Acessibilidade / Reportar erro

Agência epistêmica

Epistemic agency

Agence épistémique

Resumos

O texto explora uma série de distinções entre estados mentais que podem ser cognitivamente relevantes, bem como entre aqueles que podem ser "autoapresentantes", a fim de analisar as relações entre eles e o mundo exterior e compreender os tipos de crenças e juízos epistêmicos que podem ensejar. Busca, ainda, reconsiderar o estatuto (porventura epistêmico) de experiências sensórias com conteúdo. O objetivo desse percurso é fazer frente a objeções céticas à justificação epistêmica do tipo daquelas levantadas pelo trilema de Agripa, segundo o qual a avaliação reflexiva não pode regredir infinitamente, circular infinitamente, nem depender de alguma instância arbitrária. Trata-se, também, finalmente, de esclarecer, com as nuances relevantes, a relação entre juízo e liberdade esclarecimento relevante para a análise mais geral da agência epistêmica.

Juízo; Agência epistêmica; Liberdade; Conhecimento; Trilema de Agripa


The paper explores a series of distinctions between mental states that might be cognitively relevant, as well as between those that might be "self-presenting", so as to analyze the relations between these and the external world, and understand the types of beliefs and epistemic judgments for which they allow. The paper also aims to reconsider the (perhaps epistemic) status of contentful sensory experiences. The goal of the journey is to face skeptical objections to epistemic justification akin to those raised by the Agrippan trilemma, according to which reflexive evaluation cannot regress infinitely, be infinitely circular, nor depend upon some arbitrary instance. It is also question of clarifying, with the relevant nuances, the relation between judgment and freedom a clarification that is of import to the more general question of epistemic agency.

Judgment; Epistemic agency; Freedom; Knowledge; Agrippan trilemma


Le texte explore toute une série de distinctions entre des états mentaux qui sont ou non cognitivement pertinents, ou qui sont aussi ou non "auto-présentants", comme manière d'analyser les relations entre ceux-ci et le monde extérieur, et de comprendre les types de croyances et de jugements épistémiques qu'ils peuvent faire surgir. Notre étude cherche également à reconsidérer le statut (peut-être épistémique) d'expériences sensorielles ayant un contenu. L'objectif de ce parcours est de faire face aux objections septiques quant à la justification épistémique de celles soulevées par le trilemme d'Agrippa selon lequel l'évaluation réflexive ne peut régresser indéfiniment, circuler indéfiniment ni dépendre d'une quelconque instance arbitraire. Il s'agit aussi, finalement, d'éclaircir avec des nuances la relation entre jugement et liberté éclairage significatif pour l'analyse plus générale de l'agence épistémique.

Jugement; Agence Epistémique; Liberté; Connaissance; Trilemme d'Agrippa


Agência epistêmica1 1 Original " Epistemic Agency", tradução de Rafael Lopes Azize.

Epistemic agency

Agence épistémique

Ernest Sosa

Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Rutgers (EUA). Department of Philosophy. Rutgers University. College Avenue Campus. 1 Seminary Place. New Brunswick, NJ 08901. ernsosa@rci.rutgers.edu

RESUMO

O texto explora uma série de distinções entre estados mentais que podem ser cognitivamente relevantes, bem como entre aqueles que podem ser "autoapresentantes", a fim de analisar as relações entre eles e o mundo exterior e compreender os tipos de crenças e juízos epistêmicos que podem ensejar. Busca, ainda, reconsiderar o estatuto (porventura epistêmico) de experiências sensórias com conteúdo. O objetivo desse percurso é fazer frente a objeções céticas à justificação epistêmica do tipo daquelas levantadas pelo trilema de Agripa, segundo o qual a avaliação reflexiva não pode regredir infinitamente, circular infinitamente, nem depender de alguma instância arbitrária. Trata-se, também, finalmente, de esclarecer, com as nuances relevantes, a relação entre juízo e liberdade esclarecimento relevante para a análise mais geral da agência epistêmica.

Palavras-chave: Juízo. Agência epistêmica. Liberdade. Conhecimento. Trilema de Agripa.

ABSTRACT

The paper explores a series of distinctions between mental states that might be cognitively relevant, as well as between those that might be "self-presenting", so as to analyze the relations between these and the external world, and understand the types of beliefs and epistemic judgments for which they allow. The paper also aims to reconsider the (perhaps epistemic) status of contentful sensory experiences. The goal of the journey is to face skeptical objections to epistemic justification akin to those raised by the Agrippan trilemma, according to which reflexive evaluation cannot regress infinitely, be infinitely circular, nor depend upon some arbitrary instance. It is also question of clarifying, with the relevant nuances, the relation between judgment and freedom a clarification that is of import to the more general question of epistemic agency.

Key-words: Judgment. Epistemic agency. Freedom. Knowledge. Agrippan trilemma.

RÉSUMÉ

Le texte explore toute une série de distinctions entre des états mentaux qui sont ou non cognitivement pertinents, ou qui sont aussi ou non "auto-présentants", comme manière d'analyser les relations entre ceux-ci et le monde extérieur, et de comprendre les types de croyances et de jugements épistémiques qu'ils peuvent faire surgir. Notre étude cherche également à reconsidérer le statut (peut-être épistémique) d'expériences sensorielles ayant un contenu. L'objectif de ce parcours est de faire face aux objections septiques quant à la justification épistémique de celles soulevées par le trilemme d'Agrippa selon lequel l'évaluation réflexive ne peut régresser indéfiniment, circuler indéfiniment ni dépendre d'une quelconque instance arbitraire. Il s'agit aussi, finalement, d'éclaircir avec des nuances la relation entre jugement et liberté éclairage significatif pour l'analyse plus générale de l'agence épistémique.

Mots-clés: Jugement. Agence Epistémique. Liberté. Connaissance. Trilemme d'Agrippa.

DUAS VARIEDADES DE AGÊNCIA E NORMATIVIDADE EPISTÊMICA

A nossa vida mental compreende estados ou eventos de três tipos: (a) sofrimentos - dores ou coceiras, por exemplo, ou meros fazeres, tais como ações reflexas e desempenhos; (b) funcionamentos (estados funcionalmente avaliáveis) e (c) diligências (com uma finalidade livremente determinada). Essa tricotomia tem um lado prático, ético, e um lado teorético, epistemológico. Aqui nos concentraremos nesse último.

As diligências povoam uma região de liberdade.2 2 Poder-se-ia optar, alternativamente, por uma noção mais ampla de "diligência" segundo a qual toda busca de um objetivo, toda teleologia, mesmo que meramente funcional, envolveria "diligências" para atingir um fim, tal como faz o coração quando bate regularmente para fazer circular o sangue. Opto aqui, antes, por uma noção mais restrita de diligências que são livres, e que, juntamente com os funcionamentos, perfarão uma classe ampla de objetivos ( aimings). Diligências derivam de escolhas e juízos livremente determinados. A liberdade que define a região de diligências pode ser bem recortada, libertária e fundamental, ou ela pode ser uma questão de grau, compatibilista, e derivada. Aqui deixamos todo esse conjunto de questões metafísicas em aberto.

A região no extremo oposto contém sofrimentos (sufferings) e meros fazeres, em que o feitor (doer) é relevantemente passivo. Se empurrado de um penhasco, você cai passivamente, a despeito do quão rapidamente você se desloque, e você mata um coelho passivamente se o esmaga ao atingir o chão. O martelo de um médico pode fazer com que o paciente chute uma enfermeira se ela estiver no caminho do movimento reflexo. Assim, o paciente faz algo (ao chutar a enfermeira) mesmo que não se trate (num sentido relevante) de um feito seu, um feito atribuível a si, como responsabilidade sua (as his own doing). Ele não exerce uma agência real ao chutar a enfermeira, ou simplesmente ao mover a perna naquela ocasião. A passividade, que é relevante para o nosso projeto, é a passividade epistêmica. A natureza dessa passividade emergirá em breve.

Em epistemologia, "justificação" envolve de fato o que? Como, por exemplo, pode o contexto deôntico lhe dizer respeito? Refiro-me ao quadro relativo ao que devemos crer, àquilo em que podemos (may) crer, e mesmo ao que é obrigatório ou permissível em termos de crença.

A região em que o quadro epistêmico deôntico é mais claramente aplicável é aquela da liberdade; a região em que ele é mais claramente inaplicável é aquela da passividade. Há, contudo, uma região intermediária, a qual admite um tipo de agência, mesmo que desempenhos naquela região não sejam diligências (endeavors) livremente determinadas, que constituem ou derivam de escolhas ou julgamentos. Desempenhos podem ser racionalmente determinados mesmo quando não são livremente determinados. Depois de uma medição ter mostrado que certa linha tem uma polegada, revele-se uma segunda linha, de maneira a formar o conhecido padrão de Müller-Lyer. Isso induz a ilusão, e também a aparência (seeming) derivada, de que a segunda linha tem mais do que uma polegada. Nenhuma ponderação ou decisão foi necessária; o processo é assaz involuntário. Uma aparência (seeming), uma inclinação pelo assentimento, deriva racionalmente de outras, por uma espécie de embasamento racional. Uma aparência é racionalmente baseada em outras aparências, mesmo que nenhuma delas constitua ou derive de um juízo ou escolha livre.

Ainda que o quadro deôntico não se aplique estritamente a essa região intermediária, ele se aplica de maneira solta. Podemos, assim, distinguir entre dois quadros. Em primeiro lugar, há o quadro estritamente deôntico, que pressupõe determinação livre, tal como aquele que envolve escolhas livres e julgamentos livres. Mas há, em segundo lugar, um quadro funcional deôntico mais solto, que não contém diligências (endeavors) livremente determinadas.

No quadro epistêmico normativo funcional, pelo contrário, avaliamos o funcionamento propriamente dito, seja ele servo-mecânico, biológico, etc. Nesse quadro funcional, distinguimos entre desempenhos que satisfazem ao menos os padrões mínimos de operações epistêmicas apropriadas e aqueles que não os satisfazem. As nossas atitudes quanto a desempenhos funcionais não envolvem gratidão, ressentimento, ou outras atitudes reativas. Podemos, claro, ter atitudes de aprovação ou desaprovação, mas essas não encontram expressão no elogio, que é correlato da repreensão. Sim, há um "elogio" mais amplo que requer tão somente avaliação favorável, e que se alinha tanto com admiração quanto com a avaliação da agência. Podemos distinguir o elogio ou a desaprovação que se aplicam estritamente apenas ao agente livre de correlatos mais amplos, aplicáveis também ao agente funcional. Agentes que meramente funcionam estão sujeitos a falhas ou responsabilizações, mais do que a pecados ou infrações, ou a outras violações que pressupõem liberdade.

Contudo, não precisamos nos comprometer com nenhuma tese linguística sobre "elogio" ou "responsabilização" ou as suas aplicações apropriadas ou estritas. Basta que distingamos as atitudes reativas de atitudes mais amplamente avaliadoras, independentemente da expressão que elas encontrem em inglês estrito.3 3 Eu fiz uma distinção entre as atitudes reativas que se aplicam à região da liberdade e a nossa aprovação ou desaprovação na região dos funcionamentos. Dou por assente que "elogio" pode ir de par com admiração, que não pressuporia agência livre. E é fato que nós estendemos o idioma até mesmo da "responsabilização" muito para além da região da liberdade, como quando "culpamos" uma escora fraca pela queda de uma ponte. E há também o peso daquela negligência que é inteiramente digna de responsabilização. Tomemos um agente que dê livre curso às suas atitudes irrefletidas, embora devesse ter "pensado melhor". De fato, responsabilizamos esse agente, mas não necessariamente o inculpamos simplesmente por ter agido de acordo com as suas crenças e desejos irrefletidos, no nível animal. Responsabilizamo-lo, mais centralmente, em razão da negligência da qual ele é "culpado". Além disso, quando ele apropriadamente não reflete, quando age instintiva e automaticamente de acordo com as suas crenças e desejos irrefletidos de nível animal, nós não necessariamente o elogiamos simplesmente por ter agido de acordo com essas atitudes irrefletidas. Elogiamo-lo, mais centralmente, por ele ter tido o bom senso de se mostrar implicitamente sensível quando é necessária reflexão, e de omitir a reflexão sem negligência. Porventura (mas não discutirei isso aqui) tal sensibilidade e negligência residam na região da liberdade.

O quadro deôntico mais solto ainda requer funcionamentos, avaliáveis como apropriados ou não. Funcionamentos racionais, em particular, envolvem motivação racional de um certo tipo. Aqui uma pessoa funciona de certa maneira com base em ações motivadoras, razões pelas quais uma pessoa funciona como o faz.4 4 Novamente, mesmo que não precisemos muito deles, os seguintes pontos linguísticos parecem suficientemente plausíveis. É plausível dizer que não tecemos, em termos estritos, "elogios" em piloto automático ao bom funcionamento epistêmico: a aquisição de crenças triviais que orientam a conduta cotidiana. Tampouco estritamente "repreendemos" alguém que funciona mal, prática ou teoreticamente. O mau funcionamento pode ser devido a bebida ou drogas ou à falta de sono, ou pode simplesmente revelar ausência de capacitação relevante. Deploramos o fato, mas não tendemos a repreender o agente, no caso de ele estar apenas a funcionar automaticamente e não a decidir ou a julgar livremente. É claro que precisamos aqui de distinções mais finas, em particular quanto a uma metafísica compatibilista da liberdade (mas a metafísica não consta da nossa já profusa lista de preocupações). Quando uma linha me parece mais longa do que uma polegada, funciono de uma certa maneira, tal como quando chuto a enfermeira por causa do martelo do médico. Certo, é um tipo passivo de funcionamento. Não resisto a dar certo peso, nas escalas de juízo, ao fato de a linha ter mais do que uma polegada. Dou-lhe tal peso na qualidade de um ser cognitivo plenamente funcional, e com determinado fundamento: baseado no fato de essa linha parecer mais longa do que a linha adjacente, e também na minha memória clara e vívida de que a outra linha mede uma polegada.

Trato como equivalentes três formulas verbais: (a) estou inclinado (attracted), nalgum grau, a pensar que p; (b) parece-me, nalguma medida, que p; (c) dou certo peso (positivo) à defesa de que p. A primeira dessas fórmulas conota passividade, a última conota atividade, e a intermediária não conota nenhuma das duas coisas; parece neutra em termos de agência. Proponho, contudo, que, de um ponto de vista normativo, as três diferem, no máximo, trivialmente, que essas diferenças entre passividade e atividade são normativamente negligenciáveis. Isso já foi sugerido pelo quão pouco um agente pode realmente "possuir" algo que, no entanto, ele "faz", mesmo que isso soe paradoxal. Pensemos em quão passivos podemos ser ao chutar a enfermeira, mesmo que verbalmente "façamos" algo nesse caso. Ainda que o façamos, não é façanha "nossa".

Compare o "fazer" implicado no dar algum peso à defesa de que uma de duas linhas tem mais do que uma polegada. Isso também não acrescenta agência significativa à "inclinação" a que estamos sujeitos quando nos inclinamos a assentir nessa direção. Seja como for, existe um tipo de agência, mas é a agência não livre do funcionamento apropriado, como quando a perna se levanta em resposta ao martelo. Funcionamos de maneira apropriada justamente por estarmos inclinados passivamente na medida certa, tal como um artefato magnetizado funciona bem ao ser passivamente atraído por um ímã próximo. A distinção entre o passivo e o ativo é aqui negligenciável por comparação com a distinção entre estados que são funcionalmente avaliáveis e os que não o são. Há fazeres passivos que não são avaliáveis dessa forma (como o chute da enfermeira pelo paciente, ou o esmagamento do coelho ao final da queda), ao contrário de outros fazeres passivos (como os nossos funcionamentos perceptivos quando estamos inclinados a certa proposição sobre a cor ou a forma de um item percebido). Finalmente, os funcionamentos, na nossa região intermediária, são avaliáveis num aspecto epistêmico específico, o que significa que a sua avaliação deve ser feita com relação à verdade.

O TRILEMA DE AGRIPA

A avaliação reflexiva não pode regredir infinitamente, tampouco circular infinitamente. Também não pode depender, ao final, de alguma instância arbitrária. Ainda precisamos fazer face a esse trilema de Agripa se quisermos entender a justificação epistêmica.

Juízos que empreendem uma busca da verdade estão sujeitos ao trilema de Agripa. Nem regresso infinito nem circularidade são aceitáveis. Contudo, apenas juízos fundacionais racionalmente apropriados poderiam fundamentar outros juízos e crenças, de maneira que esses últimos também se tornem racionalmente apropriados. Juízos arbitrários, livremente determinados, são racionalmente repugnantes. Mas como poderia um juízo evitar arbitrariedade senão através de uma base racional apropriada? Contudo, o estatuto propriamente racional de um juízo verdadeiramente fundacional, por outro lado, não pode derivar inteiramente de alguma base racionalmente apoiante. Somos, assim, conduzidos de volta ao círculo ou ao regresso.

Estamos agora interessados em avaliação epistêmica, na avaliação de juízos e de outros estados cognitivos a respeito do tipo de estatuto normativo que é constitutivo do conhecimento. É desse tipo de estatuto que uma crença verdadeira precisa para constituir conhecimento, seja no nível animal, seja no nível reflexivo.5 5 Alguns procuraram tal estatuto entre as nossas atitudes práticas. Na sua busca por um estatuto que freasse o regresso, voltaram-se para atitudes pragmáticas. Não estou persuadido de que isso possa nos fornecer justificação de interesse distinto em epistemologia, nomeadamente, justificação epistêmica, o tipo apropriadamente atrelado à verdade. Assim, procuro noutro lado. Como podemos parar o regresso da justificação de juízos racionais e, ao mesmo tempo, evitar arbitrariedade?

Em seguida, experimentaremos freios (stoppers) de regresso que não são diligências (endeavors), mas que ainda são desempenhos (performances) com óbvia relevância epistêmica, como os funcionamentos (functionings) racionais que não derivam de escolha ou juízo livre por parte do agente. Passamos, agora, para a região intermediária entre liberdade e passividade. Diligências epistêmicas livremente determinadas podem basear-se em desempenhos funcionalmente racionais, escapando, dessa maneira fundacional, ao trilema de Agripa relativo a diligências.

No entanto, o trilema se aplica novamente, agora em uma forma nova. Consideremos desempenhos em geral, mesmo aqueles que não são diligências livres. Como poderá tal desempenho lograr o estatuto epistemicamente normativo exigido para o conhecimento, como poderá isso ser explicado em termos gerais, quando incluirmos tanto os funcionamentos quanto as diligências entre os nossos desempenhos? Uma vez mais, precisamos de freios de regresso fundacional, mas agora fundamentos que freiem o regresso não cumpririam essa função apenas por residirem fora da região da verdade. Precisamos, agora, de estados para além da região da verdade, mas também para além da região intermediária, a região do funcionamento. A nossa busca por freios de regresso deve, em seguida, voltar-se para a região da passividade não funcional.

Sendo o nosso projeto epistemológico, os nossos freios de regresso devem ser não funcionalmente passivos em termos epistêmicos. Um prurido pode ser funcionalmente avaliável como apropriado por demandar que se coce o local, o que pode servir a algum propósito biológico. Mas o prurido não é avaliável epistemicamente se não serve a nenhum propósito epistêmico. Portanto, não é o tipo de coisa que poderia ter um estatuto epistêmico, nem mesmo um estatuto epistêmico funcional, muito menos um estatuto epistêmico agencialmente livre (free-agential). Compativelmente com tudo isso, contudo, ainda pode servir como base de um freio de regresso para um funcionamento propriamente epistêmico, se o sujeito ganha imediatamente consciência proposicional do seu prurido com base racional em nada mais do que o prurido ele mesmo. O que o torna propriamente consciente do prurido é o próprio prurido, autoapresentante (self-presenting).

Tal as diligências, tal os funcionamentos. Não é mais plausível que devesse haver todo um conjunto de funcionamentos, cada um deles epistemicamente justificado inteiramente por meio de suporte racional por outros membros do conjunto. Diligências fundacionais estariam desprovidas de bases motivadoras racionais para explicar o seu estatuto como racionais. Tais diligências pareceriam, assim, arbitrárias, e, portanto, irracionais. Funcionamentos fundacionais não partilham do mesmo estatuto problemático. Não envolvendo escolhas de todo, não envolvem escolha arbitrária. Considere-se, no entanto, um conjunto de credos (credences) em graus variados de confiança, estados funcionais que não são escolhidos livremente pelo sujeito. É muito implausível que tal conjunto pudesse alcançar pleno estatuto epistemicamente normativo pertinente ao conhecimento simplesmente em virtude das inter-relações racionais dos seus membros, isoladamente do mundo exterior que determina o seu estatuto como verdadeiro ou falso.

De acordo: estados autoapresentantes (self-presenting), aí se incluindo dores e pruridos, têm tido um papel proeminente em epistemologia há muito tempo. Parece indubitável que podemos conhecer diretamente quando sofremos um prurido ou uma dor. Não precisamos obter esse conhecimento meramente por meio de inferência a partir de outras coisas que sabemos. Isso é conhecimento fundacional, conhecimento do dado ou do autoapresentante. Como se deve entender o seu estatuto fundacional especial? Como pode ter esse estatuto sem o apoio de razões?

RAZÕES E FUNDAMENTOS

Há razões de pelo menos dois tipos distintos: as fáticas (factive) e as estativas (stative). Considere um calibre para certo tipo de tanque de combustível. Como é que uma leitura se torna razão para a crença de determinado sujeito (ou, alternativamente, para um credo positivo: para um grau positivo de confiança) sobre a quantidade de combustível no tanque? O sujeito precisa estar consciente da leitura, e essa consciência pode, então, servir como uma base racional estativa para a crença (credo) (credence) sobre o tanque. Que forma essa consciência pode tomar? Com frequência, ela toma a forma de uma crença (ou credo), é claro, e essa crença (credo) pode então associar-se a outras crenças (credos) ou com pró-atitudes, de maneira a fundamentar crenças ou pró-atitudes ulteriores. Essa é a forma que a orientação pode tomar por meio do raciocínio inferencial, prático ou teorético.

O fato de uma pessoa estar com dores é, por certo, uma razão fática para a crença (ou credo, ou confiança) de que se está com dores. Geralmente, se um fato deve servir de base a uma crença, uma pessoa precisa de alguma consciência dele. Mas a consciência que leva à crença de que se têm dores seria inútil a tal orientação, já que a pessoa já teria de haver sido orientada na formação da crença relevante. Eis por que tais fatos ou os seus feitores de verdade (truth-makers) precisam ser autoapresentantes para que cumpram o seu papel fundacional. Não poderia ser o caso que eles guiassem uma pessoa da maneira como normalmente o fazem as razões fáticas, ou seja, através de consciência cognitiva prévia delas (por via das quais são apresentadas), através de alguma crença ou credo prévio. Portanto, segue de pé a questão acerca do tipo de consciência deles que servirá à orientação requerida.

Uma distinção entre consciência constitutiva e consciência de atenção (noticing awareness) pode ajudar. Quando você salta um salto, ou chuta um chute, ou sorri um sorriso, isso não deveria ser observado segundo um modelo ato-objeto, em que o fazer tem um objeto separado. Antes, o salto é apenas o saltar de certa maneira, o chute é o chutar de certa maneira, e bem assim para o sorriso, etc. Da mesma forma, quando você experimenta uma experiência - digamos, a experiência da dor, quando você sente uma dor -, isso não tem uma análise plausível ato-objeto. De fato, experimentar tal experiência é experimentá-la de certa maneira.6 6 Não se pretende, aqui, defender uma teoria adverbial radical, já que a "maneira" pela qual você experimenta a experiência quando tem uma experiência visual pode exigir a hospedagem de um conteúdo proposicional. Esse conteúdo proposicional pode, contudo, ser falso, de forma que não haja nenhum feitor de verdade ( truth-maker) que funcione como o objeto da experiência da pessoa. Tampouco o conteúdo proposicional é o "objeto". Não experimentamos sensoriamente conteúdos proposicionais. Antes, o conteúdo proposicional oferece o conteúdo, não o objeto, da experiência. Alojar ( hosting) o conteúdo proposicional está essencialmente envolvido na maneira de experimentar envolvida no ter ( in the having) daquela experiência sensória, que não precisa ter nenhum tipo de objeto. E, posto que a experiência é uma forma de consciência (não um tipo de consciência de atenção, mas, ainda assim, uma forma de consciência), você não pode evitar, portanto, ser consciente das suas experiências, uma vez que deve experimentá-las.

Assim, uma pessoa não pode experimentar dor sem estar "consciente" (aware) dela. E é plausível que tal consciência possa, em seguida, orientar a formação de uma crença ou credo (credence) correspondente. Você pode, então, crer ou estar inclinado a crer que tem dores, e a base racional para a sua crença, ou a sua inclinação à crença, seria a sua consciência da sua dor. Essa consciência pode ter um papel apropriado na sua dinâmica cognitiva ao dar origem a um credo ou crença correspondente.

Isso nos fornece um caminho para além do trilema agripiano relativo ao nível epistêmico médio, povoado por credos involuntários que formam uma estrutura racional, já que alguns derivam o seu estatuto apropriado do fato de estarem racionalmente baseados em outros. Puras experiências (como as dores experimentadas) na região da passividade podem funcionar como estados freantes do regresso que sequer são desempenhos, que não são motivados por razões pelas quais você os hospeda.7 7 Penso, aqui, num caso normal, não em dores autoinfligidas, o que introduz complicações irrelevantes. Mesmo a sua consciência de tal estado não é um desempenho. Isso é verdadeiro pelo menos da consciência constitutiva da dor, a consciência dela que você tem simplesmente em virtude de sofrer a dor. A dor é, portanto, autoapresentante, já que a consciência constitutiva que você dela tem vem necessariamente com a dor ela mesma. E a dor não é motivada por nenhuma razão (Aqui nos concentramos em dor física, que ocorre por uma razão - um corte ou machucado, etc. -, mas não é motivada por razões pelas quais você a sofre. Dores emocionais parecem diferentes de maneira importante, mas pomo-las de parte.)

As dores admitem, contudo, não apenas consciência constitutiva, mas também consciência de atenção (noticing awareness). Aplicamos conceitos às nossas dores. Pensamos nelas como dores, e, na verdade, como dores de vários tipos. Pense agora no hipocondríaco que pode tomar as suas dores imaginadas por reais, ou pode ao menos confundir com dor o que é, no máximo, um desconforto, e não dor. Suponha que ele esteja próximo à região em que a dor gradualmente se esmaece em desconforto, uma região em que, amiúde, ele está equivocado. Sabe ele que realmente tem dores simplesmente porque, desta vez, é, de fato, uma dor que está a fazer com que lhe pareça que tem dores? Isso parece bastante implausível.8 8 O nosso problema do hipocondríaco é assemelhado ao Problema da Galinha Pintada ( Speckled Hen) para o internalismo do dado ( givenist). Um problema desse tipo se aplica tanto à crença ou credo baseada na experiência acerca da cena diante de você quanto à crença ou credo introspectiva sobre estados de consciência no interior de você.

QUE TIPO DE ESTADO PODE CONSTITUIR UMA BASE RACIONAL?

Façamos uma pausa e retomemos de trás. Postulamos vários estados mentais como cognitivamente relevantes, e anotamos as relações cognitivas entre mente e mundo a que eles dão ensejo. Numa ponta, estão fazeres (doings) passivos e outros estados mentais autoapresentantes (self-presenting). Esses inclinam o sujeito a assentir, quer queira quer não. Poderiam apropriadamente dar origem a tal inclinação de qualquer das duas formas seguintes. Aquilo em que uma pessoa está inclinada a crer é talvez que a pessoa está num estado tal como quando uma dor de cabeça a inclina a crer que ela está com dor de cabeça. A pessoa parece, assim, sofrer de dor de cabeça e é precisamente o sofrer de dor de cabeça que dá propriamente origem a esse parecer. Tem a pessoa uma razão para esse parecer, uma razão pela qual ela, então, se inclina a aceitar que sofre de dor de cabeça? Certamente ela tem; ainda assim, a inclinação por aquela razão não requer uma consciência separada de que se tem dor uma crença, talvez, de que se tem dor , baseada na qual, por modus ponens, se poderia chegar a crer que, de fato, se tem dor, ou ao menos a se inclinar a crer assim. Isso está fora de questão, posto que exigiria que a pessoa já houvesse formado a crença de que tem dor. Antes, a base racional precisa envolver, como base, a própria dor de cabeça, a qual deve prover a base motivadora para o parecer, para a inclinação a assentir. Essa inclinação deve, em seguida, rivalizar com o que quer que pese motivacionalmente sobre o que se pensa acerca de se estar realmente com dor (por contraste com, digamos, desconforto). Do embate desses vetores emerge uma resultante (aí incluído, como caso limitante, o vetor nulo). Esse vetor resultante corresponderá a um parecer (seeming) ou inclinação resultante. Quanto à dor de cabeça, o vetor resultante será um credo (credence) de certa magnitude, quiçá um credo positivo com alta magnitude.

Essa é uma forma pela qual se pode adequadamente derivar um credo com alta magnitude. Mas é possível fazê-lo de maneira bem diferente, tal que o estado mental que inclina a pessoa a assentir tem ele mesmo um conteúdo proposicional. Pode, por exemplo, ser uma experiência visual, como se uma pessoa estivesse a ver uma superfície branca e quadrada. Agora, a pessoa pode inclinar-se a aceitar não apenas que tem essa experiência visual, mas também que, de fato, vê essa superfície. E, repito, precisamos conceder que a experiência visual pode ser autoapresentante, de tal forma que a sua mera presença forneça uma base racional ao correspondente fato de parecer à pessoa que ela vê tal superfície. Ou seja, a sua capacidade para atrair o nosso assentimento não precisa, por sua vez, ser mediada pela consciência proposicional dela. Pareceres (seemings), que são, assim, baseados, perceptualmente ou experiencialmente, devem confrontar-se em seguida com quaisquer outras forças racionais - parecenças racionais ou inclinações racionais a assentir - que venham ao caso. Desse confronto emerge um parecer resultante, um credo cuja magnitude pode ser alta.

Examinamos as maneiras pelas quais você funciona aquém de escolhas livres e conscientes para adquirir um credo de alta magnitude quanto ao fato de que p. Mas e se você agora põe a questão sobre se p? Tomará você nota, explicitamente, do seu alto grau de confiança - do seu credo de alta magnitude - e aplicará uma política que pede pela afirmação de que p com base em tal credo? Aplicará você aqui a sua política através de um silogismo prático?

Não, esse é um beco sem saída. Como já vimos, todas as três opções agripianas estão interditas se nos restringirmos à região das diligências (endeavors). Juízos livres não podem ganhar um estatuto epistêmico arbitrariamente, sem base racional para o ganho. Tampouco pode haver um conjunto de juízos livres, cada um dos quais derive sua propriedade epistêmica inteiramente do fato de se basear racionalmente em outros membros do conjunto. Não importa muito se o conjunto é finito (no caso de circularidade) ou infinito (no caso de regresso infinito). Em nenhum dos casos é plausível que tal conjunto pudesse alcançar, numa maneira puramente interna ao conjunto, propriedade epistêmica para as crenças que o componham. Em nenhum dos casos poderiam esses membros alcançar, assim, a justificação epistêmica requerida, um tipo de estatuto normativo específico exigido de uma crença candidata a constituir conhecimento. Ou seja, em nenhum dos casos se lograria esse estatuto - através meramente de tal inter-relação mútua - para as crenças membras do conjunto. É particularmente implausível que tal estatuto pudesse ser adquirido dessa maneira (interna ao conjunto) para crenças acerca dum mundo exterior além da mente do sujeito, a despeito do isolamento de todo o conjunto relativamente àquele mundo circundante. E o "isolamento" relevante é o isolamento da base racional que privaria os nossos juízos livres de qualquer fiabilidade epistêmica.

Mas por que deveria isso impedir que o silogismo prático explique de que forma juízos podem ser formados livre e fundacionalmente? Eis a razão. Vimos acima por que se precisa de estados racionalmente embasantes para além de juízos livremente determinados. Precisamos dessas razões para obviar à arbitrariedade fundacional. Mas, ao vermos por que precisamos de tais freios de regresso, torna-se claro por que precisamos restringir a maneira como um juízo livre pode ser "apropriadamente baseado" em tal razão. Esse embasamento não pode ser do tipo que envolve consciência judicante da base, juntamente com a crença de que tal embasamento carreia a verdade da crença a ser baseada nele. Isso envolveria um raciocínio por modus ponens, com premissas livremente ajuizadas revestidas de uma crença livremente ajuizada. E isso não escaparia à região da liberdade da maneira exigida. Ainda precisaríamos considerar o estatuto epistêmico das premissas livremente ajuizadas (e porventura também aquele da generalização livremente ajuizada que as revestiria).

Portanto, isso não pode estar certo. Ao invés disso, precisamos lançar mão do estado funcional ele mesmo como uma base racional. Precisamos transpor o hiato entre a região da liberdade e a região dos funcionamentos. Precisamos duma relação de embasamento racional que enseje uma base no interior da região dos funcionamentos para um juízo livre na região da liberdade.

Eis por que precisamos de embasamento racional trans-regional. Esse embasamento transpõe a fronteira entre duas regiões epistêmicas de estados mentais: a região dos funcionamentos e a região da liberdade; e um raciocínio similar revela a nossa necessidade dele também na fronteira entre a região da passividade e a região do funcionamento.

A IMPORTÂNCIA DA COMPETÊNCIA

Falamos sobre o lugar crucial do embasamento racional trans-regional na economia cognitiva humana. No entanto, o nosso razoamento também releva a importância da competência para a justificação epistêmica que é constitutiva do conhecimento. Por vezes, não é plausível que a propriedade racional de um credo (credence) derive inteiramente - se é que o faz de todo - de embasamento racional. As crenças de pessoas com super-visão cega (super-blindsighters) são aqui pertinentes, bem como as nossas crenças aritméticas, geométricas e lógicas mais simples, e outras crenças simples que não exigem base racional. O que importa para a propriedade epistêmica dessas crenças variadas é, em boa medida, simplesmente que elas derivem da competência epistêmica apropriada, que, nesses casos, não precisa estar baseada na razão. Embora a crença humana seja amiúde competente por meio de embasamento racional, pode também ser competente através de meios subpessoais. Presume-se que seja por meios subpessoais que as pessoas com visão cega conhecem. Subpessoal também parece ser o conhecimento de que já fazem mais de dois segundos que uma pessoa despertou, quando ainda está na cama em vias de se levantar.

O nosso razoamento diz respeito não apenas à justificação funcional de desempenhos racionais na região do funcionamento apropriado. Também diz respeito à justificação deôntica de desempenhos racionais na região do juízo livre e responsável. É verdade que as competências pertinentes a esse último, a diligências livres, envolvem, crucialmente, a vontade, como Descartes viu claramente ao reconhecer uma faculdade volitiva de juízo livre, juntamente com a sua faculdade funcional de entendimento determinado divinamente.

Contudo, a mera correspondência entre um credo ou crença e um dado, um estado autoapresentante - mera coincidência de conteúdo -, não há de bastar para a justificação epistêmica que o conhecimento requer. Tome-se a correspondência entre o meu campo visual subjetivo com dez manchas e a minha crença direta de que há dez manchas naquele campo visual. Esse fato correspondente não basta para assegurar que a minha crença seja epistemicamente justificada. Também é preciso, além disso, haver competência relevante. A minha habilidade de senso numérico (subitize) deve estender-se ao caso de dez itens, o que ela está longe de fazer.

Os fenômenos de visão cega e percepção do tempo tornam duvidoso, ademais, que o fundacionalismo deva se fiar essencialmente em estados psicológicos pré-crença com base nos quais possamos crer racionalmente. Embora a competência relevante ao conhecimento possa operar baseada em tais estados - estados de dor, por exemplo, ou de experiência visual básica -, não precisa fazê-lo. Novamente, ela também pode operar por meio de mecanismos subpessoais que ensejam crença ou credo diretamente através de inputs causais via luz, olhos abertos e um cérebro e sistema nervoso que viabilizam crença responsiva e discriminatória.

Algo semelhante parece verdade, adicionalmente, sobre conhecimento "introspectivo". O que poderia embargar o conhecimento direto e fiável das disposições mentais da própria pessoa? Mesmo o autoconhecimento pode estar assim assegurado através de competência direta, sem uma consciência orientadora prévia.

Lembre por que a circularidade e o regresso parecem viciosos independentemente de nos restringirmos a juízos livres ou incluirmos também funcionamentos racionais. Parece fora de questão que todo um conjunto de juízos ou crenças ou credos possam todos ser epistemicamente justificados ou competentes simplesmente em virtude das suas inter-relações racionais embasantes. De novo, isso se torna implausível pelas duas considerações seguintes: primeiro, que a justificação epistêmica não poderia ser completamente isolada da verdade; segundo, que tal conjunto, com as suas inter-relações racionais, poderia ser relevantemente isolado da verdade, o que despojaria os seus membros de justificação plena, não importando o quão bem inter-relacionados fossem. Até mesmo inter-relações racionais intrincadas no interior de tal conjunto podem ainda não estar relacionadas a quão provavelmente verdadeiros possam ser os seus membros. Uma estória intrincada existente na mente de um grande romancista poderia conter muitas inter-relações racionais sem vestígio de verdade relevante. Um romancista suficientemente perturbado ao ponto de começar a crer na sua estória não lograria, por isso, justificação epistêmica, um estatuto exigido para conhecimento, aquele de crença epistemicamente competente. E isso não pode ser remediado simplesmente pela adição de membros, de crenças ulteriores, nem mesmo ad infinitum.

O remédio preferido por muitos requer relações a estados dados, autoapresentantes, na região da passividade epistêmica. Parece que, de fato, freamos o regresso da justificação através de tais fundamentos, já que esses estados dados autoapresentantes não são de um tipo a ser justificado, tampouco precisam ser justificados de maneira a prover justificação para credos ou crenças ulteriores baseadas neles. Podemos, ademais, obter, assim, a relação exigida com o mundo para além de crenças e credos (credences), já que tais estados autoapresentantes são, eles mesmos, parte daquele mundo além e já que eles podem, além disso, prover um canal fiável com o mundo inteiramente exterior à mente do sujeito.

Mesmo que tudo isso pareça correto, o que não parece correto é que apenas através da postulação de semelhantes estados mentais autoapresentantes, fundacionalmente embasantes, nós possamos assegurar as relações relevantes de fiabilidade veritativa com o mundo além das nossas mentes. Não poderá haver mecanismos subpessoais que, com fiabilidade semelhante, relacionem as nossas crenças com o mundo exterior? Os casos de visão cega e de percepção do tempo mostram que isso é mais do que apenas uma possibilidade conceitual.9 9 Além disso, nossas crenças mais simples de lógica, aritmética e geometria oferecem outros exemplos em que crenças fundacionais alcançam justificação epistêmica sem a ajuda de estados mentais dados, pré-crenças, autoapresentantes. O mero entendimento nos dá, plausivelmente, o acesso de que precisamos ao conjunto relevante de verdades simples, desde que sejamos suficientemente fiáveis em tais crenças baseadas em entendimento.

Ademais, temos agora razões para reconsiderar o estatuto de experiências sensórias com conteúdo. Havíamo-las situado na região da passividade epistemicamente não funcional, em que o sujeito de modo algum é um agente epistêmico. Essa região, supostamente, reside além da região dos funcionamentos epistêmicos, alguns racionalmente motivados por outros, mesmo que nenhum mero funcionamento seja livremente determinado. Mas agora encontramos razão para sancionar tais funcionamentos - das pessoas com visão cega, por exemplo, e dos nossos perceptores do tempo - que não têm base na região da passividade, uma vez que não estão baseados, de modo algum, em estados mentais apropriados. Assim, os credos das pessoas com visão cega não precisam, de todo, de base mental apropriada. Derivam, antes, de estados subpessoais que envolvem transmissão de energia do meio ambiente através dos receptores do sujeito e seu cérebro e sistema nervoso, onde tudo isso acontece subpessoalmente e, ainda assim, de alguma maneira que é epistemicamente competente e fiável em termos de verdade.

Tais credos subpessoalmente competentes podem, assim, adquirir um estatuto propriamente epistêmico e prover base epistêmica para ulteriores credos, e nalgum ponto até mesmo para juízos livres. Isso dito, experiências sensórias com conteúdo não estão propriamente relegadas à região da pura passividade epistêmica; elas merecem um lugar na região dos funcionamentos. Pois também elas derivam de inputs subpessoais através do cérebro e do sistema nervoso do sujeito, e também elas podem ser mais ou menos competentes quanto à verdade. Não há, assim, razão aparente para não as situarmos na região dos funcionamentos, juntamente com credos e pareceres (seemings), mesmo que esses últimos envolvam, distintamente, conceitos. Credos e pareceres, é verdade, distintamente envolvem alguma aplicação mais estrita de conceitos. Podem, portanto, ainda merecer que se distingam das experiências sensórias, à medida que os seus conteúdos estão imediatamente disponíveis para servir de premissas a raciocínios conscientes. Experiências, ao contrário, podem não estar imediatamente disponíveis para tal razoamento competente, nem mesmo através do uso de demonstrativos.10 10 Tome-se um padrão que, para mim, tem significância religiosa, de tal forma que eu posso reconhecê-lo e armazenar crenças com conceitos que correspondem àquele padrão visual. Para você, esse padrão pode ser apenas um garrancho. Nesse caso, as minhas crenças podem apresentar (feature), nos seus conteúdos, o padrão ele mesmo de uma maneira que não está disponível a você. Ao voltar os olhos para longe do garrancho, o seu acesso à sua crença primária (prior) se restringe a "o garrancho para o qual apontei há pouco" ou algo assim. Ao contrário, posso esquecer como adquiri a minha crença sem nenhum prejuízo para o seu conteúdo pleno, que posso agora reter guardado. Posso, por exemplo, reter uma crença religiosa importante de tal forma que instâncias daquele padrão sejam dignas de veneração. O tipo anterior de crença no garrancho, com o seu conteúdo puramente demonstrativo/indexical, alimentaria o nosso corpo de crenças de maneira insuficiente. Essa é uma lição do Problema da Galinha Manchada. Não obstante, experiências ainda podem ser competentemente verídicas, assim manifestando um tipo de competência perceptiva do sujeito que percebe. Isso distingue, por exemplo, as pessoas com boa e clara visão daquelas menos dotadas.

ESCOLHA, JUÍZO E LIBERDADE

A nossa distinção entre dois tipos de agência epistêmica, livre versus não livre, inscreve-se no trilema agripiano brandido pelos céticos pirrônicos, que tomamos como se segue. Primeiro, distinguimos escolhas e juízos que são livres daqueles que não o são. Em algumas opções ostensivas, o agente não é plausivelmente livre para escolher. Não me considero livre para escolher pegar agora a minha caneta e enterrá-la fundo no meu olho direito. Sou talvez livre para fazer isso se assim o escolher. O meu braço está livre, o meu aperto de mão está bom, a minha caneta está disponível, a minha pontaria está boa, e assim por diante. Mas não creio que possa agora fazer aquela escolha. Tampouco acho plausível que, dada a minha situação atual efetiva, eu pudesse escolher divorciar-me da minha esposa e abandoná-la antes do anoitecer. Examinando-se mais de perto, o escopo das escolhas livres parece mais estreito do que poderia parecer a um primeiro olhar distraído. Mas isso está longe de mostrar que não temos nenhum tipo de liberdade de escolha. De fato, parecemos livres para escolher quando se exige racionalmente de nós que elejamos entre duas opções nenhuma das quais é preferível à outra. Do momento em que escolhemos qual dos lados do sapato calçar primeiro ao nos levantarmos pela manhã até ao momento em que escolhemos qual remover primeiro quando nos recolhemos, enfrentamos escolhas desse tipo muitas vezes. Em muitas escolhas que se nos apresentam num dia comum, ademais, mesmo quando existem boas razões em favor de escolher numa certa direção (diferentemente do caso dos sapatos), amiúde haverá contrarrazões, e nos caberá encontrar um equilíbrio.

O caso do juízo é diferente daquele da escolha em pelo menos um aspecto importante, qual seja, não existe algo como um juízo propriamente arbitrário. Quando o peso da evidência não favorece a afirmativa nem a negativa, não se pode julgar arbitrariamente, não propriamente. Antes, deve suspender-se o juízo. Quando a balança das razões não favorece calçar primeiro o sapato direito nem deixar de fazê-lo, contudo, é possível propriamente escolher qualquer uma das possibilidades, a despeito do quão arbitrariamente a pessoa deva fazê-lo.

Essa é uma razão pela qual talvez pareça, inicialmente, que o escopo da livre escolha excede em muito o escopo do juízo livre. Pode parecer que não há escopo para o juízo arbitrário apropriado, ao passo que há um vasto escopo para a escolha arbitrária apropriada. Uma vez que somos levados a ser racionais, salvo quando forças especiais nos conduzem à irracionalidade, somos assim forçados, aparentemente, a julgar como o fazemos sempre que julguemos efetivamente. Ou estamos sujeitos à força da razão, ou estamos sujeitos a alguma força irracional, a algum viés, talvez, ou a alguma superstição culturalmente derivada. Por contraste, a escolha pode ser arbitrária sem ser irracional, de modo que pode ser feita livremente sem a necessidade de força, racional ou irracional.

Isso revela uma diferença digna de nota entre escolha e juízo no que respeita à liberdade. Não obstante, gozamos de ampla liberdade tanto de escolha quanto de juízo. Basta lembrarmos a frequência com que concluímos livremente deliberações ou ponderações. Decidimos, em seguida, se o equilíbrio de razões favorece suficientemente um lado em detrimento do outro. Com muita frequência, em questões de peso ou triviais, está nas mãos do agente inclinar-se para um lado ou outro.

A nossa distinção entre animal e reflexivo pode ser útil neste momento. Muitas crenças animais gerais são adquiridas ao longo da infância conforme se desenvolve o nosso cérebro e a nossa identidade cultural vai-se formando. Outras crenças são adquiridas mais tarde e ficam armazenadas mesmo depois de havermos esquecido como foram adquiridas. Tanto as crenças animais primeiras quanto as tardias podem orientar a nossa conduta subconscientemente, seja a conduta física ou intelectual. Vieses, por exemplo, podem orientar até mesmo alguém que os rejeitaria se trazidos à consciência. Tais crenças dirigentes implícitas estão, com frequência, além do controle da nossa agência livre consciente. Pelo menos não estão sob o controle direto de uma escolha livre única. Não podemos modificá-las dessa maneira. Isso parece plausivelmente verdadeiro tanto de crenças gerais profundas adquiridas através do desenvolvimento infantil normal quanto do nosso fluxo constante de crenças perceptivas.

A nossa distinção apresenta, de um lado, crenças animais, que guiam a ação, e, de outro lado, juízos reflexivos. Essa distinção é afim àquela entre vieses profundos e rejeições (disavowals) sinceras e conscientes. De modo similar, quando um pirrônico nos diz que ele suspende o juízo, ele não precisa estar a negar que tem uma crença animal fora do seu controle. Precisa apenas estar a abster-se de endossar livre e conscientemente aquela crença animal. As distinções são similares mesmo que o fanático (bigot) negue o seu viés, ao passo que o cético não precisa negar a sua crença animal; precisa apenas furtar-se a endossá-la através de um juízo consciente.

Isso não significa dizer que o juízo livre sempre diverge da crença animal. Suponha que adicionemos uma longa coluna na nossa cabeça enquanto a vemos numa folha de papel. Podemos fazê-lo sem falhas, e, ainda assim, descrer na nossa operação e nos recusar a endossar o resultado. Ponderamos sobre crermos ou não na nossa computação e decidimos contra ela. Suponha que, em seguida, usamos caneta e papel. Agora, podemos sopesar novamente a crença no nosso resultado. E aqui podemos de novo exercer liberdade, à medida que está em nossas mãos acreditar no resultado. Dessa maneira, nós podemos controlar as nossas crenças animais. Se adotarmos e armazenarmos livremente o resultado da nossa computação, isso pode orientar a nossa conduta no futuro, mesmo após havermos esquecido a fonte da nossa crença.

Esse é um caso em que parecemos livremente responsáveis pela crença animal relevante. Mas há abundantes casos em que o raciocínio consciente atual não é capaz de afetar crenças animais arraigadas, adquiridas por meio de percepção atual ou passada, da infância. O caso do viés sinceramente negado sugere, contudo, que o endosso consciente não precisa ser motivado pela crença animal correspondente. Não fora assim, note-se, ademais, o que se seguiria, implausivelmente, acerca do cético pirrônico: que ou ele deve ser um mentiroso ou estar a enganar-se a si mesmo quando professa suspender o juízo sobre crenças do senso comum.

O nosso arrazoado sugere uma distinção entre tal crença animal e a crença reflexiva (reflective). A crença animal é constituída por um estado armazenado que pode guiar a conduta subconscientemente. A crença reflexiva, por contraste, é uma disposição para julgar afirmativamente em resposta a uma pergunta - se sob a influência de nenhum objetivo além daquele de responder corretamente - com verdade. E esse "juízo" que a pessoa está disposta a emitir é um ato consciente distinto ou um estado conscientemente mantido. É esse ato ou estado que está no âmbito do nosso controle livre quase tão frequentemente e plausivelmente quanto o estão as escolhas que fazemos ordinariamente e as intenções conscientes que mantemos.

Note-se, finalmente, a maneira peculiar com que nós controlamos livremente tais crenças. Suponha-se que a crença relevante é constitutivamente uma disposição para assentir com liberdade, após ponderação, sob a influência de nenhum outro objetivo consciente para além daquele de responder corretamente. Distingamos, agora, entre disposições baseadas na vontade e aquelas que são passivas. Uma disposição pode ser passiva porque o seu hospedeiro não é, de modo algum, um agente, como no caso da solubilidade de um cubo de açúcar. E uma disposição pode também ser passiva mesmo quando o hospedeiro é um agente, mas ainda passivo no tocante àquela disposição, como quando você está disposto a chutar com a sua perna por efeito do martelo do médico. Por contraste, uma disposição baseada na vontade pode dar em uma política livremente escolhida ou mantida. Tome-se a política de sinalizar as conversões ao dirigir. Isso pode levar a uma escolha, consciente ou subconsciente, de sinalizar, em certa ocasião, ao aproximar-se de uma esquina. A escolha livre específica implementa, então, o procedimento, o compromisso geral livremente escolhido de sinalizar as conversões. Você está disposto a sinalizar conforme se aproxima das conversões, e os sinais escolhidos específicos são guiados por essa política, e manifestam essa disposição livremente mantida.

Essa mesma ideia é aplicável aos tipos de crenças em que ora estamos interessados. São disposições, supostamente, para afirmar com liberdade, e tal disposição pode ela mesma residir na vontade; ela mesma pode equivaler a uma política evidencial livremente adotada. Aqui não adquirimos uma crença animal por meio do funcionamento apropriado "automático", não livre, dos nossos mecanismos cognitivos. O compromisso, ao invés disso, é escolhido livremente, tal que o "mecanismo" é ele mesmo voluntário. O que esse compromisso governa, contudo, não é crença animal armazenada automaticamente por meio do funcionamento apropriado das nossas faculdades animais. Antes, os nossos compromissos livremente escolhidos governam os nossos juízos livres quando sopesamos conscientemente uma questão à luz de todas as razões sincronicamente em vista.

Ademais desses comprometimentos que envolvem a vontade, no entanto, há competências de raciocínio involuntárias que também importam nos nossos juízos. Essas competências involuntárias envolveriam funcionamento apropriado inscrito nos nossos cérebros conforme amadurecemos intelectualmente. Elas não seriam, está claro, elas mesmas, escolhidas livremente. Por outro lado, as nossas crenças disposicionais voluntárias são disposições particulares livremente adquiridas e mantidas, como quando a pessoa adquire e mantém a crença de que Steve Jobs era brilhante, mas moralmente falho. Isso implica uma livre escolha de assim ajuizar afirmativamente ao pôr-se a questão, pendente de ulterior evidência relevante. Essa política pode ser modificada, livre e racionalmente, uma vez mais, se alguma evidência ulterior chegar a emergir. Será preciso sopesar a nova evidência juntamente com quaisquer outras razões relevantes que possam estar à vista, e decidir sobre a modificação ou não da crença; ou seja, decidir sobre modificar ou não a "política" (policy) de responder pela afirmativa, a si próprio e aos outros, quando sincero.

HAVERÁ AFASTAMENTO SEGURO COM RELAÇÃO AO CÉTICO DETERMINADO?

Caímos, uma vez mais, em um predica-mento similar? Afinal, o cético poderia replicar as suas dúvidas na segunda ordem. Poderia pôr em questão a nossa confiança na nossa própria competência de segunda ordem, ao tempo em que recomendaria a qualidade da sua própria autoconfiança correspondente. De novo, pareceria teimosamente irracional alinhar-se conosco sem razões para tal. A racionalidade pareceria exigir razões sincronicamente disponíveis a nós, caso quiséssemos defender a nossa autoconfiança de forma apropriada contra a dúvida do nosso oponente.

É irracional ignorar tal oponente? Isso depende do contexto. O que mais solicita a nossa atenção na altura? Suponha-se que ponhamos de parte considerações práticas. Ainda assim, que outras preocupações intelectuais ou epistêmicas solicitam a nossa atenção na altura? Certamente pode chegar um momento em que o melhor a fazer para nós, intelectualmente, é insistir no nosso lado de uma controvérsia simplesmente com base em autoconfiança. E o nosso juízo acerca da ordem inferior pode também ser suficientemente bem executado, como dele se requer caso deva constituir conhecimento. Um juízo constituinte de conhecimento precisa apenas obviar a falhas epistêmicas relevantes mesmo que ele pudesse ser melhorado acima do seu estatuto adquirido, por meio de mais escrutínio e raciocínio.

Tomemos dois oponentes que procedem de formas parecidas, com justificação igualmente plausível. Suponhamos que estejam em condições simétricas no tocante a qualquer arrazoado consciente que empreguem ou possam facilmente empregar. Cada qual se considera fiável relativamente à questão que os divide. Cada qual tem coisas melhores para fazer, além disso, do que resolver a sua querela, mesmo considerando apenas preocupações intelectuais ou epistêmicas. Nessa medida, e por consequência, ambos são igualmente racionais em concordar em discordar, em seguir adiante com as suas vidas intelectuais. Contudo, disso não decorre que estão em condição simétrica epistemicamente ao fazê-lo, tampouco que as suas crenças, e correspondentes juízos de primeira ordem, estão igualmente justificados em termos epistêmicos, se o que selecionamos por tal "justificação" é o estatuto normativo exigido para o conhecimento.11 11 Esse é o estatuto "selecionado" por 'justificação epistêmica', o que não significa que essa expressão deva ser definida como "o estatuto exigido para conhecimento proposicional". No fim de contas, pessoalmente, eu prefiro uma terminologia de 'competência' para esse estatuto. Uma das crenças em desacordo poderá estar muito melhor justificada epistemicamente do que a outra.

Tais oponentes são notavelmente similares das formas especificadas. Não obstante, um deles pode acreditar em si mesmo com uma base diacrônica muito melhor do que o faz o outro. Não podemos subir ladeiras infinitas de endosso sincrônico. Nalgum ponto a nossa defesa deve se assentar, e, nessa altura, importará quão bem fundadas as nossas disposições relevantes sejam. Nalgum ponto haveremos atingido o fim da linha sincrônica. Apenas fatores diacrônicos pesarão, então, sobre a autoconfiança residente naquele nível, e esses fatores devem receber o que lhes é devido. Se você raciocina tão bem, nem melhor nem pior do que um dado oponente num certo nível de reflexão, ao tempo em que ainda assim vocês diferem epistemicamente na qualidade das suas disposições diacrônicas, então é preciso conceder a isso o seu peso devido na avaliação dos seus juízos e crenças relevantes. Seria agora de bom alvitre respirar fundo e seguir adiante.

Como vimos, elevamo-nos acima do nível animal por meio de endossos baseados em razões no interior da nossa esfera sincrônica. Isso não significa que nós fracassemos como humanos reflexivos se incapazes de alcançar níveis infinitos de reflexão, disponíveis, no máximo, aos infinitamente omniscientes. Antes de mais, deve, implica, pode para a agência epistêmica, não menos do que para a agência moral.12 12 "Não menos", digo, deixando um espaço para questões importantes e sutis no caminho, nas quais, e na medida das quais, o dictum se aplica até mesmo no domínio moral. E, além disso, suponha que nós pudéssemos ascender a um nível ainda maior, impelidos por desacordo num dado nível. Suponha, ainda, que as nossas crenças relevantes seriam melhoradas epistemicamente pelo sucesso nessa diligência ulterior. Ainda assim, o melhor não é necessariamente o obrigatório. A nossa crença pode ser epistemicamente não provável (improvable) por meio de tal ascensão sem ser defeituosa, mesmo que declinemos de ascender, e mesmo que nem sequer consideremos a possibilidade de ascender. É possível que simplesmente tenhamos coisas melhores a fazer epistemicamente do que defender as nossas crenças naquele plano mais elevado.13 13 Essa posição conclusiva ganha plausibilidade quando distinguimos entre (a) suspensão positiva da crença e (b) simplesmente não considerar uma questão, mesmo estando ela em nossas mentes ( before our minds). A segunda é uma recusa em envolver-se mais no assunto de qual atitude tomar frente à questão, até mesmo a atitude de suspender. Ver o Apêndice para mais sobre o suspender. 14 14 Ou pode apenas ser o caso que a prática cognitiva humana apropriada não exige tal defesa. Dadas todas as trocas envolvidas no florescimento humano (aí incluídos os componentes cognitivos de tal florescimento), talvez a nossa prática cognitiva não requeira essa ascensão ulterior, a despeito do melhoramento cognitivo que sobreviria. Isso levanta questões, algumas das quais claramente não triviais. O que é prática cognitiva? O que é uma prática cognitiva? Haverá uma única tal prática, parte de uma "forma humana de vida"? Ou haverá (também?) práticas culturalmente específicas que incidem (também) sobre um tipo de justificação epistêmica disponível a membros da cultura relevante? Têm todas essas práticas um peso normativo apropriado, ou há lugar, nelas, para ilusão, e mesmo para superstição, pelo menos nas culturalmente específicas? Essa abordagem geral pode revelar variedades de justificação epistêmica específicas a espécies ou mesmo culturas, ainda que todas compartilhem de importantes similaridades estruturais e um objetivo comum de alcance fiável da verdade. Intuições de escritório podem refletir, então, os nossos comprometimentos com tais práticas, sejam elas inevitáveis por meio do desenvolvimento infantil normal, ou embebidas na cultura. Contudo, dado que ilusão e superstição também são adquiridas dessas maneiras, essas práticas requereriam avaliação. E a avaliação epistêmica de práticas epistêmicas deve, é claro, envolver fiabilidade quanto à verdade ( truth-reliability).

Recebido para publicação em 28 de julho de 2012

Aceito em 04 de novembro de 2012

Ernest Sosa - Doutor em Filosofia. Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Rutgers (EUA). Foi professor de Filosofia da Universidade Brown de 1964 a 2007. Foi professor visitante nas universidades de Western Ontario, Miami, Mexico, Harvard, Michigan, Texas e Salamanca. Foi "Visiting Fellow" na St. Catherines College, Oxford (Trinity, 1997), na Universidade Nacional da Austrália em Canberra (2002) e na All Souls College de Oxford (Trinity, 2005). Editor de Philosophy and Phenomenological Research (desde 1983), Noûs (desde 1999), e Editor Geral dos Cambridge Studies in Philosophy de 1992 a 2003 (Cambridge University Press). Fez extensas contribuições à epistemologia, à metafísica e à filosofia da mente, entre outros interesses. Entre as suas principais publicações estão Knowledge in Perspective (Cambridge, 1991) e Apt Belief and Reflective Knowledge (v. 1, A Virtue Epistemology, 2007; v. 2, Reflective Knowledge, 2009, Oxford University Press).

  • 1
    Original "
    Epistemic Agency", tradução de Rafael Lopes Azize.
  • 2
    Poder-se-ia optar, alternativamente, por uma noção mais ampla de "diligência" segundo a qual toda busca de um objetivo, toda teleologia, mesmo que meramente funcional, envolveria "diligências" para atingir um fim, tal como faz o coração quando bate regularmente para fazer circular o sangue. Opto aqui, antes, por uma noção mais restrita de diligências que são livres, e que, juntamente com os funcionamentos, perfarão uma classe ampla de objetivos (
    aimings).
  • 3
    Eu fiz uma distinção entre as atitudes reativas que se aplicam à região da liberdade e a nossa aprovação ou desaprovação na região dos funcionamentos. Dou por assente que "elogio" pode ir de par com admiração, que não pressuporia agência livre. E é fato que nós estendemos o idioma até mesmo da "responsabilização" muito para além da região da liberdade, como quando "culpamos" uma escora fraca pela queda de uma ponte. E há também o peso daquela negligência que é inteiramente digna de responsabilização. Tomemos um agente que dê livre curso às suas atitudes irrefletidas, embora devesse ter "pensado melhor". De fato, responsabilizamos esse agente, mas não necessariamente o inculpamos simplesmente por ter agido de acordo com as suas crenças e desejos irrefletidos, no nível animal. Responsabilizamo-lo, mais centralmente, em razão da negligência da qual ele é "culpado". Além disso, quando ele apropriadamente não reflete, quando age instintiva e automaticamente de acordo com as suas crenças e desejos irrefletidos de nível animal, nós não necessariamente o elogiamos simplesmente por ter agido de acordo com essas atitudes irrefletidas. Elogiamo-lo, mais centralmente, por ele ter tido o bom senso de se mostrar implicitamente sensível quando é necessária reflexão, e de omitir a reflexão sem negligência. Porventura (mas não discutirei isso aqui) tal sensibilidade e negligência residam na região da liberdade.
  • 4
    Novamente, mesmo que não precisemos muito deles, os seguintes pontos linguísticos parecem suficientemente plausíveis. É plausível dizer que não tecemos, em termos estritos, "elogios" em piloto automático ao bom funcionamento epistêmico: a aquisição de crenças triviais que orientam a conduta cotidiana. Tampouco estritamente "repreendemos" alguém que funciona mal, prática ou teoreticamente. O mau funcionamento pode ser devido a bebida ou drogas ou à falta de sono, ou pode simplesmente revelar ausência de capacitação relevante. Deploramos o fato, mas não tendemos a repreender o agente, no caso de ele estar apenas a funcionar automaticamente e não a decidir ou a julgar livremente. É claro que precisamos aqui de distinções mais finas, em particular quanto a uma metafísica compatibilista da liberdade (mas a metafísica não consta da nossa já profusa lista de preocupações).
  • 5
    Alguns procuraram tal estatuto entre as nossas atitudes práticas. Na sua busca por um estatuto que freasse o regresso, voltaram-se para atitudes pragmáticas. Não estou persuadido de que isso possa nos fornecer justificação de interesse distinto em epistemologia, nomeadamente, justificação epistêmica, o tipo apropriadamente atrelado à verdade. Assim, procuro noutro lado.
  • 6
    Não se pretende, aqui, defender uma teoria adverbial radical, já que a "maneira" pela qual você experimenta a experiência quando tem uma experiência visual pode exigir a hospedagem de um conteúdo proposicional. Esse conteúdo proposicional pode, contudo, ser falso, de forma que não haja nenhum feitor de verdade (
    truth-maker) que funcione como o objeto da experiência da pessoa. Tampouco o conteúdo proposicional é o "objeto". Não experimentamos sensoriamente conteúdos proposicionais. Antes, o conteúdo proposicional oferece o conteúdo, não o objeto, da experiência. Alojar (
    hosting) o conteúdo proposicional está essencialmente envolvido na maneira de experimentar envolvida no ter (
    in the having) daquela experiência sensória, que não precisa ter nenhum tipo de objeto.
  • 7
    Penso, aqui, num caso normal, não em dores autoinfligidas, o que introduz complicações irrelevantes.
  • 8
    O nosso problema do hipocondríaco é assemelhado ao Problema da Galinha Pintada (
    Speckled Hen) para o internalismo do dado (
    givenist). Um problema desse tipo se aplica tanto à crença ou credo baseada na experiência acerca da cena diante de você quanto à crença ou credo introspectiva sobre estados de consciência no interior de você.
  • 9
    Além disso, nossas crenças mais simples de lógica, aritmética e geometria oferecem outros exemplos em que crenças fundacionais alcançam justificação epistêmica sem a ajuda de estados mentais dados, pré-crenças, autoapresentantes. O mero entendimento nos dá, plausivelmente, o acesso de que precisamos ao conjunto relevante de verdades simples, desde que sejamos suficientemente fiáveis em tais crenças baseadas em entendimento.
  • 10
    Tome-se um padrão que, para mim, tem significância religiosa, de tal forma que eu posso reconhecê-lo e armazenar crenças com conceitos que correspondem àquele padrão visual. Para você, esse padrão pode ser apenas um garrancho. Nesse caso, as minhas crenças podem apresentar (feature), nos seus conteúdos, o padrão ele mesmo de uma maneira que não está disponível a você. Ao voltar os olhos para longe do garrancho, o seu acesso à sua crença primária (prior) se restringe a "o garrancho para o qual apontei há pouco" ou algo assim. Ao contrário, posso esquecer como adquiri a minha crença sem nenhum prejuízo para o seu conteúdo pleno, que posso agora reter guardado. Posso, por exemplo, reter uma crença religiosa importante de tal forma que instâncias daquele padrão sejam dignas de veneração. O tipo anterior de crença no garrancho, com o seu conteúdo puramente demonstrativo/indexical, alimentaria o nosso corpo de crenças de maneira insuficiente.
  • 11
    Esse é o estatuto "selecionado" por 'justificação epistêmica', o que não significa que essa expressão deva ser definida como "o estatuto exigido para conhecimento proposicional". No fim de contas, pessoalmente, eu prefiro uma terminologia de 'competência' para esse estatuto.
  • 12
    "Não menos", digo, deixando um espaço para questões importantes e sutis no caminho, nas quais, e na medida das quais, o dictum se aplica até mesmo no domínio moral.
  • 13
    Essa posição conclusiva ganha plausibilidade quando distinguimos entre (a) suspensão positiva da crença e (b) simplesmente não considerar uma questão, mesmo estando ela em nossas mentes (
    before our minds). A segunda é uma recusa em envolver-se mais no assunto de qual atitude tomar frente à questão, até mesmo a atitude de suspender. Ver o Apêndice para mais sobre o suspender.
  • 14
    Ou pode apenas ser o caso que a prática cognitiva humana apropriada não exige tal defesa. Dadas todas as trocas envolvidas no florescimento humano (aí incluídos os componentes cognitivos de tal florescimento), talvez a nossa prática cognitiva não requeira essa ascensão ulterior, a despeito do melhoramento cognitivo que sobreviria. Isso levanta questões, algumas das quais claramente não triviais. O que é prática cognitiva? O que é uma prática cognitiva? Haverá uma única tal prática, parte de uma "forma humana de vida"? Ou haverá (também?) práticas culturalmente específicas que incidem (também) sobre um tipo de justificação epistêmica disponível a membros da cultura relevante? Têm todas essas práticas um peso normativo apropriado, ou há lugar, nelas, para ilusão, e mesmo para superstição, pelo menos nas culturalmente específicas? Essa abordagem geral pode revelar variedades de justificação epistêmica específicas a espécies ou mesmo culturas, ainda que todas compartilhem de importantes similaridades estruturais e um objetivo comum de alcance fiável da verdade. Intuições de escritório podem refletir, então, os nossos comprometimentos com tais práticas, sejam elas inevitáveis por meio do desenvolvimento infantil normal, ou embebidas na cultura. Contudo, dado que ilusão e superstição também são adquiridas dessas maneiras, essas práticas requereriam avaliação. E a avaliação epistêmica de práticas epistêmicas deve, é claro, envolver fiabilidade quanto à verdade (
    truth-reliability).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      28 Jul 2012
    • Aceito
      04 Nov 2012
    Universidade Federal da Bahia - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas - Centro de Recursos Humanos Estrada de São Lázaro, 197 - Federação, 40.210-730 Salvador, Bahia Brasil, Tel.: (55 71) 3283-5857, Fax: (55 71) 3283-5851 - Salvador - BA - Brazil
    E-mail: revcrh@ufba.br