Dizeres da revista Veja: memória e intervocalidade na composição da estética da voz de sucesso

Sayings from Veja magazine: Memory and intervocality in the composition of the aesthetics of the successful voice

RESUMO

Esse artigo visa analisar como é posto em manutenção a estética da recepção do sucesso. Em específico, analisa-se a matéria da revista Veja, Quem é Aurora, a cantora norueguesa citada pela Fuvest, publicada em 2019. Em razão da veiculação das materialidades sobre a voz cujos efeitos produzem sujeitos e sentidos do sucesso, busca-se compreender o funcionamento das memórias da voz de sucesso no entrelaçamento dessas com a tessitura discursiva sobre a voz/sujeito em ascensão. Para tal observação, sustentada pela noção de interdiscurso, utiliza-se o aparato teórico-metodológico da Análise do Discurso de linha francesa. Mobiliza-se a interdiscursividade na perspectiva da “intervocalidade”, embasando essa abordagem pela noção do pré-construído de sucesso (Soares, 2018a, 2018b, 2018c). Dessa forma, pretende-se compreender a movência dos pré-construídos de sucesso como parte dinâmica da plataforma de alcance da fama, ressignificando seu funcionamento a partir do sucesso como memória constitutiva da estética vocal. Como resultado, espera-se compreender os funcionamentos discursivos midiáticos buscando responder como a manutenção da estética da recepção, em boa medida, provém dos pré-construídos de sucesso, engendrados nas redes de dizeres sobre a fama.

Palavras-chave:
discursos de sucesso; estética da voz de sucesso; intervocalidade; sujeitos de sucesso

ABSTRACT

This article aims to analyze how the aesthetics of successful reception are maintained. Specifically, we analyze the article from Veja magazine, Quem é Aurora, a cantora norueguesa citada pela Fuvest, published in 2019. As the dissemination of materialities on the voice produce subjects and meanings of success, we seek understand the functioning of the memories of the successful voice in tandem with the discursive fabric on the rising voice/subject. To this end, the notion of inter-discourse and the theoretical-methodological framework of French Discourse Analysis are used. Interdiscursivity is seen from the perspective of “intervocality” and uses the notion of pre-constructed success (Soares, 2018a, 2018b, 2018c). As such, we intend to understand pre-constructed successes as a dynamic part of the process of achieving fame, while at the same time, giving new meaning to its functioning based on success as a constitutive memory of vocal aesthetics. As a result, we hope to understand the functioning of discursive media to answer how the maintenance of the aesthetics of reception largely comes from pre-constructed success, engendered in the networks of sayings about fame.

Keywords:
successful speeches; successful voice aesthetics; intervocality; success subjects

1. Introdução

Em suas atividades cotidianas, a mídia é a maior responsável no que tange ao contingenciamento de sujeitos investidos de sucesso, uma vez que os dizeres legitimados e autorizados sobre o poder e a fama são restritos ao campo midiático. Nesse sentido, a mídia “gerencia os discursos circulantes ao ponto de se tornar uma espécie de reguladora dos discursos” (Soares, 2022, p. 37). Como mediadora das relações sociais, as plataformas de sucesso como livros, revistas e jornais ou “os mais modernos como o rádio, a tv e a internet são utilizados para propagar e propagandear o sucesso” (Soares, 2018a, p. 169).

Na criação de diversificadas redes de sentidos sobre o sucesso, a voz de sucesso se desponta como uma rede capaz de reestruturar o discurso do capital e perfazer o caminho hegemônico dos discursos midiáticos, sustentando seus sujeitos pelo retorno das memórias (Pêcheux, 2015) da “boa voz”. Assim, ao se posicionar como mediadora dessas relações interdiscursivas, a mídia se coloca no lugar, ou melhor, na posição do (único) espaço, da (única) fonte apropriada para detectar a voz de sucesso. Como Soares (2018a) salienta:

Nem no trabalho, nem no Estado, mas em uma instância mediadora das relações sociais se assenta o sucesso. Sobre os desavisados buscadores do sucesso reina a falta de esclarecimento e o assujeitamento ao complexo com dominante do sucesso cujo panorama interdiscursivo remete a uma atenuação do jogo ideológico: dominante X dominado (Soares, 2018a, p. 179).

Com relação aos jogos ideológicos que sustentam a instância das relações sociais, Adorno e Horkheimer (1985, p. 24) afirmam que “A distância do sujeito com relação ao objeto, que é o pressuposto da abstração, está fundada na distância em relação à coisa, que o senhor conquista através do dominado”. Dessa mesma perspectiva, ao observar a dinâmica das relações sociais, bem como a relação dominante vs. dominado, Soares (2018a) conclui que

Não se pode em absoluto, dizer que o sucesso não exista como uma materialidade, pode-se, isto sim, afirmar que o sucesso tal como arregimentado pelo discurso do sucesso da literatura e de autoajuda não existe para seu público, sendo, assim, um desiderato dos discursos de controle social (Soares, 2018a, p. 179).

Partindo tanto da percepção adorniana e horkheimeriana quanto da conclusão de Soares (2018a) sobre a influência e afetação do sucesso nas relações sociais, podemos constatar duas máximas: a) a preciosidade do discurso do sucesso, por este estabelecer, as posições, ou melhor, o distanciamento entre aqueles que se encontram revestidos de poder e fama, adjuntos escassos e de restrito acesso que poucos obtêm e; b) a força de atração pela “embriaguez dos efeitos” desse discurso, uma vez que seu funcionamento é análogo ao canto das sereias de Homero (2015, canto XII, p. 136-137), pois “todos os homens que se aproximam dali, com encantos prender têm por hábito”.

Essas duas máximas tornam-se arcabouços essenciais nos discursos midiáticos retroalimentando aqueles que detêm o “poder-dizer” sobre o sucesso, ou melhor, a autoridade, a legitimidade e a potência para instalarem os sujeitos na posição do sucesso; e o “fazer parecer” como mecanismo de acobertamento, de revestimento da realidade (Soares, 2018a, p. 180).

A partir dessas considerações, acreditamos que observar e compreender o funcionamento do discurso do sucesso é como ser orientado pela visão de Circe da Odisseia de Homero (2015, canto XII, p. 136) que indica a rota, esclarece todas as minúcias, a fim de “apontar o caminho a seguir” [...] para que não caia em “enganos nocivos”, isto é, para que os efeitos de sucesso não possam ludibriar a quem escuta seus encantamentos. De outro modo, é preciso depreender de forma precisa que “O sucesso não é um mero item lexical, não é apenas um posicionamento, não é somente um texto, sucesso é a expressão das forças contrastivas nos discursos circulantes na sociedade” (Soares, 2018a, p. 178) e, desse modo, é necessário um ferramental teórico-metodológico capaz de vislumbrar as nuances do sucesso que se constituem de uma natureza rastreável, mas sutil “aos olhos” desapercebidos.

A partir das condições de produção que imprimem os dizeres acerca da estética da voz de sucesso, analisamos como é posto em manutenção a estética da recepção do sucesso. Em razão da veiculação das materialidades sobre a voz cujos efeitos produzem sujeitos e sentidos do sucesso, buscamos ainda depreender o funcionamento das memórias acerca da voz prestigiada, valorizada e peculiar no entrelaçamento dessa com a tessitura discursiva sobre a voz/sujeito em ascensão. Para tal observação, sustentada especificamente pela noção de interdiscurso, lançamos mão sobre o ferramental teórico-metodológico da Análise do Discurso.

Abordaremos a interdiscursividade na perspectiva da “intervocalidade”, mas, diferentemente de Mendes (2021) que concebe tal adaptação pelos pressupostos teórico-metodológicos de Maingueneau, apoiaremos nossa abordagem pela concepção do “pré-construído de sucesso” (Soares, 2018a, 2018b, 2018c) enquanto marcador semântico da fama e do prestígio, ressignificando seu funcionamento a partir do sucesso como memória constitutiva da estética vocal.

Como corpus, analisaremos a matéria da revista Veja, Quem é Aurora, a cantora norueguesa citada pela Fuvest, publicada no ano de 2019. Após nosso percurso analítico, sopesaremos a relevância dos conceitos supracitados para compreendermos melhor a manutenção da estética da escuta. Com o referido percurso, refletiremos acerca dos funcionamentos discursivos midiáticos e de sua formação discursiva do sucesso (Soares, 2018c) os quais, juntos, viabilizam a compreensão de que a manutenção da estética da recepção, em boa medida, é a continuidade das condições de produção (Althusser, 1992) as quais possibilitam à mídia forjar os sujeitos de sucesso comercializados e comercializáveis.

Considerações teóricas: intervocalidade e sucesso

Em sua caminhada epistemológica, Pêcheux (1997) propôs diversas noções as quais contribuíram para a compreensão de que os efeitos semânticos que se consolidam e que estabelecem regiões específicas de sentido no campo da formulação enunciativa, nada mais são que reflexos, reverberações de um espaço constituído por memórias, por conjuntos de já-ditos e já esquecidos (Orlandi, 2015) e que retornam sob a forma de pré-construídos (Henry, 1990).

Segundo Courtine (2014, p. 74) o pré-construído designa “uma construção anterior, exterior, independente por oposição ao que é construído na enunciação” (Courtine, 2014, p. 74), marcando a existência de uma ruptura/atualização entre o campo vertical da constituição como o espaço estruturador do pré-construído e o campo horizontal das formulações enunciativas de um sujeito.

Dessa forma, a interdiscursividade pode ser compreendida metaforicamente como a reguladora da continuidade dos sentidos, já que o sujeito só pode interpretar o mundo através das memórias, dos já-ditos (Pêcheux, 2015). Isso nos leva a compreender o funcionamento do pré-construído como um portal que se abre e que faz emergir sentidos já conhecidos pelos sujeitos.

Mergulhado na ilusão da evidência, submersos nas projeções imaginárias que sustentam as posições e regulam as relações de força em sociedade, esses sujeitos são levados a contribuir com a manutenção de dado imaginário, a partir da difusão de conceitos, estilos, regras sociais, preconceitos, estereótipos, entre outros saberes e comportamentos que permeiam o convívio social e o desejo pelo prestígio e pela fama. De outro modo, “‘o que cada um sabe’ e simultaneamente ‘o que cada um pode ver’ em uma dada situação” (Courtine, 2014, p. 74, aspas do autor) é o efeito relativo e derivativo dos pré-construídos.

Por esse motivo, concordamos com Soares (2020, p. 18) ao afirmar que “o pré-construído se manifesta em certas particularidades linguísticas e/ou sintáticas de encadeamento gramatical, ou seja, o que pode ser linguisticamente analisável, tal como orações relativas, que recuperam fragmentos de discursos anteriores”. Dessa maneira, pensar a manutenção do sucesso é investigar, sobretudo, os elementos linguísticos; rastrear suas possíveis interdiscursividades e suas prováveis regularidades no (des)contínuo histórico.

Pensando a recorrência dos pré-construídos na esfera musical, podemos vislumbrar seu alto potencial heurístico na manutenção dos sujeitos de sucesso. Ao descrever essa recorrência, Soares (2018b, p. 60, itálico nosso) nos permite compreender que o efeito de sucesso “já se encontra no nível do pré-construído, ou seja, os dizeres segundo os quais se assentam sua fama estão no estado de já-ditos sempre sendo retomados quando se enuncia ‘X’ cantor”. Sobre o sucesso como um efeito e como um produto comercializável pelo discurso midiático, Soares (2016) assevera que:

Sucesso é uma tradução dos novos valores presentes na sociedade brasileira contemporânea. Valores como o consumismo, a competição, o destaque em relação aos demais, a sobreposição de uma moda que vai desde como se vestir até como usar a língua. O sucesso é uma forma de cindir a sociedade entre os que têm sucesso e aqueles que não o possuem. Numa palavra, sucesso é formação social da qual se necessita compreender a ideologia reproduzida no discurso, que, por sua vez, se imprime na prática da língua (Soares, 2016, p. 1082).

Por essa razão, afirmamos que os pré-construídos de sucesso são o próprio sucesso encarnado na verticalidade histórica, porquanto trazem à tona, quase que instantaneamente, a percepção e os sentidos do “já-conhecido”, estabelecendo uma ligação imediata do sujeito com dada voz de sucesso.

Consoante a isso, o caminho para o sucesso musical, geralmente, exige de seus aspirantes a cantores de sucesso, traços das vocalizações que se estabeleceram como “a voz melancólica de Leonard Cohen” (Dinheiro Vivo, 2016), “a incrível voz de David Bowie” (Vianna, 2014) ou mesmo “a voz de barítono de Johnny Cash” (O Globo, 2018). Estes são alguns sintagmas que fazem parte da formação discursiva midiática (Soares, 2018c) a qual regula e determina a voz de sucesso. Predominantemente nos discursos midiáticos, os dizeres sobre a voz de sucesso restituem, através das memórias, os traços distintivos que podem compor o sujeito da voz de sucesso (Soares, 2018a, 2018b, 2018c).

Essas vocalizações de sucesso, ao serem acionadas no campo interdiscursivo, fazem emergir as memórias da “boa voz” (melancólica, incrível, barítona, etc.) no campo intradiscursivo, no qual a materialidade linguística alinhava os sentidos de sucesso. Por essa razão, observamos a construção da intervocalidade. Sobre essa noção, Mendes ressalta que:

As qualidades vocais legitimadas pelos outros posicionamentos da prática discursiva literomusical e pelo interdiscurso têm primazia sobre a qualidade vocal de um cantor, a qual não pode ser considerada, conforme o ponto de vista da teoria que adotamos, como uma produção puramente individual, mas como forma de marcação posicional em um campo discursivo (Mendes, 2021, p. 61).

Desse trecho, ressaltamos que a articulação entre os elementos constitutivos dos sentidos da voz de sucesso (memórias) e a atualização destes através dos pré-construídos trazem os efeitos da intervocalidade (Mendes, 2021) como primazia e requisito para o alcance do sucesso. Em outros termos, “os efeitos do sucesso da voz já ouvida, o prestígio da voz já consolidada e já consagrada por essas mesmas redes que determinam a qualidade daquilo que se canta ou daquilo que se ouve” (Soares & Boucher, 2020) também pode possibilitar ao sujeito comum investido desses traços vocais já consagrados, a abertura para o hall de sucesso.

A partir desse entendimento, constatamos que a tensão entre os campos interdiscursivo e intradiscursivo (Courtine, 2014) não só promovem a continuidade histórica daquilo que compreendemos como a “boa voz”, mas também provocam a ruptura, a descontinuidade desses dizeres e dessa compreensão através da ilusão do novo. Ilusão, porque, como Foucault (2014, p. 25, aspas nossa), acreditamos que “o novo não está no que é dito ou cantado, mas no acontecimento de sua volta”. Consequentemente é desse retorno de traços distintivos da voz que a estética da escuta se retroalimenta, é posta em manutenção (Soares & Boucher, 2020).

Por essa razão, ao fazer essa interconexão entre conjunturas distintas, isto é, entre a consolidação do que foi sucesso e os dizeres atualizados acerca do aspirante a sujeito de sucesso, a estética da escuta já consolidada engendra, nesse sujeito da voz comum, os efeitos de prestígio, de fama, de poder e, por fim, o legitima, o autoriza e o potencializa como sujeito detentor da voz de sucesso. Após esse percurso teórico-metodológico acerca da intervocalidade, do papel das memórias sobre a voz e do discurso do sucesso como o regulador de sentidos e de sujeitos de grande prestígio vocal e social, passamos à análise.

2. Metodologia e Análise: Quem é Aurora, a cantora norueguesa citada pela Fuvest

Para um melhor processamento didático, dividimos o corpus em três Sequências Discursivas (doravante SD). Esse processo torna mais inteligível a compreensão do percurso temático empreendido pelo sujeito revista ao se utilizar de pré-construídos de sucesso (Henry, 1990; Courtine, 2014; Soares, 2018a, 2018b, 2018c) e dos funcionamentos discursivos que estes exercem. Dessa maneira, podemos depreender que o percurso temático do enunciador da revista perpassa pelo menos três efeitos de sentidos cujos processamentos parafrásticos se exprimem em: SD1) “no meio de sujeitos de prestígios”; SD2) “legitimidade para inserção do espaço de sucesso”; e SD3) os “pré-construídos de sucesso como paráfrase de experiência”. Após essa explicação, descrevemos e interpretamos a primeira SD1.

SD1: Quem é Aurora, a cantora norueguesa citada pela Fuvest . Entre os textos de base usados pela Fuvest 2019 neste domingo, primeiro dia da segunda fase da prova, estavam nomes conhecidos de testes do tipo, caso de Aluísio de Azevedo, Machado de Assis e João Guimarães Rosa (Carneiro, 2019).

Inicialmente, na SD1 acima, observamos os dizeres do sujeito revista Veja trazendo um questionamento “Quem é Aurora”. Após apresentar seu nome, especifica sua ocupação, “cantora” e sua origem “norueguesa”. Notamos desse enunciado os efeitos de vagueza e de surpresa que são postos em relevo por uma oposição semântica de desconhecimento vs. conhecimento, causado, em boa medida, pelo contraste sintático entre o sintagma “Aurora” e Fuvest”.

Este último sintagma, representa um pré-construído de sucesso no campo educacional. Se retrocedermos um pouco no contexto sócio-histórico, observaremos que desde 1976, data de sua criação, A Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest) cresceu consideravelmente e hoje é “a instituição responsável pela elaboração do vestibular da Universidade de São Paulo (USP), considerado o segundo maior processo de seleção universitária do Brasil” (Giordan, 2020).

Dessa interdiscursividade, podemos compreender como a revista põe em funcionamento a relevância do pré-construído “Aurora”. Ora, não é qualquer pessoa que está autorizada a despontar nos “textos de base usados pela Fuvest”. Como o sujeito enunciador Veja mesmo coloca, o sintagma “Aurora” se encontra dentre “os nomes conhecidos de testes do tipo, caso de Aluísio de Azevedo, Machado de Assis e João Guimarães Rosa (Carneiro, 2019)”. Desse enunciado, pressupomos, pelos valores semânticos de relevância engendrados no sintagma “Aurora”, a lógica do sucesso (Soares, 2018a, 2018b, 2018c) a qual não permite que sujeitos comuns apareçam em testes de prova reconhecidamente relevantes; muito menos ao lado de Aluísio de Azevedo ou de Machado de Assis, ícones da literatura.

Produzem-se, desse ponto, os sentidos que afluem na metáfora de “Diga com quem ela anda que eu te direi quem ela é”. De outro modo, considerando as condições de emergência do nome da cantora Aurora na renomada prova da Fuvest, ao lado de nomes famosos, reverberam-se os sentidos de que ela não é uma pessoa comum, porquanto é apresentada em prova de grande autoridade e junto de sujeitos de enorme prestígio no mundo literário. Abaixo, na SD2, poderemos observar o desenvolvimento argumentativo de Veja ao produzir o prestígio da cantora.

SD2: “Mas a personalidade citada pelo tradicional vestibular, que levou estudantes às redes sociais para ‘gritar’ de alegria, foi a jovem cantora norueguesa Aurora” (Carneiro, 2019, aspas da autora).

Ao examinar os elementos constitutivos da SD2 acima, destacamos que verbo, corpo e voz (Piovezani, 2009) são intrinsecamente enunciados por Veja no intricado processo de produção midiática acerca da voz do sucesso, orientando seu leitor a perceber a relevância da aparição de Aurora. Primeiramente não é qualquer vestibular. Aurora é citada “pelo tradicional vestibular” da Fuvest. Nesse enunciado, o sintagma “tradicional” traz os sentidos de reconhecimento, de prestígio, imprimindo a motivação “que levou estudantes às redes sociais para gritar de alegria”.

Este estado de exaltação violenta marcado pelo sintagma “gritar” evoca as memórias da tietagem, orientando e conduzindo o leitor de Veja para a região de sentido da phrenēsis (do delírio), comportamento tipicamente comum para os campos musical, cinematográfico ou outro na qual o prestígio, o sucesso e a fama fazem parte. Nesse sentido, o verbo gritar se apresenta como um pré-construído de sucesso (Soares, 2018a, 2018b, 2018c). Diferentemente de “gritar de dor”, “gritar de medo” ou “gritar nas ruas” em forma de protesto, o verbo enunciado por Veja reverbera sentidos de “uma construção anterior, exterior” (Courtine, 2014, p. 74) ao campo intradiscursivo que retoma em parte acontecimentos, memórias da phrenēsis artística. E ao perfazer o ritual, o cerimonial do sucesso, a revista desloca a posição dos “estudantes” a outra na qual estes figuram como “fãs” no momento de aparição de seu ídolo.

Como pré-construído de sucesso, o sintagma verbal “gritar” recursivamente reaparece nas “construções textuais cujas condições específicas de emergência e de produção se fazem sentir na relação do interdiscurso com o intradiscurso” (Soares, 2018a, p. 181), estando sucessivamente vinculado ao sujeito de sucesso. Nos trechos a seguir, poderemos perceber os efeitos de sucesso vinculando a prática da tietagem à posição ocupada pelos sujeitos comuns (fãs) sempre que o verbo supracitado emerge em enunciados desse campo de prestígio:

“Serj Tankian não aguenta mais sustos de fãs que gritam “WAKE UP” para ele na rua” (Miranda, 2023).

“Fãs gritam nome de ex de Wesley Safadão em show e prometem ‘gritaço’” (Pasin, 2016).

“Fãs gritam por New Order enquanto Mixhell aquece público no UMF” (Bolloussier, 2011).

Ao observarmos a configuração dos três enunciados e da disposição sintática dos sintagmas “fãs” e “gritam”, na tessitura enunciativa, constatamos que o grito marca a posição discursiva de quem o emite (não um revolucionário, não alguém que sofre, mas um sujeito que auxilia com esse ato a produção do prestígio e da relevância de seu ídolo) ao passo que aponta ainda um pré-construído de sucesso, a saber, Serj Tankian, Wesley Safadão, New Order e Mixhell.

O que esses sujeitos têm em comum? Na concepção de Soares (2018a p. 181), “são os sujeitos fabricados no interior do discurso do sucesso midiático”; atravessados por memórias constitutivas da notoriedade, da popularidade cujos efeitos fazem emergir, nos enunciados em que eles aparecem, a razão pela qual os fãs gritam e, consequentemente, estabelecem a “assimetria da fama” que separa sujeitos comuns de sujeitos de sucesso.

Nesse diapasão, a revista Veja, ao selecionar como léxico de identificação do sujeito o sintagma “personalidade”, aproxima Aurora da “Calçada da Fama”, ou melhor, a posiciona como celebridade, acabando por deslocar os sentidos de “estudantes que gritam de alegria” para outra região de sentido na qual é possível outro processamento parafrástico, a saber, “fãs que gritam de alegria”. Por essa razão, com dada configuração sintático-semântica, Veja constrói a legitimidade de Aurora em estar no meio de pré-construídos de sucesso (como Aluísio de Azevedo, Machado de Assis e João Guimarães Rosa, citados na SD1), consolidando o funcionamento de seu arranjo enunciativo com a inserção da cantora no espaço educacional de prestígio, o “tradicional vestibular” (da Fuvest), e estabelecendo a relação de sucesso de Aurora pela configuração sintática verbo (gritar), corpo (jovem) e voz (cantora).

Na SD3 abaixo, focamos nossa análise na relação semântica produzida pela configuração verbo/corpo/voz (Piovezani, 2009) e sua intrínseca relação com a intervocalidade (Mendes, 2021), descrevendo ainda como os pré-construídos de sucesso (Soares, 2018a) põem em manutenção a estética da recepção do sucesso (Soares & Boucher, 2020) através dos discursos midiáticos os quais veiculam materialidades acerca da voz. Desse último percurso analítico, buscamos depreender como os efeitos dessas substâncias discursivas podem produzir sujeitos e sentidos do sucesso. Desse ponto, examinaremos o funcionamento e o papel das memórias sobre a voz de sucesso no entrelaçamento dessas com a tessitura discursiva sobre a voz/sujeito em ascensão. Desse batimento inter e intradiscursivo, buscamos observar os pré-construídos de sucesso como paráfrase de experiência ao exercer função relativa (Henry, 1990).

SD3: Apesar da carinha de adolescente e de seus 20 e poucos anos nas costas, Aurora é fã de grandes nomes da música do passado. Caso de Leonard Cohen, David Bowie, Bob Dylan, Björk e Johnny Cash. Deles, ela herdou a sonoridade do soul e do rock melódico, e a habilidade de contar histórias em suas letras. Além de compor e cantar, Aurora também é bailarina, talento usado por ela em videoclipes e shows (Carneiro, 2019).

Para uma melhor compreensão da configuração sintático-semântica do recorte enunciativo acima, descrevemos sua estruturação em três percursos temáticos que emergem os efeitos de: a) identidade e referência; b) herança e criatividade; e c) voz e corporalidade. O primeiro percurso traz ao leitor a formação da identidade de Aurora apesar de sua pouca idade e de sua voz como legado de seu sucesso. O segundo trajeto temático (Guilhaumou & Maldidier, 2010) faz ressoar as memórias da voz de sucesso, isto é, a herança intervocal e a habilidade de criação que Veja atribui a Aurora. Por último, no terceiro trajeto, a revista procura ecoar os sentidos da “boa voz” que é complementada com outros talentos que ela carrega como, por exemplo, “dançar”.

Sobre a identidade vocal de Aurora, Veja procura demarcar a intervocalidade como a corresponsável pelos traços de sua voz de sucesso. Seguindo uma das noções fulcrais de Soares (2018a, p. 193) sobre a constituição das imagens de prestígio, concordamos que “sujeitos e sentidos são produzidos ao mesmo tempo em que o discurso é posto em marcha, de tal modo a não ser possível dizer de um sem dizer do outro”. Nesse sentido, o fato da cantora “ter carinha de adolescente” e ter “20 e poucos anos nas costas”, sua curta caminhada na estrada de sucesso é pavimentada por grandes nomes da música como “Leonard Cohen, David Bowie, Bob Dylan, Björk e Johnny Cash”.

A oposição semântica de inexperiência vs. experiência cria um processamento metafórico que desencadeia a projeção da “balança equilibrada”. De um lado, sua curta carreira, conduzindo para os sentidos da possível inexperiência. Do outro lado, seu fanatismo por cantores de sucesso que a levou a reproduzir “a sonoridade do soul e do rock melódico”. Ora, o equilíbrio entre essa oposição semântica se desfaz pelo “fiel da balança linguística”, o advérbio “Apesar de” que indica, nesse enunciado, a ideia oposta do primeiro sintagma “carinha de adolescente e de seus 20 e poucos anos nas costas” e orienta o leitor a compreender que sua herança vocal supera sua curta caminhada no mundo da música.

Pela intervocalidade (Mendes, 2021), observamos que os pré-construídos de sucesso “Leonard Cohen, David Bowie, Bob Dylan, Björk e Johnny Cash” é que fazem de Aurora uma referência na música. Nessa lógica trazida pelo discurso do sucesso, nem a criatividade, nem os traços vocais de Aurora são natos, mas herdados, reproduzidos por uma referência externa e anterior à de sua experiência vocal, como Veja procura estabelecer ao enunciar que “ela herdou a sonoridade do soul e do rock melódico, e a habilidade de contar histórias em suas letras”.

Sobre essa intervocalidade trazida pelos pré-construídos de sucesso, Mendes (2021) afirma que

Há um processo circular na constituição de qualquer qualidade vocal que incorpora valores já adquiridos por outras no campo discursivo no qual tomam parte e no interdiscurso, ao mesmo tempo em que, ao se constituir, reatualiza esses valores, retroalimentado-os com novas imagens e reforçando e difundindo aquelas já estabelecidas na memória coletiva: (Mendes, 2021, p. 61).

Ao observar o trecho em que Mendes (2021) descreve a atualização de valores do campo interdiscursivo sobre a qualidade vocal, chegamos à compreensão, assim como Soares (2018a, p. 183, itálico nosso), de que “o sucesso é homogêneo, mas a voz é heterogênea. De outro modo, a revista ao discursivizar uma cantora não tão conhecida por seus leitores (e pela maioria dos ouvintes no contexto em que Aurora aparece), precisa vincular a aspirante da voz de sucesso às celebridades já consagradas no mundo da música. Por essa razão, concordamos com a máxima de que “uma notícia cuja voz é um dos centros de seu dizer tem uma celebridade como alvo segundo a qual orbita estratégias de construção de efeitos de sucesso sobre a voz” (Soares, 2018a, p. 182).

3. Considerações finais

Após nosso percurso analítico, é possível sopesar e tecer algumas reflexões sobre a intervocalidade, o potencial heurístico dos pré-construídos de sucesso e sobre a estética da escuta. Assim, pelo funcionamento da intervocalidade, pudemos compreender que os pré-construídos de sucesso tais como “Leonard Cohen”, “David Bowie”, “Bob Dylan”, “Björk” e “Johnny Cash” funcionam como elementos constitutivos dos traços distintivos vocais de “Aurora” cuja reprodução vocal remonta e põe em manutenção o padrão estético da escuta (Soares & Boucher, 2020). Além disso, é este padrão estético já consolidado como “vozes de sucesso” pelas extensas e contínuas redes de dizeres sobre a voz que permite dizer que a voz “Y” na atualidade ocupa um espaço privilegiado, porquanto retoma os mesmos traços de “X” do passado.

Contudo, se observarmos de forma minuciosa a dinâmica da intervocalidade, a sua natureza constitutiva, como um recurso midiático na fabricação das vozes de sucesso, perceberemos que a estética de sucesso se constitui não só através de um saber discursivo o qual viabiliza todo dizer (Orlandi, 2015), mas também pelo retorno às vocalizações consagradas e associadas a pré-construídos de sucesso como os supracitados.

Por essa razão, podemos afirmar que o sucesso não emana e se perfaz somente por aquilo que se diz ou por aquilo que se canta, mas por uma grandeza maior que determina os dois, a saber, as memórias sobre a “boa voz” engendradas num “consenso coletivo”, numa formação imaginária que projeta enunciados-verdades sobre a voz de alta qualidade, ou seja, sobre o conjunto de traços distintivos vocais estabilizados e já consolidados como determinada estética vocal de sucesso.

Ora, assim como Pêcheux (1997) não deixa de considerar a ideologia como constitutiva da linguagem ao contemplar a noção de formação discursiva; e assim como Soares (2019, p. 43) bem sustenta a consolidação pecheuxtiana ao afirmar que tal ideologia “não existe per se, mas, isto sim, materializada no nível global das relações sociais”, podemos também constatar que a voz de sucesso engloba uma prática discursiva que, materializada nos dizeres sobre a “boa voz”, “tem um vínculo estreito com o entrecruzamento do discursivo e do não discursivo” (Soares, 2019, p. 42), ou melhor, da relação entre continuidade e descontinuidade histórica.

Por essa razão, assim como pensa Pêcheux (1997), respeitando, é claro, o distanciamento entre o objeto discursivo analisado, constatamos que se trata de observar as relações dos efeitos de sentidos sobre a voz de sucesso que outrora marcaram posições, estabeleceram distanciamento entre qualificação e desqualificação vocal, com aqueles discursos latentes na atualidade musical que engendram em sujeitos cantores os atributos do sucesso.

Ademais, ao investigarmos os funcionamentos discursivos no escopo da revista Veja, pudemos constatar que a construção da recepção da voz de sucesso passa pelos dizeres midiáticos que determinam a estética vocal de sucesso e, em grande parte, constituem, pela intervocalidade, pela busca de um empréstimo dos traços vocais da voz consagrada, a “‘escuta’ ligada aos holofotes e microfones midiáticos” (Soares & Boucher, 2020, p. 106, aspas do autor). Assim como Mendes (2021), é possível afirmar que “pela ótica da AD, podemos pensar que um determinado modo de cantar surge com origem de uma espécie de intervocalidade que lhe é constitutiva e lhe precede” (Mendes, 2021, p. 60).

Dessa percepção de Mendes (2021), constatamos também que essas vocalizações de sucesso ao serem acionadas no campo interdiscursivo, fazendo emergir as memórias da “boa voz” no campo intradiscursivo, no qual a materialidade linguística alinhava os sentidos de sucesso, possibilita-nos ainda a afirmação de que o potencial heurístico do pré-construído de sucesso (Soares, 2018a, 2018b, 2018c) é um estudo que cabe ser priorizado, pois esse, como configuração sintático-semântica e como dinamizador de transferências e de deslocamentos de regiões de sentidos sobre a fama, tem a potência de ressignificar o funcionamento a partir do sucesso como memória constitutiva da estética vocal.

Por todas essas considerações teórico-metodológicas e pelo caminho percorrido até aqui, chegamos a uma (in)conclusão de que os funcionamentos discursivos midiáticos que viabilizam a manutenção da estética da recepção, em boa medida, provêm dos pré-construídos de sucesso, engendrados nas redes de dizeres sobre a fama. Por essa razão, acreditamos no poder da voz como uma materialidade discursiva capaz de permitir a constituição de sentidos e de sujeitos de sucesso contemporâneos.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  04 Dez 2023
• Data do Fascículo
  2023

Histórico

• Recebido
  08 Maio 2023
• Aceito
  24 Out 2023