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TRAJETÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO EDUCACIONAL DE MULHERES

O número temático “Trajetórias e experiências de formação educacional de mulheres” insere-se no campo da educação, mais especificamente lança visibilidade às histórias de vida de mulheres que exercem efetiva participação social, seja atuando na educação de outras mulheres, seja incentivando a luta por direitos com mote na igualdade entre os gêneros, seja desenvolvendo ações de consciência coletiva pautadas nos princípios de igualdade, liberdade, sororidade e representatividade feminina. De acordo com Roberto Xavier, Lia Fialho e Gerardo Vasconcelos (2018)XAVIER, A. R. R.; FIALHO, L. M. F.; VASCONCELOS, J. G. História, memória e educação: aspectos conceituais e teórico-metodológicos. Fortaleza: EdUECE, 2018., consideramos que as experiências femininas da/com a formação educacional – quer formal, quer informal – são imprescindíveis para a definição de suas trajetórias enquanto sujeitos sociais ímpares e definidores de mudanças sociais para si e para seu grupo social.

As vidas e trajetórias das mulheres aqui relatadas e analisadas se inserem no escopo das discussões atualmente em pauta sobre o feminino e trazem elementos históricos e contextuais que contribuem para a sua problematização. Em concordância com Cecília Sardenberg (2012)SARDENBERG, C. M. B. Conceituando “empoderamento” na perspectiva feminista. In: Seminário Internacional: Trilhas do Empoderamento de Mulheres, 1., 2012, Salvador. Anais [...]. 2012. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/6848. Acesso em: 15 jul. 2022.
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, buscamos destacar alguns processos da conquista da autonomia da mulher, nos quais, mediante o questionamento da ordem vigente, elas buscaram desestabilizar a estrutura patriarcal para acabar com a opressão de gênero sustentada historicamente, o que possibilitou às mulheres maior controle sobre suas vidas e seus corpos. Valorizamos, pois, a luta pela igualdade de gêneros e, por consequência, a história das mulheres que conscientemente se posicionaram e conseguiram romper barreiras impostas ao feminino, galgando maior participação na sociedade, tanto no campo educacional como no político.

Portanto, ao abordarmos essa temática, tocamos em questões históricas das sociedades mundiais que alicerçaram assimetrias baseadas no sexo, pois tensionamos um problema atual e inquietante, a desigualdade de gênero, aprofundada na interseccionalidade raça e classe (Gonzalez; Hasenbalg, 1982GONZALEZ, L.; HASENBALG, C. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.; Davis, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.). Essa agrura, segundo Camila Lima (2018)LIMA, C. R. N. A. Gênero, trabalho e cidadania: função igual, tratamento salarial desigual. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 3, e47164, 2018. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2018v26n347164
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, ainda persiste e continua assolando especialmente as mulheres, tanto no espaço doméstico quanto no mercado de trabalho, o que repercute na falta de representatividade política, desigualdade salarial, discriminações e violências múltiplas.

O portfólio de artigos traz problemática de relevo hodierno porque a luta pela equidade de gênero se faz constante e urgente. No mais, objetivou dar a ver trajetórias formativas e atuações femininas que permitem lançar luz às experiências de mulheres que colaboraram para mitigar as desigualdades educacionais e sociais e, por vezes, foram invisibilizadas ou relegadas ao ostracismo. Entender a educação feminina na interface com as singularidades dos diversos contextos sócio-históricos em que elas se situam nos possibilitou considerar as diversidades locais, nacionais e internacionais, pelos percursos educativos e profissionais de mulheres que colaboraram com o desenvolvimento educacional.

Ao desvelar paradoxos e paradigmas que permeavam a educação feminina, reconstituímos espaços geográficos e períodos temporais diferentes que sinalizam a cultura e os cenários econômico, social e político de uma época. Perpassamos por níveis de estudo diferenciados que emergem em formação feminina variada, que abriga congruências e dissonâncias pertinentes ao lugar da mulher na sociedade. Assim, as pesquisas apresentadas neste número temático ressaltam as experiências de mulheres advindas de distintas regiões do Brasil, como também da Argentina, da Espanha, do México e do Peru, que têm contribuído para mitigar desigualdades educacionais e no campo dos direitos. Algumas até mesmo atuaram em períodos em que o direito à educação não era consolidado ou garantido a toda a população.

Apoiando-nos teoricamente na literatura previamente produzida acerca da história de mulheres, possibilitamos trazer à baila pesquisas científicas que fomentam uma reflexão sobre as especificidades atribuídas à natureza feminina, seu comportamento perante a sociedade, a sua educação e profissionalização, bem como as nuanças que ainda influenciam o mercado de trabalho, as resistências ao autoritarismo e as lutas por direitos políticos (Fialho; Durke, 2019FIALHO, L. M. F.; DURKE, D. Mulheres na história da educação: formação e profissionalização. Educação Unisinos, São Leopoldo, v. 23, n. 1, p. 1-5, 2019. https://doi.org/10.4013/edu.2019.231.18199
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). Em termos metodológicos, considerando as diversas temporalidades, utilizamos fontes variadas que se entrecruzam – documentais, legais, imagéticas, orais, entre outras – para oportunizar uma análise crítica permeada por problematizações propulsoras de possibilidades para romper paradigmas e questionar dogmas e estereótipos disseminados pelo senso comum para subjugar o feminino.

O número temático envolve 10 artigos de pesquisadores e pesquisadoras experientes da área da educação de todas as regiões do Brasil e de outros países (Espanha, Chile e Portugal), que estão participando de dois projetos de pesquisa financiados que estudam a educação de mulheres: “Educadoras do século XX: práticas, leituras e representações” (Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e “A educação de mulheres ao longo dos séculos XIX e XX” (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). De tal modo, reunimos pesquisas qualificadas de 27 estudiosos e estudiosas, que se dedicam a pesquisar sobre educação de mulheres, de 15 instituições de ensino superior distintas, para minorar a invisibilidade feminina e valorizar suas resistências.

O primeiro texto, “A relevância social e política da história das mulheres no Brasil” é um ensaio que discute a relevância social e política da história das mulheres considerando as diversidades femininas e que reafirma a importância de as mulheres serem visibilizadas, pois apesar de elas sempre terem contribuído para as sociedades, especialmente no âmbito educacional, ainda há preconceitos reforçados, minimizando os esforços empreendidos nas lutas e rupturas alcançadas. Na contramão de uma história única e universal que desumaniza os sujeitos, destaca conquistas no tocante à atuação das mulheres aos desafios que persistem na história da educação.

Em seguida, o artigo denominado “Mulheres retratadas em papel e pena: educação e cotidiano feminino no século XIX” analisa cartas íntimas de arquivos pessoais para depreender aspectos do cotidiano feminino no tocante à gestão da casa, à educação dos filhos e filhas, às alusões ao casamento, às relações familiares com os núcleos parentais, à abordagem da escravização doméstica, entre outros assuntos. Tais aspectos revelam que desde a segunda metade do século XIX já havia explícita distinção na educação de mulheres em detrimento da classe social, bem como do papel social exercido pelos sujeitos estabelecidos pelo sexo.

“Catharina Moura e os direitos da mulher: um discurso em muitas vozes” desenvolve uma análise indiciária para identificar e problematizar as leituras que inspiraram essa mulher na produção do texto intitulado “Os direitos da mulher”. O escrito foi divulgado em uma conferência no ano de 1913 na cidade da Parahyba do Norte (PB) e, depois de algumas modificações, foi submetido à banca de congregação da Faculdade de Direito do Recife em 1921 e premiado, por se tratar de documento marcante na luta pela emancipação feminina.

A quarta pesquisa, “Entre literatura e educação: as trajetórias intertextuais das escritoras Lindanor Celina e Maria Lúcia Medeiros”, traz à tona uma análise dialógica intertextual das trajetórias de vida, da obra e do pensamento das professoras e escritoras bragantinas Maria Lúcia Medeiros e Lindanor Celina. Elas foram mulheres que estrearam na literatura da Amazônia paraense com prosas ficcionais ao enfatizar as personagens femininas transgressoras e insubmissas. Destacam-se o romance Menina que vem de Itaiara (1962), de Lindanor Celina, e a coletânea de contos Zeus ou a menina e os óculos (1988), de Maria Lúcia Medeiros, para tecer uma reflexão intertextual nas trajetórias de educação, formação feminina e infância das escritoras mencionadas.

O artigo “Biografia de Alba de Mesquita Frota e a educação das moças no curso normal no início do século XX” trata da historiografia da educação feminina cearense com ênfase na formação para o magistério no curso normal na cidade de Fortaleza (CE). Dessa maneira, permite refletir sobre a educação das moças normalistas no início do século XX, mais especificamente por um olhar micro-histórico acerca da formação para o magistério no elitista Colégio da Imaculada Conceição, com base na vida educacional e profissional da educadora Alba Frota, mulher esta que se destacou no âmbito da educação de crianças e foi homenageada com a denominação da primeira pré-escola cearense.

Distanciando-se da educação tradicional e da educação para as moças da elite econômica, dois artigos trazem pesquisas sobre mulheres indígenas, permitindo compreender que raça, gênero e classe são aspectos determinantes no tipo de educação e na atuação social das mulheres. O primeiro, “Quitéria Binga, ou a Cacica do Nordeste: formação, experiência e ação política de uma liderança Pankararu (1939-2009)”, traz a história de vida e formação de Quitéria Binga, a cacica do nordeste, e desvela lutas e resistências de uma mulher pankararu analisadas sob o prisma dos processos (auto)formativos e as atuações na condição de líder indígena que se destaca pelas lutas pela terra e pelo direito à vida. O segundo, “A trajetória da professora Maria Luiza Rodrigues na reserva indígena de Dourados-MT (1951-1961)”, propõe-se a refletir a respeito da trajetória da professora guarani Maria Luiza Rodrigues na Reserva Indígena de Dourados, que nesse local, no exercício da docência, fomentou educação e empoderamento às etnias kaiowá, guarani e terena no período de 1951 a 1961. Ambos os artigos, mesmo retratando realidades contextuais distintas – do nordeste e do centro-oeste –, permitem discutir as opressões direcionadas aos povos indígenas e as ações femininas de resistência e lutas forjadas em circunstâncias de privações, medo e violência, desde a inter-relação entre biografia e história.

Com uma lente ampliada para o contexto internacional, o artigo “Mulheres gestoras universitária: perfil e enfrentamentos (2010-2020)” trata como as mulheres foram desenvolvendo o perfil para assumirem tal tarefa e os enfrentamentos vivenciados. Nessa seara, analisam-se a constituição profissional e aspectos da trajetória de mulheres gestoras universitárias de instituições de ensino superior na Ibero-América, tais como Brasil, Argentina, Espanha, México e Peru.

Os artigos dos pesquisadores e das pesquisadoras da Espanha tratam, respectivamente, da formação inicial de docentes com base na biografia de mulheres nos livros de literatura ilustrados e da educação literária, na perspectiva de gênero, por meio da análise de microrrelatos escritos por mulheres. O primeiro, “Formación inicial de las docentes y los docentes y biografías de mujeres en libros ilustrados de no ficción”, parte de uma investigação participativa no curso de graduação da Universidade de Cádiz que prepara professores e professoras para atuar na educação primária (semelhante ao curso de Pedagogia no Brasil, que licencia para a educação infantil) e dedica-se a discutir a importância de a formação inicial voltar-se para a igualdade de gênero ao defender que os livros literários que tratam de biografias se convertem na base para a promoção da leitura e do reconhecimento da mulher sob a perspectiva da justiça social, educativa e curricular.

O segundo, “Educación literaria y perspectiva de género. Taller #menosmusas de lectura y creatividad literaria”, consiste em uma estratégia no âmbito da educação literária também na perspectiva de gênero, pois considera que os relatos escritos por mulheres possibilitam uma reflexão partilhada e uma escrita criativa. Dessa maneira, ressalta a necessidade de fomentar projetos que incluam discussões sobre as questões de gênero e incentivem a escrita compartilhada entre estudantes em formação. Ambos os artigos defendem que na formação de professores e professoras há a necessidade de lançar luz sobre os escritos femininos, sobretudo quando eles retratam tensões, assimetrias e demais problemas decorrentes da desigualdade de gênero historicamente constituída nas sociedades.

Em suma, o número temático amplia as discussões acerca das trajetórias e experiências de formação educacional de mulheres ao problematizar paradoxos que permearam a educação feminina e refletir sobre situações individuais, na interface com o coletivo, que colaboraram para superar preconceitos e desenvolver os respectivos cenários educacionais. As memórias e histórias de mulheres de elite, pobres e indígenas, de diversos tempos e espaços, foram retratadas e preservadas, lançando visibilidade às personagens femininas que em geral não conseguiram o devido reconhecimento social, ainda que tenham contribuído para o empoderamento feminino, especialmente por meio do trabalho educativo, colaborando para minimizar as desigualdades educacionais e sociais.

Ademais, ressaltamos a importância de se trabalhar a igualdade de gênero na formação de professores e professoras para minorar assimetrias e valorizar a produção feminina, fortalecendo uma cultura de leitura e escrita criativa em prol da justiça social e do empoderamento das mulheres.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • Financiamento

    Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
    Projeto No: PS1-0186-00218.01.00/21

Disponibilidade de dados da pesquisa

Não se aplica.

Referências

  • DAVIS, A. Mulheres, raça e classe Tradução de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • FIALHO, L. M. F.; DURKE, D. Mulheres na história da educação: formação e profissionalização. Educação Unisinos, São Leopoldo, v. 23, n. 1, p. 1-5, 2019. https://doi.org/10.4013/edu.2019.231.18199
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  • GONZALEZ, L.; HASENBALG, C. Lugar de negro Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.
  • LIMA, C. R. N. A. Gênero, trabalho e cidadania: função igual, tratamento salarial desigual. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 3, e47164, 2018. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2018v26n347164
    » https://doi.org/10.1590/1806-9584-2018v26n347164
  • SARDENBERG, C. M. B. Conceituando “empoderamento” na perspectiva feminista. In: Seminário Internacional: Trilhas do Empoderamento de Mulheres, 1., 2012, Salvador. Anais [...]. 2012. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/6848 Acesso em: 15 jul. 2022.
    » https://repositorio.ufba.br/handle/ri/6848
  • XAVIER, A. R. R.; FIALHO, L. M. F.; VASCONCELOS, J. G. História, memória e educação: aspectos conceituais e teórico-metodológicos. Fortaleza: EdUECE, 2018.

Editoras Associadas:

Elizabeth dos Santos Braga https://orcid.org/0000-0002-8115-249X e Rita de Cassia Gallego https://orcid.org/0000-0003-4465-8173

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2023
  • Aceito
    15 Set 2023
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