido conhecido, e que pedem o trabalho de significação. Em torno dessas mensagens a atividade psíquica da criança se desdobra, buscando compreendê-las a seu modo, dentro de seus limites e possibilidades. A vida psíquica de cada um de nós, para Laplanche, se constitui a partir e em torno desses significantes enigmáticos, de persistente e perturbadora presença, que nos mobilizam por toda a vida em busca de seus sentidos. No conto, a ação enigmática, sem explicação, do pai passa a ser o centro da vida do filho-narrador, aprisionando-o à beira do rio, de onde procura todo dia ver o pai e entendê-lo, além de cuidar que não lhe falte o básico para sobreviver:

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. (Rosa, 1964b_______. A terceira margem do rio. In: ___. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964b., p.34)

A partir do adeus do pai, o filho-narrador passa a vida deixando comida em oco de pedra do barranco, e vai envelhecendo ali, à beira, ainda que em grande parte do tempo sem nem sequer o ver: “Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei - na vagação, no rio no ermo - sem dar razão de seu feito” (ibidem, p.35-6).

Os significantes enigmáticos são mensagens numa cadeia de transmissão, só que aqui feitas do silêncio do pai. Permanece para a família apenas a ação concreta, desprovida de entendimento: o enigma. No entanto, a mensagem assim transmitida tem força - não apenas por seu caráter enigmático, mas por se dar no interior de vínculos tão intensamente carregados de afetos quanto os de uma família - de deter o filho-narrador em torno dela, interrompendo nele o suceder das gerações - não casa e não tem filhos, como parecia ser de esperar -, bem como a possibilidade da transmissão dos conhecimentos e desígnios do pai.

Nessas considerações sobre a (im)possibilidade de transmissão de uma mensagem, tenho em mente os estudos sobre transmissão geracional desdobrados no campo da psicanálise dos vínculos (Mandelbaum, 2010MANDELBAUM, B. Psicanálise da família. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.), que toma como foco a dinâmica psíquica entre sujeitos. Nesse campo, o vínculo familiar é compreendido como meio de transmissão de mensagens. Os psicanalistas que se debruçaram sobre o tema interessaram-se sobretudo pelas vicissitudes da transmissão de traumas entre as gerações. Há duas formas de transmissão: a primeira, das mensagens em formas simbólicas ou simbolizáveis, que podem ser pensadas e elaboradas em linguagem. Nesse caso, a mensagem transmitida por uma geração permite o trabalho psíquico da outra, ou seja, dinamiza sua capacidade de elaborar, imaginar e sonhar. A segunda, das mensagens transmitidas como significantes brutos, através da identificação concreta, indizível e enigmática entre uma geração e a outra. Nesse caso, o receptor da mensagem é presa, concretamente, de uma mensagem indecifrável, que tem força de capturar sua vida psíquica no trabalho inexaurível de sua decifração. A mensagem bruta, não simbolizada e não simbolizável, não o abandona. São os traumas silenciados entre as gerações, que se perpetuam na forma das identificações melancólicas. Freud (2016FREUD, S. Luto e melancolia. Trad. Marilene Carone. Jornal de Psicanálise, v.49, n.90, 2016.) diz que “a sombra do objeto cai sobre o ego”. Teria sido a decisão calada do pai fruto de sua angústia frente às ameaças de mudança do mundo conhecido, que o teria levado a dar as costas à civilização para permanecer para o resto da vida na eternidade do rio? Não se sabe. Mas, sem dúvida, como parte do universo de leitores, também sou instigada ao trabalho de decifração. Seja o que for, a sombra do pai cai melancolicamente sobre o filho:

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência [...]. Eu sofria já o começo de velhice - esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. [...] Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse - se as coisas fossem outras. (Rosa, 1964b_______. A terceira margem do rio. In: ___. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964b., p.36)

E não teriam sido os afetos contraditórios e perturbadores, mobilizados no filho pela ausência do pai e pela falta de sentido de seu gesto, responsáveis pela culpa que sente? Ao longo do conto, são diversos os momentos em que o filho-narrador deixa ao leitor imaginar essa gama de difíceis sentimentos: “sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente”, “com gesto me mandando para trás”, “nosso pai não voltou”, “a estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente”, “enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, [...] Me viu, não remou para cá, não fez sinal” (ibidem, p.32-3), “a gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava [...] O severo que era, de não se entender” (ibidem, p.34). Já mais perto do final da vida, ao despontar os primeiros cabelos brancos, o filho se vê como homem de “tristes palavras”, melancolicamente adoecido.

“E fui tomando ideia” (ibidem, p.36). Sua culpa mobiliza um ato reparatório:

Só fiz, que fui lá. [...] Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: - “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. (ibidem, p.36-37)

Reparar, nesse caso, seria perpetuar o lugar do pai no suceder das gerações, ainda que o sentido desse lugar tenha se perdido. Mas, quem poderia, “na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte”? O filho acenou ao pai, que apareceu. Mas, “por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. [...] E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão” (ibidem, p.37). Sem ir ou sem ser4 4 André L. Rodrigues (2016) aponta na nota 6 a “ambiguidade provocada pela homonímia entre as formas verbais dos verbos ser e ir na terceira pessoa do singular do pretérito perfeito: ‘Sou o que não foi’ ao encontro do pai ou simplesmente ‘Sou o que não foi’, isto é, o que não existiu, o que de fato não viveu”. - “sou o que não foi” -, o filho vive uma identificação paradoxal com o pai: de um lado, põe em questão sua identidade como homem “depois desse falimento”. De outro, “vai ficar calado”, como o pai. E teme “abreviar com a vida”, tendo permanecido “nos rasos do mundo”. Na morte, “ao menos”, pede que o “depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio adentro - o rio” (ibidem, p.37). Ele sonha, na morte, a identificação total com o pai.

Poderia ser o fim da cadeia de transmissão, na forma concreta da invasão de uma mensagem paterna sobre a qual nunca mais se saberá. Mas esse enigma, porque é literatura, vem dar nos leitores, que nos tornamos, tal como o filho, presas do que não se sabe, mas que solicita um sentido já a partir do título do conto: o que é, onde é a terceira margem de um rio? É o para além do rio, a morte, como sugere Walnice Nogueira Galvão (2008aGALVÃO, W. N. Do lado de cá. In: ___. Mínima mímica. Ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Cia. das Letras, 2008a./b)? Ou a risca que a canoa faz na água, na interpretação musical de Milton Nascimento e Caetano Veloso (1991NASCIMENTO, M.; VELOSO, C. A terceira margem do rio. In: Circuladô, Caetano Veloso, 1991.) - “risca certeira/meio a meio o rio”?. Ou ainda a possibilidade de um “terceiro não excluído”, que escapa aos binarismos do pensamento racional habitual, como defende André Rodrigues (2016RODRIGUES, A. As três margens do rio e o vertiginoso fluxo da vida. Estudos Avançados, v.30, n.86, jan.-abr. 2016.)? E que sentido afinal tem o ato do pai, que tantos leitores vêm procurando decifrar? Para mim, o conto tematiza em forma literária, no meio do século XX brasileiro e sertanejo, uma quebra da transmissão de mensagens entre as gerações, ao tributar exclusivamente ao pai a posse de um conhecimento e de uma cultura local, a do rio, em que ele resiste em se manter, mas que ao final se extingue nele e com ele, fincados para sempre na correnteza. Aos familiares, às gerações seguintes, sobram os enigmas, que ao filho-narrador foram excessivos, traumáticos, e o calaram.

Se a família foi, na história social brasileira, em especial em seus redutos patriarcais tradicionais, o lócus central da transmissão cultural - da aprendizagem dos ofícios, das narrativas passadas entre as gerações, da religiosidade e da moral familiar compartilhada -, a ação do pai, se por um lado exprime o desejo resistente da permanência contra o fluxo das mudanças, por outro, ao não transmitir seu conhecimento e o sentido de seu propósito, interrompe a transmissão, deixando ao filho o enigma. Presa desse, o filho permanece fiel ao pai, ainda que convivendo com os sentimentos contraditórios resultantes de não receber dele o ensinamento de seus conhecimentos e a razão de seus feitos. Por respeito e afeto, ele falava de um pai que lhe ensinou, que afetivamente transmitiu suas mensagens, mesmo que, diante de sua partida, os afetos do pai em relação à família também tenham sido postos em questão:

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: - “Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...”; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. (Rosa, 1964b_______. A terceira margem do rio. In: ___. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964b., p.35)

A obra literária de Guimarães Rosa é a um só tempo como o trabalho de resistência do pai retratado no conto, buscando permanecer no fluxo da correnteza da mudança dos tempos, no meio de um rio que para ele é conhecido. O pai é um incansável remador na primeiridade do rio, recusando toda civilização - “não pojava em nenhuma das duas beiras”, “não pisou mais em chão nem capim”, “não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo” (ibidem, p.34). Tal como ele, Guimarães Rosa usa suas mãos incansavelmente para registrar e guardar tudo, numa literatura que é a sua forma de resistência. Mas, diferentemente do filho-narrador, o escritor recebeu de seu pai, e reconhece, parte significativa da matéria de que faz seus textos, na forma dos “causos” narrados, ainda que estes também pudessem ter algo de excessivo, invasivo e mal-arranjado, ou justamente por isto. Escrever parece também ter sido sua resposta a uma demanda paterna de elaboração e preservação da vida do sertão, dos acontecidos narrados e ouvidos na venda, em torno dos quais o filho, traumatizado pelo excesso, mas também encantado (diferentemente do filho do conto, porque privilegiado pela companhia esclarecedora do pai), solicita e registra essas memórias.

Referências

  • CHAUI, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
  • FREUD, S. Luto e melancolia. Trad. Marilene Carone. Jornal de Psicanálise, v.49, n.90, 2016.
  • GALVÃO, W. N. Do lado de cá. In: ___. Mínima mímica. Ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Cia. das Letras, 2008a.
  • _______. O nome do pai. In: ___. Mínima mímica. Ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Cia. das Letras, 2008b.
  • LAPLANCHE, J. Teoria da sedução generalizada e outros ensaios. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
  • MANDELBAUM, B. Psicanálise da família. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.
  • NASCIMENTO, M.; VELOSO, C. A terceira margem do rio. In: Circuladô, Caetano Veloso, 1991.
  • PORTELLA, E. A Estória Cont(r)a a História. In: COUTINHO, E. Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.
  • RODRIGUES, A. As três margens do rio e o vertiginoso fluxo da vida. Estudos Avançados, v.30, n.86, jan.-abr. 2016.
  • ROSA, J. G. As margens da alegria. In: ___. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964a.
  • _______. A terceira margem do rio. In: ___. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964b.
  • _______. Sorôco, sua mãe, sua filha. In: ___. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1964c.
  • _______. Prefácio. In: ___. Tutaméia (Terceiras estórias). Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

Notas

  • 1
    O presente artigo é fruto do trabalho de pesquisa Figurações da família na literatura brasileira do século XX, desenvolvido entre agosto de 2019 e janeiro de 2020 graças a uma bolsa do Programa Ano Sabático do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP).
  • 2
    Manteremos aqui a grafia estória em vez de história quando estivermos tratando dos escritos de Guimarães Rosa, seguindo assim a advertência formulada por ele na epígrafe de Tutaméia (Terceiras estórias) (Rosa, 1967): “a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História” (apud Portella, 1983).
  • 3
    Escutei de Yudith Rosenbaum, em nossas aulas na disciplina de pós-graduação Figurações da família: Psicanálise e Literatura Brasileira, ministrada pela primeira vez em 2017, essa referência aos filósofos gregos cuja discussão dá figuração à dupla natureza do rio. Para um aprofundamento das tendências opostas entre Heráclito e Parmênides, ver, por exemplo, Chauí (2000, p.227-8).
  • 4
    André L. Rodrigues (2016) aponta na nota 6 a “ambiguidade provocada pela homonímia entre as formas verbais dos verbos ser e ir na terceira pessoa do singular do pretérito perfeito: ‘Sou o que não foi’ ao encontro do pai ou simplesmente ‘Sou o que não foi’, isto é, o que não existiu, o que de fato não viveu”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    22 Jun 2020
  • Aceito
    14 Ago 2020
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