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Modelagem Matemática na perspectiva da Educação Matemática Crítica e a Escola do Campo: algumas aproximações

Mathematical Modeling in the perspective of Critical Mathematics Education and Rural Education: a few approaches

Resumo

Este artigo traz resultados de uma pesquisa de mestrado e objetiva apresentar aproximações entre a Modelagem Matemática (MM) na perspectiva da Educação Matemática Crítica (EMC) e a Educação do Campo evidenciadas durante o desenvolvimento de atividades de MM em uma turma do 3° ano do Ensino Médio de uma Escola do Campo do interior do Paraná. Para isso, foi realizada uma pesquisa de natureza qualitativa, a partir do desenvolvimento de duas atividades de MM, conduzidas pelos casos 2 e 3 indicados por Barbosa (2004). Os dados foram coletados remotamente via internet por meio de observação, registrados utilizando ferramentas online e analisados de acordo com a Análise Textual Discursiva de Moraes e Galiazzi (2011). Os resultados apontam que a MM na perspectiva da EMC possibilitou fazer conexões com a Educação do Campo, uma vez que emergiram, por meio do diálogo, discussões democráticas e reflexões críticas a respeito de questões econômicas, ambientais, culturais e sociais, despertando a autonomia durante o desenvolvimento das atividades, cujos temas envolveram situações reais articuladas ao contexto e aos conhecimentos dos alunos.

Modelagem Matemática; Educação Matemática Crítica; Educação do Campo; Escola do Campo

Abstract

This article brings results of a Master's Degree research and aims to present approximations between Mathematical Modeling (MM) from the perspective of Critical Mathematics Education (CME) and Field Education evidenced during the development of MM activities in a Senior Year High School class at a Country School in the countryside of Paraná. For this, we carried out qualitative research, based on the development of two MM activities, conducted by cases 2 and 3 indicated by Barbosa (2004). Data were collected remotely via the internet through observation, recorded using online tools, and analyzed according to the Textual Discursive Analysis of Moraes and Galiazzi (2011). The results show that MM from the perspective of CME made it possible to make connections with Rural Education, since it emerged, through dialogue, democratic discussions and critical reflections on economic, environmental, cultural, and social issues, awakening autonomy during the development of the activities, whose themes involved real situations articulated to the students’ context and knowledge.

Mathematical Modeling; Critical Mathematics Education; Rural Education

1 Introdução

Dentre as várias concepções de Modelagem Matemática (MM), optou-se por conduzir as atividades desenvolvidas nesta pesquisa pela perspectiva sociocrítica ( BARBOSA, 2001BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: Concepções e Experiências de Futuros Professores. 2001 . Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) , Rio Claro , 2001 . , 2003BARBOSA , J. C. Modelagem matemática na sala de aula . Perspectiva , Erechim - RS v. 27 , p. 65 - 74 , 2003 . , 2004BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: O que é? Por quê? Como? Veritati , Salvador - Ba n. 4 , p. 73 - 80 , 2004 . ; ARAÚJO, 2009ARAÚJO , J. L. Uma Abordagem Sócio-Crítica da Modelagem Matemática: a perspectiva da educação matemática crítica . Alexandria , Florianópolis - SC v. 2 , n. 2 , p. 55 - 68 , 2009 . ), vinculada diretamente à Educação Matemática Crítica (EMC) ( SKOVSMOSE, 2001SKOVSMOSE , O. Educação matemática crítica: a questão da democracia . Campinas : Papirus , 2001 . , 2008SKOVSMOSE , O. Desafios da reflexão em educação matemática crítica . Trad . Orlando de Andrade Figueiredo e Jonei Cerqueira Barbosa . Campinas : Papirus , 2008 . ). Nessa perspectiva, a Matemática é um “instrumento” de questionamento da realidade, pois enfatiza o papel social dos conhecimentos e reivindica a necessidade de pensamento crítico sobre a função e a natureza de modelos matemáticos.

A MM, na perspectiva sociocrítica e da EMC, torna-se um trabalho prático sem etapas lineares, no qual os estudantes são convidados e, ao aceitarem o convite, participam das atividades. Geralmente, as atividades são problemas originados de situações/temas não matemáticos, e, nesse contexto, os conteúdos matemáticos surgem no desenvolvimento do problema, considerando o protagonismo dos estudantes e o fator democrático na escolha do tema. A ênfase é dada ao processo de resolução, e não somente à apresentação da(s) resposta(s). Nas discussões, os estudantes são incentivados a realizar a vinculação a aspectos socioculturais, econômicos e sociais, fatores importantes para as transformações locais ocasionadas pelas ações das resoluções ( BARBOSA, 2001BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: Concepções e Experiências de Futuros Professores. 2001 . Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) , Rio Claro , 2001 . , 2003BARBOSA , J. C. Modelagem matemática na sala de aula . Perspectiva , Erechim - RS v. 27 , p. 65 - 74 , 2003 . , 2004BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: O que é? Por quê? Como? Veritati , Salvador - Ba n. 4 , p. 73 - 80 , 2004 . ; ARAÚJO, 2009ARAÚJO , J. L. Uma Abordagem Sócio-Crítica da Modelagem Matemática: a perspectiva da educação matemática crítica . Alexandria , Florianópolis - SC v. 2 , n. 2 , p. 55 - 68 , 2009 . ).

A Escola do Campo não se trata de um “tipo” de escola, mas de um ambiente educacional auxiliador no fortalecimento dos povos do campo, que busca humanizar a sociedade por meio da história, das lutas, do trabalho e da cultura, inserido na dinâmica da vida de quem dela faz parte ( PPP, 2020PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO (PPP) . Colégio Estadual do Campo Professor Eugênio de Almeida: Ensino Fundamental e Médio . São Mateus do Sul – PR , 2020 . ). Um desafio a essas escolas é garantir que as estratégias metodológicas girem em torno de práticas envolvidas por valores e princípios engendrados em um projeto de humanidade, de sociedade, que reflita, de forma crítica, a permanência do homem no campo ( CALDART, 2003CALDART , R. S. A escola do Campo em Movimento . Currículo sem Fronteira , Porto Alegre , v. 3 , n. 1 , p. 60 - 81 , 2003 . , 2011CALDART , R. S. A. Educação do Campo e a perspectiva de transformação da forma escolar . In: MUNARIM , A. ; BELTRAME , S. ; CONTE , S. F. ; PEIXER , Z. I. ( orgs .) . Educação do Campo: reflexões e perspectivas . Florianópolis : Insular , 2 . ed. 2011 . p. 145 - 187 . ; LEITE, 2002LEITE , S. C. Escola rural: urbanização e políticas educacionais . São Paulo : Cortez , 2002 . ; PINHEIRO, 2007PINHEIRO , M. S. D. A concepção de educação do campo no cenário das políticas públicas da sociedade brasileira . Belém – PA , UFPA , 2007 . , BARREIRO, 2010BARREIRO , I. M. F. Política de Educação do Campo: Para Além da Alfabetização (1952-1963) . São Paulo : Cultura Acadêmica , 2010 . ; ARROYO; CALDART; MOLINA, 2009; SANTOS, 2017SANTOS , A. R. Educação do Campo e Agronegócio: território de disputas . Educação em Revista , Marília , v. 18 , n. 2 , p. 71 - 90 , Jul-Dez ., 2017 . ).

A MM vem sendo objeto de pesquisa em relação ao ensino e aprendizagem vinculada à Educação no campo ( FEYH, 2013FEYH , C. R. N. Modelagem Matemática na Educação do Campo . 2013 . Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências Naturais e Matemática) – Universidade Regional de Blumenau (FURB) , Blumenau , 2013 . ; DUFECK, 2017DUFECK , L. F. Uma aplicação da Modelagem Matemática na Educação do Campo . 2017 . 137 f. Dissertação (Mestrado em Matemática) - Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) , Ponta Grossa , 2017 . ; LEITE, 2018LEITE , K. C. Modelagem Matemática na Educação do Campo: tecendo novos caminhos. 2018 . 219 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências Naturais e Matemática) - Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) , Guarapuava , 2018 . ; FLORES, 2019FLORES , L. S. Educação do Campo e Modelagem Matemática: construção de estufa para a produção de orgânicos na zona rural de São Sebastião do Caí. 2019 . Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) , Porto Alegre , 2019 . ; JESUS; SANTOS; GRILO, 2019; VARGAS, 2020VARGAS , A. F. Do Campo à Matemática: os princípios da Modelagem Matemática para uma aprendizagem significativa. 2020 . 142 f. Dissertação (Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática) - Universidade Franciscana (UFN) , Santa Maria , 2020 . ).

Nesse âmbito, ao inserir os sujeitos de forma participativa/ativa na sociedade, a Educação do Campo encontra ecos no desenvolvimento de atividades de MM na perspectiva da EMC, pois se alinha ao interesse de formar sujeitos atuantes na sociedade e, em particular, capazes de analisar o papel sociocultural da Matemática ( BARBOSA, 2004BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: O que é? Por quê? Como? Veritati , Salvador - Ba n. 4 , p. 73 - 80 , 2004 . ; ARAÚJO, 2009ARAÚJO , J. L. Uma Abordagem Sócio-Crítica da Modelagem Matemática: a perspectiva da educação matemática crítica . Alexandria , Florianópolis - SC v. 2 , n. 2 , p. 55 - 68 , 2009 . ; CALDEIRA, 2009CALDEIRA , A. D. Modelagem Matemática: um outro olhar . Alexandria Revisa de Educação em Ciência e Tecnologia , Florianópolis - SC v. 2 , n. 2 , p. 33 - 54 , 2009 . ; MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2018).

A EMC tem sido amplamente discutida entre educadores matemáticos. Um de seus principais propositores é o professor e pesquisador Ole Skovsmose, cujos fundamentos teóricos sobre a Educação Matemática baseiam-se em Paulo Freire. Para Skovsmose (2008), apoiando-se no conceito freireano de diálogo, uma educação crítica não pode ser estruturada em torno de palestras proferidas pelo professor, mas deve-se basear em discussões, reflexões conjuntas e solidárias, gerando interesses nos alunos. A EMC é a expressão das preocupações e reflexões referentes à Matemática e ao seu ensino e aprendizagem na sociedade; assim, dentre suas reflexões, o professor questiona o poder formatador da Matemática ( SKOVSMOSE, 2001SKOVSMOSE , O. Educação matemática crítica: a questão da democracia . Campinas : Papirus , 2001 . , 2008SKOVSMOSE , O. Desafios da reflexão em educação matemática crítica . Trad . Orlando de Andrade Figueiredo e Jonei Cerqueira Barbosa . Campinas : Papirus , 2008 . ).

Dessa forma, refletimos sobre possíveis aproximações entre a MM na perspectiva da EMC e a Educação do Campo, evidenciadas durante o desenvolvimento de atividades de MM em uma turma do 3° ano do Ensino Médio de uma Escola do Campo do interior do Paraná.

2 Aspectos metodológicos

Esta pesquisa emprega a abordagem qualitativa, permitindo compreender como os alunos realizaram o desenvolvimento das atividades de MM. Os dados utilizados foram coletados no mês de junho de 2020, em uma turma de 3º ano do Ensino Médio de uma escola pública do campo, no decorrer de 12 horas/aula, durante o desenvolvimento de duas atividades de MM, ocorridas de forma remota por meio de um ambiente virtual, assim como as demais aulas naquele momento, por conta da pandemia de Covid-19. Onze estudantes participaram na primeira atividade e nove na segunda, por meio das plataformas Google Meet e WhatsApp . A coleta agrupou arquivos de áudio, vídeo, imagens de registros escritos e captura de tela, posteriormente transcritos. Portanto, o corpus da pesquisa é composto pelo conteúdo advindo dos registros das discussões realizadas pelos estudantes.

A primeira atividade foi conduzida pelo caso 2, indicado por Barbosa (2001)BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: Concepções e Experiências de Futuros Professores. 2001 . Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) , Rio Claro , 2001 . , e seu tema foi “Erva-Mate”, proposto pelo professor-pesquisador, pois a maioria das famílias dos estudantes cultiva esse produto, que, desse modo, faz-se presente no cotidiano deles. A atividade aconteceu em três momentos: no primeiro, por meio de um vídeo e dois textos, buscou-se interagir com o tema; no segundo, em grupos, os estudantes receberam questões – qual a área cultivada em cada propriedade? Quanto tempo se leva para extrair a erva-mate (quando recém-plantada e no caso de poda)? Qual a quantidade de erva-mate produzida na última colheita, pelas famílias de vocês? Como é comercializada? Qual é o lucro por arroba? -; e, no terceiro, realizaram-se as apresentações das investigações e os principais resultados.

A segunda atividade foi conduzida pelo caso 3, indicado por Barbosa (2001)BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: Concepções e Experiências de Futuros Professores. 2001 . Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) , Rio Claro , 2001 . . Em grupos, eles puderam discutir e anotar via chat do Google Meet os temas que poderiam ser problematizados, o que trouxe as temáticas “xisto” 1 1 O xisto é uma rocha da qual, na indústria localizada em São Mateus do Sul (PR), se extrai óleo combustível, nafta, gás combustível, gás liquefeito e enxofre, e produtos que podem ser utilizados nas indústrias de asfalto, cimenteira, agrícola e de cerâmica. Fonte : < https://petrobras.com.br/pt/nossas-atividades/principais-operacoes/refinarias/unidade-de-industrializacao-do-xisto-six.htm> . , “reciclagem” e “reflorestamento”. A partir de um consenso, escolheu-se o xisto, considerado necessário para a comunidade.

Diante do tema, os estudantes focaram a investigação em três questões abertas, elaboradas por eles, envolvendo aspectos econômicos, sociais e ambientais: em quais aspectos a exploração do xisto faz mal à saúde? Quais os impactos que sua extração causa ao meio ambiente? Qual a importância econômica que a exploração do xisto traz para o município?

Os dados foram analisados considerando a Análise Textual Discursiva (ATD), constituindo um processo auto-organizado enfatizando três etapas principais: 1) desmontar os textos ou unitarização ; 2) estabelecer relações ou categorização ; 3) captar o novo emergente ou metatexto ( MORAES; GALIAZZI, 2011MORAES , R. ; GALIAZZI , M. Análise Textual Discursiva . 2 . ed. Ijuí : Ed. Unijuí , 2011 . ).

A desconstrução ou fragmentação dos textos foi realizada a partir da seleção dos trechos considerados mais representativos do fenômeno em análise. Com a finalidade de organizar e estabelecer a origem de cada fragmento, criou-se um código constituído por letras e números que identificam o sujeito, a atividade de MM e a sequência do fragmento, conforme os exemplos: A1.M.4 (Aluno 1, atividade Erva-Mate, fragmento 4), A3.X.6 (Aluno 3, atividade Xisto, fragmento 6), PP.M.8 (Professor-Pesquisador, atividade Erva-Mate, fragmento 8), PP.X.5 (Professor-Pesquisador, atividade Xisto, fragmento 5).

A relação entre os fragmentos permitiu a organização das unidades de significado, apresentadas no Quadro 1 , baseado em Moraes e Galiazzi (2011)MORAES , R. ; GALIAZZI , M. Análise Textual Discursiva . 2 . ed. Ijuí : Ed. Unijuí , 2011 . .

Quadro 1
Unidades de significado

Cada unidade recebeu um nome cujo objetivo foi representar uma ideia central. Com isso, foram possibilitadas novas compreensões dos fenômenos investigados, o que, por sua vez, viabilizou a elaboração do metatexto com a apresentação das análises ( MORAES; GALIAZZI, 2011MORAES , R. ; GALIAZZI , M. Análise Textual Discursiva . 2 . ed. Ijuí : Ed. Unijuí , 2011 . ). Desse processo emergiram duas categorias: Discussões sobre as atividades e os procedimentos matemáticos e Olhar crítico e participação ativa dos estudantes em atividades de MM vinculados à comunidade.

3 Discussões sobre as atividades e os procedimentos matemáticos

Essa categoria engloba as unidades U5 – relatos e impressões dos alunos sobre aulas desenvolvidas, U6 – ambiente virtual como espaço democrático e U8 – discussões sobre procedimentos matemáticos.

Selecionamos a sequência U8, U6 e U5 das unidades de significado para compor a categoria, pois, por meio das discussões sobre procedimentos matemáticos (U8), a sala de aula virtual, na qual as atividades de MM foram desenvolvidas durante o período pandêmico, transformou-se em um ambiente democrático (U6), onde os estudantes puderam, ao final, relatar suas impressões sobre as atividades desenvolvidas (U5).

Segundo as Diretrizes Curriculares da Educação do Campo, os conteúdos escolares devem alinhar-se ao significado que eles têm para determinada comunidade escolar, a partir de sua contribuição ao contexto e da ampliação dos conhecimentos dos alunos ( PARANÁ, 2006PARANÁ . Secretaria de Estado da Educação . Diretrizes Curriculares da Educação do Campo . Curitiba : SEED , 2006 . ). Os fragmentos abaixo surgiram de intervenções mediadas pelo professor-pesquisador, dialogicamente/democraticamente, relacionando o tema próximo aos alunos com os conteúdos matemáticos.

PP.M.8: Qual a área cultivada? (U8).

A1.M.4: Em nossa propriedade, a área de cultivo da erva-mate é aproximadamente 1 alqueire e meio (U8).

A3.M.4: Na nossa propriedade, cerca de 1 hectare é destinado ao cultivo de erva-mate (U8).

A6.M.3: Na nossa propriedade, tem 1 alqueire e 15 litros de erva-mate plantada (U8).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Diante da pergunta realizada no fragmento PP.M.8, os estudantes buscaram respostas. Alguns sabiam; outros, porém, perguntaram aos pais ou avós sobre a área cultivada de erva-mate na propriedade. Observa-se que os estudantes utilizaram unidades de medidas presentes em suas práticas diárias no meio rural, como alqueire, hectare e litro, demonstrando, além da familiaridade com elas, que foi possível “[...] proporcionar aos alunos investigarem, através da matemática, temas do seu dia-a-dia, possibilitando aos alunos buscarem o conhecimento em conjunto com o professor, favorecendo a capacidade de trabalhar em grupo [...]” ( BARBOSA, 2001BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: Concepções e Experiências de Futuros Professores. 2001 . Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) , Rio Claro , 2001 . , p. 27). Dessa forma, o professor-pesquisador, no intuito de relacionar as unidades de medidas com o sistema métrico, perguntou aos estudantes:

PP.M.9: Quantos metros quadrados (m 2 ) tem um hectare? (U8).

PP.M.10: Quantos metros quadrados tem um alqueire? (U8).

PPM.11: E 1 litro de terra equivale a quanto? (U8).

PP.M.12: Então, a propriedade que tem 1 alqueire e 15 litros de erva-mate plantada corresponde a quantos metros quadrados de terreno? (U8).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

A atividade mediadora do professor configurou a natureza dos conteúdos, possibilitando que os alunos respondessem as perguntas a partir de seus conhecimentos de modo a “[...] relacionar os conteúdos científicos aos do mundo da vida que os educandos trazem para a sala de aula [...]” ( PARANÁ, 2006PARANÁ . Secretaria de Estado da Educação . Diretrizes Curriculares da Educação do Campo . Curitiba : SEED , 2006 . , p. 29) e “[...] trabalhar com situações próximas da realidade do aluno [...]” ( PPC, 2020PROPOSTA PEDAGÓGICA CURRICULAR (PPC) . Colégio Estadual do Campo Professor Eugênio de Almeida: Ensino Fundamental e Médio . São Mateus do Sul – PR , 2020 . , n. p). Houve a participação de todos os estudantes, cenário em que alguns consultavam os familiares, pois estavam em aulas remotas, e outros pesquisavam na internet , como percebido no caso do fragmento A4.M.7: “1 alqueire tem 40 litros de terra, cada litro corresponde a 605 m 2 de terra” .

Em relação à pergunta PP.M.12, que instiga os estudantes a realizarem a conversão de alqueires e litros para metros quadrados, apresentamos o registro realizado por um estudante.

Figura 1
Conversão entre unidades de medidas

Diante desse registro, destacamos os procedimentos matemáticos adotados pelo aluno para realizar o cálculo: tendo a informação numérica (fragmento A4.M.7), ele adicionou 40 com 15 (tamanho do terreno) e multiplicou por 605, obtendo o valor de 33.275 m 2 , correspondente à conversão de um alqueire e 15 litros para metros quadrados.

Algumas indagações desencadearam discussões matemáticas. Termos como “quantidade”, “quilograma”, “valor” e “lucro” auxiliaram os estudantes na relação entre tema e conteúdos matemáticos, realizando “[...] a translação do fenômeno eleito para estudar em termos matemáticos [...]” ( BARBOSA 2008BARBOSA , J. C. As discussões paralelas no ambiente de aprendizagem Modelagem Matemática . Acta Scientiae , Canoas - RS v. 10 , n. 1 , p. 47 - 50 , 2008 . , p. 50), levando em conta que “[...] abordar ou resolver um problema da realidade por meio da Matemática não pode ser entendido de forma objetiva [...]” ( ARAÚJO, 2009ARAÚJO , J. L. Uma Abordagem Sócio-Crítica da Modelagem Matemática: a perspectiva da educação matemática crítica . Alexandria , Florianópolis - SC v. 2 , n. 2 , p. 55 - 68 , 2009 . , p. 65). Assim, não se espera uma resposta única e exata para a questão levantada.

PP.M.13: Qual a quantidade de erva-mate, produzida na última colheita pela família de vocês? (U8)

A4.M.10: 20 mil quilogramas (kg) de erva verde (U8).

A6.M.5: Uma média de 270 arrobas (U8).

A7.M.7: 5 toneladas por hectare (U8).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Os fragmentos acima se relacionam com as unidades de massa presentes na prática desses estudantes. Os termos “quilogramas”, “arroba” e “toneladas”, no contexto das épocas de colheita, quando é realizada a pesagem para calcular o valor a ser recebido, evidenciam o encontro com a perspectiva da Escola do Campo, que é “[...] pensar e fazer a escola do campo a partir de um projeto educativo [...]” ( CALDART, 2011CALDART , R. S. A. Educação do Campo e a perspectiva de transformação da forma escolar . In: MUNARIM , A. ; BELTRAME , S. ; CONTE , S. F. ; PEIXER , Z. I. ( orgs .) . Educação do Campo: reflexões e perspectivas . Florianópolis : Insular , 2 . ed. 2011 . p. 145 - 187 . , p. 157).

PP.M.14: Qual é o valor do lucro por kg ou fardo? (U8)

A8.M.8: Por quilo, é R$ 1,40 na ervateira, fora as despesas com o frete e a colheita da erva. De lucro final, fica R$ 1,10 o quilo (U8).

A5.M.8: Depende da oferta e da época. Se for para ser livre, fora a tarefa e o frete, os preços podem variar de R$ 0,85 até R$ 1,00 por quilo (U8).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Nas atividades de MM, os estudantes relataram o uso frequente de números decimais para fazer contas em suas propriedades. Alguns se referiram ao valor do quilo de erva-mate, como se observa nos fragmentos “R$ 1,40 na ervateira”, “lucro final fica R$ 1,10 o quilo”, “podem variar de R$ 0,85 até R$ 1,00 por quilo” ; outros se referiram ao pagamento dos tarefeiros (pessoas contratadas para ajudar na colheita), e ainda houve os que mencionaram o valor dos insumos agrícolas usados no tratamento da erva-mate.

Assim, para relacionar o tema abordado com os conteúdos trabalhados, deve-se traçar um “roteiro de aprendizagem” ( SKOVSMOSE, 2008SKOVSMOSE , O. Desafios da reflexão em educação matemática crítica . Trad . Orlando de Andrade Figueiredo e Jonei Cerqueira Barbosa . Campinas : Papirus , 2008 . , p. 64) no qual a indagação seja frequente e o diálogo não seja tratado apenas como um canal para troca ou depósito de ideias, mas sim para a reflexão conjunta e solidária ( FREIRE, 2003FREIRE , P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa . 28 . ed. São Paulo : Paz e Terra , 148 p., 2003 . ).

Isso exige do professor estudo e preparo de aulas que relacionem os conteúdos científicos à experiência dos educandos ( PARANÁ, 2006PARANÁ . Secretaria de Estado da Educação . Diretrizes Curriculares da Educação do Campo . Curitiba : SEED , 2006 . ). Os fragmentos apresentados na sequência são um exemplo dessa relação:

PP.M.15: Existe alguma relação entre o kg e o valor vendido? (U8).

A5.M.9: Sim. Considerei o kg da erva 1,10 e ficou assim (U8).

A4.M.12: Aqui, podemos fazer um gráfico usando x e y, como a gente faz na aula da professora, lembra? Tinha uma fórmula, daí se substituía os pontos e traçava a linha (U8).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Para Skovsmose (2008SKOVSMOSE , O. Desafios da reflexão em educação matemática crítica . Trad . Orlando de Andrade Figueiredo e Jonei Cerqueira Barbosa . Campinas : Papirus , 2008 . , p. 65), “[...] um cenário de aprendizagem pode levar os alunos a assumir a condução do seu próprio processo de aprendizagem [...]”, e, para Jesus, Santos e Grilo (p. 174, 2019), a Escola do Campo deve propiciar uma “[...] experiência de ensino marcante por abordar questões que são úteis à vida das pessoas [...]”.

Sobre isso, destacamos o fragmento A5.M.9, que considerou o valor de R$ 1,10 como a média dos valores recebidos por quilo da erva-mate. Diante disso, apresentamos o registro de um estudante do grupo, referente à relação comentada anteriormente. Ressalta-se que a ideia de representar o gráfico partiu dos alunos, os quais não apresentaram dificuldades em descrever os dados matematicamente.

Figura 2
Gráfico da função

Nesse processo, observamos que, ao associar o peso com o valor, o estudante representou a relação de duas formas, por meio de tabela e gráfico de uma função linear utilizando valores reais. Esse contexto difere do modo mecânico que estavam acostumados a utilizar em sala de aula, como disposto no fragmento A4.M.12, em que é relatada uma função (uma fórmula) na qual os estudantes apenas substituem o valor na variável. Essas práticas instigam a curiosidade e a inquietude ( FREIRE, 2003FREIRE , P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa . 28 . ed. São Paulo : Paz e Terra , 148 p., 2003 . ), uma vez que não são estruturadas em torno de palestras proferidas pelo professor, mas baseadas em diálogos e discussões, gerando interesse dos alunos ( SKOVSMOSE, 2008SKOVSMOSE , O. Desafios da reflexão em educação matemática crítica . Trad . Orlando de Andrade Figueiredo e Jonei Cerqueira Barbosa . Campinas : Papirus , 2008 . ; FREIRE, 2003FREIRE , P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa . 28 . ed. São Paulo : Paz e Terra , 148 p., 2003 . ) e configurando uma relação da MM na perspectiva crítica com as características da Escola do Campo.

Barbosa (2001)BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: Concepções e Experiências de Futuros Professores. 2001 . Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) , Rio Claro , 2001 . ressalta que, em atividades de MM, os conceitos e ideias matemáticas se encaminham segundo o desenvolvimento das atividades. Em relação a isso, apresentamos a discussão dos procedimentos adotados pelos estudantes:

PP.M.16: Qual é a função que gerou o gráfico que a colega construiu? (U8).

A4.M.15: A partir do gráfico, nós podemos encontrar a função, fazendo aquele monte de contas da lei de formação, e daí, como é do primeiro grau, vem a fórmula f ( x ) = a x + b , lembra? (U8).

A5.M10: O b dá zero (U8).

A4.M.18: Então, fazendo as contas utilizando a fórmula f ( x ) = a x + b , no meu também deu zero, agora. Então, é o seguinte, esse b não vai valer nada, então a fórmula vai ser f(x) = ax, ou seja, o f(x) que vai ser o resultado final de tudo igual o valor por kg vezes a quantidade de kg. Como o b deu zero, não vai interferir em nada (U8).

A5.M.11: Se o preço do kg for 1,10, então a função será y = 1,10 . x ou f(x) = 1,10.x (U8).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

A mediação do professor-pesquisador nesse processo auxiliou os alunos, permitindo que fosse alcançado o objetivo da aula. Nos fragmentos, os estudantes discutiram alguns conceitos matemáticos, nesse caso, a lei de formação da função afim. Pelo diálogo, buscaram, a partir de uma situação real, encontrar a função geradora do gráfico, abarcando conceitos como “gráfico”, “função”, “lei de formação”, “fórmula”, “ f(x)=ax+b ” e relacionando-os ao tema abordado, vindo ao encontro da concepção de que a MM é uma abordagem em que problemas não matemáticos, que permeiam a realidade, são escolhidos pelos alunos para que, por meio do uso e aplicação de conceitos e conteúdos matemáticos, se encontrem soluções ( ARAÚJO, 2002ARAÚJO , J. L. Cálculo, Tecnologias e Modelagem Matemática: as discussões dos alunos. 2002 . 180 f. Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) , Rio Claro , 2002 . ).

Outro ponto abordado foi o uso da tecnologia durante as atividades. A seguir, trazemos a discussão de um grupo de estudantes que utilizaram recursos tecnológicos digitais para representar tabelas e gráficos.

A2.M.5: Fiz a relação e usei o Excel para fazer os gráficos (U8).

PP.M.21: Que conteúdo matemático nos fornece uma reta no plano cartesiano? (U8)

A2.M.8: Função do 1º grau (U8).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Nesse sentido, Skovsmose (2000SKOVSMOSE , O. Cenários de investigação . Bolema , Rio Claro , n. 14 , p. 66 - 91 , 2000 . , p. 18) destaca: “[...] os computadores na educação matemática têm ajudado a estabelecer novos cenários para investigação [...]”. Com computadores, os alunos encontram possíveis situações e soluções não previstas no planejamento docente. Nesse contexto, destaca-se o fragmento A2.M.5, de um estudante que utilizou o software Excel para representar a relação entre o quilograma de erva-mate e o valor vendido.

Figura 3
– Gráfico da relação entre o quilograma de erva-mate e o valor vendido

Embora os estudantes do campo tenham dificuldade de acesso a computadores, internet e outras mídias, proporcionar as mesmas oportunidades de um estudante da escola urbana é também uma preocupação da EMC: “[...] A EMC deve sempre estar vinculada às questões de igualdade, e, por conseguinte, deve tentar considerar a natureza dos obstáculos de aprendizagem que os diferentes grupos de estudantes podem enfrentar [...]” ( SKOVSMOSE, 2007SKOVSMOSE , O. Educação matemática crítica: incerteza, matemática, responsabilidade. Tradução de Maria A. Viggiani Bicudo . São Paulo : Cortez , 2007 . , p. 76).

Nas atividades de MM, destacam-se “discussões democráticas” ( SKOVSMOSE, 2001SKOVSMOSE , O. Educação matemática crítica: a questão da democracia . Campinas : Papirus , 2001 . ) realizadas no ambiente virtual. Nesse aspecto, o desenvolvimento de uma ação democrática na sala de aula (presencial) envolve a forma como silenciamos ou damos voz aos alunos, quando falamos ou deixamos de falar, e quando os alunos falam ou deixam de falar entre eles. Entretanto, embora muitas dessas ações relatadas ficaram ocultas devido ao caráter virtual, um ambiente democrático virtual somente foi possível porque as relações didáticas na sala de aula estiveram embasadas na EMC, contando com alunos responsáveis e comunicativos. Os fragmentos, na sequência, emergiram de aulas síncronas, via Google Meet , e de aulas assíncronas, via WhatsApp .

PP.X.5: Então vocês acreditam que a empresa usa algumas estratégias para “blindar”, digamos assim, os problemas, e apenas mostrar o seu lado positivo? (U6).

A3.X.6: Na verdade, a empresa demonstra por meio de estudos e consegue convencer que está fazendo da melhor maneira possível e tudo dentro da lei (U6).

A7.X.7: Dizem que causam o menor impacto possível, ou seja, ocorre uma coisa em consequência da outra, então, se alguém for reivindicar que a empresa está causando problemas à saúde, eles colocam em primeiro lugar a questão do capitalismo (U6).

A9.X.7: E eles têm estudos baseados em relação ao impacto ao meio ambiente que dão respaldo para a empresa fazer do jeito que está fazendo (U6).

A5.X.7:As pessoas bem-informadas conseguem se defender melhor e lutar pelos seus direitos, inclusive nessa questão da privatização (U6).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Em atividades de MM, o aspecto da coletividade, do respeito e do diálogo é primordial, possibilitando debater questões sociais e aspectos relacionados à democracia ( ARAÚJO, 2009ARAÚJO , J. L. Uma Abordagem Sócio-Crítica da Modelagem Matemática: a perspectiva da educação matemática crítica . Alexandria , Florianópolis - SC v. 2 , n. 2 , p. 55 - 68 , 2009 . ; CALDEIRA, 2009CALDEIRA , A. D. Modelagem Matemática: um outro olhar . Alexandria Revisa de Educação em Ciência e Tecnologia , Florianópolis - SC v. 2 , n. 2 , p. 33 - 54 , 2009 . ). Nos fragmentos apresentados, o questionamento do professor-pesquisador PP.X.5 direciona a esse aspecto: o fragmento A3.X.6 ressalta que a empresa consegue convencer as pessoas a partir de estudos que “está tudo na lei” , e os fragmentos A7.X.7 e A9.X.7 complementam, afirmando que a empresa destaca a questão do capitalismo como defesa, ou seja, a empresa oferece emprego e salário, movimentando a economia.

Dessa forma, afirmamos que desenvolver atividades de MM, na perspectiva da EMC, conjuga-se ao que preveem as Diretrizes Curriculares da Educação do Campo (DCE) para as Escolas do Campo: instigar os alunos do campo a participar e conhecer o mundo da política, além de entender a tomada de decisão por parte das autoridades ( PARANÁ, 2006PARANÁ . Secretaria de Estado da Educação . Diretrizes Curriculares da Educação do Campo . Curitiba : SEED , 2006 . ). Como exemplo, temos o fragmento A5.X.7, em que o estudante afirma que pessoas bem-informadas têm maior chance de obter êxito na luta por seus direitos “[...] com ações que pudessem superar o ‘atraso’ presente entre os trabalhadores e moradores do espaço rural [...]” ( SOUZA, 2006SOUZA , M. A. Educação do campo: propostas e práticas pedagógicas desenvolvidas no MST . Petrópolis : Vozes , 2006 . , p. 51).

Os fragmentos a seguir destacam o debate democrático baseado na Matemática, realizado no ambiente virtual, mostrando as discussões de assuntos não matemáticos que permeiam questões econômicas, sociais e culturais, que proporcionaram o despertar do senso crítico. Nesse sentido, a EMC pode ser considerada uma expressão das preocupações que emergem sobre os papéis que a Matemática e o seu ensino e aprendizagem possuem na sociedade, sejam em seu âmbito cultural, tecnológico ou político ( SKOVSMOSE, 2007SKOVSMOSE , O. Educação matemática crítica: incerteza, matemática, responsabilidade. Tradução de Maria A. Viggiani Bicudo . São Paulo : Cortez , 2007 . ). A MM pode ser um “instrumento” de questionamento das situações sociais ( DUFECK, 2017DUFECK , L. F. Uma aplicação da Modelagem Matemática na Educação do Campo . 2017 . 137 f. Dissertação (Mestrado em Matemática) - Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) , Ponta Grossa , 2017 . ; MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2018).

A2.M.9:Em 2018, o Paraná concentrou 87% de toda produção de erva-mate do país (U6).

A3.M.10: O município de São Mateus do Sul é o município que mais produziu erva-mate, chegando a 70 mil toneladas, o que representa 17,8% do total nacional (U6).

PP.M.23: O que esses dados representam para vocês, que moram no campo e são responsáveis pelo destaque do município em nível nacional? (U6)

A7.M.10: Uma forma também de valorização do nosso trabalho (U6).

A8.M.13: Quando tem muita produção, o preço final dá uma baixada (U6).

A6.M.8: O problema é que o custo de produção é alto, por exemplo, um Kg pronto de erva para o consumo é de 5 reais, e, se for vender no varejo, custa em torno de 7 reais, por isso que quando tem muita produção, o produtor é quase obrigado a vender mais barato (U6).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Para Barbosa (2003)BARBOSA , J. C. Modelagem matemática na sala de aula . Perspectiva , Erechim - RS v. 27 , p. 65 - 74 , 2003 . , envolver as pessoas em discussões públicas é exercer a cidadania. Durante as atividades, é possível perceber discussões democráticas envolvendo a Matemática, a exemplo dos fragmentos A2.M.9 e A3.M.10, quando os alunos informaram, por dados matemáticos, que estado do Paraná é o maior produtor de erva-mate do país, sendo o município ao qual os estudantes pertencem o maior produtor do estado.

Skovsmose (2008)SKOVSMOSE , O. Desafios da reflexão em educação matemática crítica . Trad . Orlando de Andrade Figueiredo e Jonei Cerqueira Barbosa . Campinas : Papirus , 2008 . caracteriza a sala de aula, representada neste artigo pelo ambiente virtual, como “micro-sociedades” em que devem emergir debates sobre a democracia. Para o autor, a Matemática presente nesses debates é objeto de reflexão, não simplesmente de mera aprendizagem. Nos fragmentos apresentados, os estudantes refletiram sobre aspectos democráticos, a exemplo dos fragmentos A7.M.10, A8.M.13 e A6.M.8, em que discorrem sobre a valorização do trabalho, o preço da erva-mate e o custo da produção.

Concluímos essa categoria apresentando algumas impressões dos alunos sobre as atividades desenvolvidas.

A7.X.4: Foi bem interessante, aprendemos coisas novas que fazem parte do nosso cotidiano, e muitas vezes passam despercebidas (U5).

A1.M.8: Foi ótimo! Muito interessante. Também confesso que não entendia muito sobre a erva-mate, e, com esse trabalho, consegui aprender muitas coisas sobre o tema (U5).

A6.X.5: Obrigada pela oportunidade de participar, professor, por nos permitir compartilhar conhecimento, que, por sinal, nunca é demais (U5).

A1.M.9: Através dessa atividade, foi possível reconhecer que a matemática está em tudo que fazemos (U5).

A3.M.9: A gente estuda todo dia matemática na escola, mas só usa [se referido à teoria], e, com essa atividade, deu para ver claramente a importância dela no dia a dia (U5).

A5.M.15: Com essa atividade, pude obter mais conhecimento sobre a erva-mate, podendo passar esse conhecimento para a realização de melhorias do cultivo em nossa propriedade (U5).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Diante dos relatos e das análises, foi possível observar a aprimoração, por meio da MM na perspectiva da EMC, da formação de sujeitos críticos, criativos e participativos, propiciando uma inserção política, cultural e social daqueles estudantes. Portanto, pode-se afirmar que a possibilidade de relacionar as discussões envolvendo procedimentos matemáticos com temáticas presentes no contexto dos alunos da Escola do Campo é uma forma de ampliar conhecimentos e reflexões sobre a sociedade, a economia e a política, capacitando-os a realizar melhorias em suas propriedades, a partir de sua cultura e necessidades humanas e sociais.

4 Olhar crítico e participação ativa dos estudantes em atividades de MM vinculadas à comunidade

A categoria “Olhar crítico e participação ativa dos estudantes em atividades de MM vinculadas à comunidade” engloba as unidades U1 – discussão de questões sociais; U2 – discussão de questões econômicas; U3 – discussão de questões ambientais; U4 – discussão sobre questões de saúde; U7 – atuação crítica dos estudantes na sociedade; e U9 – discussões sobre ações comunitárias. Os fragmentos que melhor caracterizam essa categoria surgiram da atividade relacionada à extração do xisto, portanto, aqueles referentes à atividade sobre erva-mate aparecem com menor frequência.

Os fragmentos estão divididos em cinco grupos, sendo os quatro primeiros compostos pelas unidades de significado U3, U4, U1 e U2, respectivamente e nesta ordem, e, o quinto, pelas unidades U7 e U9. Optamos por essa sequência pois, por meio das atividades de MM propostas, mobilizou-se uma ação informativa para a comunidade, destacando a relação contínua das atividades reflexivas da sala de aula com o entorno do estudante do campo.

O Projeto Político Pedagógico ( PPP, 2020PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO (PPP) . Colégio Estadual do Campo Professor Eugênio de Almeida: Ensino Fundamental e Médio . São Mateus do Sul – PR , 2020 . ) da Escola do Campo prevê o retorno do conhecimento adquirido à prática social de onde partiu, agindo sobre ela com mais criticidade e transformando até mesmo o ambiente dos educandos.

Os fragmentos a seguir refletem questões sobre os impactos da extração do xisto. Em alguns momentos, os alunos demonstraram preocupação com a poluição do ar, causadora de problemas de saúde, e com o desmatamento, em especial da mata nativa, devastada para fazer a extração da rocha, mobilizando-se para atuar diante desses problemas.

A2.X.1: A extração de xisto tira completamente a mata nativa presente no lugar onde ele é extraído (U3).

A1.X.14: Eles [funcionários da empresa] dinamitam o lugar, eles vão dinamitando por camadas, até aqui em casa às vezes dá para ouvir as explosões, fazendo com que as estruturas fiquem danificadas, fazendo com que os lençóis freáticos modifiquem o curso das águas, inclusive. Sem contar o gás que eles liberam (U3).

A2.X.7: O odor de enxofre de manhã, principalmente, é muito forte (U3).

A1.X.2: Eles [funcionários da empresa] dinamitam os lugares e aí formam-se as minas. Aí eles exploram tudo de bom. E vão colocando o lixo nos buracos (U3).

A3.X.2: Eles podem colocar materiais como papel, que demora uns seis meses para se decompor, e até borracha, que o tempo é indeterminado (U3).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Termos como “mata nativa”, “dinamitam”, “gás”, “odor de enxofre” “lixo”, “papel” e “borracha” nos dão indícios de que a pesquisa versou sobre assuntos que vão além da matemática formal, visto que a Educação do Campo deve proporcionar que emerjam conteúdos e debates sobre questões ambientais e uso de recursos naturais ( PARANÁ, 2006PARANÁ . Secretaria de Estado da Educação . Diretrizes Curriculares da Educação do Campo . Curitiba : SEED , 2006 . ), e que na abordagem da MM em situações-problemas podem originar de problemas não matemáticos ( ARAÚJO, 2009ARAÚJO , J. L. Uma Abordagem Sócio-Crítica da Modelagem Matemática: a perspectiva da educação matemática crítica . Alexandria , Florianópolis - SC v. 2 , n. 2 , p. 55 - 68 , 2009 . ; MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2018; ALMEIDA; SILVA; VERTUAN, 2019).

Nesse sentido, destacamos o fragmento A1.X.2, o qual demonstra preocupação em relação à extração do xisto, alertando para o desmatamento: “eles dinamitam os lugares e exploram tudo de bom” . Além disso, há uma apreensão em relação à poluição: o fragmento A3.X.2, ao enfatizar o depósito do lixo produzido pelos moradores nos buracos causados pela detonação e com o desmatamento, destaca a retirada da mata nativa na exploração do xisto. Esses temas podem e devem ser trabalhados na Matemática ao se pensar em uma perspectiva de “[...] educação diferenciada, especificamente para os sujeitos do campo, levando em consideração a valorização da vida e a cultura dos sujeitos [...]” (JESUS; SANTOS; GRILO, 2019, p. 176), transformando, assim, a realidade em questão.

Diante do exposto, corroboramos Skovsmose (2008)SKOVSMOSE , O. Desafios da reflexão em educação matemática crítica . Trad . Orlando de Andrade Figueiredo e Jonei Cerqueira Barbosa . Campinas : Papirus , 2008 . , pois na produção de atividades matemáticas na perspectiva da EMC surgem reflexões não ligadas diretamente ao conteúdo curricular, mas relacionadas à situação de aprendizagem. Exemplos são provenientes dos fragmentos A1.X.14, cujo conteúdo alerta que a liberação do gás é produto das explosões, causando poluição; A2.X.7, ao relatar sobre a presença do odor de enxofre na região; e A1.X.2, sobre a disposição das crateras abertas após a extração do xisto.

Nas atividades de MM, os estudantes realizaram apontamentos sobre questões de saúde envolvendo a comunidade, também uma causa da EMC:

A5.X.1: Ele [o gás liberado] afeta bastante os pulmões e a pele (U4).

A9.X.4:A gente sabe que aqui no município tem alto índice de doenças alérgicas que têm ligação com o ar da cidade (U4).

A9.X.5: Existem estudos que mostram elevado número de pessoas com câncer, no município, devido aos impactos causados pela poluição (U4).

A6.M.7: O chimarrão, se consumido em excesso, pode causar insônia, gastrite, câncer de esôfago e estômago (U4).

A10.M.2: Não é recomendado também, por exemplo, se você adubou a erva duas semanas atrás e essa semana colheu, essa erva não é apropriada para o consumo, porque o adubo necessita de uma certa carência (U4).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Percebe-se um repertório multicultural, histórico e familiar por parte dos alunos. Os estudantes estão conscientes dos problemas relacionados à qualidade de vida na comunidade, observação possível a partir do uso dos termos “gás”, “doenças alérgicas”, “poluição”, “insônia, gastrite, câncer” e das sentenças “afeta bastante os pulmões e a pele” e “não é apropriada para o consumo” . Os estudantes demonstram preocupação com os malefícios causados pela extração do xisto e o alto consumo de chimarrão, como no fragmento A9.X.4, ao afirmar que o município possui “alto índice de doenças alérgicas, que têm ligação com o ar da cidade” ; no fragmento A9.X.5, sobre o elevado índice de pessoas com câncer devido aos impactos (poluição do ar) causados pela extração do xisto; e no fragmento A5.X.1, em relação ao gás liberado durante a industrialização do xisto.

No entanto, os debates apresentados vão além dos números, pois foram conduzidos pelos casos 2 e 3, indicados por Barbosa (2004)BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: O que é? Por quê? Como? Veritati , Salvador - Ba n. 4 , p. 73 - 80 , 2004 . , oferecendo maior autonomia para os alunos buscarem informações. Durante os debates nas atividades de MM, os estudantes demonstraram maturidade e comprometimento, sendo despertados ao senso crítico:

A9.X.3: Acredito que seja um jogo político mesmo, pois mesmo sabendo que causa poluição, afetando o meio ambiente, desmatamento, impacto do solo e tudo mais, o lado capitalista prevalece (U1).

A1.X.22: No portal da transparência, a empresa só apresenta pontos positivos, não fala nada de negativo que essa exploração [do xisto] traz (U1).

A1.X.23: Mesmo se pegássemos os números, porcentagens, mostrássemos e disséssemos assim: olha, tantas pessoas têm rinite, ou tantas pessoas têm câncer, influenciados pelos gases que são liberados, mesmo assim eles não iriam se preocupar (U1).

A5.X.8: Existe uma luta bem grande a respeito da privatização, e as pessoas muitas vezes não entendem o que tem por trás de tudo isso (U1).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Conforme o documento das Diretrizes Curriculares da Educação do Campo do Estado do Paraná (PARANÁ, 2006), na Educação do Campo devem emergir temas como o uso de recursos naturais, a questão agrária, os trabalhadores assalariados rurais e as suas demandas por melhores condições de trabalho, entre outras questões. Sobre esses conteúdos, as falas dos estudantes investem em opiniões sobre questões políticas e sociais, como nos fragmentos A9.X.3, ao mencionar “jogo político e lado capitalista” , A1.X.22, “não falam nada de negativo” , A1.X.23, ao destacar “mesmo assim eles não iriam se preocupar” , e A5.X.8, ao declarar que “não entendem o que tem por trás de tudo isso” .

A Matemática pode ser um instrumento de questionamento social ( BARBOSA, 2001BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: Concepções e Experiências de Futuros Professores. 2001 . Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) , Rio Claro , 2001 . ; MEYER; CALDEIRA; MALHEIROS, 2018; ARAÚJO, 2009ARAÚJO , J. L. Uma Abordagem Sócio-Crítica da Modelagem Matemática: a perspectiva da educação matemática crítica . Alexandria , Florianópolis - SC v. 2 , n. 2 , p. 55 - 68 , 2009 . ). Um exemplo disso, nas atividades de MM, é a indagação do professor-pesquisador PP.X.1, “enquanto estudantes e residentes do município, o que vocês sugerem de ações que poderiam ser realizadas para, ao menos, minimizar os danos à saúde e ao meio ambiente?” . Por meio desse trecho, destacamos a crítica levantada pelo fragmento A1.X.23, o qual relata que mesmo demonstrando dados estatísticos em relação aos problemas causados pela extração do xisto, a empresa não iria se preocupar. Ainda, na fala do professor, apresentam-se meios para o desenvolvimento e o exercício da criticidade dos alunos em relação à realidade posta:

PP.X.2: Eu concordo com vocês, e diria que não podemos perder a esperança e nos calar diante de alguns desafios, assim, sempre que tivermos oportunidades, devemos apontar tanto os benefícios como os malefícios que isso causa para as pessoas. Diante disso, vocês acreditam que, por meio da educação, pode ser feito algo que mude esse cenário?

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

A discussão de temas políticos e sociais, nesse contexto, é uma forma de emancipar esses estudantes enquanto indivíduos ( CALDART, 2003CALDART , R. S. A escola do Campo em Movimento . Currículo sem Fronteira , Porto Alegre , v. 3 , n. 1 , p. 60 - 81 , 2003 . ). A Escola do Campo, em seu Projeto Político Pedagógico ( PPP, 2020PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO (PPP) . Colégio Estadual do Campo Professor Eugênio de Almeida: Ensino Fundamental e Médio . São Mateus do Sul – PR , 2020 . ), direciona o ensino preparando o aluno para reconhecer suas capacidades e participar com consciência da vida econômica, sociopolítica e cultural do país. Diante disso, ressalta-se que, ao desenvolver as atividades de MM na perspectiva da EMC, observa-se o desenvolvimento do posicionamento crítico dos estudantes e a consciência nos debates, como no fragmento A1.X.9: “então, vocês já chegaram a pensar que a gente está sendo prejudicado?” .

Nas atividades de MM, os estudantes debateram diversos temas, dentre os quais destacam-se as questões econômicas.

A1.X.13: Se tiver uma reserva de xisto e eles [a empresa] forem querer explorar, e em cima do solo tiver uma casa, eles indenizam a pessoa para a pessoa sair de lá para eles explorar, só que o valor indenizado não é muito alto (U2).

A1.X.21: Eles [a empresa] já investiram muito naquilo, então eles não vão parar por conta disso [danos ao meio ambiente e saúde], se a gente tem recursos naturais, eles vão querer cada vez mais explorar (U2).

A2.X.8: Para diminuir a poluição, a empresa teria que investir na evolução da limpeza do ar que sai das usinas, mas para isso precisa de muito investimento (U6).

A9.X.2: O município ganha muito com a instalação de uma empresa desse porte, principalmente com os royalties e os impostos (U2).

A3.X.11: O lucro, para eles, é o objetivo principal, eles não vão pensar nos outros sendo que é algo que envolve muito dinheiro, eles não vão desistir fácil (U2).

A9.M.2: É vendido para as ervateiras, dependendo o melhor preço (U2).

A9.M.3: Tem gente que paga para as pessoas retirarem a erva (U2).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Os fragmentos apresentados, por meio dos termos “investir”, “o município ganha muito” , “ royalties e impostos”, “lucro”, “envolve dinheiro”, envolvem os alunos não apenas em questões matemáticas, mas também em questões econômicas, sociais e políticas. A mediação do professor-pesquisador PP.X.3 na atividade foi primordial no processo dialógico do conhecimento, instituindo as indagações “o que a empresa poderia fazer para diminuir a poluição? E o que nós, enquanto cidadãos, poderíamos fazer para reivindicar ações para solucionar o problema da poluição?” . Nessa perspectiva, Barbosa (2001BARBOSA , J. C. Modelagem Matemática: Concepções e Experiências de Futuros Professores. 2001 . Tese (Doutorado em Educação Matemática) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) , Rio Claro , 2001 . , p. 7) elucida a necessidade de “[...] envolver os alunos em ricas discussões, inclusive não matemáticas, como questões de ordem econômica e política [...]”.

Para Skovsmose (2007)SKOVSMOSE , O. Educação matemática crítica: incerteza, matemática, responsabilidade. Tradução de Maria A. Viggiani Bicudo . São Paulo : Cortez , 2007 . , a Matemática e o Poder estão intrincados socialmente, principalmente nos modelos adotados por governos e grandes empresas na tomada de decisões, deslocando a responsabilidade por estas e justificando os impactos por meio da Matemática. Na atividade do xisto, observa-se essa relação nas falas dos estudantes A1.X.21, ao dizer que a empresa investiu muito e que os danos ambientais não frearão suas decisões, e A3.X.11, ao destacar que o objetivo principal da empresa é o lucro.

Os fragmentos A9.M.2, “melhor preço”, A9.M.3, “paga para as pessoas retirarem a erva” , e A9.X.2, “ royalties e os impostos” indicam que desenvolver atividades de MM na perspectiva da EMC propicia o debate entre Matemática e Poder ( SKOVSMOSE, 2007SKOVSMOSE , O. Educação matemática crítica: incerteza, matemática, responsabilidade. Tradução de Maria A. Viggiani Bicudo . São Paulo : Cortez , 2007 . ). Além disso, as falas demonstram certa consciência: por um lado, a empresa causa danos ao meio ambiente, poluindo e desmatando; por outro, a população precisa dela por ser grande geradora de empregos, beneficiando inúmeras famílias e impactando a tomada de decisões.

Para Skovsmose (2008SKOVSMOSE , O. Desafios da reflexão em educação matemática crítica . Trad . Orlando de Andrade Figueiredo e Jonei Cerqueira Barbosa . Campinas : Papirus , 2008 . , p. 38), “[...] um sujeito crítico tem que ser um sujeito que age [...]”. Nessa perspectiva, percebe-se que as atividades de MM despertaram nos alunos a necessidade de desenvolver uma ação de conscientização para a comunidade. Assim, produziram um panfleto com informações sobre os malefícios e os benefícios do xisto, o qual foi disseminado entre os familiares dos estudantes no dia da entrega de atividades na escola, proporcionando “[...] um espaço democrático, dialógico, preocupado em orientar os estudantes a levarem essas atitudes para suas vidas na sociedade [...]” ( ARAÚJO, 2009ARAÚJO , J. L. Uma Abordagem Sócio-Crítica da Modelagem Matemática: a perspectiva da educação matemática crítica . Alexandria , Florianópolis - SC v. 2 , n. 2 , p. 55 - 68 , 2009 . , p. 59). Na sequência, os fragmentos expõem a ideia e o planejamento da ação conscientizadora formada em grupo:

A1.X.24: O nosso grupo estava pensando em conversar com a diretora e produzir um material de conscientização para distribuir para as pessoas (U9).

A1.X.25: Pensamos em confeccionar um panfleto, para distribuir para a população, em relação aos benefícios e os malefícios que a extração do xisto traz (U9).

A1.X.26: Alertar as pessoas, pois poucas sabem do perigo que isso [a extração do xisto] causa para a nossa saúde (U9).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

A ideia de confeccionar o material foi aceita pelos demais estudantes, que partiram para a execução da ação, como se observa nos fragmentos:

A3.X.9: “A gente vê um dia que o pessoal vai à escola buscar atividades impressas e aproveita para entregar [os panfletos para a comunidade escolar]”(U7) e

A8.X.4:“Eu confecciono o panfleto, pode ser?” (U7).

(Gravação de aula em ambiente virtual, 2020).

Esta ação vai ao encontro do evidenciado nas Diretrizes Curriculares da Educação do Campo, a saber, “[...] resgatar as lutas por direitos civis, políticos e sociais no país, pois se trata de um debate sobre a construção da cidadania [...]” ( PARANÁ, 2006PARANÁ . Secretaria de Estado da Educação . Diretrizes Curriculares da Educação do Campo . Curitiba : SEED , 2006 . , p. 43).

As atividades de MM na perspectiva da EMC desenvolvidas pelos estudantes permitiram observar aproximações da MM com o ensino da Escola do Campo. As discussões a respeito de questões sociais, econômicas, ambientais, de saúde pública e de ações comunitárias proporcionaram reflexões críticas, tomadas de decisões e ações que visaram à transformação da realidade local.

5 Considerações finais

A partir das categorias, emergidas de forma intuitiva, analisamos os dados visando estabelecer aproximações entre a MM na perspectiva da EMC com as particularidades pretendidas à Educação do Campo que estão nos documentos das DCE do Estado do Paraná (PARANÁ, 2006), no Projeto Político Pedagógico ( PPP, 2020PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO (PPP) . Colégio Estadual do Campo Professor Eugênio de Almeida: Ensino Fundamental e Médio . São Mateus do Sul – PR , 2020 . ) e na Proposta Pedagógica Curricular ( PPC, 2020PROPOSTA PEDAGÓGICA CURRICULAR (PPC) . Colégio Estadual do Campo Professor Eugênio de Almeida: Ensino Fundamental e Médio . São Mateus do Sul – PR , 2020 . ) da Escola do Campo, onde a pesquisa foi desenvolvida. Nesse sentido, apresentamos os resultados dessas discussões, mostrando aproximações que evidenciam diversas características, conforme explicitadas abaixo:

As discussões democráticas e reflexões críticas demonstram a importância de transformar a sala de aula em um ambiente democrático, oportunizando o diálogo e o debate sobre direito político e social, proporcionando aos estudantes atuação crítica na sociedade por meio do conhecimento matemático, cuja característica central é a problematização dos conhecimentos. Enfatizamos, portanto, que, por meio da MM, é possível oferecer aos estudantes do campo uma Matemática em consonância com uma formação crítica, tão discutida pelos movimentos sociais e requerida aos sujeitos do campo, fortalecendo aspectos relacionados ao diálogo, permitindo conhecer particularidades oriundas desses povos, presentes em sua cultura, em sua história e em sua visão de mundo, contribuindo, consequentemente, com a ampliação dos conhecimentos dos estudantes do campo.

As discussões econômicas, políticas e ambientais ressaltam a relevância de envolver os alunos em discussões sobre questões econômicas, políticas e ambientais, promovendo a participação ou a observação da tomada de decisão, por parte do poder público local ou nacional, e isso faz-se necessário aos povos do campo, preparando o estudante para a plena participação na vida econômica, sociopolítica e cultural do país. Portanto, as discussões relacionadas à sociedade, à economia, à política e ao meio ambiente, apontadas pelos estudantes, indicam que a EMC pode ser trabalhada no âmbito escolar, pois envolve a comunidade interna e externa no debate e desenvolvimento das atividades de MM, permitindo construir o conhecimento matemático, despertar o senso crítico e relacionar as atividades desenvolvidas com o exercício da cidadania.

Quanto às discussões sociais e culturais, percebe-se que a participação dos alunos e professores como indivíduos críticos envolvidos em efetivas ações comunitárias contribui para autoafirmar a identidade dos povos do campo, valorizando aspectos culturais de sua realidade, criando vínculos com a comunidade e gerando um sentimento de pertença ao lugar e ao grupo social. Portanto, por meio da MM na perspectiva da EMC, os estudantes podem investigar situações relacionadas com o meio em que estão inseridos, sendo esta uma forma de o professor motivar seus alunos, valorizar seus saberes, suas experiências, suas culturas, suas angústias e, ao mesmo tempo, aprender Matemática com problemas relacionados ao seu contexto.

Sobre o trabalho em grupo e a autonomia dos estudantes, consideramos que os estudantes foram convidados a trabalhar em grupos, possibilitando diferentes formas de elaboração de conceitos e oportunizando o desenvolvimento da autonomia. Ao mesmo tempo, eles foram incentivados a negociar, debater, ouvir o outro e respeitar suas ideias. Durante o desenvolvimento das atividades, os estudantes se envolveram no processo de investigação, participando das discussões nos grupos, coletando dados externos na comunidade e participando do debate para a escolha do tema a ser investigado. Isso nos leva a concluir que os alunos demonstraram autonomia durante o processo de desenvolvimento das atividades, priorizando os diálogos e as discussões.

Os temas com referência na realidade demonstram que investigar, por meio da Matemática, situações com referência na realidade, deve ser o ponto de partida do processo pedagógico ao articular os conteúdos sistematizados com a realidade do campo. Por exemplo, ao abordar temas com referência na realidade, é possível resgatar valores culturais presentes em suas propriedades, tão significantes para os estudantes do campo, bem como discutir e debater assuntos relacionados com o meio ambiente e a economia, diretamente ligados à tomada de decisão do poder público.

Vale ressaltar que o desenvolvimento de atividades de MM via ensino remoto nos proporcionou desafios: primeiramente, em relação à internet no campo, pois devido ao difícil acesso à conexão na região em que os estudantes moram, a participação de alguns deles foi prejudicada; depois, em relação ao professor-pesquisador, que, ao adentrar uma “zona de risco” (desenvolver atividades de MM via ensino remoto), teve de lidar com algumas situações, principalmente no sentido de promover um ambiente democrático de forma virtual, oportunizando a integração com todos os alunos que participaram das atividades. Portanto, a preocupação em dar oportunidades para todos esteve presente durante o processo.

Esses desafios vivenciados durante o desenvolvimento das atividades talvez tivessem um impacto menor caso a atividade fosse trabalhada presencialmente. Quando concebemos uma ação democrática em sala de aula, muitas coisas estão evolvidas, por exemplo, a maneira como as carteiras estão organizadas, a forma como damos voz aos alunos, o modo como falamos ou deixamos de falar, quando os alunos falam ou deixam de falar entre eles, e até mesmo a arquitetura da sala de aula.

No entanto, os estudantes que participaram tiveram acesso à internet para pesquisar sobre os assuntos no mesmo momento em que eles eram debatidos nos grupos de WhatsApp , e liberdade para perguntar aos pais e parentes sobre algo referente à produção da erva e exploração do xisto. Essas situações possivelmente não ocorreriam em contexto outro que não o do ensino remoto.

Embora muitas dessas ações relatadas tenham ficado ocultas anteriormente, por terem sido desenvolvidas virtualmente, conseguimos estabelecer um ambiente democrático no qual as relações didáticas estiveram embasadas na EMC, porque pudemos contar com alunos responsáveis, comprometidos, comunicativos e com visão crítica. Desse modo, a comunicação entre os estudantes e o professor-pesquisador aconteceu de forma satisfatória, não comprometendo a produção de dados para a pesquisa ou o desenvolvimento das práticas de sala de aula.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2022
  • Aceito
    06 Dez 2022
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