Acessibilidade / Reportar erro

Nem todo surdo é igual: discussões interseccionais preliminares na educação de surdos

Not All Deaf People Are the Same: Preliminary intersectional discussions in Deaf Education

RESUMO

O presente artigo traz um recorte teórico de pesquisas desenvolvidas pelas autoras nas áreas e subáreas de estudos surdos, interseccionalidade e ensino para surdos na educação básica. Propõe-se discutir a temática da interseccionalidade relacionada ao campo dos Estudos Surdos na educação básica. O artigo reflete sobre os atravessamentos interseccionais que envolvem a comunidade negra surda, em detrimento dos hiatos epistêmicos, sobretudo a falta de discussão sobre as questões étnico-raciais na educação de surdos. Aporta-se nos referenciais teóricos de Buzar (2012Buzar, F. J. R. (2012). Interseccionalidade entre raça e surdez: a situação de surdos(as) negros(as) em São Luís-MA. [Dissertação de mestrado]. Universidade de Brasília.); Pereira e Pereira (2013Pereira, A. S. S., & Pereira, R. O. (2013). Surdo-negro soteropolitano: uma pesquisa exploratória sobre a sua percepção de opressão e exclusão. Revistas de Ciência da Educação, 02(29), 139-148.); Silvestre (2014Silvestre, J. (2014). Os entre-lugares: um olhar sobre sujeitos surdos-homossexuais. [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal de Goiás.); Solomon (2018Solomon, A. (2018). Cultural and Sociolinguistic Features of the Black Deaf Community. Carnegie Mellon University. https://doi.org/10.1184/R1/6684059.v1.
https://doi.org/10.1184/R1/6684059.v1...
); Ferreira (2018Ferreira, P. L. A. (2018). O ensino de relações étnico-raciais nos percursos de escolarização de negros surdos na educação básica. [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.); Santos (2019Santos, R. L. (2019). Negros/as surdos/as no ensino superior: mapeando cursos de graduação de Letras Libras. [Dissertação de mestrado] Universidade Federal do Paraná.); Chapple (2021Chapple, R. L., Bridwell, B. A., & Gray, K. L. (2021). Exploring Intersectional Identity in Black Deaf Women: The Complexity of the Lived Experience in College. Affilia. https://doi.org/10.1177/0886109920985769.
https://doi.org/10.1177/0886109920985769...
); Brito et al. (2021Brito, I. A., Medeiros, J. R., Bento, N. A., & Rodrigues, N. (2021). Que corpo é esse? Literatura negra surda, interseccionalidades e violências. ODEERE, 6(01), p. 209-232. https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533.
https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533...
). A metodologia fundamenta-se na revisão bibliográfica e no estudo qualitativo-descritivo de pesquisas brasileiras, circunscritas ao período de 2005 a 2021, relacionadas aos temas “interseccionalidade” e “surdez” nos sistemas de informação dos trabalhos acadêmicos das instituições de ensino superior do país, além de análises de artigos e observações empíricas que versam sobre a negritude surda no campo educacional brasileiro. Os dados compilados permitem evidenciar lacunas epistêmicas e incipiências de pesquisas acadêmicas sobre aspectos interseccionais e multiculturais que vão além de gênero, raça e surdez.

Palavras-chave:
Interseccionalidade; Negro Surdo; Educação de Surdos

ABSTRACT

This article discusses an excerpt of investigations carried out by the authors in the fields of deaf studies, intersectionality and teaching of deaf students at elementary, mid and high school educational environments. More specifically, it discusses the theme of intersectionality related to the field of deaf studies in the educational sectors listed above. The article reflects on the intersectional crossings that encompass the black deaf community, to the detriment of epistemic gaps, especially the lack of discussion on racial-ethnic issues in the education of deaf individuals. It is based on the following theoretical frameworks: Buzar (2012Buzar, F. J. R. (2012). Interseccionalidade entre raça e surdez: a situação de surdos(as) negros(as) em São Luís-MA. [Dissertação de mestrado]. Universidade de Brasília.); Pereira & Pereira (2013Pereira, A. S. S., & Pereira, R. O. (2013). Surdo-negro soteropolitano: uma pesquisa exploratória sobre a sua percepção de opressão e exclusão. Revistas de Ciência da Educação, 02(29), 139-148.); Silvestre (2014Silvestre, J. (2014). Os entre-lugares: um olhar sobre sujeitos surdos-homossexuais. [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal de Goiás.); Solomon (2018Solomon, A. (2018). Cultural and Sociolinguistic Features of the Black Deaf Community. Carnegie Mellon University. https://doi.org/10.1184/R1/6684059.v1.
https://doi.org/10.1184/R1/6684059.v1...
); Ferreira (2018Ferreira, P. L. A. (2018). O ensino de relações étnico-raciais nos percursos de escolarização de negros surdos na educação básica. [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.); Santos (2019Santos, R. L. (2019). Negros/as surdos/as no ensino superior: mapeando cursos de graduação de Letras Libras. [Dissertação de mestrado] Universidade Federal do Paraná.); Chapple (2021Chapple, R. L., Bridwell, B. A., & Gray, K. L. (2021). Exploring Intersectional Identity in Black Deaf Women: The Complexity of the Lived Experience in College. Affilia. https://doi.org/10.1177/0886109920985769.
https://doi.org/10.1177/0886109920985769...
); Brito et al., (2021Brito, I. A., Medeiros, J. R., Bento, N. A., & Rodrigues, N. (2021). Que corpo é esse? Literatura negra surda, interseccionalidades e violências. ODEERE, 6(01), p. 209-232. https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533.
https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533...
). The methodology follows the concepts of bibliographic review and qualitative-descriptive studies of Brazilian research, concluded from 2005 to 2021, and relating to the themes of “intersectionality” and “deafness” as found in information systems higher education institutions in Brazil, in addition to analyses of articles and empirical school observations about deaf blackness in the Brazilian educational field. The data collected allow the authors to highlight that there are epistemic gaps and incipient academic research on intersectional and multicultural aspects that go beyond gender, race and deafness.

Keywords:
Intersectionality; Black Deaf; Deaf Education

1. Introdução

Este trabalho parte das inquietações das autoras, mulheres negras, ativistas, antirracistas e professoras da Educação Bilíngue de Surdos e Surdas. Engajadas nas lutas pelas políticas de igualdade, gênero e inclusão, lançamos reflexões empíricas sobre a carência de obras teóricas que abordem a negritude surda e temas interseccionais nas comunidades surdas do Brasil, em especial na educação básica de/para negros(as) surdos(as). Após anos de luta, as especificidades linguísticas dos(as) educandos(as) surdos(as) vêm sendo reconhecidas legalmente por meio de diferentes documentos, que ressaltam, entre outras questões, a política linguística, as identidades, culturas surdas e o direito a classes bilíngues (Libras/Língua Portuguesa). No entanto, há hiatos na epistemologia negra surda que precisam ser discutidos.

A temática da identidade permeia todas as discussões na Educação Bilíngue para Surdos e Surdas, servindo como argumento desde a presença de adultos surdos na educação das gerações mais jovens até a escolha dos pais e mães pela abordagem escolhida nas suas relações comunicativas. Perlin (2003Perlin, G. T. T. (2003). O ser e o estar sendo surdo: Alteridade, diferença e identidade. [Tese de doutorado] Universidade Federal do Rio Grande do Sul.) discute a identidade surda, tendo como referência pressupostos comunicacionais como a sua constituição como sujeito. Ainda que determinado por identidades fixas, o trabalho da pesquisadora foi, e é, uma referência na perspectiva da língua de sinais como fator aglutinador das comunidades surdas. Discutir sobre identidades surdas tornou-se um espaço ocupado pela pesquisa linguística, sem que outros aspectos sobre o tema fossem explorados. A abordagem que trazemos em foco são inquietações subjacentes às lacunas epistêmicas relacionadas aos aspectos interseccionais entre raça e surdez na educação de surdos e surdas, fugindo da dicotomia Surdo X Ouvinte.

No Brasil, embora a Lei nº 10.436/2002Brasil. (2002). Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Diário Oficial da União. e o Decreto nº 5.626/2005Brasil. (2005). Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o Art. 18 da Brasil. (2005). Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União. tenham contribuído para as discussões acerca das singularidades linguísticas, da acessibilidade e inclusão do povo surdo, é relevante salientar que as pesquisas acadêmicas dificilmente se ocupam em analisar os assuntos interseccionais no campo de gênero, raça e surdez/surdo. Portanto, trazemos à baila a necessidade de se (re)pensar sobre aspectos multiculturais que vão além de aspectos linguísticos. A pauta da interconexão entre gênero, raça, sexismo, misoginia e surdez é um campo epistêmico negligenciado pelos estudos interseccionais.

Objetivamos, neste artigo, explorar os estudos disponíveis para a discussão da intersecção surdo e raça, buscando, com base nas pesquisas produzidas até o momento, refletir sobre a condição do estudante negro surdo na educação. Propomos discutir a temática da interseccionalidade relacionada ao campo dos Estudos Surdos na educação básica. O artigo tenciona debater sobre os atravessamentos interseccionais que envolvem a comunidade negra surda, em detrimento dos hiatos epistêmicos, sobretudo a falta de discussão sobre as questões étnico-raciais na educação de surdos. Para tanto, buscamos analisar os materiais teóricos disponíveis, a fim de embasar as práticas educativas vivenciadas pelas autoras no ensino de/para surdos.

Historicamente, ações discriminatórias com negras e negros surdos vêm ocorrendo ao longo dos séculos. Negros(as) surdos(as) estadunidenses remontam à era da segregação durante o século XVII até meados do século XX, quando malquistos nas comunidades surdas brancas e nas comunidades afro-estadunidenses. Em suas pesquisas, Solomon (2018Solomon, A. (2018). Cultural and Sociolinguistic Features of the Black Deaf Community. Carnegie Mellon University. https://doi.org/10.1184/R1/6684059.v1.
https://doi.org/10.1184/R1/6684059.v1...
), discute que surdos negros e brancos pertencem às comunidades surdas do país, e o conceito de identidade negra surda nos Estados Unidos é influenciado por quatro culturas distintas: afro-americana, europeia-americana, cultura ouvinte e cultura surda. Entretanto, devido às discriminações sistêmicas e experiências de opressão vivenciadas pela comunidade afro-americana, negros(a) surdos(as) se identificam inicialmente mais a partir da etnia do que com a surdez.

Para Ogunyipe (2021Ogunyipe, B. (2021). Black Deaf Culture Through the Lens of History. Described and Captioned Media Program, U.S. Department of Education. Disponível em: Disponível em: https://dcmp.org/learn/366-black-deaf-culture-through-the-lens-of-history . Acesso em 26 out. 2021.
https://dcmp.org/learn/366-black-deaf-cu...
), em relação à luta das Organizações negras dos Estados Unidos como a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP)3 3 Em português, Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor. Lutava pela “integração dos negros na sociedade como cidadãos plenos de primeira classe”. (Programa Ubuntu - Estudos em Base Africana, 2021, p. 5). , a Southern Christian Leadership Conference (SCLC) e a Liga Urbana Nacional, a pauta sobre surdos, e em especial negros surdos, foi negligenciada. Engajavam-se exclusivamente na luta pela igualdade e por direitos igualitários para a comunidade afro-estadunidense ouvintista. As comunidades negras surdas não eram focos das organizações nacionais de direitos civis, como a NAACP, a SCLC e a Liga Urbana Nacional.

No Brasil, são poucos os registros encontrados sobre os movimentos dos negros surdos, sendo os mais representativos dispostos por Ferreira (2018Ferreira, P. L. A. (2018). O ensino de relações étnico-raciais nos percursos de escolarização de negros surdos na educação básica. [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.), pesquisadora ativista surda. Em sua dissertação, discorre sobre a fundação do movimento surdo no Brasil. A autora registra que o primeiro evento no qual foi possível o encontro dos negros surdos foi o “1º Encontro Nacional de Jovens Surdos - ENJS”, que ocorreu em São Paulo em 2008 e teve como temática a reflexão sobre a consciência do racismo e a surdez.

Esse evento foi o motivador para a realização do “Congresso Nacional de Inclusão Social do Negro Surdo” que teve suas três primeiras edições na cidade de São Paulo nos anos de 2008, 2009 e 2012, com temáticas que partiram da inclusão social do negro surdo à discussão das leis de proteção contra o crime de racismo, o preconceito, a desigualdade social e econômica e o sofrimento dos negros surdos no país.

A edição do mesmo congresso ocorreu no ano de 2013 em Salvador, discutindo o empoderamento das lideranças negras surdas, assim como ações para a superação da desigualdade social. As edições subsequentes, no ano de 2015 no Rio de Janeiro e 2017 em Florianópolis, abordaram o despertar para a construção da identidade e o feminismo negro, e as ações afirmativas e os surdos no mercado de trabalho, respectivamente.

A edição de 2017 teve uma marca particular por registrar o “II Festival de Arte Afrosurd@”, abrindo espaço para a exposição dos surdos nas diferentes modalidades artísticas.

Importante frisar que, ainda que existam esses eventos mobilizando os jovens negros surdos, e de vários ativistas surgirem como lideranças, principalmente na educação e nas artes, ainda não há reflexos na educação básica dos surdos. As discussões seguem focalizadas em eventos acadêmicos que não contam com a plena participação de jovens negros surdos da educação básica, sobretudo do Ensino Fundamental I, II e Ensino Médio. Dessa forma, perpetua-se a não visibilidade do tema negritude no segmento. Podemos inferir que a não repercussão desses movimentos na educação seja reflexo da ausência de discussão dos surdos nos movimentos negros do Brasil. Movimentos negros, enredados pelas demandas que consideram próprias, negligenciam as demandas da comunidade surda, expondo, assim, uma questão fundamental: Qual o papel dos movimentos negros nas lutas reivindicatórias de negros surdos?

Deslocando-nos para a segunda década do século XXI, observa-se que os movimentos minoritários reverberaram por todo o mundo, com destaque para manifestações estadunidense, com importantes referências para as manifestações das minorias, com especial atenção aos movimentos negros de surdos. A discussão do “ser surdo” se expandiu e amadureceu significativamente, chegando ao reconhecimento explícito de que “nem todo surdo é igual”.

2. Interseccionalidade Negra Surda

A teoria da interseccionalidade possibilita verificar a interação múltipla de sistemas de poder e opressão que prejudicam determinados grupos sociais, em especial, mulheres negras surdas privilegiando outros. O estudo do campo interseccional no Brasil, inaugurado por Lélia Gonzalez, é rediscutido e ampliado por Akotirene (2019Akotirene, Carla. (2019). Interseccionalidade. Pólen.), para ela, a interseccionalidade:

Como conceito da teoria crítica de raça, foi cunhado pela intelectual afro-estadunidense Kimberlé Creshaw, mas, após a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância, em Duban, na África do Sul, em 2001, conquistou popularidade acadêmica, passando do significado originalmente proposto aos perigos do esvaziamento. A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparalidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado-produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais. (Akotirene, 2019Akotirene, Carla. (2019). Interseccionalidade. Pólen., p. 18)

Embora haja um número diversificado sobre a temática interseccional, pesquisas, artigos e filmes sobre o tema da interseccionalidade e sobre aspectos culturais dos surdos são incipientes e quase nenhum aborda experiências de indivíduos negros surdos, sobretudo na educação básica. Impulsionadas pelas discussões sobre o campo interseccional, Crenshaw (1991Crenshaw, K. W. (1991). Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color. Stanford Law Review, 43, 1241-1299.) e Chapple et al. (2021Chapple, R. L., Bridwell, B. A., & Gray, K. L. (2021). Exploring Intersectional Identity in Black Deaf Women: The Complexity of the Lived Experience in College. Affilia. https://doi.org/10.1177/0886109920985769.
https://doi.org/10.1177/0886109920985769...
) abordam a multidimensionalidade das experiências de negros(as) surdos(as) americanos(as) e os sistemas opressivos que eles enfrentam. Salvaguardadas por Anderson e Grace (1991Anderson, G. B., & Grace, C. A. (1991). Black deaf adolescents: A diverse and underserved population. The Volta Review, 93(5), 73-86.), nós, autoras, reafirmamos que a história das negras e dos negros surdos(as) brasileiros(as) foi e continua sendo negligenciada pelas Ciências Sociais e pelos movimentos negros. Com a mesma visão, Solomon (2018Solomon, A. (2018). Cultural and Sociolinguistic Features of the Black Deaf Community. Carnegie Mellon University. https://doi.org/10.1184/R1/6684059.v1.
https://doi.org/10.1184/R1/6684059.v1...
), buscando obter melhor compreensão sobre as questões culturais e sociolinguísticas dos sinais usados na comunidade negra surda estadunidense, realizou pesquisa com participantes negros surdos. Tinha por hipótese que os membros da comunidade surda negra sinalizariam a American Sign Language, língua utilizada pela maioria dos surdos no país. Entretanto, ao analisar os dados dos partícipes da pesquisa, foram verificadas divisões entre as comunidades negras surdas e as comunidades de surdos brancos estadunidenses, detectando comportamentos segregacionistas raciais ainda latentes.

Ao contrário do que Solomon tinha como hipótese, os dados compilados pela autora informam que os negros surdos nos Estados Unidos utilizam a língua de sinais negra conhecida como Black American Sign Language (BASL). Culturalmente, os participantes identificam uma divisão entre as comunidades surdas tradicionais e comunidades surdas negras, em decorrência das situações de segregação vivenciadas pela população negra surda estadunidense. Quando perguntados se eles se identificavam primeiro como negros ou surdos, 87% informaram que se identificavam primeiramente como negros e 13%, como surdos. A pesquisa mostra que aqueles que se identificam como negros o fazem porque a sua etnia é mais visível, de acordo com uma das respostas: “You see, I am black first4 4 “Veja, primeiramente eu sou negro”. Tradução própria. . Além disso, comprovou-se que negros(as) surdos(as) estadunidenses enfrentam preconceitos sociais, alto desemprego, desvantagens educacionais e subrepresentação em lideranças políticas.

No Brasil, a pesquisadora negra surda Ferreira (2018Ferreira, P. L. A. (2018). O ensino de relações étnico-raciais nos percursos de escolarização de negros surdos na educação básica. [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.) informa que se optou pela expressão Negro Surdo, uma vez que a sociedade inicialmente olha as pessoas primeiro pela raça e depois pela característica da surdez. Buzar (2012Buzar, F. J. R. (2012). Interseccionalidade entre raça e surdez: a situação de surdos(as) negros(as) em São Luís-MA. [Dissertação de mestrado]. Universidade de Brasília.), Silvestre (2014Silvestre, J. (2014). Os entre-lugares: um olhar sobre sujeitos surdos-homossexuais. [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal de Goiás.) e Santos (2019Santos, R. L. (2019). Negros/as surdos/as no ensino superior: mapeando cursos de graduação de Letras Libras. [Dissertação de mestrado] Universidade Federal do Paraná.) inauguram o campo epistêmico ao analisarem a questão interseccional racial e linguística do negro surdo brasileiro. Segundo Santos (2019Santos, R. L. (2019). Negros/as surdos/as no ensino superior: mapeando cursos de graduação de Letras Libras. [Dissertação de mestrado] Universidade Federal do Paraná., p. 25), a interseccionalidade “auxilia na construção e entendimento do/as sujeitos/as negros/as surdos/as, quando cruzadas categorias como ‘surdez’ e ‘raça’”. No entanto, ao transfixar os marcadores, é visível que os mais afetados pela precariedade da educação básica e pelo não acesso às universidades são as pessoas negras e, em especial, o negro surdo.

A decisão de trazer à tona as discussões étnico-raciais que envolvem as comunidades surdas é de profícua necessidade. Os temas sobre interseccionalidade, raça, feminismo surdo e educação de surdos raramente são discutidos fora da comunidade surda e/ou na educação básica de/para surdos. Para fins de comprovação, as autoras do proposto artigo realizaram um estudo quantitativo-descritivo de pesquisas brasileiras, circunscritas ao período de 2005 a 2021, relacionadas aos temas “interseccionalidade”, “surdez” e “feminismo surdo” por meio de plataforma digital que integra, em um único repositório, os sistemas de informação dos trabalhos acadêmicos das instituições de ensino superior do país, vinculados à Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações - BDTD, desenvolvida e coordenada pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia - IBICT.

Delimitou-se o recorte temporal entre 2005 e 2021, em decorrência do período equivalente a dezesseis anos após publicação do Decreto 5.626 de 2005, possibilitando a análise de um cenário mais recente no atual campo dos conhecimentos científicos produzidos na pós-graduação brasileira sobre a temática interseccionalidade, surdez e feminismo surdo. Nenhuma pesquisa foi encontrada com os devidos termos. Diante disso, foram modificadas as combinações de palavras. Para “interseccionalidade”, “surdez” em todos os campos. Foram encontradas apenas três pesquisas: (1) Interseccionalidade entre raça e surdez: a situação de surdos(as) negros(as) em São Luís-MA, pesquisador José Francisco Buzar, ano de defesa 2012; (2) Os entre-lugares: um olhar sobre sujeitos surdos-homossexuais, pesquisador Jouber Silvestre, ano de defesa 2014; (3) Negro/as surdos/as no ensino superior: mapeando cursos de graduação de Letras Libras, pesquisador Rhaul de Lemos Santos, ano de defesa 2019, evidenciando-se as lacunas epistêmicas e incipiências de pesquisas acadêmicas sobre os aspectos interseccionais e multiculturais que vão além de gênero, raça e surdez.

O recente artigo-denúncia “Que corpo é esse? Literatura negra surda, interseccionalidades e violências” (Brito et al., 2021Brito, I. A., Medeiros, J. R., Bento, N. A., & Rodrigues, N. (2021). Que corpo é esse? Literatura negra surda, interseccionalidades e violências. ODEERE, 6(01), p. 209-232. https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533.
https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533...
), é fundamental para se entender as nuances das opressões sofridas por surdos e surdas, negros e negras. Abordam o “não lugar” do negro surdo e da mulher negra surda nos movimentos reivindicatórios do movimento negro. Trazem a reflexão sobre a necessidade de se pensar os aspectos multiculturais que vão além de gênero, classe e raça e que existem interseccionalidades surdas que precisam ser debatidas na Literatura, propondo um tencionamento de dimensões necessárias para se pensar no lugar encruzilhador vivido por homens e mulheres negros(as) surdos(as), analisando a interconexão e subalternização como uma das principais formas de subcategorização da pessoa negra surda por não pertencer a um “padrão ocidental branco-falocêntrico-cis-hetero-ouvintista-hegemônico” (Brito et al., 2021Brito, I. A., Medeiros, J. R., Bento, N. A., & Rodrigues, N. (2021). Que corpo é esse? Literatura negra surda, interseccionalidades e violências. ODEERE, 6(01), p. 209-232. https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533.
https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533...
, p. 210). Os autores questionam quando serão pautadas as discussões sobre o campo interseccional gênero, raça e surdez: “Ser negra surda lésbica tem similar correspondência, do ponto de vista anti-hegemônico, que ser surda lésbica não negra ou mesmo ser negra lésbica?” (Brito et al., 2021Brito, I. A., Medeiros, J. R., Bento, N. A., & Rodrigues, N. (2021). Que corpo é esse? Literatura negra surda, interseccionalidades e violências. ODEERE, 6(01), p. 209-232. https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533.
https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533...
, p. 216). As assertivas reflexões do artigo-denúncia proporcionam transparecer o hiato epistêmico e o consequente silenciamento triplo de mulheres e homens negros surdos no movimento negro: o não atendimento às idiossincrasias linguísticas; incipientes discussões sobre violência; a inexistência de trabalhos acadêmicos sobre interseccionalidades de negros(as) surdos(as) e, consequentemente, a falta de políticas públicas que discutam interconexão entre racismo, audismo e surdez.

Embora o conceito de interseccionalidade tenha ganhado maior evidência nas últimas décadas, notamos que há lacunas epistêmicas relacionadas ao impacto das intersecções na formação da identidade das pessoas surdas. Para Chapple (2019Chapple, R. L. (2019). Toward a Theory of Black Deaf Feminism: The Quiet Invisibility of a Population. Affilia, 34(2), 186-198. https://doi.org/10.1177/0886109918818080.
https://doi.org/10.1177/0886109918818080...
; 2021Chapple, R. L., Bridwell, B. A., & Gray, K. L. (2021). Exploring Intersectional Identity in Black Deaf Women: The Complexity of the Lived Experience in College. Affilia. https://doi.org/10.1177/0886109920985769.
https://doi.org/10.1177/0886109920985769...
), questões como o racismo, sexismo e audismo desempenham papéis essenciais na formação identitária de pessoas surdas. Para Brito et al. (2021Brito, I. A., Medeiros, J. R., Bento, N. A., & Rodrigues, N. (2021). Que corpo é esse? Literatura negra surda, interseccionalidades e violências. ODEERE, 6(01), p. 209-232. https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533.
https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533...
), as mulheres negras são as mais afetadas pelo racismo estrutural, que não considera as questões relativas a deficiência, gênero e raça. Indagam quando a mulher negra surda e o homem negro surdo serão pautados pelo movimento negro e pelo movimento feminista negro surdo no Brasil e tensionam os problemas de vulnerabilidade que atingem especificamente esses públicos:

[...] entre as mulheres surdas, as negras serão as mais afetadas pelo engendramento dessas categorias identitárias. Seguindo a alusão proposta por Crenshaw (2002), a mulher negra surda está em encruzilhada sendo atravessada por vias de sexismo, ouvintismo, patriarcado e claro, pelo racismo hiperelaborado. Esse lugar ímpar, exclusivo, não pode ser partilhado por homens negros surdos, que embora potenciais alvo do racismo, não vivenciam o sexismo e a misogenia (sic). Também não é possível comungar com outras mulheres surdas não negras por não terem a experiência cotidiana dos efeitos diários das práticas racistas, do mesmo modo, mulheres negras ouvintes, dificilmente, sentirão os efeitos perversos da exclusão linguística e comunicacional. (Brito et al., 2021Brito, I. A., Medeiros, J. R., Bento, N. A., & Rodrigues, N. (2021). Que corpo é esse? Literatura negra surda, interseccionalidades e violências. ODEERE, 6(01), p. 209-232. https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533.
https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533...
, p. 212)

Os reflexos dos problemas de vulnerabilidade e de não pertencimento aos movimentos negros vão, desde à violência comunicacional pelo não asseguramento ao direito à educação básica bilíngue (Libras/Português como segunda língua), até a dificuldade de acesso a serviços públicos básicos de saúde, como consultas médicas.

Segundo Pereira e Pereira (2013Pereira, A. S. S., & Pereira, R. O. (2013). Surdo-negro soteropolitano: uma pesquisa exploratória sobre a sua percepção de opressão e exclusão. Revistas de Ciência da Educação, 02(29), 139-148.), a Lei nº 10.639/03, que trata do ensino de história e da cultura dos negros brasileiros, assim como de conteúdos relacionados ao continente africano, foi um ganho extremamente significativo do movimento negro brasileiro. No entanto, as discussões sobre a temática de história e culturas negras estão longe de serem alcançadas pela comunidade escolar surda negra, posto que “surdos negros estão apartados dos movimentos sociais negros, ao nível de nem saberem que existem” (Pereira e Pereira, 2013Pereira, A. S. S., & Pereira, R. O. (2013). Surdo-negro soteropolitano: uma pesquisa exploratória sobre a sua percepção de opressão e exclusão. Revistas de Ciência da Educação, 02(29), 139-148., p. 146). Em pesquisas realizadas com negros(as) surdos(as) soteropolitanos(as), estudantes da educação básica em uma escola para surdos no cenário baiano, Pereira e Pereira (2013Pereira, A. S. S., & Pereira, R. O. (2013). Surdo-negro soteropolitano: uma pesquisa exploratória sobre a sua percepção de opressão e exclusão. Revistas de Ciência da Educação, 02(29), 139-148.) discutem que o entendimento sobre o significado de racismo não foi observado nos discursos dos(as) discentes. Os pesquisadores aludem tal fato à ausência de debates sistemáticos sobre a temática das relações étnico-raciais com a comunidade escolar surda, bem como a falta de referências de outros modelos culturais, especificamente de culturas negras, e o parco envolvimento de sujeitos negros surdos devido às barreiras linguísticas. O envolvimento sociopolítico do negro surdo é dificultado pelo processo histórico de exclusão, epistemicídio e assujeitamento, que marcam a construção das subjetividades desses corpos atravessados por vias interseccionais de gênero, raça e surdez.

Diante do exposto, lança-se a reflexão: Qual o papel do Estado frente às situações de violência que pessoas negras surdas enfrentam nas comunidades surdas? Qual o papel do docente de surdos na educação básica ao suscitar tais indagações? Pesquisas acadêmicas sobre a temática da interseccionalidade nas comunidades surdas são indispensáveis para se entender a invisibilidade das pessoas negras surdas nas pautas do movimento negro brasileiro. Tencionamos aqui discutir os atravessamentos interseccionais que envolvem a comunidade negra surda, em detrimento dos hiatos epistêmicos, sobretudo a falta de discussão sobre as questões étnico-raciais na educação de surdos. Problematizamos sobre a lacuna de discussões sobre esses corpos, atravessados por vias de subalternização, precipitados pelas interconexões entre o racismo, gênero e o ouvintismo. Por não ser uma resposta simples, é importante que a discussão se inicie contemplando diferentes olhares para a questão. O fato é que são escassas as discussões do movimento negro que reconhecem as especificidades dos negros surdos no Brasil, ficando, assim, os mais diversos coletivos surdos à margem da pauta e, por consequência, das benesses que poderão ser fruto das reivindicações do movimento quando alcançadas as políticas públicas.

Desta forma, ficam restritas às comunidades negras surdas as políticas públicas linguísticas e educacionais que observam as comunidades surdas sob um prisma mais geral, em um ciclo contínuo de invisibilização. Em qualquer grupo, seja ele majoritário ou não, as singularidades são percebidas, fazendo com que o grupo maior se aglutine em subgrupos que se identificam por outras características que não são as primárias do grupo originário. Com os surdos não é diferente, para além dos surdos que se comunicam pela língua de sinais, outras marcas se fazem presentes, e é nesta perspectiva que os negros surdos são vistos neste trabalho.

Percebemos que nas instituições educacionais de surdos a temática sobre raça raramente é discutida. Sendo assim, as crianças negras e surdas não convivem com esse debate no ambiente escolar, ficando o tema a cargo da família, caso este seja retratado.

Para as comunidades surdas, nas quais, via de regra, a aquisição de língua de sinais é tardia, torna-se um agravante significativo para que o tema negritude possa não ser discutido em encontros familiares. Ainda que a família entenda ser a negritude uma construção própria do seu grupo, a aquisição da língua e o ensino para surdos, da forma como vem sendo realizados, não contemplam suas necessidades, uma vez que é feito majoritariamente por professores surdos brancos, em instituições majoritariamente dirigidas por brancos ouvintes. Desta forma, o distanciamento do tema torna-se uma constante, não questionável para ou pelos alunos negros surdos.

Com cursos organizados, via de regra, pelo ensino de vocábulos, a família negra ouvinte se vê distanciada de uma construção de discurso que contemple suas necessidades sociolínguísticas. Para Parmeggiani (2018Parmeggiani, R. (2018). Desabilidade. Editora Nós.),

Todos nós somos feitos de palavras - as que ouvimos, as que pronunciamos, as que lemos e as que simplesmente pensamos - e não ter consciência disso significa não ter consciência de quem somos, de quem poderíamos ser e de como podemos viver com os outros. (Parmeggiani, 2018Parmeggiani, R. (2018). Desabilidade. Editora Nós., p. 14)

Os(as) surdos(as) que se comunicam na língua de sinais não estão distantes da constatação do autor, o ser negro surdo está intrinsecamente ligado às limitações dadas pelo aprendizado limitante da Libras (Língua Brasileira de Sinais), para Parmeggiani (2018Parmeggiani, R. (2018). Desabilidade. Editora Nós.)

[...] a pobreza lexical [...] não é só o fato de conhecer poucas palavras para dizer ou explicar aquilo que nos acontece. A pobreza está sobretudo no uso limitado, na incapacidade de ir além de um estereótipo, com o qual nos contentamos porque não temos as ferramentas para construir um pensamento diferente e porque, também, o contexto nos suporta nessa hiperbanalização, não nos propondo instrumentos para uma alternativa real. (Parmeggiani, 2018Parmeggiani, R. (2018). Desabilidade. Editora Nós., p. 25)

O autor denomina a desabilidade como um dos fatores determinantes para um constante afastamento da comunidade negra surda da comunidade negra, reforçando um ciclo contínuo de afastamento e estabelecendo, a priori, que a criança negra surda é surda, a despeito de ser negra.

Neste contexto, como exigir que a criança surda branca possa saber das questões pelas quais os membros negros do seu grupo vivem nas suas interações sociais extramuros? Se por um lado esta ignorância promove as relações de igualdade, por outro submete os diferentes a condições iguais, ignorando a sua condição de negros e, ainda que inconscientemente, buscando referências na estética branca alterando a textura de seus cabelos e estranhando seus traços genéticos como nariz e boca.

3. O dilema da educação inclusiva: quem estamos incluindo, o negro, o surdo, o surdo negro ou o negro surdo?

Rocha (2008Rocha, S. (2008). O INES e a Educação de Surdos no Brasil: aspectos da trajetória do Instituto Nacional de Educação de Surdos em seu percurso de 150 anos. INES.) afirma que era comum, na virada do século XVIII para o XIX, a fundação de Institutos de surdos por professores surdos, formados por instituições na Europa. Em 1855, E. Huet, surdo francês com formação no Instituto de Surdos de Paris, apresentou a Dom Pedro II um relatório em língua francesa “cujo conteúdo revelava a intenção de fundar uma escola para surdos no Brasil” (Rocha, 2008Rocha, S. (2008). O INES e a Educação de Surdos no Brasil: aspectos da trajetória do Instituto Nacional de Educação de Surdos em seu percurso de 150 anos. INES., p. 19). A educação escolar à época ocorria em espaços domésticos com método de ensino individual, destinado apenas aos pobres brancos e livres. Segundo Rocha, a ideia de disseminar o acesso à escolarização às camadas populares do século XIX salvaguardava um sentido escuso de controlar os súditos do novo império numa sociedade escravocrata.

Ao analisar o relatório, Rocha (2008Rocha, S. (2008). O INES e a Educação de Surdos no Brasil: aspectos da trajetória do Instituto Nacional de Educação de Surdos em seu percurso de 150 anos. INES.) aponta que Huet discorre que a maioria dos surdos brasileiros pertencia a famílias pobres. Desta forma, apresenta duas propostas:

Em uma, o colégio seria de propriedade livre (particular), com uma concessão de bolsas e alguma subvenção por parte do Império; em outra, as despesas totais seriam assumidas pelo Império (pública). Caberia ao imperador a decisão. No entanto, Huet argumentava que, por ter experimentado os dois modos como diretor no Instituto de Surdos-mudos de Bourges, considerava o modelo privado com subvenções nacional e particular o mais adequado. (Rocha, 2008Rocha, S. (2008). O INES e a Educação de Surdos no Brasil: aspectos da trajetória do Instituto Nacional de Educação de Surdos em seu percurso de 150 anos. INES., p. 28)

Em decorrência do paradigma da surdez sobre o prisma hegemônico da ciência médica e audiológica e do regime político à época de Huet, ainda não há menção de dados com recorte racial de surdos negros na educação brasileira no advento da República.

A educação inclusiva atualmente enfrenta intermináveis desafios e dilemas que podem determinar a construção de uma educação de maior ou menor qualidade para aqueles que dela dependem. É nessa perspectiva que a inclusão do negro surdo se apresenta. Ainda que não tenha respondido completamente à inclusão educacional e linguística do surdo, é imperativo que o tema racismo estrutural seja pauta da instituição mais importante da sociedade atual. Para Rego (2003Rego, T. C. (2003). Memórias de Escola: cultura escolar e constituição de singularidades. Editora Vozes., p. 16) “na chamada sociedade do conhecimento, a escolarização tem um valor inquestionável, já que é capaz de proporcionar ao indivíduo experiências e informação de sua cultura”.

Tomando o excerto como referência, poderíamos questionar se a escola para surdos, da forma como se organiza atualmente, contempla especificidades dos(as) negros(as) surdos(as). Ressaltamos o fato que, estudantes negros(as) surdos(as) podem passar por todos os níveis escolares, sem que a temática da negritude surda seja percebida, questionada ou discutida.

Não podemos expor aqui que essa máxima absoluta seja determinante no desenvolvimento das pessoas negras surdas, mas a omissão de discussão também estabelece marcas. Ao não colocar o assunto em pauta, a escola admite que a negritude não é determinante, e dessa forma, a referência vigente fica estabelecida a partir da perspectiva branca.

Ainda que amparada pela legislação (Lei nº 10.639/2003Brasil. (2003). Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Diário Oficial da União.), o conhecimento sobre a história e a cultura afro-brasileira é incipiente nas instituições, reduzindo-se ao dia da Consciência Negra, quando este é estabelecido como feriado municipal, ainda assim, como já dissemos, a partir da perspectiva branca de uma confraternização inter-racial não existente. Ferreira (2018Ferreira, P. L. A. (2018). O ensino de relações étnico-raciais nos percursos de escolarização de negros surdos na educação básica. [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.) aduz sobre como a educação básica tem se debruçado na elaboração de políticas públicas que beneficiem a população negra brasileira. No entanto, surdos negros, em sua maioria, não acessam conteúdos curriculares que possibilitem conhecer as temáticas das relações étnico-raciais, sendo a cultura negra surda negligenciada pelo currículo escolar.

Desse modo, o que deveria ser uma prática pedagógica torna-se um tema descolado do currículo e distanciado da realidade dos surdos, uma vez que o protagonismo da discussão não é alcançado, ou seja, o negro surdo não é protagonista da própria história.

A compreensão de que a comunidade escolar deve ser formada dentro da sua diversidade étnico-racial ainda não é uma realidade das escolas para surdos, ou mesmo da educação convencional na perspectiva inclusiva. Os alunos negros surdos são matriculados como surdos e tratados como negros nas suas relações, mas, a depender do contexto, não se reconhecem nem como um nem como outro, uma vez que, quando matriculados nas escolas convencionais, nem sempre têm contato com outros surdos, e sua condição de negro não é colocada em discussão.

Discutir a inclusão do aluno negro surdo passa então pelos educadores e educadoras, para que ele possa ter uma formação que contemple uma educação antirracista e plural, em um desenho universalizante de sociedade, que contemple a todos, na medida em que a demanda se apresente.

4. Considerações

A escassez de material teórico para a discussão do tema aqui proposto nos leva a inúmeras reflexões que ainda carecem de subsídios teóricos nas pesquisas nacionais, conforme já constatado no início deste trabalho. No entanto, não podemos nos privar de colocar luz às consequências da estrutura educacional excludente com a qual convivemos atualmente.

A baixa qualidade educacional a que os alunos surdos são expostos desde a educação básica, seja na educação inclusiva, seja nas escolas bilíngues para surdos, pode explicar a rara presença do aluno surdo na universidade pública brasileira, o que é fundamental para compreendermos a escassez de pesquisas com o recorte da negritude.

A presença do aluno negro surdo modifica o ambiente e proporciona não somente o seu interesse em pesquisar o tema, mas também de outros pesquisadores em compreender o ambiente que essa convivência proporciona. Assim, a complexa relação educacional que se inicia na educação básica da comunidade surda estende-se até a educação superior, coloca a comunidade negra surda diante de uma vida escolar que se isenta de pensar o sujeito dentro das intersecções, que vão além da surdez.

Uma vez mais, vemos a Educação para Surdos reproduzir a escola convencional, ainda que sempre um passo atrás, e, neste contexto, esse passo significa anos de retrocesso e, por consequência, gerações de surdos sem acesso a uma importante faceta de sua identidade. Ser negro(a) surdo(a) não é somente a adição de uma característica física no sujeito, mas é a imersão em um universo de saberes e raízes que determinam a construção deste sujeito.

A história da comunidade negra surda brasileira se vê interceptada pelo distanciamento dos sujeitos, que ignoram as consequências de sua negritude na sua atuação social. O ser surdo que transpassa toda a vida do sujeito, porém, não é o suficiente para o autoconhecimento; assim, as pessoas negras surdas não são contempladas na maioria das demandas da comunidade surda.

Uma potente geração de negros surdos vem sendo referência para as novas gerações de surdos, sobretudo na produção poética em língua de sinais, com a presença mais efetiva de poetas negros(as) surdos(as) na cena nacional brasileira. Estes vêm atuando em diferentes campos de trabalho, principalmente na arte e na educação, possibilitando maior visibilidade e mais referências identitárias para as crianças surdas. Ser negro(a) surdo(a) vem sendo uma construção conjunta da comunidade surda, fazendo com que possamos visualizar futuras gerações de negros(as) surdos(as) nos movimentos reivindicatórios e de direitos humanos que reverberarão no campo da educação de/para surdos no debate das relações étnico-raciais.

Referências

  • Akotirene, Carla. (2019). Interseccionalidade. Pólen.
  • Anderson, G. B., & Grace, C. A. (1991). Black deaf adolescents: A diverse and underserved population. The Volta Review, 93(5), 73-86.
  • Buzar, F. J. R. (2012). Interseccionalidade entre raça e surdez: a situação de surdos(as) negros(as) em São Luís-MA. [Dissertação de mestrado]. Universidade de Brasília.
  • Brasil. (2002). Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências. Diário Oficial da União.
  • Brasil. (2005). Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o Art. 18 da Brasil. (2005). Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União.
  • Brasil. (2003). Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Diário Oficial da União.
  • Brito, I. A., Medeiros, J. R., Bento, N. A., & Rodrigues, N. (2021). Que corpo é esse? Literatura negra surda, interseccionalidades e violências. ODEERE, 6(01), p. 209-232. https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533
    » https://doi: 10.22481/odeere.v6i01.8533
  • Chapple, R. L., Bridwell, B. A., & Gray, K. L. (2021). Exploring Intersectional Identity in Black Deaf Women: The Complexity of the Lived Experience in College. Affilia. https://doi.org/10.1177/0886109920985769
    » https://doi.org/10.1177/0886109920985769
  • Chapple, R. L. (2019). Toward a Theory of Black Deaf Feminism: The Quiet Invisibility of a Population. Affilia, 34(2), 186-198. https://doi.org/10.1177/0886109918818080
    » https://doi.org/10.1177/0886109918818080
  • Crenshaw, K. W. (1991). Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color. Stanford Law Review, 43, 1241-1299.
  • Ferreira, P. L. A. (2018). O ensino de relações étnico-raciais nos percursos de escolarização de negros surdos na educação básica. [Dissertação de mestrado]. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
  • Ogunyipe, B. (2021). Black Deaf Culture Through the Lens of History. Described and Captioned Media Program, U.S. Department of Education. Disponível em: Disponível em: https://dcmp.org/learn/366-black-deaf-culture-through-the-lens-of-history Acesso em 26 out. 2021.
    » https://dcmp.org/learn/366-black-deaf-culture-through-the-lens-of-history
  • Parmeggiani, R. (2018). Desabilidade. Editora Nós.
  • Pereira, A. S. S., & Pereira, R. O. (2013). Surdo-negro soteropolitano: uma pesquisa exploratória sobre a sua percepção de opressão e exclusão. Revistas de Ciência da Educação, 02(29), 139-148.
  • Perlin, G. T. T. (2003). O ser e o estar sendo surdo: Alteridade, diferença e identidade. [Tese de doutorado] Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
  • Programa Ubuntu - Estudos em Base Africana. (2021). Ciclo Formativo Lições da Luta Negra. Em Minicurso “O Partido Pantera Negra” - Módulo I.
  • Rego, T. C. (2003). Memórias de Escola: cultura escolar e constituição de singularidades. Editora Vozes.
  • Rocha, S. (2008). O INES e a Educação de Surdos no Brasil: aspectos da trajetória do Instituto Nacional de Educação de Surdos em seu percurso de 150 anos. INES.
  • Santos, R. L. (2019). Negros/as surdos/as no ensino superior: mapeando cursos de graduação de Letras Libras. [Dissertação de mestrado] Universidade Federal do Paraná.
  • Silvestre, J. (2014). Os entre-lugares: um olhar sobre sujeitos surdos-homossexuais. [Dissertação de mestrado]. Universidade Federal de Goiás.
  • Solomon, A. (2018). Cultural and Sociolinguistic Features of the Black Deaf Community. Carnegie Mellon University. https://doi.org/10.1184/R1/6684059.v1
    » https://doi.org/10.1184/R1/6684059.v1
  • 3
    Em português, Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor. Lutava pela “integração dos negros na sociedade como cidadãos plenos de primeira classe”. (Programa Ubuntu - Estudos em Base Africana, 2021Programa Ubuntu - Estudos em Base Africana. (2021). Ciclo Formativo Lições da Luta Negra. Em Minicurso “O Partido Pantera Negra” - Módulo I., p. 5).
  • 4
    “Veja, primeiramente eu sou negro”. Tradução própria.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2021
  • Aceito
    28 Nov 2021
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP PUC-SP - LAEL, Rua Monte Alegre 984, 4B-02, São Paulo, SP 05014-001, Brasil, Tel.: +55 11 3670-8374 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: delta@pucsp.br