Acessibilidade / Reportar erro

Bastidores da produção do conhecimento feminista,a nova seção da cadernos pagu*

Em janeiro de 1993, foi publicado o primeiro número da revista cadernos pagu . Na apresentação, assinada por Adriana Piscitelli, a cadernos foi introduzida às leitoras. “Esta é uma publicação intimamente ligada aos interesses e atividades de um grupo: um coletivo acadêmico interdisciplinar que pretende, através do trabalho conjunto, aprofundar-se no conhecimento em torno das categorias de gênero” ( Piscitelli, 1993PISCITELLI, Adriana. Apresentação. cadernos pagu (01), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp 1993, pp.5-6.: 05).

Originalmente, os “nossos cadernos” ( Piscitelli, 1993PISCITELLI, Adriana. Apresentação. cadernos pagu (01), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp 1993, pp.5-6.: 06) foram pensados enquanto esforço coletivo para publicação e visibilidade das análises e reflexões que vinham sendo trabalhadas por acadêmicas feministas em diversos escopos disciplinares. Naquele contexto, a atenção se voltava particularmente para as junções e disjunções entre as categorias gênero e mulher (ou mulheres ), como o artigo de Suely Kofes (1993)KOFES, Suely. Categoria analítica e empírica: gênero e mulher. cadernos pagu (01), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1993, pp.19-30. analisava por meio do diálogo com as então quentes provocações de Joan Scott (1988)SCOTT, Joan. Gender and the politics of history, New York, Columbia University Press, 1988. e Marilyn Strathern (1988)STRATHERN, Marilyn. The gender of the gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. Berkley, Los Angeles: University of California Press, 1988. .

Passados vinte e nove anos, o Comitê Editorial da revista cadernos pagu apresenta os Bastidores da produção do conhecimento feminista . A seção é pensada como um novo espaço de reflexão e publicização de materiais brutos de pesquisa que possam contribuir para o desenvolvimento e a problematização de questões variadas e caras ao pensamento e conhecimento feminista. Mais, em deferência aos objetivos que impulsionaram a formulação da revista, a nova seção ambiciona visibilizar os processos acadêmicos científicos através dos quais artigos, resenhas e dossiês são feitos. Nesse sentido, assumimos como constituinte desse processo a feitura sempre inacabada e dialógica do conhecimento feminista, visto aqui como uma prática em constante transformação pelas relações e debates estabelecidos por suas autoras.

Em interlocução com a história da revista, esta seção expõe a forma pela qual a cadernos pagu propõe abertura e divulgação da “ciência” em seus métodos, dados e procedimentos avaliativos. Assim sendo, a proposta objetiva criar uma forma autoral de “ciência aberta” no âmbito do conhecimento feminista. Proveniente das políticas científicas respaldadas em práticas e experimentos colocados a cabo, particularmente, pelas ciências biológicas e da saúde, a “ciência aberta” vem sendo paulatinamente capilarizada nas áreas das humanidades, letras e artes, inclusive sendo objeto de análises críticas no âmbito dessas áreas de conhecimento. A relação dos feminismos com as epistêmes científicas tem sido articulada por meio dos escrutínios argutos de um importante campo de produção de saber.

A seção Bastidores da produção do conhecimento feminista mira demandas contemporâneas da produção cientifica, voltando-se para o fazer acadêmico proposto por aquelas que fundaram nossa revista e o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu.

O segundo número da cadernos pagu , publicado em 1994, estreou a seção Documentos , que tinha como proposta publicar arquivos e materiais de pesquisa coletados ao longo dos campos de pesquisa das autoras. O primeiro documento publicado na seção foi coletado e comentado pela historiadora Leila Mezan Algranti. Em “Casar-se ou meter-se freira: opções para a mulher colonial?”, Algranti (1994) transcreve um documento sem data, mas estimado de ter sido produzido entre os séculos XVII e XVIII, copiado por ela desde o arquivo da Biblioteca Nacional. A autora da pesquisa anuncia uma hipótese: por meio do documento exposto sem qualquer tratamento de dados, abria-se precedente para análises acerca dos motivos para a proibição de conventos na colônia portuguesa ultramarina.

A seção Documentos foi encerrada em 2006, no número 27, com a publicação de um arquivo que dialogava com o dossiê “Ciência, substantivo feminino, plural”, organizado pela geóloga e historiadora Maria Margareth Lopes. O material que a antropóloga argentina Irina Podgorny publicou na seção contou a história de Emma Bravard, que teve sua trajetória “sepultada” pelas biografias da carreira do marido Auguste Bravard, estudioso de fósseis da América do Sul. Em seu documento, Podgorny apresentava dados coletados no Arquivo Bravard do Museu de história natural Henri Lecoq, situado na cidade francesa Clermond-Ferrant. Podgorny argumenta que os documentos elencados permitem demonstrar embaralhamentos dos documentos matrimoniais aos diários e arquivos científicos do naturalista francês, fazendo entrever a produção de conhecimento geológico de Emma.

Em 2018, no número 54, Iara Beleli retoma a tônica dos documentos publicados na cadernos pagu no dossiê, organizado pelas antropólogas Heloisa Pontes e Maria Filomena Gregori, que homenageou a trajetória e o legado de Mariza Corrêa − antropóloga feminista fundadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, bem como desta revista. O texto, apresentado por Iara Beleli, conta a história de um documento inédito, escrito por Mariza Corrêa que, taxativamente, negou sua publicação em vida ordenando: “NÃO! Quando eu morrer, você faz o que quiser com esse texto” ( Beleli, 2018BELELI, Iara. “cara, cor, corpo” e a constituição do campo dos estudos de gênero. cadernos pagu (54), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018 [http://dx.doi.org/10.1590/18094449201800540008 - acesso em 29 de junho de 2022].
http://dx.doi.org/10.1590/18094449201800...
: 01). Não nos parece coincidência que as últimas menções à seção Documentos foram realizadas em dossiês sobre feminismos e produção científica, e em uma homenagem à Mariza Corrêa, astuta analista e estudiosa dos processos de fazer saber e poder.

O exercício de publicações de documentos realizado nos anos de 1990 na cadernos pagu parece ter ecos no que hoje os indexadores de revistas científicas de todo mundo têm chamado de metadados. A demanda pela publicação de metadados de pesquisa viabiliza democratização da produção cientifica, mas também parece invisibilizar as minúcias relacionadas às coletas de dados produzidos desde as ciências humanas e, mais particularmente, desde os estudos de gênero. Com isso estamos querendo afirmar que as especificidades e os contextos em que algumas pesquisas são realizadas, muitas vezes delicados e de extremas fragilidades, envolvem relações de cumplicidade, afeto, confiança e expectativas de transformação social, por exemplo, que não são explicitadas na publicização sob a alcunha de metadados. Se é fundante desse nosso campo de conhecimento que os saberes são sempre localizados (Haraway, 2009), logo, como podemos considerar a publicação de metadados sem levar em conta a produção corporal, contingente e situada de cada um dos dados coletados?

Por tal razão, os materiais a serem disponibilizados na seção não estarão deslocados das perspectivas, dos saberes e dos corpos que os produziram. Estes trarão uma breve descrição de como foram produzidos e recolhidos pelas pesquisadoras, assim como as motivações que levam a crer que a disponibilização de tais dados corrobora para o desenvolvimento, a consolidação e a transformação do conhecimento feminista e dos estudos de gênero e sexualidade. Tais descrições não implicam tratamento, sistematização ou análise destes dados. Todavia, implica contextualização e uma tentativa de explicitar algumas das minúcias acima indicadas e que constituem as ciências humanas e os estudos de gênero. Dessa maneira, a seção Bastidores da produção do conhecimento feminista insere a cadernos pagu na seara das novas demandas por ciência aberta, rememorando as velhas práticas de partilhas críticas e analíticas dos coletivos de pesquisa feminista, dos quais a revista decorre.

A seção inaugura, ainda, uma nova prática de partilha. Chamada de “comentários críticos”, a subseção abre para autoras e leitoras parte do processo avaliativo dos artigos publicados na revista. Como é sabido, a cadernos pagu adota como critério a emissão de pareceres de maneira “duplo-cego”, isto é, pareceristas e autoras permanecem anônimas durante toda a etapa do processo de avaliação. Em razão disso, as recomendações e sugestões oferecidas pelos pareceres aos manuscritos são encaminhadas pela equipe editorial às autoras sem que saibam a origem de tais indicações. Esse processo visa proporcionar leituras externas que ajudem no detalhamento de algumas ideias, no adensamento de outras tantas e no aperfeiçoamento das reflexões empreendidas. Os pareceres possibilitam a oportunidade de acréscimo e modificação do manuscrito original submetido à revista, mas também possibilitam, mediante justificativas fundamentadas, que algumas das sugestões sejam rejeitadas pelas autoras.

Para além da avaliação por pares, comum à validação do conhecimento científico, consideramos que a emissão de pareceres é uma das muitas práticas que atravessam a produção do conhecimento, inescapavelmente feita por meio de diálogos coletivos e debates teórico-analíticos. Por tal motivação, acreditamos que apresentar alguns dos pareceres, bem como as trocas realizadas entre autoras e pareceristas até a consolidação do texto final em formato do artigo a ser publicado na cadernos , é uma estratégia que cumpre as demandas por transparência no fazer científico, mas, principalmente, reforça o caráter dialógico e situado da produção deste conhecimento. Se, como bem afirmou Schiebinger (2001), o feminismo mudou a ciência, acreditamos que o fez ao explicitar que, entre outros elementos, ciência se faz tendo em conta posições, perspectivas e abordagens localizadas que são partilhadas por distintos sujeitos e interesses.

Com a seção Bastidores da produção do conhecimento feminista , a cadernos pagu objetiva atender às demandas por ciência aberta, sem deixar de lado sua postura crítica sobre as generalizações que tal modelo impõe às diferentes áreas do conhecimento. Entendemos que as novas práticas de ciência aberta devam partir de uma construção coletiva no interior das diferentes áreas do conhecimento, com o envolvimento direto de seus próprios pesquisadores. Nesse sentido, a nova seção poderá ter seu desafio expandido, servindo ainda como um espaço de experimentação, que pode favorecer a reflexão sobre o modelo de produção de conhecimento nas ciências humanas, mais particularmente nos estudos de gênero e nas teorias feministas.

A nova seção destes nossos cadernos é inaugurada no número 65, de 2022, com a publicação dos comentários críticos de Laura Murray, que atuou como avaliadora do artigo “Andando entre cabarés: conhecendo os saberes da putaria”, escrito por Adriely Clarindo; Jésio Zamboni e Rafaela Werneck Martins. Em seus comentários, Murray tensiona prazer e trabalho com a obrigação acadêmica de fazer pareceres, a qual se embaralha com o gozo implícito na leitura de artigos originais que, como o texto escrito por Clarindo, Zamboni e Martins, avançam e subvertem paradigmas acadêmicos. Conhecedora do campo dos estudos sobre trabalho sexual, a autora dos comentários críticos qu e inauguram os Bastidores da produção do conhecimento feminista avança para o diálogo com outro artigo publicado neste número que não foi por ela avaliado, o texto “Fabulação autoetnográfica – experiência e posição numa pesquisa sobre prostituição de luxo” da autora Natânia Lopes.

Damos início à nova seção dos nossos cadernos de maneira estimulante. Mirando os avanços possibilitados pela abertura das coxias do conhecimento feminista, resgatamos as migalhas delicada e assertivamente deixadas por aquelas que antes abriram as cortinas. A história da produção feminista, afinal, nos ensina que aquilo o que é reiteradamente ofuscado pelos holofotes das ciências, caminha na costura fina do saber fazer conhecimento e política nas relações que se estabelecem atrás das cortinas.

Boas leituras!

AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Luciana Camargo Bueno, editora executiva da cadernos pagu , pela leitura cuidadosa e pela interlocução diária, por meio da qual conhecemos a história da revista e aprendemos a produzir conhecimento político feminista nas coxias do fazer acadêmico. Agradecemos, ainda, aos integrantes do comitê editorial, sem os quais a ideia desta nova seção não poderia ter sido materializada. O editorial sobre a seção “Bastidores da produção do conhecimento feminista” foi escrito a seis mãos.

Referências bibliográficas

  • ALGRANTI, Leila. Casar ou Meter-se Freira: opções para a mulher colonial. cadernos pagu (02), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp 1994, pp.204-209.
  • BELELI, Iara. “cara, cor, corpo” e a constituição do campo dos estudos de gênero. cadernos pagu (54), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018 [http://dx.doi.org/10.1590/18094449201800540008 - acesso em 29 de junho de 2022].
    » http://dx.doi.org/10.1590/18094449201800540008
  • HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. cadernos pagu (5), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995, pp. –41.
  • KOFES, Suely. Categoria analítica e empírica: gênero e mulher. cadernos pagu (01), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1993, pp.19-30.
  • LOPES, Maria Margaret. Apresentação. cadernos pagu (27), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.7-8.
  • STRATHERN, Marilyn. The gender of the gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. Berkley, Los Angeles: University of California Press, 1988.
  • PISCITELLI, Adriana. Apresentação. cadernos pagu (01), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp 1993, pp.5-6.
  • PODGORNY, Irina. Emma B. Documentos para servir al estudio de la estructura familiar de los coleccionistas de fósiles: El caso de Emma y Auguste Bravard. cadernos pagu (27), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2006, pp.479-495.
  • PONTES, Heloisa; GREGORI, Maria Filomena. Mariza Corrêa: laços, memória e escritos,.cadernos pagu (54), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018 [http://dx.doi.org/10.1590/18094449201800540000 - acesso em 29 de junho de 2022].
    » http://dx.doi.org/10.1590/18094449201800540000
  • SCHIENBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? Bauru-SP, EDUSC, 2001.
  • SCOTT, Joan. Gender and the politics of history, New York, Columbia University Press, 1988.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022
Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br