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Dénégrification do mundo e o devir-negro do mundo: Dois processos de exterminação?

Dénégrification of the world and the becoming- -black of the world: Two processes of extermination?

Resumos

Este artigo trata do racismo, de sua relação direta com o capitalismo neoliberal e dos desdobramentos dessa relação. Tendo como objetivo questionar a ideia de devenir-nègre, ou devir-negro, do mundo - pressuposto segundo o qual o neoliberalismo tende a transformar toda a população mundial subalterna em negra -, de Achille Mbembe. Este estudo se fundamenta em uma revisão bibliográfica acerca da categoria raça e do uso do racismo no colonialismo, do movimento Négritude e, finalmente, do racismo contemporâneo e do genocídio da população negra como projeto político e econômico. Três processos frutos de relações sociais envolvendo questões de raça e de classe são articulados, na análise: i) négrification: a transformação de originários(as) do continente africano em nègre no auge do sistema colonial-escravista; ii) négrification-subversiva: lutas ocorridas no pós-escravidão para positivar o termo nègre; iii) dénégrification: projeto político neoliberal racista que visa exterminar aqueles classificados como nègres. Essa articulação sustenta a ideia, contrariamente àquela de devir-negro, de que enquanto nègre for definido epidermicamente, embora sua condição possa atingir os não nègres, esses nunca serão vistos como tais, pois, para isso, os nègres, no sentido epidérmico, precisariam desaparecer.

Palavras-chave:
Négrification; négrification-subversiva; dénégrification; capitalismo-neoliberal; extermínio


This article is about racism, its direct relationship with neoliberal capitalism, and the consequences of this relationship. Aiming to question the idea of devenir-nègre, or becoming-black, of the world - a presupposition according to which neoliberalism tends to transform all the world’s subaltern population into black people -, of Achille Mbembe. This study is based on a bibliographic review about the category of race and the use of racism in colonialism, the Négritude movement and, finally, contemporary racism and the genocide of the black population as a political and economic project. Three processes resulting from social relations involving issues of race and class are articulated in the analysis: i) négrification: the transformation of people from the African continent into nègre at the height of the colonial-slavery system; ii) négrification-subversive: struggles that took place in the post-slavery to make positive the term nègre, iii) dénégrification: racist neoliberal political project that aims to exterminate those classified as nègre. This articulation supports the idea, contrary to that of becoming-black, that while nègre is defined epidermally, although its condition may reach non-nègres, these will never be seen as such, since, for that, nègres in the epidermal sense would need to disappear.

Keywords:
Négrification; negrification-subversive; dénégrification; capitalism-neoliberal; extermination


A négrification das pessoas de origem africana

No final do século XV, a relação intercontinental estabelecida entre a Europa e o resto do mundo, com a inauguração do tráfico transatlântico de escravizados, corresponde ao processo da négrification dos africanos(as). A ficção da raça, como foi construída, estabelecia uma relação consubstancial entre ela e os chamados de nègres. Ou seja, a consubstancialidade entre raça e nègre inaugurou uma relação sinonímica entre racialização e négrification do mundo. Nègre foi, antes de tudo, uma identidade racial imputada aos africanos para fazer deles menos humanos. Ao mesmo tempo, permitia classificá-los numa escala de valor que hierarquizava o “superior” e o “inferior”. Assim, na ordenação racial fantasmática ocidental, atribuiu-se ao nègre uma inferioridade nata indelével e insuperável.1 1 A classificação dos seres humanos em raças superiores e inferiores ocupou o pensamento social ocidental por vários séculos, particularmente os XVIII e XIX. Havia os naturalistas monogenistas que acreditavam que os seres humanos compunham uma única raça, mas com variações que, sob efeito do clima, poderiam se degenerar. Alguns autores nessa linha são o botânico sueco Carlos Lineu (LINNÉ, 1735); o naturalista francês Georges-Louis Leclerc, o conde de Buffon (1749); o zoólogo alemão, Johann Friedrich Blumenbach (1804 [1795]), entre outros. Quanto aos poligenistas, acreditavam na existência de várias raças, de origens diferentes. São exemplos, o diplomata francês Arthur de Gobineau (1853-1855); o cirurgião francês, fundador da Sociedade de Antropologia de Paris (Société d’anthropologie de Paris [SAP]), Paul Broca (1861). Embora poligenistas e monogenistas divergissem, todos concordavam a respeito da inferioridade do negro.

Durante muitos séculos, características físicas e mentais dos assim chamados nègres foram mobilizadas para legitimar a exploração dos sujeitos (FIRMIN, 1885FIRMIN, Antenor. De L’Egalité des races humaines. Paris: Librairie Cotillon, 1885.; PRICE, 1898PRICE, Hannibal. De La Réhabilitation de la race noire par la République d’Haïti. Port-au-Prince: Fardin, 1898.). Ao negrificar o africano, essa operação o tornou homem-objeto, homem-mercadoria, homem-metal (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book.). Nessa ficção racialista e racista, o nègre foi também suporte de tudo que os europeus recusavam para si mesmos (DEPESTRE, 1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980.; FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: Edufba, 2008 [1952].; KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.). O nègre se tornou o repositório de todo o mal existente nos seres humanos. Desde os primórdios de seu emprego, o termo nègre foi uma forma de objetificação e degradação por excelência. Sua força estava em sua capacidade de sufocar e estrangular, amputar e castrar as pessoas de origem africana (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book.).

Segundo o filósofo camaronês Achille Mbembe (2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book., cap. 1), nem todos os nègres são africanos e nem todos africanos são nègres, mas como objetos de discurso e conhecimento, desde o início da época moderna, a África e o nègre mergulharam em uma crise aguda tanto da teoria do nome quanto do status e em função do signo e da representação. Ele percebe também que a maneira como África e o negro foram representados transformou-os em signo de uma alteridade impossível de assimilar. No caso do nègre, seria um signo referente às posições sociais historicamente inferiores, apoiadas nas características biológicas concebidas como marcadoras de inferioridade.

A necessidade de explorar a riqueza e ampliar a dominação territorial fez com que os europeus produzissem o nègre:

O nègre não existe como tal. É constantemente produzido. Produzir o nègre é produzir um vínculo social de sujeição e um corpo de extração, ou seja, um corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor, e do qual se busca obter a máxima rentabilidade. Objeto penoso, o nègre é também o nome de um insulto, o símbolo do homem que luta com açoites e sofrimentos em um campo de lutas opondo grupos e frações sociorraciais segmentadas (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book., cap. 1, tradução nossa).

A négrification dos africanos ocorreu por meio de um processo complexo propiciado pela racialização2 2 O que chamamos de racialização é o processo sócio-histórico e “científico” de construção de objetos/sujeitos raciais. A raça é uma construção sócio-histórica e política dinâmica, e que se altera conforme interesses políticos e econômicos. A noção de raça não existia como a conhecemos hoje, por isso que é mais adequado entendê-la como um processo. O antropólogo britânico Peter Wade (2017) apresenta uma cronologia convencional da raça, mostrando como essa noção se alterou ao longo de tempo. Em um primeiro momento, de acordo com essa cronologia, a raça era relacionada à cultura. Em um segundo momento, ela estava relacionada ao meio ambiente e, num terceiro, à biologia. Ao se tornar algo biológico, a raça era vista como inflexível e determinante para, de novo, voltar a ser uma noção cultural, depois de ter produzido consequências negativas para as relações humanas no século XX. Digamos que olhar para sua construção sócio-histórica e política exige que se preste atenção às inflexões que nela ocorreram, sem perder de vista as determinações socioeconômicas que interferem nesse processo. do mundo e durante o estabelecimento da base do capitalismo moderno.3 3 A escravização e a racialização de africanos(as) foram fundamentais na formação do capitalismo. Não é por acaso que Karl Marx (2013 [1867]), no capítulo “A assim chamada acumulação primitiva”, do livro 1 de O capital, atenta para o lugar da escravização no desenvolvimento do capitalismo. Para ele, a exploração das riquezas e a pilhagem das Índias Orientais, a escravização e o tráfico de africanos e africanas são partes fundantes do processo da acumulação primitiva. Eric Williams é um dos autores que nos ensina sobre a relação entre o capitalismo, a escravidão e a racialização do mundo. Para ele, características físicas e intelectuais dos(as) africanos(as) foram utilizadas para justificar sua escravização somente mais tarde. Assim, baseado nas considerações de Bassett sobre a Carolina do Norte, Williams (2012, pp. 50-51) aponta que “suas feições, o cabelo, a cor e a dentição, suas características ‘sub-humanas’ tão amplamente invocadas, não passaram de racionalização posterior para justificar um fato econômico simples: as colônias precisavam de mão de obra e recorreram ao trabalho negro porque era melhor e o mais barato”. Essa négrification envolveu trabalhos cotidianos que consistiam em inventar, representar, recontar, repetir e variar fórmulas, textos, rituais cujo objetivo era fazer o nègre aparecer como sujeito racial objetificado. Isso também envolveu toda uma representação depreciativa fantasmática visando desqualificá-lo moral, estética, política, ética e intelectualmente. E, aproximando-o dos animais, instrumentalizá-lo para que trabalhasse como máquina.

Nessa formulação, nègre não figurava como um ser humano aos olhos dos ocidentais, os quais não só reclamaram a humanidade apenas para si, como impediram, por meio de violências físicas, psicológicas e simbólicas, qualquer tentativa de os chamados nègres reivindicarem sua humanidade negada. A respeito da construção do nègre e de sua negação como humano, Deivison Mendes Faustino (2022FAUSTINO, Deivison Mendes. Frantz Fanon e as encruzilhadas: Teoria, política e subjetividade, um guia para compreender Fanon. São Paulo: Ubu, 2022., p. 59, grifo do autor), apoiando-se nas teses fanonianas, salienta que, “ao dizer ‘o que é humano’, o europeu, com as mãos cheias de sangue e a consciência tranquila, descreve a si mesmo, excluindo como menos humanos, ou não humano, qualquer [um] que não lhe pareça ele próprio”. Esse processo foi fundamental para a apreensão do que viria a ser humano. Assim, continua Faustino (2022FAUSTINO, Deivison Mendes. Frantz Fanon e as encruzilhadas: Teoria, política e subjetividade, um guia para compreender Fanon. São Paulo: Ubu, 2022., p. 59, grifo do autor), “o europeu/branco/ocidental passa a ser tomado como expressão universal do ser, enquanto o não europeu desaparece de qualquer formulação a respeito do humano ao ser reduzido a um signo maldito nègre”.

Em nome da raça, o africano transformado em nègre foi estigmatizado, desqualificado sob todos os aspectos. Nesse sentido, a raça foi utilizada não só para desumanizar africanos e africanas, mas também como ferramenta de controle das possibilidades de o nègre reivindicar sua humanidade. Nesse sentido, a racialização forjou relações sociais a partir da garantia de vantagens e desvantagens com fundamento na raça, ou seja, o racismo. Por isso mesmo que o nègre é, antes de tudo, o resultado de um longo processo sócio-histórico de formação de objetos/sujeitos raciais.

O nègre não existia. Segundo Mbembe (2015)MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book., há amplo consenso sobre a origem ibérica do termo nègre, o qual teria aparecido no início do século XVI em um texto escrito em francês. Todavia, foi só no século XVIII, no auge do tráfico de africanos, que ele passou a ter uso corrente.

Mais importante que a origem do termo nègre é sua concepção fenomenológica, a qual designava, antes de tudo, um conjunto de absurdos, de grosserias e fantasias que o Ocidente havia elaborado e que revestiu as pessoas de ascendência africana. O nègre foi tido como apenas um corpo sem inteligência, um membro, órgãos, uma cor, um cheiro, carne, uma soma de sensações, uma força bruta (DEPESTRE, 1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980.; FANON, 1952; MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book.). O nègre, com sua conotação pejorativa, sua semiologia somática, sua “essência inferior”, sua sinalização tenebrosa, aparecerá na “literatura negreira” como resultado da dupla redução mitológica que estruturou a falsa consciência de uma Europa “cristã e branca” e os estados da consciência de uma África “pagã e negra” (DEPESTRE, 1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980., p. 31).

Com o capitalismo mercantil e a consolidação do sistema de plantation, as violências físicas, psicológicas e simbólicas foram intensificadas não apenas para dar outra dimensão ao devenir-nègre [devir-negro] das pessoas de origem africana, mas também para bloquear qualquer compaixão ou piedade com relação à condição desumanizante à qual elas eram submetidas. Como destaca Mbembe (2007MBEMBE, Achille. “De La Scène coloniale chez Frantz Fanon”. Rue Descartes, Paris, n. 58, pp. 37-55, avril 2007. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-rue-descartes-2007-4-page-37.htm. Acesso em: 24 nov. 2023.
https://www.cairn.info/revue-rue-descart...
, p. 40), em vez de inspirar simpatia, o sofrimento e os gritos dos nègres provocaram mais desgosto. Quanto mais animalesco, ou seja, quanto mais desumanizante for o retrato do nègre, maior a tranquilidade que seus algozes sentiriam para explorá-lo.

Apesar de sua importância para construir os países colonialistas europeus, o nègre foi sempre colocado numa dimensão de inferioridade e imprestabilidade. Quem tem um mínimo conhecimento da história do capitalismo ocidental sabe muito bem quão importantes eram os nègres para construir e consolidar esse sistema. Naquela fase do capitalismo, os ocidentais “precisavam” do nègre porque suas riquezas passaram a depender dele (DEPESTRE, 1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980.; FIRMIN, 1985; TOLENTINO, 2014TOLENTINO, Hugo Dip. Origine du préjugé racial aux Amériques. Port-au-Prince: C3, 2014 [1984].; WILLIAMS, 2012WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.).

Na fantasia ocidental, o nègre nunca teve uma conotação positiva - ele era tão inferior que só podia ser um serviçal. Uma vez fora dessa condição, ele não podia ser visto como um cidadão nem como um trabalhador digno. Enfim, ele “perdia” importância aos olhos dos seus antigos senhores. Mais do que isso, tornava-se sujeito perigoso a ser temido e combatido. Frantz Fanon fala desse nègre em Pele negra, máscara branca:

O preto é um animal, o preto é ruim, o preto é malvado, o preto é feio; olhe, um preto! Faz frio, o preto treme, o preto treme porque sente frio, o menino treme porque tem medo do preto, o preto treme de frio, um frio que morde os ossos, o menino bonito treme porque pensa que o preto treme de raiva, o menino branco se joga nos braços da mãe: “Mamãe, o preto vai me comer!” (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: Edufba, 2008 [1952]. [1952], pp. 106-107).

Para Fanon, o mito do nègre-mauvais [preto-ruim] faz parte do inconsciente coletivo racista ocidental. Ao mesmo tempo, esse processo trabalhou o inconsciente das pessoas negras para aceitar a hierarquia racial e todas as consequências que lhe são corolárias. De acordo com Abrão Slavutzky (2021SLAVUTZKY, Abrão. “Apresentação”. In: NOGUEIRA, Isildinha Baptista. A cor do inconsciente: Significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva, 2021., p. 18), “no inconsciente há marcas mnêmicas, as marcas na memória e na infância de negros e brancos que vivem o racismo, uns sofrendo e outros gozando o estranho da cor desde a lógica branca”.

O processo de transformação de pessoas de origem africana em nègres, e sujeitos de raça, segundo Mbembe (2015)MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book., “obedece, em vários aspectos, a uma lógica tríplice de ossificação, envenenamento e calcificação. O negro não é apenas o protótipo do sujeito envenenado e carbonizado. Ele é aquele cuja vida é feita de escombros carbonizados”. Todo esse processo acabou interferindo não apenas na alienação desses nègres, mas também na construção da sua subjetividade. Por isso, muitos intelectuais negros, como Anténor Firmin (1885)FIRMIN, Antenor. De L’Egalité des races humaines. Paris: Librairie Cotillon, 1885. e Hannibal Price (1898)PRICE, Hannibal. De La Réhabilitation de la race noire par la République d’Haïti. Port-au-Prince: Fardin, 1898., desde o século XIX, advogaram e lutaram em favor da construção de projetos sociopolíticos culturais e educacionais para reabilitar a raça negra de suas sequelas da escravidão.

Embora os nègres tenham passado vários séculos sob o jugo da escravidão, e o tratamento recebido os tenha aproximado do animal e sua condição na estrutura social tenha-lhes forçado a interiorizar uma concepção animalesca de si, em nenhum momento eles desacreditavam que eram seres humanos. Ou seja, tinham que lutar para sair dessa condição generalizante de nègre, contornando a zombificação,4 4 O romancista, poeta e ensaísta haitiano René Depestre (1980, p. 10) empresta o vocábulo zombification [zumbificação] do universo voduesco haitiano para nomear essa alienação. Para Depestre, o zumbi, como resultado de uma morte provocada por um processo místico, não existe de fato. Ou seja, a ideia que leva à crença em um processo místico e ritualístico, na religião vodou haitiana, que faz parecer que uma pessoa esteja morta para depois trazê-la de volta à vida a fim de trabalhar - trabalhar sem remuneração, apenas pelo seu dono - sem ter consciência de sua existência foi uma ideia que nasceu no Novo Mundo durante a escravidão. Para ele, o conceito de zumbificação traduziu a condição de trabalho própria do Novo Mundo durante a vigência do sistema de plantation. A luta contra essa alienação, levada a cabo pelos escravizados do Novo Mundo, permitiu desenvolver várias estratégias e táticas, entre elas o marronnage [fuga], que talvez tenha proximidade com o termo aquilombamento. Segundo Depestre, o marronnage permitiu ao colonizado utilizar o próprio dinamismo de seu sofrimento para uma ascensão ao sentido de dignidade e liberdade. Na sua forma sociopolítica - deserção da plantation, abandono das oficinas -, como sob seu caráter cultural - criação de um novo imaginário -, o marronnage foi um fenômeno precoce de dezombification e da busca por identidade. Foi um esforço coletivo e individual de conhecimento e autoapreensão; um retorno apaixonado ao centro mais refrescante e mais “negro” de si mesmo, para se proteger da insolação “branca”. Em suma, ao contrário do marronnage convencional praticado por negros e ameríndios por meio da resistência física - revolta, fuga e estabelecimento de comunidades desvinculadas das sociedades de plantação ou mineração -, o marronnage cultural designa a resistência mental, ou as várias estratégias culturais para contrariar práticas e discursos racistas e da política assimilacionista do domínio colonial. a extrema alienação colonial-escravista para preservar sua humanidade. Para tal, o termo nègre precisava ser des-re-construído e descolonizado. Isto é, como insinua o crítico haitiano René Depestre (1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980., p. 28), descolonizar as armadilhas semânticas que a semiologia colonial fabricou com as noções contraditórias de “branco” e “negro” para designar os tipos sociais resultantes do sistema escravista e das relações sociais entre senhores e escravos na plantation. Sendo produto de relação de dominação colonial-escravista, a recuperação do termo nègre exigia, antes de tudo, uma postura subversiva de intelectuais engajados(as) africanos(as) e de origem africana. É dessa postura que resultou uma négrification-subversiva, a qual postulava a positivação do termo nègre.

Negrification-subversiva, tentativa de positivar o termo nègre

A raiz da negrification-subversiva pode ser encontrada na crítica feita ao negrismo. Segundo Depestre (1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980., pp. 20-21), o negrismo não é, de modo algum, uma declaração de identidade lançada pelos próprios descendentes de africanos. Suas expressões se agrupam sob múltiplos nomes: arte negra, romance negro, poesia negra, poesia afro-americana, poesia mulata, poesia negróide, literatura neoafricana, poesia indomulata. Esse conjunto de denominações não é inocente tampouco neutro, mas transmite uma hierarquia muito sutilmente racista. Em suma, essas denominações, por mais bem intencionadas que tenham sido por muitos daqueles que as utilizaram, insidiosamente estabeleceram um vínculo de causa e efeito entre determinada cor de pele e expressão poética, romântica e plástica.

O negrismo esteve, em suas formas primitivas, em contos de fadas, diários de viagem, textos negrofágicos, escritos de viajantes, geógrafos e capitães dos navios negreiros. Durante o Iluminismo,5 5 É impossível citar todos os autores cujas teorias contribuíram para a bestialização dos africanos. Em pleno século do “esclarecimento”, os filósofos iluministas, defensores da liberdade, não só não enxergavam a escravização de africanos e africanas como um problema, como forneceram base filosófica para justificá-la. Por exemplo, referindo-se aos africanos, o iluminista Charles-Louis de Secondat, mais conhecido como Montesquieu (2000 [1748], p. 257), autor de O espírito das leis, afirmou que “aqueles de que se trata são pretos dos pés à cabeça; e têm o nariz tão achatado que é quase impossível ter pena deles”. Outro iluminista francês, François-Marie Arouet, ou Voltaire (1978 [1735], p. 62), em seu Tratado de metafísica, deixa entender que o negro não é um ser humano como todos os outros, apenas um tipo de homem com grau de superioridade em relação a outros animais. Ao falar do negro, afirmou que “animal preto, que possui lã sobre a cabeça, caminha sobre duas patas, é quase tão destro quanto um símio, é menos forte do que outros animais de seu tamanho, provido de um pouco mais de ideias do que eles e dotado de maior facilidade de expressão. Ademais, está submetido igualmente às mesmas necessidades que os outros, nascendo, vivendo e morrendo como eles”. seus traços persistiram com força e estiveram em todos os tipos de textos, desde nos escritores profissionais - filosóficos, científicos, zombeteiros - até nos textos do romantismo abolicionista e paternalista. De acordo com Depestre (1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980., p. 22), uma crítica ao termo nègre apareceu com o négrisme de combat [negrismo de combate].

O que chamamos de négrification-subversiva seria, de modo aproximativo, o que Depestre (1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980., p. 32) chama de négrisme de combat [negrismo de combate], que celebra uma resistência nègre. Depestre homenageia o negrismo de combate por ter contribuído no enfrentamento da desumanização dos(as) africanos(as) e de seus descendentes. Ele salienta que “a melhor homenagem que podemos prestar ao negrismo é dizer que terá contribuído para reduzir o campo da ‘desumanidade do homem pelo homem’” (DEPESTRE, 1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980., p. 42).

Por meio de lutas contra escravidão e colonização e dos resquícios que elas deixam no mundo moderno, realizaram-se tentativas de alteração do conteúdo desse nègre. Com o surgimento do movimento Négritude, o nègre tornou-se uma categoria portadora de esperança - esperança de ampliar a humanidade para incluir as pessoas negras -, na medida em que seu conteúdo colonial e racista era rechaçado pelas próprias pessoas negras que reivindicam seu direito de ser cidadão à part entière do mundo. O Négritude6 6 Para não desviar de nosso foco, não abordamos o movimento Négritude (DEPESTRE, 1980; MONGA, 2010). representa uma das mais importantes tentativas do século XX de (re)definir o nègre (CÉSAIRE, 1983CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal. Paris: Présence Africaine, 1983.; DEPESTRE, 1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980.). Por meio dele, o nègre foi reivindicado como identidade para as pessoas de origem africanas que haviam sido petrificadas pelo sistema colonial-escravista. Destarte, a négrification-subversiva foi, no início, uma obra do Négritude, uma vez que ela é um sentimento de revolta de uma categoria de seres humanos contra o processo histórico de aviltamento e de desnaturalização que a colonização batizou genérica e pejorativamente de nègre (DEPESTRE, 1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980.).

Entre os poetas do Négritude, a palavra nègre foi usada para desafiar o sistema de representação negativa sobre os africanos e seus descendentes. Contra o fato de que as pessoas negras tenham internalizado o nègre, como produzido pelos ocidentais racistas, os expoentes da négritude passaram a reivindicá-lo. Ou seja, já que as pessoas negras tinham vergonha da palavra nègre, os idealizadores da négritude acabaram por abraçá-la. Aimé Césaire, um dos maiores expoentes deste movimento, se posiciona a respeito da escolha dessa palavra:

Costumava-se dizer que um negro [noir] é um homem com pele morena e outras besteiras [conneries]. Assim […] tomamos a palavra nègre como uma palavra de desafio. Era um nome de desafio. Foi um pouco a reação de um jovem irritado. Como tinham vergonha da palavra nègre, bem, tomamos a palavra nègre. Devo dizer que quando fundamos L’Etudiant noir, na verdade eu queria chamá-lo de L’Etudiant nègre, mas havia uma grande resistência no meio antilhano […] Alguns achavam que a palavra nègre era muito ofensiva, muito agressiva. Então, tomei a liberdade de falar de negritude. Havia em nós um desejo de desafio, de afirmação violenta na palavra nègre e na palavra negritude (CÉSAIRE apud DEPESTRE 1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980., p. 142, tradução nossa).

Os poetas e intelectuais do Négritude empregaram muitos esforços para recuperar o termo nègre e promover uma dimensão positiva para seu uso. De acordo com Depestre (1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980., p. 142), era a primeira vez, na América, que uma palavra com sentido, a princípio, pejorativo e ofensivo perdia, aos olhos do oprimido, sua acepção injuriosa para, como um bumerangue, voltar à cabeça do opressor, assumindo, repentinamente, uma função de reparação e de justiça.

Para os poetas do Négritude, o substantivo nègre não se refere mais à experiência do vazio que deve ser preenchida. Mas, na criação imaginária dos poetas negros, ela tornou-se uma arma poderosa. Mais do que isso, de acordo com Mbembe (2015)MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book., por meio dos trabalhos dos poetas e intelectuais do Négritude, o nègre acabou se transformado em conceito, o idioma pelo qual os povos de origem africana se anunciam ao mundo, se mostram ao mundo e se afirmam como mundo, a partir dos recursos de seu poder e de seu próprio gênio.

Não é por acaso que o Haiti seja considerado como terra de emergência da négritude (CÉSAIRE, 1983CÉSAIRE, Aimé. Cahier d’un retour au pays natal. Paris: Présence Africaine, 1983.), local em que o termo nègre, - nèg, em crioulo haitiano - significa ser humano, ou um indivíduo de sexo masculino. Por esse motivo é comum escutar, no Haiti nèg blan [homem branco]; nèg nwa [homem negro]. “Proteje blan sa a, li se yon bon nèg” [Proteja esse branco, ele é um bom nègre - ou seja, ele é um bom ser humano] foi uma frase muito falada durante a Revolução Haitiana. Por isso, depois da Revolução, alemães, poloneses e até franceses que foram protegidos acabaram por integrar a categoria de nègre. Também no âmbito da diferenciação de classe social, escuta-se nèg rich [homem rico] nèg pòv [homem pobre].

Nègre é também uma categoria resultante de disputas e de lutas concretas de classe e raça. Para os ocidentais, o nègre era a antítese do branco. Os ocidentais se fecharam em uma falsa dialética sem síntese, atribuindo ao nègre um caráter ontológico, fazendo dele uma essência. O nègre é isso ou aquilo. Enquanto para os intelectuais engajados, sobretudo os do Négritude, o termo nègre, que resultou da négrification-subversiva, é apenas um momento da dialética. Jean-Paul Sartre (1948)SARTRE, Jean-Paul. “Orphée noir”. In: SENGHOR, Sedar Senghor. Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue Française. Paris: Présence Africaine, 1948. chama atenção para isso, embora tenha considerado a négritude como o tempo fraco de uma progressão dialética.

O que estava no horizonte do Négritude era a superação das fronteiras construídas com a racialização do mundo. Essa racialização impedia aos nègres e seus descendentes entrar na categoria de humano genérico. “Queria simplesmente ser um homem entre outros homens. Gostaria de ter chegado puro e jovem em um mundo nosso, ajudando a edificá-lo conjuntamente. […] Queria ser homem, nada mais do que um homem. Alguns me associavam aos meus ancestrais escravizados, linchados: decidi assumir”, destaca Fanon (2008FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: Edufba, 2008 [1952]. [1952], p. 106). O “decidi assumir” é uma tomada de consciência de que o outro fazia de “nós” um objeto.

Mbembe destaca três funções essenciais que o substantivo nègre desempenha na modernidade: i) função de atribuição, ii) interiorização iii) subversão. Segundo ele,

a partir de um gesto consciente de subversão, ora poético e ora carnavalesco, muitos o assumiram só para que fosse mais bem devolvido, contra seus inventores, esse patronímico execrado, símbolo da degradação, que decidiram converter, dali em diante, em símbolo de beleza e de orgulho e que decidiram utilizar, dali em diante, como insígnia de um desafio radical e, por que não, de um apelo à sublevação, à deserção e à insurreição. Enquanto categoria histórica, o negro não existe, então, fora destes três momentos que são o momento de atribuição, o momento de recuperação e interiorização e o de reversão, ou inversão - o qual, aliás, inaugura a plena e incondicional recuperação do estatuto de humanidade outrora rasurado pelo ferro e o açoite (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book., cap. 2, tradução nossa).

Como a négrification, a négrification-subversiva é um processo. A segunda é antítese da primeira. Seu objetivo é alcançar a completude do movimento dialético, destruindo tanto a branquitude, quanto a própria negritude para formar o humano genérico que se livra da prisão racial racista. A maior crítica feita à négritude como identidade de um povo é a mesma que se faz às outras identidade nacionais e/ou regionais. O fechamento sobre si não é a solução para o convívio comum. Por isso, mesmo que todas essas formas de identidades - singulares, regionais, nacionais - precisam ser (re)pensadas para construir uma identidade pan-humana, que celebre novas relações sociais através de um grito coletivo: “Viva a grande família humana” (DEPESTRE, 1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980.).

Fato a constatar é que, apesar de inúmeros esforços para construir o mundo comum para que todos e todas se sintam “em casa”, isso está longe de acontecer. As barreiras de classes, de gênero e sobretudo de raças continuam sendo levantadas mais altas para balcanizar ainda mais o mundo que já era balcanizado.

Dénégrification como projeto de fazer desaparecer os chamados nègres da face da terra

Dénégrification não é apenas um projeto, é também um processo. Um processo que obedece à lógica do principe de race [princípio de raça], “uma forma espectral de divisão e de diferença humana capaz de ser mobilizada para fins de estigmatização e exclusão, de segregação pela qual se busca isolar, eliminar, até mesmo destruir fisicamente um grupo humano” (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book., tradução nossa).

A ideia de exterminar totalmente um povo, ao longo de certos momentos da história, fazia parte de projetos políticos de determinadas nações ocidentais - como a Alemanha nazista, por exemplo, em que seus legisladores não esconderam que as leis de segregação estadunidenses foram suas principais fontes de inspiração (WHITMAN, 2017WHITMAN, James. Hitler’s American Model: The United States and the Making of Nazi Race Law. Princeton, NJ: Princeton University Press, 2017.). Pior que isso, os ocidentais haviam exterminado quase todos os habitantes nativos do Novo Mundo (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book.; SALA-MOLINS, 1987SALA-MOLINS, Louis. Le Code noire ou le calvaire de Canaan. Paris: Presses universitaires de France, 1987.).

De fato, fica nítido que a prática genocida é algo comum na política do Ocidente. A série Exterminate All the Brutes (2021EXTERMINATE All the Brutes. Direção: Raoul Peck. United States: HBO, 2021. 4 episódios (60 min), color. Produzido por HBO Documentary Films.) [Extermine todos os brutos],7 7 Usamos “exterminar” no sentido empregado por Raoul Peck em Exterminate All the Brutes. do cineasta haitiano Raoul Peck, é uma referência cinematográfica obrigatória para a apreensão das políticas de extermínio ocidental, inscritas em seu projeto civilizatório. Peck destaca três termos que podem ser usados para descrever o percurso da humanidade sob a intervenção ocidental: civilização; colonização e extermínio. Por meio de uma investigação da história do colonialismo europeu enquanto gênese do racismo e das ideias entranhadas que conduziram ao comércio de africanos(as) e o Holocausto, Exterminate mostra como a compreensão dos problemas sociais contemporâneos exige que se estude a relação entre esses três termos. O entendimento dessa relação possibilita apreender dimensões importantes das metamorfoses desse processo de dominação que ainda preocupa aqueles e aquelas que lutam por um mundo justo, menos desigual, menos violento.

Lembrando que foram os ocidentais que animalizaram africanos e africanas para comercializá-los como bens móveis.8 8 A ideia de que o chamado nègre era um objeto vendável foi colocada no artigo 44 do Code noir, elaborado pelo então ministro de Estado e da Economia da França, Jean-Baptiste Colbert, e publicado, em 1685, pelo rei Luís XIV. A essa altura, o dono de uma plantation que comprava um nègre não o comprava para destruí-lo nem para matá-lo, mas para usá-lo, isto é, para que ele produzisse e aumentasse a riqueza de seu proprietário (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book.). Porém, o que perturba a mente dos euro-americanos é o que se faz com o nègre livre, que afirma a sua humanidade, que desmonta a falácia ficcional de raça construída sobre ele e que reivindica seu direito de permanecer e compartilhar o mundo. Em relação a essa questão, o diplomata francês Alexis de Tocqueville, em A democracia na América, ao olhar as relações raciais nos Estados Unidos - no sul e no norte -, discorreu sobre a impossibilidade dos brancos conviverem em igualdade com as pessoas negras antes escravizadas.

Para Tocqueville (2019TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução Juliana da Rosa Simões. São Paulo: Edipro, 2019. [1835], p. 403), o problema de negros e brancos não é apenas uma questão de liberdade, salientando que “você pode tornar o negro livre, mas não pode fazer com que ele não esteja, em relação ao europeu, na posição de estrangeiro”. A observação dele foi centrada sobre os Estados Unidos, que lhe possibilitaram captar a dimensão intransponível imposta pelo preconceito racial naquela sociedade. “O preconceito de raça me parece mais forte nos estados que aboliram a escravidão do que naqueles em que a escravidão ainda existe, e, em parte alguma, ele se revela tão intolerante quanto nos estados em que a servidão sempre foi desconhecida” (TOCQUEVILLE, 2019TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução Juliana da Rosa Simões. São Paulo: Edipro, 2019. [1835], p. 404). Essa afirmação de Tocqueville atenta para uma dimensão importante na relação entre branco e negro no pós-escravidão. O branco não tinha, ou não tem, problema com o negro enquanto seu escravo, mas enquanto cidadão. Uma outra afirmação pertinente desse autor que ilustra ainda mais esse dilema é a seguinte: “O negro é livre, mas não pode compartilhar nem os direitos, nem os prazeres, nem os trabalhos, nem as dores, nem mesmo o túmulo daquele de quem foi declarado igual; não poderia se encontrar em nenhum lugar com ele, nem na vida nem na morte” (TOCQUEVILLE, 2019TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução Juliana da Rosa Simões. São Paulo: Edipro, 2019. [1835], p. 405).

Tocqueville estava preocupado também com o futuro das relações entre povos depois da escravidão. Ao olhar o negro liberto como estrangeiro no mesmo solo que o branco, ele aponta duas possibilidades para o futuro: “é preciso que negros e brancos se confundam inteiramente ou se separem” (TOCQUEVILLE, 2019TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução Juliana da Rosa Simões. São Paulo: Edipro, 2019. [1835], p. 415). Em relação à primeira possibilidade, ele é enfático em sua convicção sobre essa inviabilidade. “Não creio que a raça branca e a raça negra jamais venham a viver em pé de igualdade” (TOCQUEVILLE, 2019TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução Juliana da Rosa Simões. São Paulo: Edipro, 2019. [1835], p. 416). Contudo, ele aponta a possibilidade de haver uma transição racial por meio da miscigenação, que, segundo ele, diminuiria o elemento negro na população. “A verdadeira transição entre o branco e o negro é o mulato: onde quer que se encontre um grande número de mulatos, a fusão entre as duas raças não é impossível” (TOCQUEVILLE, 2019TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução Juliana da Rosa Simões. São Paulo: Edipro, 2019. [1835], p. 416).

É verdade que Democracia na América, de Tocqueville, foi escrita nos anos 1830. Também é indiscutível que as coisas não tenham permanecido como no período observado pelo autor, mas o que parece uma questão perene é que as pessoas negras permanecem como “estrangeiras” e continuam sendo tratadas como incompatíveis com uma vida digna.9 9 “No racismo, corpos negros são construídos como corpos impróprios, como corpos que estão ‘fora do lugar’ e, por essa razão, corpos que não podem pertencer. Corpos brancos ao contrário, são construídos como próprios, são corpos que estão ‘no lugar’, ‘em casa’, corpos que sempre pertencem. Eles pertencem a todos os lugares: na Europa, na África, no norte, no sul, leste, oeste, no centro, bem como na periferia” (KILOMBA, 2019, p. 57). Tampouco são vistas como cidadãs capazes de gozar os mesmos direitos que os brancos euro-americanos. De fato, nos Estados Unidos, a “linha de cor” que separava os negros e os brancos foi observada pelo sociólogo afro-estadunidense W. E. B. Du Bois (2021DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas do povo negro. Tradução Alexandre Boide. São Paulo: Veneta, 2021 [1903]. [1903], p. 21), e ela não apenas persiste até os dias de hoje, como se tornou uma questão mundial. No diálogo entre Du Bois e Max Weber, a dimensão mundializada e perene desse problema foi explicitada. Magali Bessone e Matthieu Renault salientam que, numa carta escrita por Weber solicitando um artigo a Du Bois, o sociólogo alemão acertou, ao concordar com Du Bois, escrevendo: “Estou absolutamente convencido de que o problema ‘da linha divisora das cores’ será o problema fundamental para os próximos tempos, aqui e em todos os lugares do mundo” (WEBER, 1904-1905 apud BESSONE; RENAULT, 2021BESSONE, Magali; RENAULT, Matthieu. W. E. B. Du Bois: Double conscience et condition raciale. Paris: Éditions Amsterdam, 2021., p. 27).

A respeito da linha de cor nos Estados Unidos, Ta-Nehisi Paul Coates salienta que a “América branca” é um sindicato arranjado de modo a proteger seu poder exclusivo de dominar e controlar os corpos das pessoas negras. Segundo ele, esse poder às vezes é direto - linchamento - e às vezes é insidioso - estabelecimento de limites. E, “o poder de dominação e de exclusão é central na crença de ser branco, e, sem ele, ‘pessoas brancas’ deixariam de existir por falta de razões” (COATES, 2015COATES, Ta-Nehisi. Entre o mundo e eu. Tradução Paulo Geiger. Rio de Janeiro: Objetiva. 2015. E-book., cap. 1). A oposição fantasmagórica entre aqueles chamados de nègres e os brancos acaba atribuindo uma condição particular de ser humano aos nègres.

Os signos corporais do nègre são tidos como marcas aparentes que impossibilitam sua inclusão como cidadão pleno. Em estudo sobre a condição das pessoas negras na América Latina e no Caribe, o historiador e especialista em culturas africanas e afro-americanas Louis Henry Gates Jr. salienta que em quase todos os países latino-americanos, após a abolição da escravatura, realizaram-se projetos que visavam trazer europeus para promover a mestiçagem capaz de branquear a população e, consequentemente, diminuir o contingente de pessoas negras nesses países (GATES JR., 2011GATES JR., Henry Louis. Os negros na América Latina. Tradução Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.). Contudo, essas políticas nunca fizeram desaparecer as pessoas negras, o que frustrou os interesses dos não negras que não quiseram compartilhar o mundo, suas garantias e seus direitos em equidade com todas as pessoas. Embora essas políticas tenham fracassado, isso não implica, de jeito nenhum, um abandono do projeto de fazer desaparecer os nègres na pós-escravidão.

Assim, é perceptível que a convivência com o nègre como cidadão pleno, portador de direito é o problema deixado pela arquitetura colonial-escravista racista que epidermiza todos os problemas sociais envolvendo pessoas negras. Tal epidermização é uma ilusão que dificulta a junção raça-classe10 10 Em Mulheres, raça e classe, Angela Davis (2016) examina as lutas políticas estadunidenses para a emancipação das mulheres e das pessoas negras. O que ocorre na junção classe-raça também ocorre quando se trata de gênero. A autora afirma que os homens, mesmo que estejam na mesma condição socioeconômica que as mulheres, por serem homens, acham que devem preservar a vantagem que seu gênero lhes concede, o que dificulta o fortalecimento das lutas contra os problemas estruturais: racismo e sexismo. para uma luta comum e efetiva contra o capitalismo neoliberal. As pessoas não negras são “educadas” para acreditar que, mesmo quando estiverem na mesma condição socioeconômica da maioria das pessoas negras, por não terem pele “preta”, elas têm um “diferencial privilegiado” - uma suposta cor de pele que não é “preta”. Porém, seu grande erro é não perceber que o capitalismo neoliberal é uma máquina de devorar seres humanos, e que sempre vai precisar de gente para saciar sua fome insaciável. Em La Société autophage: Capitalisme, démesure et autodestruction [Sociedade autofágica: Capitalismo, desmensura e autodestruição], o filósofo Anselm Jappe (2017)JAPPE, Anselm. La Société autophage: Capitalisme, démesure et autodestruction. Paris: La Découverte, 2017., por meio de uma leitura atenta da crítica de Marx à teoria do valor, somada a referências psicanalíticas - de Freud a Erich Fromm ou Christopher Lasch - e referências literárias - o mito de Erisícton11 11 O mito grego de Erisícton narra a situação de um rei que, depois de ter recebido um castigo divino por um ultraje contra a natureza, comeu tudo a seu redor, tudo que encontrou no seu caminho. Porém, nada poderia satisfazer sua fome e, no final, ele devora a si mesmo (JAPPE, 2017). -, mostra a dimensão predatória e devoradora do capitalismo neoliberal e o tipo de subjetividade que ele cria. A lógica de dividir para dominar, explorar, massacrar etc. segue firme no capitalismo, opondo a humanidade do negro à do branco.

Mbembe (2015)MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book. salienta que a defesa da humanidade do nègre quase sempre anda de mãos dadas com a reivindicação do caráter específico de sua raça, de suas tradições, de seus costumes e de sua história, pois, toda a linguagem se desdobra ao longo desse limite do qual deriva toda a representação do que é nègre. Revoltam-se, não contra o pertencimento do nègre a uma raça distinta, mas contra o preconceito de inferioridade que está ligado à dita raça.

Mas o que é um “nègre”, esse ser do qual se diz que eu sou a espécie? “Nègre” é, antes de tudo, uma palavra. Uma palavra sempre se refere a alguma coisa. Mas a palavra também tem sua própria espessura, sua própria densidade. Uma palavra é feita para evocar algo na consciência daquele a quem se dirige ou de quem a ouve. Quanto mais densidade e espessura ela tem, mais a palavra provoca uma sensação, um sentimento, até um ressentimento na pessoa a quem se refere. Há palavras que machucam. A capacidade das palavras de ferir é parte de seu próprio peso. Supõe-se que “nègre” seja também, e acima de tudo, um nome. Aparentemente, todo nome abarca uma sina, uma condição relativamente genérica. “Nègre” é, portanto, o nome que me foi dado por alguém (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book., cap. 4, tradução nossa).

Desde a introdução de Critique de la raison nègre, Mbembe evidenciou que nègre não é uma atribuição desejável por ninguém. Tanto aqueles que o criaram quanto aqueles que são designados nègre não querem ser portadores desse maldito nome (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book.).

Mbembe não deixa dúvida de que nègre seja uma ficção racista ancorada num biologismo grosseiro, nascido com o capitalismo mercantil e com a racialização do mundo, que atribuiu um peso exorbitante à aparência física, ao mesmo tempo, dando uma base material ao chamado nègre. Porém, um dos maiores problemas da ideia do devenir-nègre do mundo, ou seja, o problema da “universalização tendencial da condição nègre” no neoliberalismo do historiador camaronês é que o nègre foi, ou é, fechado dentro da sua epiderme preta e de suas características fenotípicas, o que lhe confere uma posição específica na política mundial. Ou seja, a pessoa negra é sobredeterminada por meio de sua aparência.

O nègre continua lutando para sair da condição que lhe é imposta porque seu desejo histórico - desde depois do drama do tráfico negreiro - é apenas ser concebido como humano, como todos os outros. A verdade é que isso não é uma luta que diz respeito apenas aos chamados de nègres, mas é uma luta universal para construir um espaço de convívio comum para todos. Não existe, como o Ocidente faz acreditar, uma essência negra ruim e uma essência branca boa - o contrário tampouco existe. Esse par antagônico é uma construção fantasmagórica do Ocidente para legitimar seu poder de dominar o mundo e excluir o outro considerado indesejável.

Seguindo os passos de Fanon em seu compromisso para superar um certo duplo narcisismo - branco que se fecha em sua brancura e negro que se fecha em sua negrura - e os de Edouard Glissant em sua contribuição e sugestão para criar um mundo para todos, o tout-monde [todo-mundo], Mbembe argumenta em favor da construção de um mundo em comum - o en-commun. Segundo ele, “existe apenas um mundo. Este é um todo composto por mil partes. Para todos. De todos os mundos” (GLISSANT apud MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book.).

É verdade que compartilhar o mundo com outros seres vivos continua sendo uma necessidade de primeira ordem para a conservação tanto dos humanos quanto dos não humanos, já que “a durabilidade do mundo depende de nossa capacidade de reanimar os seres e as coisas aparentemente sem vida - o homem morto, devolvido ao pó pela seca economia, que, pobre de mundo, trafica os corpos e a vida” (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book.).

Mbembe (2015)MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book. é um conhecedor da história do colonialismo e do capitalismo. Também é um estudioso das relações sociais no neoliberalismo e observou seus desdobramentos sobre a vida humana. Por isso mesmo que insiste sobre a necessidade de fazer do “desejo de vida a pedra de toque de um novo pensamento da política e da cultura para preservar a nossa existência”. Caso contrário, o mundo não durará.

Promover novas formas de relações sociais visando superar as velhas fronteiras raciais é uma das maiores propostas de Mbembe (2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book., “Épilogue”, tradução nossa), porque,

por mais que se ergam fronteiras, muros e enclaves, que se divida, classifique, hierarquize, que se busque subtrair da humanidade aqueles e aquelas que foram rebaixados, que continuam a ser desprezados ou que não se assemelham a nós, ou com quem achamos que nunca vamos nos entender, existe um só mundo e todos temos nossa parcela nele. Este mundo nos pertence a todos igualmente e todos somos seus coherdeiros, mesmo se as maneiras de o habitar não sejam as mesmas - e é justo daí que vem a real pluralidade das culturas e das maneiras de viver. Dizer isso não significa de modo algum ocultar a brutalidade e o cinismo que ainda caracterizam o encontro dos povos e das nações. É simplesmente recordar um dado imediato, inexorável, cuja origem se situa, sem dúvida alguma, no início dos tempos modernos: o irreversível processo de emaranhamento e de entrelaçamento das culturas, dos povos e das nações.

Longe de ser uma nova utopia, o em-comum defendido por Mbembe encontra sua base nas formulações de dois martinicanos anticoloniais, Glissant e Fanon. Inspirando em Fanon, o em-comum mbemberiano reafirma a condição para uma política de igualdade e de universalidade. Isto é, “a condição de aceitar que este homem - o negro - é mais do que um corpo” (MBEMBE, 2007MBEMBE, Achille. “De La Scène coloniale chez Frantz Fanon”. Rue Descartes, Paris, n. 58, pp. 37-55, avril 2007. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-rue-descartes-2007-4-page-37.htm. Acesso em: 24 nov. 2023.
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).

A reparação é introduzida por Mbembe como uma das condições fundamentais para construir esse mundo tão desejado, sobretudo por aqueles e aquelas que foram, ou são, vítimas das violências da história. Portanto, “para construir este mundo que nos é comum, será preciso restituir àqueles e àquelas que foram submetidos a processos de abstração e de coisificação na história a parte de humanidade que lhes foi roubada” (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book.).

De acordo com Mbembe, esse processo de reparação deve fazer parte de uma dupla abordagem: tanto sair da condição de vítima para alguns quanto romper com a “boa consciência” e a negação de responsabilidade para outros. É o caráter dialético dessa reparação que possibilitará a construção de uma consciência comum do mundo, rumo à realização de uma justiça universal. Desse modo, a construção do em-comum é inseparável da reinvenção da comunidade humana. Essa construção deve ser livre do fardo da raça e livre do ressentimento e do desejo de vingança que toda e qualquer situação de racismo suscita e pode suscitar.

A construção do em-comum mbemberiana se enquadra numa política de continuidade - continuar a realizar as propostas dos(as) antiescravistas e anticoloniais - que visa uma emancipação total dos seres humanos, ou seja, a superação da condição nègre.

O argumento mbemberiano é, sem dúvida, muito poderoso, mas se dependermos da boa vontade daqueles que negam compartilhar o mundo com os chamados nègres, a construção do em-comum permanecerá lettres mortes. Portanto, lutar e propiciar condições para que as lutas possam ser efetivas é a obrigação de todos e todas que querem um mundo em-comum.

Vimos que, apesar de todas as lutas efetivadas pelos chamados nègres, em vez de haver políticas de convívio comum dentro de um mesmo mundo, aqueles que criaram os nègres passaram a querer destruí-los fisicamente. Com o avanço do capitalismo neoliberal, é óbvio que a condição subalterna imposta em geral aos nègres pode se expandir aos não nègres da classe trabalhadora e do exército industrial de reserva. Porém, esses não nègres sempre vão escapar do peso da epidermização. Os nègres podem estar na mesma classe com os não nègres, mas a ficção racial que alimenta o imaginário racista do mundo contemporâneo vai fazer lembrar aos nègres que eles compartilham uma “humanidade diferente” - no sentido de inferior. Assim, a universalização da condição nègre aos não nègres não vai fazer que estes se tornem nègres de antemão. Porém, eles serão apenas não nègres que vivem na condição de nègre.

Enquanto a cor da pele e outras características fenotípicas permanecem como indícios de identificação dos chamados nègres, o devenir-nègre das pessoas não negras não se manifestará explicitamente. Razão pela qual a universalização tendencial da condição nègre aos brancos da classe trabalhadora e do exército industrial de reserva branco exige que o projeto de dénégrification do mundo seja acelerado.

Se antes os nègres foram rebaixados a uma humanidade supérflua, foram abandonados a si mesmos e o sistema capitalista tinha mostrado seu desinteresse em integrá-los dignamente no mercado de trabalho, agora, no neoliberalismo, o abandono parece insuficiente e ineficaz; trata-se de exterminá-los.

Os projetos dos chamados nègres e seu criador - criador do nègre - são diametralmente opostos. De um lado, os nègres querem acabar com a estrutura material e simbólica que lhes mantêm numa condição desumanizante, destruir o signo maldito que pesa sobre eles e que os impediu de realizar sua alteridade. De outro lado, aqueles que criaram os nègres querem a sua destruição física. Ou seja, eles querem um mundo sem os nègres. Uma frase da escritora brasileira Maria da Conceição Evaristo parece muito oportuna: “Eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer” (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2018CONCEIÇÃO EVARISTO, Maria da. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2018 [2014]. [2014]).

A escritora conhece muito bem a realidade das pessoas negras e como se dão as relações raciais no Brasil, razão pela qual ela consegue formular uma frase que sintetiza a vontade de não compartilhamento do mundo com as pessoas negras, sobretudo aquelas que são pobres pertencentes à classe baixa, que vivem nas regiões desfavorecidas e desprovidas de estruturas básicas: as “famosas” favelas. No entanto, se sua frase atenta à resistência, nada diz a respeito do limite desta diante da sofisticação das novas tecnologias exterminadoras desenvolvidas e em desenvolvimento para acabar com os nègres. A própria escritora está ciente de que “combinar de não morrer” não é uma garantia de que não “vamos morrer”. Em seu conto intitulado “A gente combina de não morrer”, lê-se o seguinte: “Nosso trato de vida virou às avessas. Morremos nós, apesar de que a gente combinamos de não morrer” (CONCEIÇÃO EVARISTO, 2018CONCEIÇÃO EVARISTO, Maria da. Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas, 2018 [2014]. [2014], p. 107).

Como Conceição Evaristo, sabemos que o racismo é a “tecnologia” de base por trás de todas as outras tecnologias e arranjos para fazer desaparecer os nègres. Uma das melhores definições do racismo está em Entre o mundo e eu, do escritor estadunidense Coates (2015COATES, Ta-Nehisi. Entre o mundo e eu. Tradução Paulo Geiger. Rio de Janeiro: Objetiva. 2015. E-book., cap. 1, grifo nosso), segundo o qual

o racismo é uma experiência visceral, que desaloja cérebros, bloqueia linhas aéreas, esgarça músculos, extrai órgãos, fratura ossos, quebra dentes. Você não pode deixar de olhar para isso, jamais. Deve sempre se lembrar de que a sociologia, a história, a economia, os gráficos, as tabelas, as regressões, tudo isso acabará atingindo, com grande violência, o corpo.

O racismo é um fenômeno essencialmente violento, que encontra, segundo Mbembe (2007MBEMBE, Achille. “De La Scène coloniale chez Frantz Fanon”. Rue Descartes, Paris, n. 58, pp. 37-55, avril 2007. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-rue-descartes-2007-4-page-37.htm. Acesso em: 24 nov. 2023.
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, p. 47), a maior parte de sua força no fato de que, na consciência racista, a aparência é a verdadeira realidade das coisas. O racismo é também uma paixão que se baseia no desprezo do outro para justificar o ódio.

Ao assegurar que é preciso expulsar, desprezar o negro, esse resto, essa imundície cujo protótipo é objeto fecal, o racista tem convicção de que todo o mal está fora de si: o inimigo odiado e ridiculizado. Constituem-se assim os irmãos do ódio, unidos contra a raça negra, a raça maldita. Portanto, o racismo é um fenômeno de grupo, e, sendo uma paixão, é um desejo posto em tensão, o desejo racista é exterminar o seu objeto de ódio (SLAVUTZKY, 2021SLAVUTZKY, Abrão. “Apresentação”. In: NOGUEIRA, Isildinha Baptista. A cor do inconsciente: Significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva, 2021., pp. 18-19, grifo nosso).

Alguém pode fingir ignorar o racismo. Porém, ninguém pode fingir não saber do que ele é capaz. Seus efeitos são nítidos em todas as esferas das sociedades racistas e em todas as dimensões da vida.12 12 “Devido às diferentes formações sociais, ser negro ou não branco no Brasil, nos Estados Unidos, nos países da Europa, na África do Sul e em Angola são experiências vivenciadas de maneira distintas não apenas por conta das óbvias diferenças políticas, econômicas e culturais, mas sobretudo pelas diferenças entre o significado social de ser negro e ser branco resultantes de diferentes mecanismos político-jurídicos de racialização - cor de pele, nacionalidade, religião, ‘uma gota de sague’ etc.” (ALMEIDA, 2018, p. 62).

Os nègres foram indispensáveis em certo momento para o desenvolvimento do próprio capitalismo. Porém, no capitalismo neoliberal, eles não têm a mesma importância que tinham antes. É por isso mesmo que eles podem ser deixados de lado e até exterminados sem remorso, porque não são mais considerados úteis por esse sistema.

Em Necropolítica, Mbembe (2018)MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1, 2018. salienta que a noção de biopoder de Michel Foucault é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte. Em contrapartida, o autor propõe as noções de necropolítica e de necropoder. Segundo ele, essas duas noções são capazes de dar conta das várias maneiras pelas quais, no mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte” (MBEMBE, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1, 2018.).

De forma genérica, Mbembe deixa entender que esses poderes e políticas de morte são levados a cabo pelo soberano, aquele que tem a capacidade de ditar quem pode morrer e quem deve viver. Ao criticar as teorias normativas da democracia, que tomam a soberania como sinônimo de normas produzidas para um povo, Mbembe (2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1, 2018., p. 26) salienta que “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é”.

O que nos interessa no argumento mbemberiano não é sua explanação sobre o limite de biopoder foucaultiano, mas a ideia do planejamento soberano para eliminar o outro considerado descartável. No caso que nos interessa, a soberania não é de um Estado específico, mas de um sistema. O sistema capitalista neoliberal, combinado ao colonialismo, aplica uma política de destruição e de exterminação que ultrapassa todas as fronteiras nacionais. Nesse sentido, dénégrification talvez possa entrar perfeitamente no exercício da necropolítica e do necropoder.

O que chamamos de dénégrification não é um debate estritamente conceitual, tampouco é uma especulação sociológica. Mas é, antes de tudo, um projeto político que visa a exterminação física de forma lenta e/ou violenta das pessoas negras da face da terra. Encontramos muitos de seus indícios em várias partes do mundo. Entre os mais comuns, destacamos, primeiramente, as políticas eugênicas e higiênicas do século XIX, iniciadas após o fim da escravidão física dos nègre. Vale ressaltar que essas mesmas políticas prosseguiram no século XX nas nações euro-americanas, no regime de apartheid e no nazismo,13 13 Em relação a isso, Mbembe (2018) nota que foi nas colônias e sob o regime do apartheid que surgiu uma forma peculiar de terror. Para ele, “a característica mais original dessa formação de terror é a concatenação entre o biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio. A raça é, mais uma vez, crucial para esse encadeamento. De fato, é sobretudo nesses casos que a seleção das raças, a proibição dos casamentos mistos, a esterilização forçada e até mesmo o extermínio dos povos vencidos foram testados pela primeira vez no mundo colonial”. bem como nas políticas migratórias realizadas pela elite política e pelos intelectuais dos países latino-americanos para branquear a população de seus países.

Encarceramento em massa14 14 Em relação ao encarceramento em massa, estudiosas e estudiosos desse assunto apontam que o racismo continua operando na política carcerária. A jurista e advogada estadunidense Michelle Alexander (2017) aponta que, apesar das conquistas do movimento por direitos civis, a partir de 1950, nos Estados Unidos, o racismo adotou nova forma de manifestação, dando continuidade à reprodução da desigualdade racial. Assim, ela argumenta que o estigma da desigualdade racial causa marginalização ou exclusão social, reforçada pela guerra às drogas e, por fim, causa o encarceramento em massa dos negros. A autora deixa entender que a lógica racial hierárquica que estrutura a sociedade estadunidense é operativa no sentido de que os não brancos (negros, latinos) são considerados incivilizados, criminosos, selvagens etc. No Brasil, Juliana Borges (2019, p. 19) também realizou um trabalho sobre encarceramento em massa. De modo igual aos Estados Unidos, ela observa que, no Brasil contemporâneo, nos presídios, a população negra é sobrerepresentada. Portanto, a política de encarceramento em massa nada mais é que um instrumento usado em prol da privação de liberdade das pessoas negras. Assim, Borges afirma que, no Brasil, dois em cada três presos são negros. Ambas as autoras enfatizam veementemente o peso do racismo nas políticas carcerárias. pode ser considerado como um segundo índice. Em terceiro, destacamos a brutalidade policial nos chamados guetos e favelas. Em quarto lugar citamos as migrações forçadas e arriscadas, em condição desumanizante.15 15 Notícias sobre africanos(as) que morreram e continuam morrendo no mar Mediterrâneo, na tentativa de ir para Europa, são muito recorrentes nesses últimos anos. O autor italiano Roberto Saviano se refere ao Mediterrâneo como uma das maiores valas comum no mundo: “La Méditerranée est l’une des plus grandes fosses communes au monde”. As tentativas desesperadas de migração da África e da Ásia para a Europa via Mediterrâneo se intensificaram em 2011 com a Primavera Árabe. Conforme foi publicado em Libération, desde 2014, foram registradas quase 23 mil mortes e/ou desaparecimentos no Mediterrâneo - mais de 80% deles na rota central que liga o norte da África à Itália e Malta. Todavia, há informações que deixam entender que esse número está longe de ser exato porque há navios que desaparecem no mar sem deixar nenhum sobrevivente. As pessoas que estavam nesses navios não chegaram a ser contabilizadas pelos dados estatísticos (KRISTANADJAJA, 2021). Em quinto lugar, o abandono de populações vulneráveis para morrer por causa da fome, por falta de acesso a serviços de saúde, ou seja, por falta dos elementos mais elementares para a reprodução da vida. Isto é, quando o direito ao espaço, ao trabalho, à saúde, à terra, ao alimento, à educação é negado, estamos diante da negação ao direito à vida. Já que a vida deveria designar o mais estruturante de todos os direitos, pois é um direito humano fundamental (GOMES; LABORNE, 2018GOMES, Nilma Lino; LABORNE, Ana Amélia de Paula. “Pedagogia da crueldade: Racismo e extermínio da juventude negra”. Educação em Revista, Belo Horizonte, vol. 34, e197406, 2018.).

Não precisamos de muita explanação para sustentar essa afirmação. Nesses últimos anos, particularmente em 2020, vimos, com o assassinato brutal e violento de Georges Floyd - um negro estadunidense -, o movimento Black Lives Matter [Vidas Negras Importam] - criado em 2013 depois da absolvição pela justiça daquele país de George Zimmerman, no caso da morte a tiros do adolescente negro Trayvon Martin (AUDREY; NICOLAS, 2016AUDREY, Célestine; NICOLAS, Martin-Breteau. “‘Un Mouvement, pas un moment’: Black Lives Matter et la reconfiguration des luttes minoritaires à l’ère Obama”. Politique américaine, Paris, n. 28, pp. 15-39, févr. 2016.) - ressurgir com força para protestar contra banalização da vida das pessoas negras nos Estados Unidos. O movimento passou a ter uma dimensão internacional importante. Muitos outros países, como o Brasil e África do Sul, aproveitaram para denunciar a violência policial, genocídio de jovens negros.

No Brasil, Nilma Lino Gomes e Ana Amélia Laborne abordam essa dura realidade. Elas citaram a seguinte fala de uma jovem negra:

A vida do jovem negro não tem valor. Qualquer um pode nos matar. Somos um incômodo para essa sociedade. Somos vistos como extermináveis para a polícia, para o tráfico, para as milícias, para a classe média. Não podemos circular na cidade sem olhares de medo e reprovação. Isso não é vida (GOMES; LABORNE, 2018GOMES, Nilma Lino; LABORNE, Ana Amélia de Paula. “Pedagogia da crueldade: Racismo e extermínio da juventude negra”. Educação em Revista, Belo Horizonte, vol. 34, e197406, 2018., p. 4).

É uma afirmação dura, mas que faz todo sentido em um mundo em que as pessoas negras não são bem-vindas. Desnecessário perguntar por que, no século XXI, é necessário lembrar e insistir em que a vida de uma pessoa negra é uma vida como qualquer outra? Quando diz que “vidas negras importam”, pergunta-se: “Importa para quem?”.

Em sexto lugar, citamos o armamento e gangsterização das bidonvilles em países negros empobrecidos - caso do Haiti, onde, nesses últimos anos, sequestro, tráfico, linchamento e execução16 16 Há quase dez anos, uma crise de insegurança sem precedentes está afetando o Haiti. Observa-se a multiplicação de facções criminosas armadas no país. Vários massacres foram perpetrados em muitos bairros periféricos. A situação se complexificou quando o governo haitiano, em conivência com parte da “burguesia” local e com a cumplicidade de sra. Helen Ruth Meagher La Lime, representante da Organização das Nações Unidas (ONU) naquele país, federalizou as diversas facções criminosas sob o nome G9 e aliados. Assim, intensificaram-se os casos de sequestros de pessoas. O sequestro se torna a única indústria lucrativa que funciona no país. Sequestram pessoas dentro de suas casas, no local de trabalho, no hospital, na igreja, na escola, no mercado, na rua etc. As negociações são feitas em dólar e, para cada pessoa sequestrada, exigem-se de 200 mil a 2 milhões de dólares. Ocorre de os sequestradores receberem o dinheiro, acharem pouco e exigirem mais dinheiro. Por vezes, mesmo depois disso tudo, matam o sequestrado. Esse fenômeno inusitado não é estranho ao neoliberalismo que supervaloriza o dinheiro, que exclui todas as formas de solidariedade humana. Sequestradores exibem armas e dinheiro, declarando-se milionários sem nenhum constrangimento ou medo. O Estado haitiano se conforma com esse terror generalizado, que é a maneira tanto como o Estado quanto como as gangues exploram a população civil desarmada. O Estado não se preocupa mais com seu direito de exercer o monopólio da violência. A situação haitiana tem certa semelhança com a observação feita por Mbembe (2018, p. 34) em certos países africanos: “Muitos Estados africanos já não podem reivindicar monopólio sobre a violência e sobre os meios de coerção dentro de seu território. Nem mesmo podem reivindicar monopólio sobre seus limites territoriais. A própria coerção tornou-se produto do mercado. […] milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar”. O colapso das instituições estatais haitianas resultou de uma violência de que o próprio Estado é protagonista, instituindo uma economia centrada na violência, na ilegalidade, no kidnapping [sequestro], no tráfico de pessoas. Ter uma arma de fogo é ter em mãos um meio de ganhar dinheiro e ser temido, até “respeitado”. O tráfico de armas é um frutífero mercado transnacional que envolve vários países, em particular os Estados Unidos, a República Dominicana, a Colômbia, entre outros. No Haiti há facções que lutam entre si pelo controle de territórios. Elas matam sem medo, festejam após cada morte. Quanto mais matam, “mais felizes” ficam. “Matamos várias pessoas para a gangue rival” não é repetido como uma frase de terror, mas para afirmar a superioridade de força, capacidade de matar. A banalização da vida naquele país nunca tinha chegado a esse nível. Somente em janeiro de 2022, cinquenta pessoas foram assassinadas (RNDDH, 2022, p. 10). Após o assassinato do ex-presidente Jovenel Moïse, o país está sendo dirigido pelo primeiro-ministro Ariel Henry, que, segundo RNDDH, estaria implicado no assassinato do ex-presidente. Seu governo não tomou nenhuma decisão para resolver o problema da insegurança pública, tampouco para combater a expansão de gangues. A desvalorização da vida e da banalização da morte são naturalizadas ao ponto de escutar no cotidiano que “a esperança de vida no Haiti seria de 24 horas renovável”. de pessoas se tornaram eventos mais frequentes. O sétimo, doenças mortais adquiridas por pessoas que se desempretecem com produtos cosméticos industriais e técnicas consideradas perigosas.

Contrariamente aos seis primeiros indícios, o último envolve elementos mais sutis. Muitas pessoas negras que internalizam que a pele negra é portadora de desgraça, sujeira, fealdade, procuram “limpar” a pele, - quer dizer, desempretecê-la - com o uso de produtos cosméticos industriais. Produtos que são proibidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) por serem tóxicos e cancerígenos. Parece que as pessoas que desempretecem têm certa “liberdade” de escolha. É verdade que não podemos negar isso totalmente. Porém, ao olhar a racialização do mundo, a négrification de africanos(as) e seus descendentes, e também a maneira como eles entram na modernidade, mais do que isso, como o capitalismo neoliberal os trata, fica evidente que uma interpretação que culpabiliza quem se desempretece, além de ser muito simplista, ignora por completo a força do racismo e seus desdobramentos nas sociedades contemporâneas (DÉUS, 2021bDÉUS, Frantz Rousseau. Paradoxo haitiano: Identidade negra e “branqueamento” na contemporaneidade. Curitiba: Appris, 2021b.). Mais do que isso, não está ciente do projeto de dénégrification do mundo.

O que pode levar alguém a pegar água sanitária, misturá-la com alisante de cabelo e tetraciclina, para depois passar em seu corpo inteiro e, no final, se embrulhar num plástico e dormir? O que pode levar uma mulher grávida a buscar loucamente receitas dietéticas, pílulas para “limpar”, ou “desempretecer”, o feto dentro da barriga? Lizette Manka’a é uma mulher negra camaronesa que escreve um manual para compartilhar receita de chá, comida, suco e outras técnicas para que casais de pele negra possam ter “o bebê de seu sonho” - um bebê de pele clara. O primeiro capítulo de seu manual se intitula “O que eu fiz para ter um bebê de pele clara, quais alimentos você deve comer para ter um bebê de pele clara e o que você deve evitar” (MANKA’A, 2019MANKA’A, Elizzette. Comment Donner Naissance à un bébé au teint clair. [S. l.]: Envo Magazine, 2019., p. 5). A operacionalidade do fantasma da branquitude fica nítida quando consideradas as justificativas apresentadas pela autora do manual. Manka’a é de Camarões, um país de maioria negra. A luta antecipada da possível rejeição da pele preta de seu filho, combate da angústia e o resgate da felicidade da sogra de Manka’a seriam as principais fontes de motivações para buscar essa alternativa:

Meu marido tem a pele preta escura e eu tenho uma pele acastanhada. Foi um casamento por amor e minha sogra sempre teve problemas com minha pele porque acreditava que nossos filhos seriam negros. Em um país como o nosso, ter uma pele clara é essencial. Eu estava sob pressão constante morando com minha sogra e estava determinada a não deixar meu filho ainda não nascido passar por essa rejeição de “pele preta” (MANKA’A, 2019MANKA’A, Elizzette. Comment Donner Naissance à un bébé au teint clair. [S. l.]: Envo Magazine, 2019., tradução e grifo nossos).

Embora a autora do manual tenha enfatizado que seu objetivo não era promover a ideia de que uma cor de pele é melhor que outra, deixa explícita sua tristeza profunda quando pensou em seu bebê negro ainda não nascido:

Minha avó viu como eu estava triste e se ofereceu para me ajudar com sua terapia. Tomei os suplementos e segui as instruções dietéticas durante a minha gravidez e tive uma menina com pele lisa e clara. Minha sogra estava muito feliz e meu casamento voltou a ser feliz novamente. (MANKA’A, 2019MANKA’A, Elizzette. Comment Donner Naissance à un bébé au teint clair. [S. l.]: Envo Magazine, 2019.).

A observação que está por trás dessas práticas é que as pessoas negras percebem que não são bem-vindas no mundo por causa da suposta negrura que as encobre. A “razão negra” - conjunto de besteira, de fantasia, de representação pejorativa e negativa (MBEMBE, 2015MBEMBE, Achille. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2015. E-book.) - internalizada por essas pessoas e a manipulação dessa “razão” pelo neoliberalismo num projeto mercadológico destrutivo deformam a subjetividade das pessoas negras. Essa subjetividade doentia é também e evidentemente fruto desta “razão”.

O consumo prolongado desses tipos de produtos, segundo os(as) profissionais de saúde, antecipará a morte dos(as) consumidores(as) (LY, 2018LY, Fatima. “Dépigmentation cosmétique volontaire (DCV): Enjeux sanitaires, pratiques, motivations et ébauches de solutions”. La Peaulogie, [s. l.], n. 1, 2018.; PETIT, 2007PETIT, Antoine. La Dimension addictive de la dépigmentation volontaire. 2007. Mémoire (Maîtrise en Dermatologie) - Université Paris-XIII - Paris-Nord, Villetaneuse; Bobigny, 2007. Disponível em: https://psychaanalyse.com/pdf/LA%20DIMENSION%20ADDICTIVE%20DE%20LA%20DEPIGMENTATION%20VOLONTAIRE%20-%20MEMOIRE%20MASTER%20RECHERCHE%202007%20(77%20pages%20-%20483%20ko).pdf. Acesso em: 24 nov. 2023.
https://psychaanalyse.com/pdf/LA%20DIMEN...
; MENIAOUI KERRACHE, 2019MENIAOUI KERRACHE, Sabrina. La Dépigmentation volontaire: Risques pour la Santé. 2019. Thèse. (Doctorat en Pharmacie) - Faculté des Sciences Pharmaceutiques et Biologiques de Lille, Université de Lille, Lille, 2019.). Ou seja, câncer de pele, hipertensão arterial e diabetes, erisipela, aborto etc., resultados do processo de desempretecimento estão contribuindo e contribuirão para exterminar os nègres. Nesse sentido, o desempretecimento, que é um mecanismo de gerenciamento do tom da pele para responder à certa exigência estética evidentemente racista (DÉUS, 2021aDÉUS, Frantz Rousseau. “O desempretecimento pode ser uma prática de otimização estética?” Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, Pelotas, RS, vol. 9, n. 1, pp. 259-280, jan./jun. 2021a. ISSN 2318-9576.), de certa forma, está ao serviço do projeto da dénégrification do mundo.

Considerações finais

Négrification; négrification-subversiva e dénégrification, três termos que usamos para discorrer sobre um processo sócio-histórico conflitante intimamente ligado às formas de relações sociais fundamentadas na raça e que perduram até a contemporaneidade. O primeiro explicita um processo desumanizante de inserção das pessoas de origem africana nas relações de trabalhos compulsórios durante o capitalismo mercantil. O segundo corresponde às lutas efetivadas por aquelas pessoas para reconquistar sua liberdade, reivindicar sua humanidade negada e seu direito de permanecer no mundo na condição de cidadão. E a dénégrification emergiu como resultado da não aceitação de compartilhar o mundo com as pessoas concebidas como nègre na condição de cidadão pleno na pós-escravidão. Se o branco colonizador ocidental não tinha problema para conviver com o nègre na condição de escravo, quando o nègre (re)conquistou sua liberdade, afirmando sua humanidade, o branco colonizador ocidental, com sua mentalidade colonialista, passou a querer denegrificar o mundo. Ou seja, querer fazer desaparecer o nègre da face da terra, razão pela qual a dénégrification é, antes de tudo, uma política colonialista e racista de cunho neoliberal que visa exterminar fisicamente os nègres.

Sendo a aparência fenotípica do africano tomada como um “dado objetivo” para construir a ficção racial, a inferioridade imputada a ele acabou por ser epidermizada em seu corpo. O nègre é fechado em seu corpo preto. Sendo a raça uma ficção construída para diferenciar e classificar os seres humanos, o que conhecemos como branco poderia ser o nègre se ele fosse construído como tal. Porém, após construir uma representação do nègre e disseminá-la coletivamente, ela é assim internalizada. Tanto quem recusa quanto quem aceita essa representação, desde que sua epiderme seja “preta”, é lido como nègre. Depois que o africano e seus descendentes se tornaram nègres, apesar de tantos esforços, não conseguem escapar desse signo maldito inscrito no seu corpo.

De fato, não é impossível criar outra ficção racial para que um outro grupo de seres humanos possa devenir-nègre. No entanto, perguntamo-nos: como será feito, no neoliberalismo, para desepidermizar os africanos e seus descendentes conhecidos como nègre, transferindo suas características aos não nègres, para que estes possam devenir-nègre? Não há dúvida de que o neoliberalismo possa colocar e/ou esteja colocando pessoas não negras da classe trabalhadora na condição de nègre. Porém, pelo papel desempenhado pela epidermização, enquanto os nègres epidérmicos estiverem vivos, os não nègres nunca serão lidos como nègres. Para isso, aqueles que a ficção racial fazia de nègre de fato precisam desaparecer para dar lugar ao novo grupo de nègre.

Em suma, além das considerações expostas acima, este trabalho chama atenção para a necessidade de estar alerta às políticas neoliberais de exterminação e destacar a importância das lutas comuns para combater tanto o projeto de dénégrification quanto o de transformar a todos da classe trabalhadora em nègre. Lembrando que ser nègre no capitalismo neoliberal é, antes de tudo, ser exterminável.

Notas

  • 1
    A classificação dos seres humanos em raças superiores e inferiores ocupou o pensamento social ocidental por vários séculos, particularmente os XVIII e XIX. Havia os naturalistas monogenistas que acreditavam que os seres humanos compunham uma única raça, mas com variações que, sob efeito do clima, poderiam se degenerar. Alguns autores nessa linha são o botânico sueco Carlos Lineu (LINNÉ, 1735); o naturalista francês Georges-Louis Leclerc, o conde de Buffon (1749)BUFFON, Georges-Louis Leclerc. Histoire naturelle, générale et particulière. Paris: Imprimerie Royale, 1749.; o zoólogo alemão, Johann Friedrich Blumenbach (1804BLUMENBACH, Johann Friedrich. De L’Unité du genre humain, et de ses variétés. Tradução Fréd. Chardel. 3. ed. Strasbourg: Numistral, 1804 [1795]. [1795]), entre outros. Quanto aos poligenistas, acreditavam na existência de várias raças, de origens diferentes. São exemplos, o diplomata francês Arthur de Gobineau (1853-1855)GOBINEAU, Arthur de. Essai sur l’inégalité des races humaines. Paris: Pierre Belfond, 1853-1855.; o cirurgião francês, fundador da Sociedade de Antropologia de Paris (Société d’anthropologie de Paris [SAP]), Paul Broca (1861)BROCA, Paul. Sur Le Volume et la forme du cerveau suivant les individus et suivant les races. Paris: Bull. Soc. Anthropologie, 1861.. Embora poligenistas e monogenistas divergissem, todos concordavam a respeito da inferioridade do negro.
  • 2
    O que chamamos de racialização é o processo sócio-histórico e “científico” de construção de objetos/sujeitos raciais. A raça é uma construção sócio-histórica e política dinâmica, e que se altera conforme interesses políticos e econômicos. A noção de raça não existia como a conhecemos hoje, por isso que é mais adequado entendê-la como um processo. O antropólogo britânico Peter Wade (2017)WADE, Peter. “Raça: Natureza e cultura na ciência e na sociedade”. In: HITA, Maria Gabriela (org.). Raça, racismo e genética em debates científicos e controvérsias sociais. Salvador: Edufba, 2017. apresenta uma cronologia convencional da raça, mostrando como essa noção se alterou ao longo de tempo. Em um primeiro momento, de acordo com essa cronologia, a raça era relacionada à cultura. Em um segundo momento, ela estava relacionada ao meio ambiente e, num terceiro, à biologia. Ao se tornar algo biológico, a raça era vista como inflexível e determinante para, de novo, voltar a ser uma noção cultural, depois de ter produzido consequências negativas para as relações humanas no século XX. Digamos que olhar para sua construção sócio-histórica e política exige que se preste atenção às inflexões que nela ocorreram, sem perder de vista as determinações socioeconômicas que interferem nesse processo.
  • 3
    A escravização e a racialização de africanos(as) foram fundamentais na formação do capitalismo. Não é por acaso que Karl Marx (2013MARX, Karl. “A assim chamada acumulação primitiva” In: MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro i: o processo de produção de capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013 [1867]. [1867]), no capítulo “A assim chamada acumulação primitiva”, do livro 1 de O capital, atenta para o lugar da escravização no desenvolvimento do capitalismo. Para ele, a exploração das riquezas e a pilhagem das Índias Orientais, a escravização e o tráfico de africanos e africanas são partes fundantes do processo da acumulação primitiva. Eric Williams é um dos autores que nos ensina sobre a relação entre o capitalismo, a escravidão e a racialização do mundo. Para ele, características físicas e intelectuais dos(as) africanos(as) foram utilizadas para justificar sua escravização somente mais tarde. Assim, baseado nas considerações de Bassett sobre a Carolina do Norte, Williams (2012WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2012., pp. 50-51) aponta que “suas feições, o cabelo, a cor e a dentição, suas características ‘sub-humanas’ tão amplamente invocadas, não passaram de racionalização posterior para justificar um fato econômico simples: as colônias precisavam de mão de obra e recorreram ao trabalho negro porque era melhor e o mais barato”.
  • 4
    O romancista, poeta e ensaísta haitiano René Depestre (1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980., p. 10) empresta o vocábulo zombification [zumbificação] do universo voduesco haitiano para nomear essa alienação. Para Depestre, o zumbi, como resultado de uma morte provocada por um processo místico, não existe de fato. Ou seja, a ideia que leva à crença em um processo místico e ritualístico, na religião vodou haitiana, que faz parecer que uma pessoa esteja morta para depois trazê-la de volta à vida a fim de trabalhar - trabalhar sem remuneração, apenas pelo seu dono - sem ter consciência de sua existência foi uma ideia que nasceu no Novo Mundo durante a escravidão. Para ele, o conceito de zumbificação traduziu a condição de trabalho própria do Novo Mundo durante a vigência do sistema de plantation. A luta contra essa alienação, levada a cabo pelos escravizados do Novo Mundo, permitiu desenvolver várias estratégias e táticas, entre elas o marronnage [fuga], que talvez tenha proximidade com o termo aquilombamento. Segundo Depestre, o marronnage permitiu ao colonizado utilizar o próprio dinamismo de seu sofrimento para uma ascensão ao sentido de dignidade e liberdade. Na sua forma sociopolítica - deserção da plantation, abandono das oficinas -, como sob seu caráter cultural - criação de um novo imaginário -, o marronnage foi um fenômeno precoce de dezombification e da busca por identidade. Foi um esforço coletivo e individual de conhecimento e autoapreensão; um retorno apaixonado ao centro mais refrescante e mais “negro” de si mesmo, para se proteger da insolação “branca”. Em suma, ao contrário do marronnage convencional praticado por negros e ameríndios por meio da resistência física - revolta, fuga e estabelecimento de comunidades desvinculadas das sociedades de plantação ou mineração -, o marronnage cultural designa a resistência mental, ou as várias estratégias culturais para contrariar práticas e discursos racistas e da política assimilacionista do domínio colonial.
  • 5
    É impossível citar todos os autores cujas teorias contribuíram para a bestialização dos africanos. Em pleno século do “esclarecimento”, os filósofos iluministas, defensores da liberdade, não só não enxergavam a escravização de africanos e africanas como um problema, como forneceram base filosófica para justificá-la. Por exemplo, referindo-se aos africanos, o iluminista Charles-Louis de Secondat, mais conhecido como Montesquieu (2000MONTESQUIEU [Charles-Louis de Secondat]. O Espiríto das leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [1748]. [1748], p. 257), autor de O espírito das leis, afirmou que “aqueles de que se trata são pretos dos pés à cabeça; e têm o nariz tão achatado que é quase impossível ter pena deles”. Outro iluminista francês, François-Marie Arouet, ou Voltaire (1978VOLTAIRE [François-Marie Arouet]. Tratado de metafísica. São Paulo: Abril, 1978 [1735]. (Os Pensadores). [1735], p. 62), em seu Tratado de metafísica, deixa entender que o negro não é um ser humano como todos os outros, apenas um tipo de homem com grau de superioridade em relação a outros animais. Ao falar do negro, afirmou que “animal preto, que possui lã sobre a cabeça, caminha sobre duas patas, é quase tão destro quanto um símio, é menos forte do que outros animais de seu tamanho, provido de um pouco mais de ideias do que eles e dotado de maior facilidade de expressão. Ademais, está submetido igualmente às mesmas necessidades que os outros, nascendo, vivendo e morrendo como eles”.
  • 6
    Para não desviar de nosso foco, não abordamos o movimento Négritude (DEPESTRE, 1980DEPESTRE, René. Bonjour et adieu à la négritude. Paris: Robert Laffont, 1980.; MONGA, 2010MONGA, Célestin. Niilismo e negritude. Tradução Estela dos Santos Abreu. São Paulo: Martins Fontes, 2010.).
  • 7
    Usamos “exterminar” no sentido empregado por Raoul Peck em Exterminate All the Brutes.
  • 8
    A ideia de que o chamado nègre era um objeto vendável foi colocada no artigo 44 do Code noir, elaborado pelo então ministro de Estado e da Economia da França, Jean-Baptiste Colbert, e publicado, em 1685COLBERT, Jean-Baptiste. Le Code noir: Recueil d’edits, declarations et arrets concernant les esclaves negres de l’Amerique. Paris: Chez les Libraires Associés, 1685., pelo rei Luís XIV.
  • 9
    “No racismo, corpos negros são construídos como corpos impróprios, como corpos que estão ‘fora do lugar’ e, por essa razão, corpos que não podem pertencer. Corpos brancos ao contrário, são construídos como próprios, são corpos que estão ‘no lugar’, ‘em casa’, corpos que sempre pertencem. Eles pertencem a todos os lugares: na Europa, na África, no norte, no sul, leste, oeste, no centro, bem como na periferia” (KILOMBA, 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 57).
  • 10
    Em Mulheres, raça e classe, Angela Davis (2016)DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016. examina as lutas políticas estadunidenses para a emancipação das mulheres e das pessoas negras. O que ocorre na junção classe-raça também ocorre quando se trata de gênero. A autora afirma que os homens, mesmo que estejam na mesma condição socioeconômica que as mulheres, por serem homens, acham que devem preservar a vantagem que seu gênero lhes concede, o que dificulta o fortalecimento das lutas contra os problemas estruturais: racismo e sexismo.
  • 11
    O mito grego de Erisícton narra a situação de um rei que, depois de ter recebido um castigo divino por um ultraje contra a natureza, comeu tudo a seu redor, tudo que encontrou no seu caminho. Porém, nada poderia satisfazer sua fome e, no final, ele devora a si mesmo (JAPPE, 2017JAPPE, Anselm. La Société autophage: Capitalisme, démesure et autodestruction. Paris: La Découverte, 2017.).
  • 12
    “Devido às diferentes formações sociais, ser negro ou não branco no Brasil, nos Estados Unidos, nos países da Europa, na África do Sul e em Angola são experiências vivenciadas de maneira distintas não apenas por conta das óbvias diferenças políticas, econômicas e culturais, mas sobretudo pelas diferenças entre o significado social de ser negro e ser branco resultantes de diferentes mecanismos político-jurídicos de racialização - cor de pele, nacionalidade, religião, ‘uma gota de sague’ etc.” (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018., p. 62).
  • 13
    Em relação a isso, Mbembe (2018)MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1, 2018. nota que foi nas colônias e sob o regime do apartheid que surgiu uma forma peculiar de terror. Para ele, “a característica mais original dessa formação de terror é a concatenação entre o biopoder, o estado de exceção e o estado de sítio. A raça é, mais uma vez, crucial para esse encadeamento. De fato, é sobretudo nesses casos que a seleção das raças, a proibição dos casamentos mistos, a esterilização forçada e até mesmo o extermínio dos povos vencidos foram testados pela primeira vez no mundo colonial”.
  • 14
    Em relação ao encarceramento em massa, estudiosas e estudiosos desse assunto apontam que o racismo continua operando na política carcerária. A jurista e advogada estadunidense Michelle Alexander (2017)ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: Racismo e encarceramento em massa. Tradução Pedro Davoglio. São Paulo: Boitempo, 2017. aponta que, apesar das conquistas do movimento por direitos civis, a partir de 1950, nos Estados Unidos, o racismo adotou nova forma de manifestação, dando continuidade à reprodução da desigualdade racial. Assim, ela argumenta que o estigma da desigualdade racial causa marginalização ou exclusão social, reforçada pela guerra às drogas e, por fim, causa o encarceramento em massa dos negros. A autora deixa entender que a lógica racial hierárquica que estrutura a sociedade estadunidense é operativa no sentido de que os não brancos (negros, latinos) são considerados incivilizados, criminosos, selvagens etc. No Brasil, Juliana Borges (2019BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen, 2019., p. 19) também realizou um trabalho sobre encarceramento em massa. De modo igual aos Estados Unidos, ela observa que, no Brasil contemporâneo, nos presídios, a população negra é sobrerepresentada. Portanto, a política de encarceramento em massa nada mais é que um instrumento usado em prol da privação de liberdade das pessoas negras. Assim, Borges afirma que, no Brasil, dois em cada três presos são negros. Ambas as autoras enfatizam veementemente o peso do racismo nas políticas carcerárias.
  • 15
    Notícias sobre africanos(as) que morreram e continuam morrendo no mar Mediterrâneo, na tentativa de ir para Europa, são muito recorrentes nesses últimos anos. O autor italiano Roberto Saviano se refere ao Mediterrâneo como uma das maiores valas comum no mundo: “La Méditerranée est l’une des plus grandes fosses communes au monde”. As tentativas desesperadas de migração da África e da Ásia para a Europa via Mediterrâneo se intensificaram em 2011 com a Primavera Árabe. Conforme foi publicado em Libération, desde 2014, foram registradas quase 23 mil mortes e/ou desaparecimentos no Mediterrâneo - mais de 80% deles na rota central que liga o norte da África à Itália e Malta. Todavia, há informações que deixam entender que esse número está longe de ser exato porque há navios que desaparecem no mar sem deixar nenhum sobrevivente. As pessoas que estavam nesses navios não chegaram a ser contabilizadas pelos dados estatísticos (KRISTANADJAJA, 2021KRISTANADJAJA, Gurvan. “Naufrage à Calais, une tragédie sans pareille”. Libération, Paris, 24 nov. 2021. Disponível em: https://www.liberation.fr/societe/a-calais-une-tragedie-sans-pareille-20211124_JZ6PRM3W5FA4DIWRGAFQLJG3JE/. Acesso em: 7 mar. 2022.
    https://www.liberation.fr/societe/a-cala...
    ).
  • 16
    Há quase dez anos, uma crise de insegurança sem precedentes está afetando o Haiti. Observa-se a multiplicação de facções criminosas armadas no país. Vários massacres foram perpetrados em muitos bairros periféricos. A situação se complexificou quando o governo haitiano, em conivência com parte da “burguesia” local e com a cumplicidade de sra. Helen Ruth Meagher La Lime, representante da Organização das Nações Unidas (ONU) naquele país, federalizou as diversas facções criminosas sob o nome G9 e aliados. Assim, intensificaram-se os casos de sequestros de pessoas. O sequestro se torna a única indústria lucrativa que funciona no país. Sequestram pessoas dentro de suas casas, no local de trabalho, no hospital, na igreja, na escola, no mercado, na rua etc. As negociações são feitas em dólar e, para cada pessoa sequestrada, exigem-se de 200 mil a 2 milhões de dólares. Ocorre de os sequestradores receberem o dinheiro, acharem pouco e exigirem mais dinheiro. Por vezes, mesmo depois disso tudo, matam o sequestrado. Esse fenômeno inusitado não é estranho ao neoliberalismo que supervaloriza o dinheiro, que exclui todas as formas de solidariedade humana. Sequestradores exibem armas e dinheiro, declarando-se milionários sem nenhum constrangimento ou medo. O Estado haitiano se conforma com esse terror generalizado, que é a maneira tanto como o Estado quanto como as gangues exploram a população civil desarmada. O Estado não se preocupa mais com seu direito de exercer o monopólio da violência. A situação haitiana tem certa semelhança com a observação feita por Mbembe (2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1, 2018., p. 34) em certos países africanos: “Muitos Estados africanos já não podem reivindicar monopólio sobre a violência e sobre os meios de coerção dentro de seu território. Nem mesmo podem reivindicar monopólio sobre seus limites territoriais. A própria coerção tornou-se produto do mercado. […] milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar”. O colapso das instituições estatais haitianas resultou de uma violência de que o próprio Estado é protagonista, instituindo uma economia centrada na violência, na ilegalidade, no kidnapping [sequestro], no tráfico de pessoas. Ter uma arma de fogo é ter em mãos um meio de ganhar dinheiro e ser temido, até “respeitado”. O tráfico de armas é um frutífero mercado transnacional que envolve vários países, em particular os Estados Unidos, a República Dominicana, a Colômbia, entre outros. No Haiti há facções que lutam entre si pelo controle de territórios. Elas matam sem medo, festejam após cada morte. Quanto mais matam, “mais felizes” ficam. “Matamos várias pessoas para a gangue rival” não é repetido como uma frase de terror, mas para afirmar a superioridade de força, capacidade de matar. A banalização da vida naquele país nunca tinha chegado a esse nível. Somente em janeiro de 2022, cinquenta pessoas foram assassinadas (RNDDH, 2022RNDDH - RÉSEAU NATIONAL DE DÉFENSE DES DROITS HUMAINS. “Violation systématique des droits humains en Haïti: Le RNDDH presse l’Etat à reconnaître la gravité de la situation”. RNDDH - Rapport, Port-au-Prince, A22, n. 3, 3 févr. 2022. Disponível em: https://web.rnddh.org/wp-content/uploads/2022/02/3-Rap-Droit-Humains-EPU-et-Janvier-2022-03Fev2022-FR.pdf. Acesso em: 12 abr. 2022.
    https://web.rnddh.org/wp-content/uploads...
    , p. 10). Após o assassinato do ex-presidente Jovenel Moïse, o país está sendo dirigido pelo primeiro-ministro Ariel Henry, que, segundo RNDDH, estaria implicado no assassinato do ex-presidente. Seu governo não tomou nenhuma decisão para resolver o problema da insegurança pública, tampouco para combater a expansão de gangues. A desvalorização da vida e da banalização da morte são naturalizadas ao ponto de escutar no cotidiano que “a esperança de vida no Haiti seria de 24 horas renovável”.

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Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2022
  • Aceito
    08 Out 2023
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