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O super-homem1 1 Texto publicado no jornal A Republica, de Curitiba, a 24 de dezembro de 1908, p. 01.

The Superman

Resumo

O autor, provavelmente um correspondente estrangeiro do diário curitibano A Republica, assina este texto de Paris. Inicia o artigo trazendo as críticas de Emílio Faguet e Lichtenberger sobre Nietzsche, contrapõe-se às críticas destes autores e aponta, por fim, restrições suas à noção de força do filósofo.

Palavras-Chave:
Nietzsche; super-homem; força

Abstract

The author, probably a foreign correspondent of the journal, signs his paper from Paris. He starts the article bringing to light Emilio Faguet and Lichtenberger'critics on Nietzsche, setting himself against their critics, eventually pointing at restrictions on the ideia of forces as conceived by the philosopher.

Keywords:
Nietzsche; superman; forces

Terminei o meu primeiro artigo sobre as teorias de Nietzsche, falando na impressão que elas nos deixam. Sucedeu com o filósofo alemão da moda o mesmo que com Ibsen na literatura e com Wagner na música. Foram revolucionários ou simplesmente grandes inovadores; por isso são mais discutidos que os escritores medíocres e, por isso também nos fazem hesitar, ainda que momentaneamente, no meio das nossas convicções mais arraigadas. Vejamos o que dizem os críticos notáveis, referindo-se ao preconizador do superhomem. Emílio Faguet, querendo justificar as concepções audazes do filósofo alemão diz: afinal Nietzsche é um esteta, um adorador da beleza, que sacrífica a este ideal os sentimentos de justiça, piedade, solidariedade, paternidade, caridade, etc. A moral deste filósofo não pode ter outro efeito senão o de aumentar as energias da vontade, inspirando o desejo de realizar o máximo de personalidade. Contudo acho a inspiração desta moral vã e abstrata, preferindo, por enquanto, como melhor a moral dos humildes (sic).

Lichtenberger reconhece que certas ideias de Nietzsche, a serem mal compreendidas, podem servir de justificação aparente a doutrinas morais muitíssimo aviltantes. Com aforismos deste filósofo, pode-se fazer a apologia do egoísmo mais brutal e da crueldade mais refinada. Não basta triunfar sem escrúpulos, nem destruir toda a classe de respeitos sociais, fazendo galas de ser anarquista intelectual ou modernista independente, para viver segundo Nietzsche. Um criminoso degenerado, um valdevinos, um estroina, um inconsciente e um fanático nunca poderiam justificar os seus extravios, valendo-se da pretendida grandeza do superhomem. Nietzsche proclama bem alto que a sua doutrina só se dirige a certo número de eleitos e que a multidão deve viver na obediência e na fé.

Agora acrescentarei eu: Nietzsche é mais um caráter que um filósofo. As incoerências e audácias dos seus pensamentos provam bem a falta de método, da ordem e dá lógica próprios de todo o filósofo escrupuloso. O seu espírito, longe de submeter-se à disciplina rigorosa do sistema, ergue-se altivo, destroçando, qual uma fera fugida da jaula, tudo quanto lhe tolhe o caminho. As suas afirmações parecem dores dormentes ou explosões de sentimentos comprimidos. A sua juventude mística, a sua fé apaixonada, o seu fervor religioso durante certo tempo, foram para ele pesadas cadeias.

Um dia, farto de suportá-las, voltou-se contra o que impedia a expansão natural das forças interiores extraordinários de um pensamento exuberante; negou, sem refletir, tudo quanto crera outrora, declarando o cristianismo responsável das suas fraquezas, sob o pretexto que este, por enaltecer os sentimentos e condenar os instintos, matava o princípio fecundo da força humana. Ao querer remediar este erro caiu no erro contrário, pretendendo que os sentimentos deviam desaparecer completamente, perante os instintos. No ardor da vingança, não conheceu uma verdade bem simples: que o sentimento e o instinto são duas forças, dois elementos humanos que não podem separar, e que devem viver em íntima e harmoniosa dependência. Além disso, Nietzsche limitando tudo à força, não teve em conta que este termo, por ser circunstancial e transitório não podia alargar-se com razão suficiente para destruir os fracos. A força varia segundo as circunstâncias. Os povos primitivos combatiam corpo a corpo, hoje destroem-se a grandes distâncias. A noção da força modifica-se com o tempo. Mais ainda: num momento dado um Davi pode matar um Golias, uma Dalila dar cabo de um Sansão. Por outro lado, energias poderosas hoje, podem esgotar-se amanhã. Pelo contrário, entes fracos podem transformar-se, em certas ocasiões, em auxiliares fortíssimos. A força é uma coisa efêmera que passa, e o domínio da força é a tirania sempre mais funesta do que todas as fraquezas. Quanto mais acertado fala Nietzsche quando diz: - Deixai o mundo com todas suas misérias, nem sequer levanteis o dedo mínimo contra ele! - É neste aforismo que o homem poderia tirar elementos de uma nova concepção de força. Que maior heroísmo há do que o de sabermos desprezar todas as mesquinhezas (sic) do mundo acomodando-nos ao meio em que vivemos, logrando, apesar de todas as resistências, produzir um valor qualquer e salvar a nossa personalidade? Mas, para isso, devemos acaso aconselhar, como faz Nietzsche, noutro lugar, a tirania da força? Isso será conveniente para os povos e os homens que aspiram a dominação e a supremacia; para os Nerões (sic) que sentem grande delícia em contemplar a humanidade num mar de sangue e de lágrimas, mas não para os trabalhadores, para os homens de ciência e para todos os que procuram na produção, nos descobrimentos e na paz, a nobre satisfação humana do eterno ideal de justiça.

Toda a obra de Nietzsche não passa do esforço constante de uma inteligência soberba que corre para a loucura, por se ter levado além dos limites naturais.

Pobre homem! Nem sequer podemo-nos compadecer dele, com receio de lhe profanar a memória. A piedade para ele fora a mais infame das cobardias! Se eu me achasse junto da sua campa, escreveria o epitáfio seguinte: - 'Lutou, cheio de heroísmo, no meio das suas dores Viveu solitário e errante, sem outros companheiros a não ser a doença e a loucura. Mais forte do que Cristo, não soltou um gemido quando as forças o abandonaram, e abençoou, cheio de amor, a vida que o torturava!' -.

E agora o leitor que pense o que quiser deste raro exemplar de espécie humana;

Paris - 1908.

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    Enrique Paul Almarza. Autor desconhecido. Trata-se, provavelmente, de um correspondente estrangeiro do jornal curitibano
  • 1
    Texto publicado no jornal A Republica, de Curitiba, a 24 de dezembro de 1908, p. 01.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015
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