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Hildegard e Alice: fotógrafas imigrantes e as imagens do espaço urbano

DINES, Yara Schreiber. Hildegard Rosenthal e Alice Brill, fotógrafas de além-mar: cosmopolitismo e modernidade nos olhares sobre São PauloSão Paulo: Intermeios, 2020

Estamos, há alguns anos, vivendo um momento de resgate histórico de importantes nomes de mulheres em diversos campos do conhecimento. Nas artes visuais, e aqui falamos mais especificamente da área de fotografia, muitos trabalhos realizados por mulheres pioneiras vêm tendo seu caráter inovador reconhecido e estudado com o devido aprofundamento apenas após o falecimento de suas autoras. Nesse movimento, Yara Schreiber Dines, pós-doutora em Fotografia pela Universidade de São Paulo e doutora em Antropologia Social, apresenta-nos os trabalhos das fotógrafas Hildegard Rosenthal e Alice Brill, enfatizando que elas “são consideradas como pioneiras da produção documental e de caráter fotojornalista no Brasil na época” (Dines, 2020:49).

Na obra intitulada Hildegard Rosenthal e Alice Brill, fotógrafas de além-mar: cosmopolitismo e modernidade nos olhares sobre São Paulo (2020), resultado de sua pesquisa de pós-doutorado, a autora Yara Schreiber Dines analisa criticamente as produções dessas duas fotógrafas dando ênfase à condição de imigrantes e de mulheres, características que as duas tinham em comum. Existem outros aspectos que aproximam as duas fotógrafas, como o fato de terem realizado suas formações em fotografia na década de 1920, na Alemanha, e terem saído da Europa nos anos 1930, buscando refúgio e lugar seguro após a ascensão do nacional-socialismo. Para chegar à seleção do corpo de trabalho apresentado no livro, a autora realizou pesquisa em acervos, principalmente no Instituto Moreira Salles e no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, bem como coletou depoimentos e imagens com familiares das fotógrafas e colegas fotógrafos da época (Dines, 2020DINES, Yara Schreiber. Hildegard Rosenthal e Alice Brill, fotógrafas de além-mar: cosmopolitismo e modernidade nos olhares sobre São Paulo. São Paulo, Intermeios, 2020.).

O livro é publicado pela editora Intermeios e faz parte da coleção entreGêneros, dirigida pela historiadora feminista Margareth Rago, que concentra publicações críticas sobre questões de gênero, sexualidade e corpo. Como o título antecipa, boa parte das imagens produzidas por essas mulheres foram realizadas no centro da cidade de São Paulo, ou seja, são fotografias urbanas. O recorte temporal da produção imagética situa-se nas décadas de 1940 e 1950. A obra constitui importante referência tanto para os estudos feministas e de biografias de mulheres quanto para a história da fotografia, das cidades e da construção da modernidade no Brasil.

No primeiro capítulo, “Hildegard Baum e Alice Brill, formação e despertar da sensibilidade: entre vanguardas e sombras”, a autora realiza uma apresentação histórica do cenário político e social da Alemanha no início do século XX, finalizando com o relato da emigração das duas fotógrafas até chegarem ao Brasil, especificamente na cidade de São Paulo. No capítulo dois, “São Paulo na imagética de Hildegard Rosenthal e de Alice Brill, fotógrafas imigrantes modernas”, tomamos conhecimento do processo de inserção delas em São Paulo e somos apresentadas a um recorte das suas produções fotográficas sobre a cidade nos anos 1940 e 1950. E, finalmente, no capítulo três, “O autorretrato e o alter ego de Hildegard Rosenthal, em São Paulo, duplos em diálogo com a fotografia moderna”, há uma análise detalhada de ensaios fotográficos de autoria de Hildegard Rosenthal. Uma das séries é composta de autorretratos e a outra de fotografias urbanas encenadas, sendo esta última intitulada pela autora do livro como Série alter ego. Ambos os conjuntos imagéticos revelam o caráter inovador e precursor dessa fotógrafa.

Logo no capítulo 1 recebemos informações históricas sobre a situação de vida das mulheres na Alemanha nos anos 1920 e 1930, época das mães de Alice e Hildegard. Descobrimos que as alemãs votaram pela primeira vez em 1919 e que o clima de liberdade propiciou o surgimento de novos “tipos de mulheres” na época, como “a la garçonne”, um tipo, segundo a autora, “esportiva e sexualmente liberada” (p.19). Apesar dos grandes avanços vividos por elas, com a ascensão do regime nazista, o conservadorismo voltou a ganhar força e muitas mulheres tiveram de voltar a se limitar ao âmbito doméstico, atuando exclusivamente como donas de casa, esposas e mães. Mas Alice e Hildegard tiveram seus aprendizados fotográfico e artístico antes desse endurecimento, antes da arte moderna ser perseguida e considerada degenerada. No final da década de 1920, a Nova Visão e a Nova Objetividade surgiram como movimentos e a fotografia ganhou mais destaque nas artes visuais. É possível observar em seus trabalhos no Brasil influências dessas correntes que estavam em voga, bem como do Expressionismo e de Bauhaus. Outra característica muito presente na fotografia moderna e nos trabalhos de Alice e de Hildegard é a composição de séries e narrativas fotográficas, questão que Dines aborda no livro.

Por terem vivenciado esse momento de liberdade artística, Hildegard e Alice foram pioneiras em muitos sentidos nas suas produções em solo brasileiro, principalmente por serem mulheres realizando ensaios fotográficos urbanos. Na época, os poucos estúdios dirigidos por mulheres no Brasil faziam retratos em ambientes fechados, elas não saíam às ruas para produzir imagens. Segundo a autora,

Hildegard Rosenthal e Alice Brill são vistas como pioneiras em virtude de realizarem ensaios fotográficos no espaço público, principalmente de rua, das suas formas de ocupação e uso pelos moradores de São Paulo e também de algumas outras cidades do Brasil, e por serem fotojornalistas, apresentando um olhar moderno e humanista nesta expressão artística (p.41).

A produção urbana se destaca no capítulo 2, em que são apresentadas várias imagens das fotógrafas e, no capítulo 3, com os ensaios do alter ego de Hildegard. Em ambos os capítulos Yara Schreiber Dines usa as fotografias “como artefatos para se pensar as culturas” (p.44) em suas leituras de imagem, trazendo consistentes análises críticas. Nas fotografias urbanas realizadas por elas, é destacado o aspecto humano que aparece pois, além de representarem o crescimento da cidade moderna e a expansão da metrópole com seus edifícios e novas construções, elas enfatizavam em suas produções os modos como o cidadão utiliza a cidade. A autora contextualiza a produção moderna de fotografia em São Paulo nos anos 1940 e 1950, tendo sempre como pressuposto a condição de Alice e Hildegard como imigrantes e mulheres na cidade:

Sendo imigrantes europeias e vindo de cidades grandes na Alemanha, além das experiências no exílio, a vivência do uso e da ocupação da rua está internalizada nas artistas, acostumadas a circular de forma autônoma no espaço público, o que é uma diferença marcante em relação às mulheres de São Paulo nos anos 1930 e 1940. Nessa época, as frequentadoras do centro e da rua da metrópole paulistana eram principalmente trabalhadoras da área de escritórios, educação e serviços (p.50).

Yara Schreiber Dines analisa as imagens a partir da antropologia visual, da antropologia urbana e da história da arte, trazendo elementos iconográficos, estilísticos, históricos e sociais. Ao fazer esse movimento, nota que aparecem poucas mulheres circulando no centro de São Paulo (p.56), temática que Hildegard desenvolve em seus ensaios em conjunto com uma amiga. Além da leitura das imagens das fotógrafas, a autora também realiza diálogo com a produção fotográfica da época na cidade, com outros nomes da fotografia contemporâneos a elas, relacionando elementos de estilo e “personagens” muito presentes nas imagens, como o edifício Martinelli, os bondes, as construções, as multidões que começavam a se formar, os tipos sociais e o cotidiano.

Nesta resenha, como pesquisadora e fotógrafa urbana, tomo a liberdade de trazer algumas referências que me acompanharam ao ler a obra de Dines. As fotografias de Alice no centro da cidade, mostrando a multiplicidade de tipos humanos e de usos do espaço urbano me lembram as imagens da fotógrafa norte-americana Vivian Maier (1926–2009). Vivian Maier teve seu trabalho reconhecido apenas após a sua morte, quando um agente imobiliário encontrou negativos de suas fotografias ainda não reveladas. Vivian trabalhava como babá e fotografava nas horas vagas ou enquanto passeava com as crianças, assim, sempre estava com sua câmera Rolleiflex. Ela se transformou em referência de fotografia de rua, tendo realizado seu corpo de trabalho após os anos 1950, principalmente nas cidades de Nova York e Chicago. A grande maioria de suas fotografias ainda não foi revelada, os filmes encontrados até então somam mais de 100 mil negativos1 1 Disponível em: http://www.vivianmaier.com/. Acesso em: outubro de 2020. . A redescoberta tardia de acervos de fotógrafas é algo comum, aconteceu também com Alice e Hildegard, que após os anos 1970 tiveram suas fotografias circulando em exposições.

O trabalho das fotógrafas citadas também se aproxima no modo como é feito: a partir da presença das suas corporalidades em grandes metrópoles, como mulheres que caminham na rua realizando imagens, segundo Schreiber Dines (p.113), uma “flânerie do gênero feminino no espaço público”. A pesquisadora feminista Leslie Kern (2021KERN, Leslie. Cidade feminista: a luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens. Rio de Janeiro, Oficina Raquel, 2021.:122), salienta que “para as mulheres, no entanto, ser uma flanadora é preocupante. Gostar de ficar sozinha exige respeito pelo espaço pessoal, um privilégio que raramente foi concedido às mulheres”. O flâneur ficou muito ligado à figura do fotógrafo de rua, pois basta acrescentar uma câmera ao personagem do caminhante e assim ele passa a produzir imagens em suas errâncias. Poderíamos assim fazer uma flexão de gênero, colocando a fotógrafa de rua e a artista que perambula pela rua como o feminino do flâneur, a flâneuse, mas esse jogo de palavras não é tão simples, como explica a escritora Lauren Elkin (2016ELKIN, Laura. A tribute to female flâneurs: the women who reclaimed our city streets. The Guardian, 29 jul. 2016 [https://www.theguardian.com/cities/2016/jul/29/female-flaneur-women-reclaim-streets?CMP=fb_a-cities_b-gdncities - acesso em: ago. 2020].
https://www.theguardian.com/cities/2016/...
, tradução nossa): “Talvez a resposta não seja tentar fazer uma mulher caber em um conceito masculino, mas redefinir o conceito em si. [...] Em vez de vagar sem rumo, como seu oposto masculino, a mulher flâneur tem um elemento de transgressão: ela vai para onde ela não deveria ir2 2 No original: “Perhaps the answer is not to attempt to make a woman fit a masculine concept, but to redefine the concept itself. […] Rather than wandering aimlessly, like her male counterpart, the female flâneur has an element of transgression: she goes where she’s not supposed to”. ”.

Ao chegarmos às produções de ensaios de Hildegard Rosenthal, gostaria de focar nas imagens que ela realizou com uma amiga caminhando pelo centro da cidade. Relaciono essa produção com um ensaio intitulado An American girl in Italy, realizado por Ruth Orkin (1921–1985), fotógrafa norte-americana. Ninalee Craig posou para Ruth na cidade de Florença, na Itália, em 1951. Juntas, as duas criaram uma série de imagens, dentre elas há uma muito famosa em que Ninalee passa por um grupo de homens italianos que a olham, assobiam, dão risada. Por mais que Ninalee fale do momento registrado na fotografia como uma mulher independente sendo apreciada (Radnor, 30 jan. 2015), não é esse sentimento que a imagem provoca em mim. Ela traz a sensação de que a rua, o espaço público, não é um lugar seguro para uma mulher desacompanhada de um homem, o assédio masculino é uma constante. Essa imagem me remete a duas fotos do ensaio de Hildegard Rosenthal: uma em que sua amiga é nitidamente a única mulher caminhando em meio a vários homens cruzando uma rua de São Paulo (p.108); ela está de vestido e se destaca em meio aos vários ternos e chapéus. Na segunda fotografia ela está subindo em um ônibus, com metade do seu corpo já dentro do veículo (p.110) e, atrás dela, esperando para subir no transporte, está parado um homem que parece olhar para o seu corpo. Para mim essas imagens ilustram os movimentos transgressivos das flâneuses, ao mesmo tempo que mostram a impossibilidade de serem invisíveis em espaços majoritariamente masculinos, tanto a fotografada quanto a fotógrafa. É importante salientar que esses ensaios foram realizados a partir de parcerias de mulheres, supostamente amigas, em um contexto em que “o poder da amizade feminina é tipicamente subestimado, minado ou ignorado em todas as narrativas culturais. Há poucos exemplos que falam da importância das amizades femininas em relação à vida na cidade” (Kern, 2021KERN, Leslie. Cidade feminista: a luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens. Rio de Janeiro, Oficina Raquel, 2021.:82). Esses exemplos visuais de mulheres interagindo entre si e com o espaço urbano são extremamente representativos.

Ao mesmo tempo em que Hildegard realizou essas fotos com sua amiga nas ruas da cidade, representando uma mulher no espaço público, ela também fez ensaios de autorretratos posados dentro de casa, no espaço privado. Yara Schreiber Dines nos apresenta seis autorretratos construídos por Hildegard nessa encenação de si mesma, ela aparece trabalhando, cozinhando, posando elegantemente:

O conjunto também destaca o fato de Hildegard se fotografar trabalhando e cozinhando em sua casa, sem estabelecer uma hierarquia entre as atividades realizadas no espaço doméstico; ao contrário, a artista constrói cenas que evidenciam ser o trabalho profissional tão importante para ela quanto as atividades caseiras (p.98).

Ou seja, até mesmo ao se representar no espaço doméstico, Hildegard se coloca como uma mulher independente, exercendo atividades relacionadas à fotografia, concentrada em movimentar sua vida profissional. A autora descreve detalhadamente cada imagem em suas composições e simbolismos visuais que remetem ao imaginário moderno da época, passando pelas peças de vestuário utilizadas, poses, expressões, e até mesmo pequenos detalhes que podem ser lidos como “o pulo do gato” da fotógrafa (p.101). Novamente passamos pela questão de essas fotografias não terem sido publicadas enquanto Hildegard estava viva, esse conjunto constitui um ensaio inédito, curado e selecionado pela autora do livro.

A partir dessa variedade de imagens produzidas por Hildegard Rosenthal e Alice Brill nos anos 1940 e 1950 em São Paulo e apresentadas na obra de Yara Schreiber Dines, temos contato com mulheres extremamente inovadoras, que estavam criando imagens de si mesmas. Seja a partir de autorretratos, de retratos de amigas, ou da cidade e de seus habitantes. O ser mulher está sempre presente em suas produções, mesmo que de maneira não explícita. Com a pesquisa de Yara Schreiber Dines podemos ver mulheres que tomaram controle da produção visual de suas vidas e, como coloca a autora, entramos em contato com um “olhar próprio das mulheres, marcando a presença e o pertencimento do gênero feminino a vida social da metrópole” (p.119). Em uma época em que o pertencimento das mulheres em geral ainda estava muito conectado ao espaço privado e aos trabalhos domésticos, Hildegard e Alice tomaram o espaço público como seu e deixaram essa atitude registrada em imagens.

Referências bibliográficas

  • 1
    Disponível em: http://www.vivianmaier.com/. Acesso em: outubro de 2020.
  • 2
    No original: “Perhaps the answer is not to attempt to make a woman fit a masculine concept, but to redefine the concept itself. […] Rather than wandering aimlessly, like her male counterpart, the female flâneur has an element of transgression: she goes where she’s not supposed to”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Out 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2021
  • Aceito
    11 Fev 2022
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