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Suicídios em prisões: Um estudo dos acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Suicide in Prisons: A Study of the Judgments of the Court of Justice of the State of Rio Grande do Sul

RESUMO

Esta pesquisa analisa 14 casos de suicídios sob custódia prisional em acórdãos judiciais do estado do Rio Grande do Sul. Destacam-se fatores situacionais e pessoais identificados nos eventos, bem como crenças dos magistrados acerca da relação entre o Estado e a garantia da integridade dos encarcerados. Os resultados contribuem para a melhor compreensão desses eventos e com agendas de pesquisas acerca das mortes sob custódia prisional.

Palavras-chave:
decisões judiciais; prisão; suicídio; mortes sob custódia; questão penitenciária

ABSTRACT

Suicide in Prisons: A Study of the Judgments of the Court of Justice of the State of Rio Grande do Sul analyzes 14 cases of suicides in prison custody occurred in the state of Rio Grande do Sul. It highlights situational and personal factors identified in the events, as well as the judges’ beliefs about the relationship between the state and the guarantee of the integrity of inmates. The results contribute to a better understanding of these events, as well as to research agendas on deaths in prison custody.

Keywords:
judicial judgments; prison; suicide; deaths under custody; penitentiary issue

Introdução

Pessoas encarceradas que cometem suicídio sob custódia prisional o fazem motivadas por suas condições psíquicas (anteriores ou atuais) ou há fatores e causas atribuíveis às configurações e dinâmicas dos ambientes prisionais? O suicídio sob custódia prisional é um desígnio da vítima que, firme e voluntário, dificulta ao máximo ser obstado pelos agentes do Estado ou haveria circunstâncias que tornam o ato mais provável e previsível?

Tais perguntas, diretrizes desta pesquisa, devem parecer ingênuas ao âmbito dos estudos sociológicos, uma vez que desde 1897, com a publicação de O suicídio por Émile Durkheim (2000DURKHEIM, Émile. O suicídio: Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), entende-se esse ato como significativamente derivado de causas sociais. Elas não o são, entretanto, em face do nível de desconhecimento que servidores do sistema prisional e operadores jurídicos do Rio Grande do Sul (RS) demonstram em relação a esses eventos, conforme apresentaremos ao longo deste texto. Também não são impertinentes ao contexto dos estudos prisionais brasileiros, haja vista a escassa - quase inexistente - atenção que os campos científicos nacionais dedicam ao suicídio sob custódia prisional, tema significativamente abordado em outros países (LLOYD, 1990LLOYD, Charles. Suicide and Self-Injury in Prison: A Literature Review. Londres: Her Majesty’s Stationery Office, 1990.; ZHONG et al., 2021ZHONG, Shaoling et al. “Risk Factors for Suicide in Prisons: A Systematic Review and Meta-Analysis”. Lancet Public Health, vol. 6, pp. 165-174, 2021.).

Embora a produção científica sobre suicídio em outras abordagens e amplitudes esteja crescendo no Brasil, estudos nas áreas da saúde e, em especial, da psicologia ainda predominam, como demonstra o cotejo de revisões de literatura (MORAES e OLIVEIRA, 2011MORAES, Alice Ferry de; OLIVEIRA, Telma Maria de. “Levantamento da produção científica brasileira sobre suicídio de 1996 a 2007”. Biblionline, vol. 7, n. 2, pp. 12-21, 2011.; FREITAS et al., 2013FREITAS, Joanneliese de Lucas et al. “Revisão bibliométrica das produções acadêmicas sobre suicídio entre 2002 e 2011”. Psicologia em Pesquisa, vol. 7, n. 2, pp. 251-260, 2013.). Na revisão de Joanneliese de Lucas Freitas et al. (2013FREITAS, Joanneliese de Lucas et al. “Revisão bibliométrica das produções acadêmicas sobre suicídio entre 2002 e 2011”. Psicologia em Pesquisa, vol. 7, n. 2, pp. 251-260, 2013.), que analisa as produções acadêmicas sobre o tema entre 2002 e 2011, o suicídio apareceu como tema secundário de 22% dos 340 artigos científicos localizados. Fatores de risco e proteção foram abordados em 9%; o comportamento suicida, em 6%; e as motivações, em 1%. O mesmo estudo registra que nesse período a psicologia contribuiu, somando dissertações e teses, com 21% (87) da produção científica identificada nessa categoria de pesquisas; as ciências sociais, com 6% (27); e o direito, com 4% (16). Nenhum destaque é dado às populações sob custódia prisional e seus contextos.

Em nossa etapa de pesquisa e coleta bibliográfica, com busca realizada no banco de teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), utilizando os termos “suicídio”, “suicídios”, “prisão” e “prisões”, localizamos apenas duas dissertações de mestrado sobre o assunto, ambas da área das ciências criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS): Suicídio no sistema carcerário: Análise a partir do perfil biopsicossocial do preso nas instituições prisionais do Rio Grande do Sul, de Andréia Maria Negrelli (2006NEGRELLI, Andréia Maria. Suicídio no sistema carcerário: Análise a partir do perfil biopsicossocial do preso nas instituições prisionais do Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.), e Suicídio de internos em um hospital de custódia e tratamento, de Elizabete Rodrigues Coelho (2006COELHO, Elizabete Rodrigues. “Suicídio de internos em um hospital de custódia e tratamento”. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.). Nos portais Capes e SciELO Brasil encontramos apenas referência à dissertação de Negrelli (2006).

Coelho (2006COELHO, Elizabete Rodrigues. “Suicídio de internos em um hospital de custódia e tratamento”. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.) pesquisou 20 casos de suicídio ocorridos entre 1985 e 2004 no Instituto Psiquiátrico Forense (IPF), em Porto Alegre, capital do RS, por meio da análise de registros clínicos e administrativos. Negrelli (2006NEGRELLI, Andréia Maria. Suicídio no sistema carcerário: Análise a partir do perfil biopsicossocial do preso nas instituições prisionais do Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.), por sua vez, pesquisou 80 suicídios no sistema prisional do RS de 1995 a 2005, analisando prontuários e processos de execução penal. Ambas as autoras se atentaram a variáveis demográficas, clínicas, criminológicas e a fatores associados, como local, data, horário, tentativas anteriores, meio utilizado.

A escassa produção científica no país sobre o tema dificulta a busca na literatura científica nacional dos referenciais teóricos e epistemológicos para tão peculiar construção de objeto de pesquisa: o suicídio sob custódia prisional. Achamos mais promissor, então, recorrer a referenciais internacionais (LLOYD, 1990LLOYD, Charles. Suicide and Self-Injury in Prison: A Literature Review. Londres: Her Majesty’s Stationery Office, 1990.; LIEBLING, 2001LIEBLING, Alison. “Suicides in Prison: Ten Years On”. Prison Service Journal, n. 138, pp. 35-41, 2001.; GUAL, 2019GUAL, Ramiro. “La prisión irresistible: Muertes por autoagresión bajo custodia penitenciaria en Argentina”. Revista de Ciencias Sociales, vol. 32, n. 45, pp. 91-118, 2019.; ZHONG et al., 2021ZHONG, Shaoling et al. “Risk Factors for Suicide in Prisons: A Systematic Review and Meta-Analysis”. Lancet Public Health, vol. 6, pp. 165-174, 2021.).

Neste texto, apresentamos dados, análises e discussões de uma pesquisa exploratória sobre suicídio sob custódia prisional com base em 14 casos ocorridos no RS. Nosso corpus de análise é composto de 16 acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS)1 1 Dois dos eventos resultaram em dois processos distintos, com demandas indenizatórias de diferentes familiares do falecido, motivo pelo qual o número de acórdãos é superior ao de eventos de suicídios analisados. , julgados entre 2 de agosto de 2016 e 30 de setembro de 2019, em apelações de demandas por indenizações devido a mortes de pessoas privadas de liberdade. Trata-se de um recorte temático de um conjunto de 63 decisões com as quais estamos trabalhando em uma pesquisa mais ampla sobre o tema das mortes sob custódia prisional.

Sendo um documento judicial e fonte para esta pesquisa, é importante destacar que o acórdão, segundo o art. 204 do Código de Processo Civil (CPC) brasileiro (BRASIL, 2015), “é o julgamento colegiado proferido pelos tribunais”. Ele é “composto pelos votos de no mínimo três desembargadores, sendo que os votos podem ou não coincidir em suas argumentações e fundamentações” (COACCI, 2013COACCI, Thiago. “A pesquisa com acórdãos nas ciências sociais: Algumas reflexões metodológicas”. Revista Mediações, vol. 18, n. 2, pp. 86-109, 2013., p. 100). Sua estrutura pode variar, não havendo necessária padronização, principalmente entre diferentes tribunais (Ibid.). No entanto, como julgamento/sentença que é, ainda que colegiado, o acórdão tem como elementos e partes essenciais as previstas no art. 489 do CPC:

I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;

III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. (BRASIL, 2015, n.p)

Nesta pesquisa, o período delimitado para a coleta dos documentos levou em consideração o julgamento e a publicação, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), do recurso especial 841.526/RS, em que, com efeito de repercussão geral, a responsabilidade do Estado por tais mortes foi considerada objetiva, no âmbito da teoria do risco administrativo, e foi reafirmado o posicionamento de que o Estado é passível de ser responsabilizado a indenizar danos morais e materiais decorrentes de eventos de suicídio sob custódia prisional (STF, 2016).

Ainda que a pesquisa em acórdãos apresente limitações e peculiaridades no acesso aos dados dos eventos (COACCI, 2013COACCI, Thiago. “A pesquisa com acórdãos nas ciências sociais: Algumas reflexões metodológicas”. Revista Mediações, vol. 18, n. 2, pp. 86-109, 2013.), esse corpus de documentos foi significativo para uma abordagem sociológica exploratória, até mesmo porque, nessa fase do estudo, dedicamo-nos mais a analisar o reconhecimento da prisão em sua dimensão suicidogênica do que a buscar compreensões densas acerca da totalidade etiológica dos suicidas nas prisões. Ele também nos permitiu identificar posturas e crenças dos julgadores quanto à relação entre o Estado e a garantia da integridade física e moral dos encarcerados, conforme o art. 5º, XLIX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

No Brasil, as prisões matam, e essas mortes pouco têm importado ao Estado e à sociedade em geral (CHIES e ALMEIDA, 2019CHIES, Luiz Antônio Bogo; ALMEIDA, Bruno Rotta. “Mortes sob custódia prisional no Brasil. Prisões que matam; mortes que pouco importam”. Revista de Ciencias Sociales, vol. 32, n. 45, pp. 67-90, 2019.). A escassez de estudos no âmbito das mortes sob custódia prisional, de certa forma, acompanha a (in)sensibilidade nacional quanto à questão, não obstante os pesquisadores do campo estejam prestando atenção a outros graves aspectos do “estado de coisas inconstitucional” (STF, 2015, p. 3) em que se encontram nossos sistemas prisionais.

As taxas brasileiras de suicídios sob custódia prisional contribuem para a invisibilidade, a ser enfrentada no âmbito tanto da cognição científica como de seu enfrentamento por meio de políticas públicas.

Ramiro Gual (2019GUAL, Ramiro. “La prisión irresistible: Muertes por autoagresión bajo custodia penitenciaria en Argentina”. Revista de Ciencias Sociales, vol. 32, n. 45, pp. 91-118, 2019.), que tem se ocupado do tema no contexto argentino, identifica naquele país uma taxa anual “que varia entre 7 e 14 por 10.000 personas detidas, valores novamente similares aos registrados no Uruguai - 3 a 14 por 10.000 no período 2010-2018 - e muito superiores às últimas estatísticas atualizadas no Brasil” (p. 94, tradução do autor). Já as cifras para o Conselho da Europa “informam de uma média continental de 5 suicídios por 10.000 personas detidas, valor que ao menos se duplica em certos estados centrais como França, Alemanha, Países Baixos e Inglaterra e Gales” (Ibid., pp. 94-95, tradução do autor). Essa perspectiva se confirma na verificação dos últimos dados oficiais brasileiros, disponibilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen).

O Quadro 1 demonstra que a taxa de suicídios por 10 mil presos no RS se manteve acima da média brasileira, tanto no segundo semestre de 2016 como no primeiro semestre de 2017. Nesses períodos, a taxa era, respectivamente, a quinta e a décima entre as 27 unidades da federação (DEPEN, 2020).

Quadro 1:
Taxas de mortalidade por suicídio sob custódia prisional para cada 10 mil pessoas privadas de liberdade no Brasil e no RS - 1º semestre de 2016 a 1º semestre de 2017

Os Gráficos 1 e 2 mostram os dados oficiais em números absolutos do Brasil e do RS.

Para 2015, o Depen apresentou comparativo da taxa de suicídios por 100 mil pessoas entre a população total do Brasil e a população encarcerada: 5,5 por 100 mil, no Brasil; 22,2 por 100 mil no sistema prisional.

Gráfico 1:
Número total de óbitos e de suicídios sob custódia prisional no Brasil - 1º semestre de 2016 a 2º semestre de 2019

Gráfico 2:
Número total de óbitos e de suicídios sob custódia prisional no RS - 1º semestre de 2016 a 2º semestre de 2019

Comparando os gráficos 1 e 2, convertidos os números absolutos de suicídios como percentuais em relação às mortes sob custódia prisional registradas, identifica-se que no RS os suicídios em contextos carcerários têm significância peculiar no conjunto das mortes registradas, não raras vezes superando o dado médio nacional ou dele se aproximando. Os resultados são mostrados no Quadro 2.

Quadro 2:
Percentual de suicídios sob custódia prisional em relação ao número total de mortes sob custódia prisional registradas no Brasil e no RS - 1º semestre de 2016 a 1º semestre de 2017

Ou seja, não se trata de questão irrelevante, em especial no RS, seja por seus números seja pelo imperativo constitucional de garantia da integridade física e moral dos encarcerados. Ainda, como esclarece a pesquisadora britânica Alison Liebling (apudGUAL, 2019GUAL, Ramiro. “La prisión irresistible: Muertes por autoagresión bajo custodia penitenciaria en Argentina”. Revista de Ciencias Sociales, vol. 32, n. 45, pp. 91-118, 2019., p. 99), um preso suicida pode ser difícil de ser previsto, mas uma situação suicida é muito mais previsível.

Delineamentos teóricos e metodológicos

A pesquisa sobre mortes sob custódia prisional no Brasil, bem como em outros países da América Latina, enfrenta significativos desafios e obstáculos, incluindo a quantidade, a qualidade e a credibilidade das fontes de dados que podem ser acessados. Gual (2016GUAL, Ramiro. “La muerte bajo custodia penal como objeto de investigación social: Una perspectiva regional”. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), vol. 2, n. 2, pp. 29-48, 2016.), tratando do tema no âmbito da Argentina, do Brasil e do Uruguai, leva-nos a reconhecer que os dados oficiais nem sempre produzem estatísticas completas do fenômeno. Além disso, há problemas como a falta de critérios para medição dos dados, fragilidades, inconsistências e a falta de consenso teórico na compreensão e categorização das dimensões várias do que se pode agrupar sob a expressão “mortes sob custódia prisional”, que pode caracterizar ou não uma morte violenta, por exemplo. Assim, há incompletudes e lacunas com consequências graves para as políticas de serviços penais e a viabilidade de pesquisas que contribuam para seu desenvolvimento e efetivação, sobretudo na perspectiva de garantia da vida e dos demais direitos humanos devidos às pessoas privadas de liberdade.

Se carece de estatística homogênea e confiável sobre a maior violação de direitos que a privação de liberdade pode supor: o falecimento de pessoas sob custódia penal nos países da região. A gravidade da ausência de estatísticas exaustivas, confiáveis e comparáveis sobre uma temática tão urgente, reforça-se por se tratar de um fenômeno quantificável, e com um índice menor de cifra negra que outras problemáticas também urgentes, como a vigência de agressões físicas nos estabelecimentos penitenciários, o recurso ao isolamento em solitárias, a falta de assistência médica o a inacessibilidade a direitos econômicos, sociais e culturais (Ibid., p. 30, tradução do autor).

Aos suicídios se soma, ao menos no Brasil, a ausência de protocolos de investigação dos eventos, o que permite que casos de mortes sob custódia prisional sejam apurados superficialmente e até mesmo registrados como tendo motivação indeterminada. No conjunto mais amplo de acórdãos que estamos analisando (63), em pesquisa ainda em desenvolvimento sobre mortes sob custódia prisional, localizamos um exemplo dessa situação. O preso foi encontrado morto na cela de triagem do Presídio Central de Porto Alegre em 16 de agosto de 2009. A demanda de indenização movida por familiares tramitou e se resolveu, apesar das versões conflitantes: o atestado de óbito, que registrou a causa da morte como indeterminada, permitiu que surgissem dúvidas entre a hipótese de homicídio, sustentada pelos familiares, e a de mal súbito, defendida pelo Estado (TJRS, 2018c).

Assim, para a composição do conjunto de casos deste segmento da pesquisa, optamos por trabalhar com os acórdãos que explicitamente reconheceram o suicídio como a causa da morte, totalizando 16 acórdãos e 14 falecimentos.

O caráter público desses documentos, por um lado, facilita o acesso aos dados, em especial por se tratar de eventos que tendem a ser invisibilizados pela ausência ou inacessibilidade de outras fontes. Contudo, por outro lado, eles não têm obrigação de apresentar a totalidade das informações, muitas sendo consideradas irrelevantes para a decisão jurídica do caso, o que fragiliza algumas análises. Dos 16 acórdãos, por exemplo, apenas um registrava a idade do preso. Ainda assim, “podem ser compreendidos como uma narrativa, construída pela e na interação dos diversos atores e atrizes que compõem o processo (desembargadores, advogados, partes, testemunhas)” (COACCI, 2013COACCI, Thiago. “A pesquisa com acórdãos nas ciências sociais: Algumas reflexões metodológicas”. Revista Mediações, vol. 18, n. 2, pp. 86-109, 2013., p. 102). A necessidade de a decisão judicial ser fundamentada, dialogando com as versões e argumentos contrapostos que as partes sustentam e com os elementos probatórios trazidos aos autos no decorrer do processo, não apaga “completamente o discurso dos outros atores que não o ator estatal” (Ibid., p. 102).

Para além dessa peculiaridade na construção narrativa, outra potencialidade do uso de acórdãos em pesquisas, como destacado por Fabiana Luci de Oliveira e Virgínia Ferreira da Silva (2005OLIVEIRA, Fabiana Luci de; SILVA, Virgínia Ferreira da. “Processos judiciais como fonte de dados: poder e interpretação”. Sociologias, n. 13, pp. 244-259, 2005.), está na possibilidade de, por meio deles, buscar-se “a lógica e os códigos que estão informando as palavras para inferir sobre grupos sociais específicos” (p. 245):

Como se trata de um documento oficial, a questão do poder aparece porque o Estado pode ser considerado o verdadeiro produtor do que está escrito, encobrindo a expressão de qualquer grupo social que esteja contida no documento em forma de um depoimento, por exemplo, ou mesmo na argumentação do juiz que, além de membro de um dos poderes do Estado também pode ser visto como membro de uma corporação profissional (Ibid., p. 245).

Adensando tal perspectiva, com suporte nas contribuições teórico-sociológicas de Pierre Bourdieu (2014BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.), acórdãos devem ser considerados, para além de atos jurídicos, atos de Estado: “atos políticos com pretensões a ter efeitos no mundo social” que “devem sua eficácia à sua legitimidade e à crença na existência do princípio que os fundamenta” (Ibid., p. 39). Os desembargadores que os produzem ocupam posições elevadas, tanto no campo jurídico, no qual se disputa a monopolização “do direito de dizer o direito” (Idem, 2003, p. 212), como no campo do Estado, no qual estão em disputa e em operação “recursos específicos que autorizam seus detentores a dizer o que é certo para o mundo social, a enunciar o oficial e a pronunciar palavras que são, na verdade, ordens, porque têm atrás de si a força do oficial” (Idem, 2014, p. 66).

Analisar acórdãos, portanto, permite acessar como o Judiciário, na sua relação com o Estado e participação no campo deste, reforça concepções e diretrizes de ordem social e de direitos de cidadania. Ou seja, como, no tema específico, reconhece e valora a vida daquele que está sob custódia de seu poder de punir.

No corpus documental reunido para esta pesquisa, informações suficientes foram preservadas, em especial para permitir a abordagem sociológica no nível exploratório proposto. Na análise dos casos, partimos da recomendação de Durkheim (2000DURKHEIM, Émile. O suicídio: Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.) quanto ao que concerne à sociologia:

As causas por cujo intermédio é possível agir, não sobre os indivíduos isoladamente, mas sobre o grupo. Por conseguinte, entre os fatores dos suicídios, os únicos que lhe concernem [ao sociólogo] são os que fazem sentir sua ação sobre o conjunto da sociedade (Ibid., p. 25).

Cientes das limitações de nosso conjunto de dados, bem como das peculiaridades desses eventos, organizamos os dados disponíveis conforme os critérios e fatores já identificados em estudos anteriores. Uma recente revisão de literatura (ZHONG et al., 2021ZHONG, Shaoling et al. “Risk Factors for Suicide in Prisons: A Systematic Review and Meta-Analysis”. Lancet Public Health, vol. 6, pp. 165-174, 2021.), em que foram analisados 77 estudos oriundos de 27 países, incluindo um total de 35.351 suicídios, identificou os cinco fatores mais fortes associados ao risco de suicídios sob custódia prisional: ideação suicida, tentativa anterior, histórico de autolesão, ocupação de cela individual e diagnóstico psiquiátrico atual. Diagnóstico de depressão e ausência de contatos e visitas externas são, também, fatores destacados no estudo.

Esses dados qualificam e reforçam aspectos identificados em revisões de literatura anteriores, como a de Charles Lloyd (1990LLOYD, Charles. Suicide and Self-Injury in Prison: A Literature Review. Londres: Her Majesty’s Stationery Office, 1990.), que analisou 13 pesquisas empíricas - sete nos EUA, quatro no Reino Unido, uma na Austrália e uma no Canadá - destacando fatores demográficos, logísticos e psicológicos, e em pesquisas mais específicas. Liebling (2001LIEBLING, Alison. “Suicides in Prison: Ten Years On”. Prison Service Journal, n. 138, pp. 35-41, 2001.), revisitando dois estudos britânicos, apresenta um perfil de vulnerabilidade ao suicídio sob custódia prisional, em que inclui questões relativas ao histórico de relações com o sistema de justiça criminal, histórico de vida, experiência na prisão e sob custódia, contatos externos e com familiares, além de outras mais gerais no plano emocional, como sentimentos de desesperança e pensamentos suicidas. Já para a realidade do Sistema Penitenciário Federal da Argentina, Gual (2019GUAL, Ramiro. “La prisión irresistible: Muertes por autoagresión bajo custodia penitenciaria en Argentina”. Revista de Ciencias Sociales, vol. 32, n. 45, pp. 91-118, 2019.) pôs em evidência fatores pessoais, situacionais e eventos desencadeantes. Nas duas pesquisas no contexto do RS (COELHO, 2006COELHO, Elizabete Rodrigues. “Suicídio de internos em um hospital de custódia e tratamento”. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.; NEGRELLI, 2006NEGRELLI, Andréia Maria. Suicídio no sistema carcerário: Análise a partir do perfil biopsicossocial do preso nas instituições prisionais do Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.), foram analisadas variáveis demográficas, clínicas, criminológicas e fatores associados.

Os acórdãos que compõem nosso corpus de análise favoreceram dados referentes aos fatores situacionais e/ou logísticos dos eventos, bem como informações de antecedentes psicológicos e emocionais.

Os acórdãos quanto à decisão jurídica

Entre as 14 mortes, 13 apresentaram o método da asfixia-mecânica (enforcamento). Na outra, o preso cortou seu pescoço se utilizando de um pedaço de lajota quebrado do piso do local no qual se encontrava. O enforcamento é o método mais usual nos suicídios sob custódia prisional, como demonstra a revisão de Lloyd (1990LLOYD, Charles. Suicide and Self-Injury in Prison: A Literature Review. Londres: Her Majesty’s Stationery Office, 1990.), tendo variado entre 70 e 96% nos 13 estudos que analisou.

Considerando como favoráveis as decisões jurídicas que deferiram total ou parcialmente a demanda indenizatória dos familiares do preso falecido e como desfavoráveis aquelas de sentido inverso (indeferimento), verifica-se que a ampla maioria dos processos, em ambas as instâncias, teve decisões desfavoráveis. Houve apenas duas alterações de julgamento entre a primeira e a segunda instância, uma em cada sentido: de favorável a desfavorável e vice-versa.

Quadro 3:
Processos de indenização por suicídios sob custódia prisional tramitados no TJRS, conforme decisão em primeira e segunda instâncias e modificação no segundo grau de jurisdição - de 31 de julho de 2016 a 30 de setembro de 2019

Os dados do Quadro 3 evidenciam uma significativa resistência dos magistrados sul-rio-grandenses em reconhecer o suicídio sob custódia prisional como um evento pelo qual o Estado é passível de ser responsabilizado. Essa orientação destoa das perspectivas consolidadas pelo STF, em especial no recurso especial 841.526/RS, cujo processamento de origem se deu, justamente, no RS.

Os processos são oriundos de dez comarcas de primeira instância, o que se justifica tanto pelo domicílio de residência dos demandantes como pela dispersão territorial dos estabelecimentos prisionais nesse estado. Como juízes nessas comarcas, foram 13 magistrados (sete homens e seis mulheres). No TJRS, foram julgados em três câmaras cíveis, tendo a décima decidido a maioria deles (nove). Também a maioria (dez) foi finalizada em 2019. Na segunda instância, 14 desembargadores se envolveram nos julgamentos: seis atuaram como relatores e os demais, apenas na composição das câmaras. Como relatores, se destacam o Desembargador 82 2 Por critérios de ética em pesquisa, não obstante ter como fontes documentos públicos, manteremos o anonimato em relação às identidades dos(as) desembargadores(as). , com seis processos, e os desembargadores 2 e 3, com três processos cada um. No nível de análise que os documentos permitem, o gênero dos magistrados não se mostrou relevante para o sentido (favorável ou desfavorável) das decisões.

Todas as votações no TJRS foram por unanimidade, com os demais componentes acompanhando o posicionamento da relatoria. A limitação do corpus também nesse aspecto não autoriza maiores reflexões, ainda que a unanimidade ou não nas votações seja uma das “variáveis organizacionais no próprio grupo de decisão” (BOURDIEU, 2003BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003., p. 223) e que, na dinâmica dos campos jurídicos, impactem a elaboração dos atos de decisão. No conjunto maior dos 63 acórdãos acerca de mortes sob custódia prisional, detalhamentos dessa ordem se tornaram mais evidentes.

Quanto ao posicionamento dos representantes do Ministério Público, que nesse tipo de processo atuam na condição de “fiscais da lei”, 14 acórdãos permitem sua identificação. Em 13 deles o parecer foi desfavorável à demanda indenizatória, revelando também a resistência dos membros da instituição à responsabilização do Estado nos casos de suicídios sob custódia prisional.

Quadro 4:
Processos de indenização por suicídios sob custódia prisional tramitados no TJRS, conforme a câmara cível na segunda instância e ano de julgamento - de 31 de julho de 2016 a 30 de setembro de 2019
Quadro 5:
Processos de indenização por suicídios sob custódia prisional tramitados no TJRS, conforme câmara cível na segunda instância e ano de julgamento - de 31 de julho de 2016 a 30 de setembro de 2019

O argumento principal para que a decisão adote o sentido desfavorável ou favorável à responsabilização do Estado se concentra no reconhecimento, ou não, de falha no dever de vigilância e de proteção à integridade física e moral do encarcerado. Via de regra, ele é construído a partir da conjugação de algumas conclusões decorrentes da interpretação dos elementos probatórios trazidos aos autos, que podem ser agrupadas conforme o Quadro 6, em que se registram suas ocorrências quanto aos 12 eventos com decisões desfavoráveis.

Quadro 6:
Argumentos para fundamentar a decisão desfavorável à responsabilização do Estado por número de casos nos quais são explicitados

Nesse nível de análise, identifica-se que as decisões jurídicas partiram da compreensão de que o suicídio é um evento que se deve compreender, analisar e explicar a partir de motivações e circunstâncias pessoais. Elas mostram, assim, resistência ao caráter situacional e sociológico dos eventos, quando não sua completa negação. Os dados a seguir contribuirão para se completar essa análise e suas repercussões.

Fatores situacionais e pessoais

Durkheim (2000DURKHEIM, Émile. O suicídio: Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.) dedica poucas linhas de sua obra sobre o suicídio em prisões, mas registra o que os estudos da época já identificavam e que seria reforçado em pesquisas posteriores: “a detenção desenvolve uma inclinação muito forte ao suicídio” (p. 448). Diz ainda que, “[m]esmo não se levando em conta os indivíduos que se matam assim que são presos e antes de sua condenação, resta um número considerável de suicídios que só podem ser atribuídos à influência exercida pela vida na prisão” (Ibid., pp. 448-449). Chama atenção o fato de o autor sugerir uma significância aos suicídios que ocorrem assim que os agentes são presos e antes de sua condenação.

Lloyd (1990LLOYD, Charles. Suicide and Self-Injury in Prison: A Literature Review. Londres: Her Majesty’s Stationery Office, 1990.), em sua revisão de literatura, registra:

Muitos estudos encontraram uma taxa significativamente maior de suicídios na população de prisão preventiva do que na população condenada. Isso geralmente é explicado em termos do choque repentino do encarceramento e das incertezas que cercam o julgamento e a sentença (Ibid., p. 10, tradução do autor).

Para o nosso conjunto de 16 casos, em nove deles (cerca de 2/3) temos informações de que a prisão era recente (no mesmo dia para um deles) ou que o apenado havia sido transferido nos dias anteriores para o estabelecimento penal em que cometeu o suicídio.

Liebling (2001LIEBLING, Alison. “Suicides in Prison: Ten Years On”. Prison Service Journal, n. 138, pp. 35-41, 2001.) também chama atenção para essas perspectivas dos fatores situacionais: “Cerca de um terço de todos os suicídios em prisões ocorrem logo no início da custódia (na primeira semana)” (p. 36, tradução do autor). Fatores de riscos situacionais, como o início do encarceramento, o isolamento e o recebimento de más notícias quanto à situação jurídica ou aos contatos e vínculos externos podem entrar em relação com os fatores pessoais e favorecer o evento (Ibid.).

No estudo de Negrelli (2006NEGRELLI, Andréia Maria. Suicídio no sistema carcerário: Análise a partir do perfil biopsicossocial do preso nas instituições prisionais do Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.), dez (12,5%) dos 80 suicídios ocorreram no período de um a nove dias do encarceramento; outros 12 (15%) ocorreram no intervalo entre um e seis meses de prisão. Coelho (2006COELHO, Elizabete Rodrigues. “Suicídio de internos em um hospital de custódia e tratamento”. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.) registra que cinco dos 20 casos analisados no IPF aconteceram com menos de um mês de ingresso na instituição.

O local - instituição e ambiente no interior da prisão - também se destaca como um fator de risco:

Pesquisas têm geralmente encontrado uma proporção maior de suicídios em hospitais/acomodações psiquiátricas e em segregação ou isolamentos. Entretanto, isto não é surpreendente, uma vez que os presidiários que se julga estar em risco de suicídio são frequentemente colocados em acomodações hospitalares ou em isolamento (LLOYD, 1990LLOYD, Charles. Suicide and Self-Injury in Prison: A Literature Review. Londres: Her Majesty’s Stationery Office, 1990., p. 18, tradução do autor).

Para nosso conjunto, identificou-se dois casos ocorridos no IPF, um no segundo dia após a internação e outro após cinco meses; outros dois casos ocorreram pouco tempo depois de transferências para o Presídio de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc); quatro suicídios foram cometidos por presos que cumpriam pena em celas individuais ou haviam sido isolados no dia do evento. Para além de se considerar que transferências de estabelecimentos prisionais significam fatores de ampliação de estrese, em especial quando são para presídios considerados de maior segurança ou instituições psiquiátricas, dois casos nos permitem identificar alterações desfavoráveis aos presos quanto a suas situações jurídicas e de execução penal imediatamente antecedentes aos eventos: um deles havia regredido do regime semiaberto para o fechado, e o outro estava recém-preso devido à conversão de uma pena restritiva de direitos em privativa de liberdade.

Quanto aos fatores pessoais e psicológicos, os elementos registrados nos acórdãos - excluindo-se para essa identificação as circunstâncias alegadas exclusivamente pelos familiares demandantes - permitem compor o Quadro 7.

Quadro 7:
Argumentos para fundamentar a decisão desfavorável à responsabilização do Estado por número de casos nos quais são explicitados

Convém lembrar que a atuação de fatores pessoais e psicológicos não é algo estranho à compreensão e explicação sociológica do suicídio. Durkheim não deixou de registrar que

[s]em dúvida, o suicídio só é possível se a constituição dos indivíduos não o recusa. No entanto, a condição individual que lhe é mais favorável consiste, não numa tendência definida e automática (salvo no caso dos alienados), mas numa disposição geral e vaga, suscetível de tomar formas diversas conforme as circunstâncias, que embora permita o suicídio não o implica necessariamente e, por conseguinte, não o explica (DURKHEIM, 2000DURKHEIM, Émile. O suicídio: Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 99).

Como reforço a tal perspectiva, a revisão de literatura de Zhong et al. (2021ZHONG, Shaoling et al. “Risk Factors for Suicide in Prisons: A Systematic Review and Meta-Analysis”. Lancet Public Health, vol. 6, pp. 165-174, 2021.) identifica, entre fortes fatores associados ao risco de suicídios sob custódia prisional, a ideação suicida, o diagnóstico de depressão, a tentativa anterior e o diagnóstico psiquiátrico atual. No discurso dos magistrados, tais reconhecimentos são, entretanto, via de regra manejados para fortalecer a convicção na responsabilidade individual do preso em relação ao evento e seu desfecho, bem como na ausência de nexo causal entre a situação do encarceramento com o suicídio.

O Desembargador 8, em ambos os acórdãos (TJRS, 2019b, 2019c) em que, como relator, julga demandas de familiares de M.F.S.R., que recentemente havia recebido notícia de ter contraído o vírus da imunodeficiência humana (HIV) e se enforcou em uma cela individual da Penitenciária Estadual de Charqueadas em 8 de fevereiro de 2010, consigna:

É verdade que havia notícia de ter contraído HIV, o que lhe preocupava. Mas isso, por si só, não denota qualquer aspecto suicida. Aliás, vários apenados são HIV positivo e, nem por isso, presume-se o risco de morte por suicídio (TJRS, 2019b, p. 7; TJRS, 2019c, p. 7).

Em relação a outro caso, o enforcamento de um preso com histórico de depressão que havia recentemente regredido do regime semiaberto para o fechado, ocorrido em 18 de maio de 2007 na Penitenciária Modulada de Uruguaiana, o mesmo Desembargador 8 agrega em seu voto a manifestação do promotor de Justiça que atuou em primeira instância:

Em relação ao estado anímico de H.3 3 Por critérios de ética em pesquisa registraremos, nas citações de trechos dos acórdãos, apenas as iniciais das pessoas privadas de liberdade mencionadas e envolvidas nos eventos. , não há nada a evidenciar que a depressão pudesse levá-lo à prática do suicídio. Além disso, é comum em situações de prisão, como frisado pela psicóloga em Juízo, que o preso tenha depressão, como resultado do isolamento a que é submetido contra sua vontade, também porque ninguém deseja ser preso, não restando demonstrado que estivesse em surto a ponto de se matar (...). Importante salientar ainda que a depressão, por si só, não é suficiente para demonstrar a propensão ao suicídio, sendo que isso ocorre, geralmente, pela soma de diversos fatores, o que não veio demonstrado no processo (Idem, 2019d, p. 10).

Já no processo referente ao suicídio de L.F.M por enforcamento, em 11 de novembro de 2011, na Penitenciária de Montenegro, foi a própria defesa do Estado que trouxe aos autos o argumento da depressão que acometia o preso, para fins de sustentar a ausência de nexo de causalidade a impor a responsabilidade (Idem, 2017b, p. 6). No caso, o argumento contrasta com a demanda do familiar, que sustenta ter seu irmão sido vítima de homicídio - motivação de morte sob custódia prisional que, conforme nosso corpus de pesquisa mais amplo, obtém com mais frequência (22 dos 63 acórdãos) desfecho favorável à demanda indenizatória.

Ainda nesses destaques, registra-se o argumento do Desembargador 3 - que votou favoravelmente em dois julgamentos como relator - em um processo em que se posiciona desfavorável à responsabilização do Estado:

In casu, o filho da autora cometeu suicídio dentro da cela em que se encontrava custodiado. Para tal, usou um pedaço de corda destinado ao varal de roupas. Cometeu o desatino enquanto os colegas de confinamento dormiam. Ou seja, dentro de uma situação de normalidade (para a condição de usuário do sistema prisional) a detento tirou a própria vida (Idem, 2019e, p. 7).

Os atores jurídicos mencionados demonstram desconhecer a própria conclusão lógica e científica do que sustentam, mesmo quando recorrem a um discurso com retórica pretensamente sofisticada para fundamentar suas opiniões (como no caso do promotor de Justiça citado pelo Desembargador 8). Quando consignam que a depressão, por si só, não é suficiente para demonstrar a propensão ao suicídio, ou que ter contraído HIV, também por si só, não denota qualquer aspecto suicida, alegando que vários apenados são soropositivos e nem por isso se presume o risco de morte por suicídio, verificam que os suicídios ocorrem, mas deixam de analisar outras circunstâncias presentes nos autos atinentes aos fatores situacionais e sociológicos. Assim, produzem atos de decisão jurídica desprovidos de fundamentação científica e consolidam opinião e senso comum como a resposta mais frequente do Poder Judiciário a esses eventos.

Aliás, não nos parece impróprio sustentar que os dados presentes nos acórdãos nos permitem, inclusive, aproximar os eventos analisados dos tipos sociológicos de suicídio propostos por Durkheim (2000DURKHEIM, Émile. O suicídio: Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.). O suicídio egoísta é aquele em que há o “enfraquecimento da integração social” e a “individuação descomedida” (Ibid., pp. 258-259). Por vezes chamado de suicídio depressivo, ele “tem como causa os homens já não perceberem razão de ser na vida” (Ibid., p. 329). Já o suicídio anômico “tem como causa o fato de a sua atividade [do agente] se desregrar” (Ibid., p. 329).

Prisão recente, transferências e notícias adversas na execução penal favorecem que, nas prisões em que “há um estado coletivo que inclina (...) os detentos ao suicídio tão diretamente quanto o que pode fazer a mais violenta das neuroses” (Ibid., p. 159), essas formas de suicídio encontrem indivíduos com constituições que não as recusem.

Vigiar, prevenir, proteger

Em 3 de dezembro de 2014, M.A.S. estava sozinho na sala da enfermaria da Penitenciária Modulada de Ijuí. Usando fragmentos de cerâmica de uma lajota que quebrou, cortou seu pescoço. Ouvida na instrução do processo em primeira instância, a psicóloga lotada no estabelecimento

referiu que M.A.S. desceu para a enfermaria e solicitou ficar isolado, pois alegou ter algumas inimizades. Ele disse que estaria correndo perigo e aparentava estar com medo. Atendeu o apenado três vezes. Não identificou nenhum fator que pudesse indicar o suicídio. Ele tinha sido atendido por médico e foi medicado com antidepressivo. É psicóloga há dez anos. O atendimento que fez com M.A.S. foi muito pequeno para formar um diagnóstico (TJRS, 2019a, p. 8).

Dois presos, companheiros de cela de M.A.S., também testemunharam. Eles confirmam tentativas anteriores de suicídio e também que M.A.S. foi levado para a enfermaria, em isolamento, pois a “administração do presídio sabia da situação” (Ibid., p. 9). Três agentes penitenciários são ouvidos nos autos.

Agente penitenciário 1: No dia do seu plantão, foi chamado e foi visto que M.A.S. tinha tentado se matar com uma corda no pescoço. Estava muito nervoso. Tinha um corte pequeno no pescoço. Ele foi levado no apoio e fez atendimento. Depois, foi levado ao SMS para fazer curativo. (...) M.A.S.tocou fogo em colchão. Quando um preso tenta suicídio, é levado para atendimento psicológico. (...) Na enfermaria, M.A.S.ficou em isolamento (Ibid., p. 10).

Agente penitenciário 2: O preso deu entrada vindo de outro módulo e foi levado para atendimento. Depois, ficou na enfermaria, isolado. Foram feitos todos os procedimentos, sendo atendido pelo médico da modulada e psicóloga. Foi medicado. (...). M.A.S. estava isolado na enfermaria. M.A.S. estava com algum problema (Ibid., pp. 10-11).

Agente penitenciária 3: No dia que estava de plantão, foi chamada sob alegação de que ele tinha se cortado. (...) Passaram M.A.S. para a frente. Ele estava abalado, nervoso. (...) Ele foi levado para o modulo de apoio. Encaminhado para psicóloga, com quem ele já tinha tido acompanhamento (Ibid., p. 11).

Julgada em primeira instância, a demanda de responsabilização do Estado foi indeferida. O magistrado, em síntese, considerou que

foi dado atendimento a M.A.S., tanto em seus ferimentos físicos quanto encaminhamento a consulta com psicólogo. (...) M.A.S. utilizou força externa no piso da cela da enfermaria e usou um fragmento de cerâmica oriundo do arrancamento para se ferir. Ou seja, quebrou o piso para produzir utensílio apto ao suicídio. Não foi utilizado material que estava à sua disposição na cela onde colocado. Ora, nesse contexto, não há como atribuir à parte ré [Estado] participação no evento, no sentido de tê-lo propiciado com sua atuação. Pode-se considerar imprevisível aos agentes que M.A.S. fosse quebrar o piso da cela para fazer um objeto com o qual se suicidaria (Ibid., p. 13).

Adotando integralmente os fundamentos da sentença de primeira instância, a Desembargadora 2 vota pela manutenção do indeferimento da responsabilização do Estado e denegação do pleito indenizatório. Com os votos “de acordo” dos outros dois desembargadores, o julgamento se conclui em 27 de março de 2019.

Às 10h15min de 18 de maio de 2017, na Penitenciária Modulada Estadual de Uruguaiana, H.S.J. foi encontrado morto em sua cela, tendo usado como forca um lençol amarrado na grade da janela - pela narrativa, é de se presumir que cumpria pena em cela individual. O processo que pleiteou a indenização do Estado foi movido por filhos menores de H.J.S, representados pela genitora. A instrução em primeira instância colheu importante depoimento da psicóloga que atuava no estabelecimento prisional.

Testemunha: (...) e eu lembro assim que foi uma pessoa que eu atendi várias vezes, inclusive a gente fez encaminhamento... (...) a gente fez encaminhamentos para a rede municipal... inclusive na semana antes do suicídio dele, ele teve uma consulta psiquiátrica, né? e inclusive no dia em que ele se suicidou, eu lembro que eu fui até o módulo V1, que é onde ele se encontrava, e eu ia fazer o atendimento naquela semana. Não lembro se foi no dia anterior ou uns dois dias antes ele havia tido a consulta pra rever a questão da medicação (...)No caso dessa pessoa, eu lembro que ele… o problema dele era questão de depressão, em função do aprisionamento e tudo o mais, e até a gente pensou em até buscar ajuda com medicação pra ele. Por isso que a gente encaminhou ele pro psiquiatra.

Juiz: A senhora sabe se ele chegou a ser atendido?

Testemunha: Sim, ele foi atendido.

Juiz: E ele estava sendo medicado?

Testemunha: Sim, na época ele recebeu a medicação… eu não lembro assim da logística, mas eu lembro que eu fui; eu fiz o encaminhamento dele pro psiquiatra e nos próximos dias eu fui atendê-lo pra ver como é que foi a consulta. Só que aí eu não consegui ter esse retorno porque ele já havia se suicidado.

(...)

Procurador da parte ré: Nesses atendimentos, em algum momento ele falou em suicídio ou ele… tinha como de alguma forma...

Testemunha: Como é a questão da depressão, a gente não sabe o que que pode acontecer com a pessoa, e estando naquele lugar onde ele estava, que é uma penitenciária, então a questão da vulnerabilidade dele é muito grande lá dentro.

Juiz: Ele chegou a verbalizar nessa consulta que ele tinha o propósito do suicídio?

Testemunha: Não, não, que eu lembre não.

(...)

Procurador da parte ré: Ele não verbalizava, ele não dizia que tinha a intenção de se matar?

Testemunha: Não.

Procurador da parte ré: Ele tava triste, na verdade uma depressão…

Testemunha: Isso, em função de ter cumprido pena. E também eu lembro que ele tinha ido pro semiaberto e retornado lá pra modulada, numa nova condenação. Acho que teria sido alguma coisa assim que tinha abalado ele, que ele tava de novo naquele espaço (Idem, 2019d, pp. 8-9).

Também um agente penitenciário prestou depoimento e confirmou o histórico de H.J.S: “Ele era um preso que precisava de cuidados, tomava medicamentos, isso eu lembro; nós sempre cuidávamos para que ele não tivesse nenhum problema de surto ou alguma coisa assim” (Ibid., p. 10). Em primeira instância, a demanda pela responsabilização do Estado foi indeferida, com parecer nesse mesmo sentido por parte do promotor de Justiça. No acórdão, o Desembargador 8 assim encaminha a fundamentação de seu voto: “É verdade que havia um histórico de depressão. Mas isso, por si só, não denota qualquer aspecto suicida. O detento vinha recebendo tratamento adequado para isso” (Ibid., p. 15). Ele elenca que “não havia circunstância anterior a indicar a necessidade de maior cuidado com o detento, sob a perspectiva de provável suicídio” (Ibid., p. 14). E acrescenta:

Não havia qualquer indicação sobre o perigo de que o preso cometeria este ato. Sobre o estado psicológico da vítima, não havia elemento a indicar que o fato ocorreria. De outro lado, o desígnio da vítima teria sido firme e não poderia ser obstado pelos agentes do Estado. Significa que inexistia circunstância a indicar a necessidade de cuidado especial em relação ao preso.

Se é assim, não pode ser reconhecida a presença de falha ou defeito no serviço prestado pelos agentes penitenciários.

A relação causal entre a conduta dos agentes do demandado e o resultado não está presente. Isso porque o fato ocorreu pela vontade exclusiva do preso, isto é, decorreu de ato voluntário da própria vítima (Ibid., pp. 16-17).

Em 30 de maio de 2019, por decisão unânime, o TJRS confirma a decisão de primeira instância, em acórdão desfavorável à responsabilização do Estado e à indenização dos familiares de H.J.S..

Ambos os casos aqui brevemente relatados podem ser considerados os mais bem detalhados do conjunto analisado. Eles evidenciam como diferentes atores do sistema prisional se relacionam com os fatores pessoais e situacionais que permitem a previsibilidade de um suicídio sob custódia prisional e como se isenta o Estado, por meio de seus agentes, de a esses aspectos se atentar, para além de uma prestação de serviços meramente protocolar.

Nesse sentido, as psicólogas atendem os presos, que já atenderam outras vezes, percebem seus estados emocionais alterados, mas ou os atendimentos são insuficientes para formar um diagnóstico ou se trata de uma penitenciária muito grande; além do mais, eles já estão medicados e serão isolados! Os agentes penitenciários sabem dos históricos, mas seus papeis se restringem a levar os presos ao atendimento psicológico e os isolar, pois é isso que a lei lhes ordena fazer. Foi exatamente esse aspecto legal que um procurador do Estado enfatizou a respeito de outro caso: “[A] lei não exige que os agentes penitenciários saibam prever o imprevisível e impulsivo suicídio, sendo o Estado responsabilizado apenas por omissão no cumprimento da lei” (TJRS, 2018b, p. 4).

Os casos analisados sugerem que a responsabilização do Estado ocorre apenas em situações com evidências de risco em nível máximo, sendo, portanto, praticamente impossível admitir que sejam negligenciadas.

Os dois únicos eventos que obtiveram desfecho favorável ocorreram no IPF. Em 26 de fevereiro de 2012, E.M.F. foi encontrado morto por enforcamento na cela de triagem da instituição, para onde havia sido transferido no dia 24 do mesmo mês. Já R.P.P.R. se enforcou em 8 de setembro de 2013. Em surto, havia sido transferido para o estabelecimento em abril daquele ano. Ambos os processos (TJRS, 2017a, 2018a) tiveram o Desembargador 3 como relator no TJRS. Ele consignou aquilo que também parece ser pertinente a uma boa parte dos demais casos.

“Ora”, não há necessidade de ser especialista em psicologia ou psiquiatria para vislumbrar perigo de que um paciente como o familiar dos autores pudesse cometer algum ato contra a sua própria vida. Os documentos trazidos com a inicial dão conta do histórico de problemas psiquiátricos do falecido (Idem, 2017a, p. 11; TJRS, 2018a, p. 13).

Não obstante essa percepção, convém lembrar que o mesmo Desembargador 3, em outro acórdão, havia registrado, em voto desfavorável à responsabilização do Estado, que “dentro de uma situação de normalidade (para a condição de usuário do sistema prisional) o detento tirou a própria vida” (Idem, 2019e, p. 7).

No Brasil, o STF já reconheceu que no sistema prisional há um “estado de coisas inconstitucional” sistêmico, pois “assiste-se ao mau funcionamento estrutural e histórico do Estado - União, estados e Distrito Federal, considerados os três poderes - como fator da violação de direitos fundamentais dos presos e da própria insegurança da sociedade” (STF, 2015, p. 28). Assim, a elasticidade com a qual os operadores do campo jurídico operam a noção de “normalidade para a condição de usuário do sistema prisional” (Ibid., p. 28) é, sem dúvidas, contrastante com a racionalidade civilizada que se espera do poder público. Ainda que aqui não se advogue em busca do bom presídio - o que em nossa percepção é um mito -, é de se reconhecer que vigiar, prevenir e proteger não são atividades incompatíveis e excludentes entre si em um sistema punitivo de garantias.

Todos os estudos que subsidiaram esta pesquisa (LLOYD, 1990LLOYD, Charles. Suicide and Self-Injury in Prison: A Literature Review. Londres: Her Majesty’s Stationery Office, 1990.; LIEBLING, 2001LIEBLING, Alison. “Suicides in Prison: Ten Years On”. Prison Service Journal, n. 138, pp. 35-41, 2001.; NEGRELLI, 2006NEGRELLI, Andréia Maria. Suicídio no sistema carcerário: Análise a partir do perfil biopsicossocial do preso nas instituições prisionais do Rio Grande do Sul. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.; COELHO, 2006COELHO, Elizabete Rodrigues. “Suicídio de internos em um hospital de custódia e tratamento”. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.; GUAL, 2019GUAL, Ramiro. “La prisión irresistible: Muertes por autoagresión bajo custodia penitenciaria en Argentina”. Revista de Ciencias Sociales, vol. 32, n. 45, pp. 91-118, 2019.; ZHONG et al., 2021ZHONG, Shaoling et al. “Risk Factors for Suicide in Prisons: A Systematic Review and Meta-Analysis”. Lancet Public Health, vol. 6, pp. 165-174, 2021.) destacam a relevância da capacitação dos servidores penitenciários como medida de prevenção do suicídio sob custódia prisional. A compreensão dos diferentes fatores de risco, bem como das situações em que eles tendem a confluir em uma específica configuração de encarceramento, é fundamental e possível, assim como a evitação de mortes sob custódia.

Considerações finais

As perguntas que abriram este texto, supostamente ingênuas, revelam-se necessárias à demonstração de suas impropriedades. Como verificado, magistrados, promotores de justiça, procuradores do Estado, servidores de nível técnico superior no sistema prisional e agentes penitenciários - que atualmente devem ter nível superior como escolaridade exigida nos concursos do RS - operam, ao menos no que diz respeito ao suicídio, com base em um conhecimento pautado no senso comum e nos estereótipos das ilusões das superficialidades sensíveis. Tais estereótipos negam que as configurações prisionais, mortificando os indivíduos, produzem uma massa carcerária que se solidariza por similitudes. Interpretam, portanto, a contundência das regras e sanções peculiares aos grupos institucionalmente segregados como confirmação da anormalidade de seus integrantes, e não como correlacionadas com a própria configuração social produzida com a cumplicidade do Estado4 4 Parâmetros concernentes à solidariedade social e às sanções, propostos por Durkheim (1995) em Da divisão do trabalho social, como se sugere aqui, também podem inspirar investigações sobre outros aspectos, por vezes mal compreendidos, da questão penitenciária. .

As ilusões das superficialidades sensíveis autorizam que agentes do Estado permaneçam inertes diante das evidências dos riscos de suicídios sob custódia prisional e - pior - os ampliem por meio de procedimentos que tão só satisfazem a lógica da segregação e da segurança em um sentido restrito, como a de isolar, sem vigilância constante, um preso depressivo em uma enfermaria. Também autorizam que os cuidados com a saúde mental dos encarcerados seja pautado pela medicalização e pela oferta protocolar de “pequenos atendimentos” em “grandes presídios”.

Não há dúvidas de que as taxas de suicídios sob custódia no Brasil são menores do que em outros países da região e do Norte global. É possível, por mais irônica e dramática que seja a hipótese, que isso se deva ao fato de a superlotação dos estabelecimentos prisionais atuar como um fator social que desfavorece o suicídio. Transformados em massa carcerária, constrangidos na individualidade e favorecidos por uma solidariedade mais mecânica do que orgânica, para utilizar os termos de Durkheim (1995DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1995.), os presos, esperar-se-ia, praticariam suicídios altruístas5 5 Aquele para o qual é o excesso de integração social que atua, tornando-o um dever de eliminação do indivíduo, em uma perspectiva de favorecimento da coletividade (cf. DURKHEIM, 2000). . Já os suicídios egoístas e anômicos não encontram condições sociais para florescer, salvo quando o isolamento, conjugado por vezes com as “más notícias” (processuais ou pessoais), encontra “a constituição dos indivíduos [que] não o recusa [o suicídio]” (DURKHEIM, 2000DURKHEIM, Émile. O suicídio: Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000., p. 99).

Não obstante, os cárceres brasileiros também se configuram e se dinamizam em prol do suicídio sob custódia prisional. Os dados mostraram que os fatores associados ao risco de suicídios por parte de pessoas privadas de liberdade destacados pela literatura científica especializada (LLOYD, 1990LLOYD, Charles. Suicide and Self-Injury in Prison: A Literature Review. Londres: Her Majesty’s Stationery Office, 1990.; LIEBLING, 2001LIEBLING, Alison. “Suicides in Prison: Ten Years On”. Prison Service Journal, n. 138, pp. 35-41, 2001.; GUAL, 2019GUAL, Ramiro. “La prisión irresistible: Muertes por autoagresión bajo custodia penitenciaria en Argentina”. Revista de Ciencias Sociales, vol. 32, n. 45, pp. 91-118, 2019.; ZHONG et al., 2021ZHONG, Shaoling et al. “Risk Factors for Suicide in Prisons: A Systematic Review and Meta-Analysis”. Lancet Public Health, vol. 6, pp. 165-174, 2021.) são também significativos nos casos analisados, ainda que as fontes documentais utilizadas (acórdãos) não privilegiem um estudo mais denso das motivações e fatores associados aos suicídios verificados.

Quanto ao maior risco nos períodos de início da custódia, o fator pode ser associado a quatro casos de nosso corpus de análise: isolamento e/ou ocupação de cela individual, também em quatro casos, e reconhecimento explícito de depressão em quatro casos, além de outro relativo a um quadro de ansiedade. Por fim, situações envolvendo histórico pregresso e atual de entorpecentes e o recebimento de más notícias quanto à situação jurídica foram também identificadas como fatores de risco.

Por outro lado, os acórdãos atuam como potentes evidências de posturas e crenças dos julgadores quanto à relação entre Estado e garantia da integridade física e moral dos encarcerados. Também revelam o modo como atos de Estado vão além de atos jurídicos. Assim, em desacordo com recentes indícios, sobretudo no nível do STF, de fortalecimento de diretrizes e narrativas mais civilizatórias no âmbito das políticas em serviços penais, esta pesquisa demonstrou um sistema de justiça criminal e um Estado que acabam por reiterar o senso comum, ou seja, compreendem que as prisões podem produzir a morte e tais mortes pouco devem importar.

Referências

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  • BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm#art487
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  • TJRS. Apelação Cível n. 70079999090 (n. CNJ: 0365121-62.2018.8.21.7000), 25 de abril de 2019. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), 2019c.
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  • ZHONG, Shaoling et al. “Risk Factors for Suicide in Prisons: A Systematic Review and Meta-Analysis”. Lancet Public Health, vol. 6, pp. 165-174, 2021.
  • 1
    Dois dos eventos resultaram em dois processos distintos, com demandas indenizatórias de diferentes familiares do falecido, motivo pelo qual o número de acórdãos é superior ao de eventos de suicídios analisados.
  • 2
    Por critérios de ética em pesquisa, não obstante ter como fontes documentos públicos, manteremos o anonimato em relação às identidades dos(as) desembargadores(as).
  • 3
    Por critérios de ética em pesquisa registraremos, nas citações de trechos dos acórdãos, apenas as iniciais das pessoas privadas de liberdade mencionadas e envolvidas nos eventos.
  • 4
    Parâmetros concernentes à solidariedade social e às sanções, propostos por Durkheim (1995DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, 1995.) em Da divisão do trabalho social, como se sugere aqui, também podem inspirar investigações sobre outros aspectos, por vezes mal compreendidos, da questão penitenciária.
  • 5
    Aquele para o qual é o excesso de integração social que atua, tornando-o um dever de eliminação do indivíduo, em uma perspectiva de favorecimento da coletividade (cf. DURKHEIM, 2000DURKHEIM, Émile. O suicídio: Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.).

Apêndice 1

Lista dos
acórdãos de apelações cíveis do TJRS que compõem o corpus da pesquisa:

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Dez 2020
  • Aceito
    15 Abr 2021
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