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Oficinas como Experimentações com Matemática e Arte

Workshops as Experimentations with Mathematics and Art

Resumo

Na travessia entre Matemática e Arte, oficinas com arte se apresentam e tomam certos contornos com e na Educação Matemática. Elas se assumem como experimentações na pesquisa, no ensino e aprendizagem em sala de aula e na formação de professores. Neste artigo, esboçamos alguns traços e deixamos algumas pistas sobre aquilo que se exercita, se produz e se provoca com o agenciamento da Matemática com a Arte por oficinas, as quais se manifestam como oficina-experiência, oficina-dispositivo, oficináticas: experimentações com Arte e sobre Matemática, com Arte e sobre formação de professores, com Arte e sobre ciência. Uma fabulação que se abre à forma criativa do pensamento, à liberdade, desdobrando-se na multiplicidade, na heterogeneidade, na resistência e na invenção de outras possibilidades para ensinar e aprender Matemática na escola.

Educação Matemática; Matemática e Arte; Experiência; Dispositivo; Filosofia da Diferença

Abstract

In the crossing between mathematics and art, workshops with art present themselves and take certain contours with and in Mathematics Education. They are assumed as experiments in research, teaching, and learning in the classroom and in teacher’s training. In this article, we outline some traces and leave some clues about what is exercised, produced, and provoked with the agency of mathematics with art through workshops, which are manifested as workshop-experience, workshop-device, ‘oficináticas’: experiments with art and about mathematics, with art and about teacher education, with art and about science. A fabulation that opens up to the creative form of thought, to freedom, unfolding in multiplicity, heterogeneity, resistance, and the invention of other possibilities for teaching and learning mathematics at school.

Mathematics Education; Mathematics and Art; Experience; Device; Philosophy of Difference

1 Fabulação: à guisa de introduzir

Oficina é uma daquelas palavras que latejam a ponto de nos colocarmos em movimento de inventariar os sentidos com e para ela1 1 Viemos criando e desenvolvendo oficinas com Arte e Matemática, com crianças no Ensino Fundamental e na formação de professores, no âmbito de vários projetos de pesquisa. Atualmente, por meio da tese de doutorado da primeira autora, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, da Universidade Federal de Santa Catarina, PPGECT, UFSC, com apoio CAPES, retorna-se às oficinas já realizadas nos outros projetos para um estudo mais analítico. Esse estudo perpassa os objetivos do projeto intitulado “Formas e De-formas no Olhar: Por uma Educação Matemática Fronteiriça e Criadora”, desenvolvido pela segunda autora, na modalidade produtividade, com apoio CNPq. . Daí que neste espaço de escrita compomos para a palavra oficina “[...] uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas [...]” (FOUCAULT, 1992FOUCAULT, M. A escrita de si. In: FOUCAULT, M. (org.). O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. p. 129-160., p. 135), operada em trabalhos de pesquisas, tanto de doutorado e mestrado, como de iniciação científica e de conclusão de curso, que vêm sendo desenvolvidos em nosso grupo de estudos e pesquisas - GECEM2 2 GECEM é o Grupo de Estudos Contemporâneos e Educação Matemática (www.gecem.ufsc.br), liderado pela Profa. Dra. Cláudia Regina Flores e situado na UFSC. Os vídeos que resultam das pesquisas com oficinas podem ser acessados em: https://gecem.ufsc.br/videos. (Imagem 1).

Imagem 1
– Montagem: oficinar

De praxe: se procurarmos a palavra oficina no dicionário encontramos que é um lugar onde se exerce um ofício, um lugar onde trabalham os oficiais e aprendizes de algum ofício ou arte, ou ainda um curso de curta duração que envolve estudo e trabalho prático, no qual os participantes partilham experiências, workshop; oficina pode ser também o local onde são levados os veículos automotivos para conserto ou o lugar onde estão os instrumentos de uma indústria, arte ou profissão e ainda o lugar onde funciona o maquinismo de uma fábrica (MICHAELIS, 2021MICHAELIS. Dicionário Brasileiro de Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2021. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/oficina/. Acesso em: 12 abr. 2021.
https://michaelis.uol.com.br/moderno-por...
). Em suma, por esse viés, a oficina é um lugar que reúne o fazer, o fabricar, o consertar, o experimentar, o estudo, o exercício de um ofício.

No entanto, dizemos que “[...] o significado está no dicionário, mas o sentido só se revela no uso político, poético, filosófico da palavra [...]” (LÓPEZ, 2008LÓPEZ, M. V. Acontecimento e experiência no trabalho filosófico com crianças. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008., p. 10). Cada palavra encontra seu fluxo, produz intensidades, esburaca o corpo, rabisca linhas, encontra suas fugas. Assim, é na travessia entre Matemática e Arte que o vocábulo oficina vai se constituindo e tomando certos contornos para nós. E é pela pesquisa, e na sala de aula, que atividades oficineiras são fabuladas com crianças e com professores.

Assim, no envolvimento do viver a experiência e com os efeitos no conhecer dos participantes e pesquisadores, uma brecha para um espaço de abertura e incitação ao pensamento pode ser exercitado. Nesse movimento, as oficinas desenrolam-se entre oficina-experiência, oficina-dispositivo, oficináticas: experimentações com Arte e com Matemática, com Arte e sobre formação de professores, com Arte e sobre ciência. Nelas e com elas exercitam-se modos de estar, olhar e perceber o mundo com Matemática e com Arte3 3 Em específico, quando nos referimos a Arte nas oficinas falamos das artes visuais, como a pintura, a escultura e instalações. . Com elas, um ethos cartográfico se coloca em exercício, em que se produz, pelo pensamento, uma escrita e realidade, no acontecimento, no instante mesmo em que os sentidos acontecem, ou seja, no oficinar.

Dito oficinar: que se constitui como ferramenta para o pesquisar; que é atuante pelos momentos em que se extrai singularidades expostas pelo sentido e variação, em meio a experiência múltipla; que forja narrativas ao encontrar pequenos caos; que joga no entre o viver a experiência e os efeitos no conhecer (MOEHLECKE, 2012MOEHLECKE, V. Oficinar. In: FONSECA, T.; NASCIMENTO, M.; MARASCHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 165-168.).

No entanto, é comum querermos ter o controle do que está por vir, projetar os passos a serem seguidos, medir com régua ou fita métrica cada espaço a ser percorrido e ter de antemão um resultado previsto. Disso, alertamos: uma oficina não é algo pré-moldado, controlado. Mas dela faz parte todo um movimento de preparações, estudos, criações, sensibilizações, produções, artistagens, afetos, para encontrar a brecha do espaço e do tempo de experimentação da Matemática com a Arte, em que encontros e um aprender com Arte podem acontecer.

Há para as oficinas “[...] uma preparação bem longa, mas nada de método nem de regras ou receitas [...]” (DELEUZE; PARNET, 1998DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998., p. 16). Aqui vale dizer que, ao criar oficinas nas pesquisas, para serem desenvolvidas com estudantes ou professores, não estamos tratando de um estudo de caso em que há uma lógica de planejamento sem espaço para erros, para o imprevisível ou improvisos, com regras gerais que servem para casos particulares, com uma coleta, seleção e interpretação categórica dos dados, ou mesmo como uma escolha de um objeto de estudo bem delimitado e definido pelo interesse em casos individuais (VENTURA, 2007VENTURA, M. M. O estudo de caso como modalidade de pesquisa. Revista SoCERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p. 383-386, 2007.).

Embora se elabore um planejamento organizado e se tenha uma preparação, não há nenhum protocolo padrão normalizado de aplicação, ou mesmo não há um projeto-piloto para teste prévio, nem categorias previamente estabelecidas a serem analisadas e interpretadas. Há, no entanto, uma produção de dados, que não é produto, mas processo, cultivo, em que são acionadas criações e sentidos, e que subjetividades ganham lugar compondo sentidos aos acontecimentos.

Daí nosso interesse em parar para dar atenção à palavra oficina no trabalho com Matemática e com Arte, com Arte e sobre Matemática, agenciando sentidos, não perseguindo o indizível, nem revelando o que está oculto (FOUCAULT, 1992FOUCAULT, M. A escrita de si. In: FOUCAULT, M. (org.). O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. p. 129-160.), pois o sentido não está por baixo ou por trás, nem é o que veio antes e que agora vai ser contado. O sentido é o que se narra agora, o sentido-acontecimento que é acessado pelo pensamento, e que produz cem sentidos, o que só pode ser apreendido no instante em que acontece. Ainda, o sentido não é algo que se possui, mas uma relação que se estabelece entre o dito e o não dito, entre as palavras e o mundo, entre as imagens e as sensibilidades, “[...] com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si [...]” (FOUCAULT, 1992FOUCAULT, M. A escrita de si. In: FOUCAULT, M. (org.). O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. p. 129-160., p. 137).

Isso posto, primeiro com-fabulamos sobre o exercitar as oficinas como uma estratégia de investigação. Dito de outro modo, trazemos pistas de um modo de intervenção e de estar em sala de aula ou na formação de professores com oficinas, para depois traçarmos algumas reverberações sobre aquilo que se produz no campo de pesquisa: afinal, como narrar o que acontece em oficinas? Como mapear afetos, produzir realidades, criar mundos, lidar com o imprevisível? Por fim, a fabulação se enreda para aquilo que se provoca do exercício de olhar para as produções e experimentações oficineiras, bem como daquilo que já foi produzido e vem se constituindo. Sem ser produto nem resultado do que se tem, mas um processo que cria conexões entre o ensinar e o aprender Matemática com Arte.

2 Das oficinas como estratégia de investigação4 4 Aqui trazemos um alargamento e aprofundamento sobre o modo de pensar as oficinas como estratégia de investigação, que pode também ser encontrado, de modo mais sucinto, no texto “Traços de crianças: investigando a visualidade matemática por meio de oficinas de arte” (KERSCHER; FLORES, 2019), publicado nos Anais do XIII ENEM. No texto mencionado, exemplificou-se e explorou-se o modo de operar com oficinas e arte em quatro pesquisas, sendo duas de mestrado e duas de iniciação científica. : aquilo que se exercita

As oficinas vêm nos remetendo a um “[...] espaço onde se pode exercer algo: um ofício, um exercício, uma atividade. A oficina é um lugar onde se pode inventar e produzir alguma coisa com alguém. Um local de encontros que provocam agenciamentos coletivos [...]” (KERSCHER, 2018KERSCHER, M. M. Uma martemática que per-corre com crianças em uma experiência abstrata num espaço-escola-espaço. 190f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2018, p. 74). Nesse tipo de experimentação ocorrem composições e fabulações com Matemática e com Arte, com os materiais, com as pessoas, consigo mesmo, com o ensinar e o aprender, com a pesquisa.

É um lugar e um tempo livre para pensar e exercitar o pensamento, a Matemática. O espaço e o tempo são tornados livres para o estudo e o exercício (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015MASSCHELEIN, J; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução Cristina Antunes. 2 ed. Belo horizonte: Autêntica Editora, 2015.), livres dos objetivos predeterminados para futuros supostamente já programados. Portanto, um espaço e tempo para pensar e fazer pensar, “[...] não para ver o que pensamos, mas para pensar o que vemos, para expor o nosso pensamento ao que está acontecendo (no presente), e para ir além de nossas próprias reflexões, para quebrá-las [...]” (MASSCHELEIN, 2012, p. 68, tradução livre, grifo nosso), olhando para aquilo que escapa, que salta aos olhos, vendo o não visto, o não olhado, e por isso sempre ‘-1’, sempre ‘n-1’, pois sempre há algo que escapa, que escorre entre nossos dedos. Ou seja, falamos de oficinas que percebem e quebram certas rotinas de pensamento e do olhar, em Matemática, na Arte, em aprender e em ensinar, no mundo, na vida.

Em muitos momentos esse tipo de oficina não parte de um conteúdo matemático programático (que já estaria lá para ser aprendido, curricular), com um objetivo de aprendizagem, competências e habilidades a serem alcançadas e com metas de ensino. De outro modo, esse tipo de oficina é provocada pela potencialidade e abertura da própria Arte e das imagens da Arte, do que elas possibilitam pensar naquele espaço e tempo de atividade com Matemática. O que menos importa ali, no momento oficineiro, é “o conceito em si, a não ser ele como potência no mundo dos signos da mundanidade e aquilo que ele permitia pensar, fazer transitar por possibilidades do próprio pensamento, do novo com a novidade, e que também está no velho” (FLORES; KERSCHER, 2021FLORES, C. R.; KERSCHER, M. M. Sobre Aprender Matemática com a Arte, ou Matemática e Arte e Visualidade em Experiência na Escola. Bolema, v. 35, n. 69, p. 22-38, 2021., p. 31). Uma relação com o que acontece no presente (MASSCHELEIN, 2012), entre o afeto e o pensamento.

Isto pois, como afirma Samain (2012)SAMAIN, E. As imagens não são bolas de sinuca. Como pensam as imagens. In: SAMAIN, E. (org.). Como pensam as imagens. Campinas: Unicamp, 2012. p. 21-36., a imagem é pensante, transborda o pensamento e nos oferece algo para pensar, seja ligado ao real, seja ligado ao imaginário, inclusive sobre Matemática. Nesse viés, também Coli (2006)COLI, J. O que é arte? São Paulo: Brasiliense, 2006. nos diz que qualquer que seja uma obra de arte, ela desencadeia pensamentos sobre o mundo, sobre as coisas, sobre as sociedades, sobre o humano. Dito isso, um pesquisador (ou professor) oficineiro pensa a Matemática com a obra de arte, “[...] porque considera que a arte é ato que reitera o humano, assim como a atividade artística é acontecimento que deixa rastros dessa humanidade [...]” (RAMOS FLORES; PIAZZA; PETERLE, 2016, p. 1-2, grifo das autoras). Daí que, para os oficineiros do afeto e do pensamento, a Arte vem para dar a pensar, para verdejar os sentidos que, de outro modo, não poderia ser dito a não ser no exato momento em que acontece: na provocação da Arte com aquele que olha.

É aí que se suspendem definições prontas, explicações desejáveis, interpretações com finalidades específicas, “contextualizações” descontextualizadas da realidade, e torna-se presença a Arte, a Matemática e as práticas matemáticas: o que elas são, o que faz com que elas sejam o que são e o que está em jogo quando elas se encontram em conexão com a arte na sala de aula, na formação de professores, na pesquisa. Se há um foco principal, ele não está em ideais de ensino e aprendizagem predeterminados, esperados, significativos e úteis para o futuro, mas na dispersão das questões produzidas pelo trabalho ético-existencial que gera um gesto público e de interesse no aprender Matemática, isto é, que nos faz pensar e nos faz estar presente no estudo da matéria ao nos encontrarmos com a Arte.

Assim, o que acontece nas oficinas tem a ver, também, com a “[...] arte dos cuidados. O que em todo caso aprendemos ali é a ter cuidado, a tomar cuidado: com a linguagem e as palavras, com os olhares e os sentidos, com as leituras e com os livros, com o pensado e o conversado [...]” (LARROSA, 2018LARROSA, J. Esperando não se sabe o quê: sobre o ofício de professor. Belo Horizonte: Autêntica, 2018., p. 379), com o mundo e a vida, com os números e os conceitos, com a razão e a imaginação, com o desenho e o escrito, com as imagens e o audível, com o aqui-e-agora. Portanto, fazer intervenções com oficinas demanda o exercício do cuidado, estudo e preparação para o que não pode ser definível e antecipado.

Desse modo, pensa-se e organiza-se certa atividade com Arte. Planejam-se e elaboram-se oficinas instigadas e inspiradas em imagens, em artistas, em catálogos, em tratados de Arte, em movimentos e obras artísticas, pinturas, esculturas, instalações de arte, com o intuito de oportunizar uma ocasião para pensar e oferecer uma chance de que algo vai aparecer e se comunicar, que algo de Matemática será tornado presença e interesse de estudo, para fazer pensar. Mas também que nada disso que se pensou pode acontecer, nada de Matemática pode aparecer, ser cortada, pelo menos não do modo que comumente se espera que ela apareça. Daí que pode vir um elefante ou uma orelha de gato ecoando, quiçá, um símbolo do infinito.

Mônica – Pensem se fosse de vocês colarem as pontas dessa fita, como vocês colariam?

Douglas – Com a mão.

Artur – Assim!

Nicolas – Uma em cima da outra. [...] Que nem a Erica fez. Eu ia fazer assim ó, uma gotinha.

Samuel – Que nem uma gota.

Leticia – Eu colaria como aquele estilo lá, que é contra os negócio... Contra... Câncer de mama.

Gabriel – Assim ó. Ia fazer uma roda.

Erica – Um zero. [...] É uma bola?

Mônica – O que parece isso aqui?

Nicolas – Parece um oito.

Erica – Um zero.

Joseane – Depende do ponto de vista, pra mim é um oito. E também é o símbolo do infinito.

...

Dérick – O professora, parece um elefante.

...

Jhéssyca – É orelha de gato, olha só, olha só.

Gabriel – O símbolo do infinito.

...

Leticia – Eu sei! É o símbolo da matemática.

Jhéssyca – O infinito.

(KERSCHER, 2018KERSCHER, M. M. Uma martemática que per-corre com crianças em uma experiência abstrata num espaço-escola-espaço. 190f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2018, p. 138-140).

Diga-se, enfim, que para “montar” uma oficina há, sim, uma organização de momentos e de materiais, uma preparação de um possível enredo, e a tentativa de cercar o possível. Assim, para além das materialidades que compõem as oficinas, tais como papeis, tesouras, lápis de cor, giz de cera, cola, tintas, isopor, imagens, régua, fios, barbantes, massa de modelar, copos, CD’s, garrafa PET, tampinhas, caixas de ovo, caleidoscópio, monóculos etc.; há, também, aquilo que se apresenta na sua imaterialidade: o gesto, o olhar, a escuta, a fala, a atenção, a sensibilidade, os afetos, e mais tantas outras coisas que carregamos no encontro com o outro. Do imprevisível, apenas, deixar-se apanhar, abrir-se a ele.

Do enredo algumas perguntas como disparadoras para o pensamento: O que as imagens da Arte fazem, ou nos dão a pensar? As imagens fazem pensar sobre Matemática? O que se pode pensar sobre Matemática? E a atividade da artista, ela pode nos ajudar a pensar sobre algo, talvez sobre Matemática? Com elas, um encontro com o contingente se faz emergente, o espaço para o imprevisível está dado, mudando as rotas e seguindo pelas irregularidades e singularidades da experimentação. “[...] Ao encontrar um pequeno caos, desfaz-se de saberes prévios e goza de uma pequena liberdade [...]” (MOEHLECKE, 2012MOEHLECKE, V. Oficinar. In: FONSECA, T.; NASCIMENTO, M.; MARASCHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 165-168., p. 166), como aconteceu com a divisão de caixinhas entre os participantes em uma oficina desenvolvida com crianças de quinto ano do Ensino Fundamental. Nela, abriu-se uma brecha para criar e improvisar em Matemática, para pensar com as caixinhas e sua divisão, e não exclusivamente reconhecer, identificar o conceito habitual de divisão, ou reproduzir e copiar algo já definido, mas sobretudo pensar, pois, como Deleuze sugere, quando se pensa, se aprende. Procurou-se estratégias para além da aparente e já definida. Como, então, dividir? O que esconde a divisão das caixas? Esconde algo? Outras coisas acontecem, novas estratégias, uma divisão que numa aula de Matemática, no interior de uma prática definida, poderia ser tomada como errada.

Gabriel – Eu tenho três.

Luciano – Eu tenho nove.

Gabriel – Eu tenho um milhão.

Luciano – É de quem pegar primeiro?

Thiago – Uma, duas, três, quatro... dezenove.

Luciano – Eu tenho: uma, duas, três... treze.

Gabriel – Eu tenho seis.

Allan – Eu tenho onze.

Mônica – Já dividiram?

Gabriel – Sim.

(KERSCHER, 2018KERSCHER, M. M. Uma martemática que per-corre com crianças em uma experiência abstrata num espaço-escola-espaço. 190f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2018, p. 125).

Assim, a invenção que se articula daí não é uma prescrição ou modelo pronto, mas uma abertura: um corte que se abre para o estudo com Matemática. E assim o planejamento que se faz não está implicado em responder às expectativas de alguém ou de algo sobre o ensino e a aprendizagem, mas uma maneira de abrir para as possibilidades de que algo aconteça – o estudo da Matemática – que faz parte do mundo e que é também o mundo. Daí que:

[...] Ao intervir no vivido, ou fazer dançar as palavras, uma oficina se compõe enquanto maquinação do ser em seu anseio por um mundo em criação. Por entre a nudez de significados já sabidos e a costura de novas frases em devaneio, é possível arriscar o movimento em um ritmo que acompanha o agenciar dos afetos. Os poros se abrem à experiência. Não há mais métodos a priori. Os passos são criados por uma coreografia singular, que se desprende em sentidos construídos [...] (MOEHLECKE, 2012MOEHLECKE, V. Oficinar. In: FONSECA, T.; NASCIMENTO, M.; MARASCHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 165-168., p. 167, grifo nosso).

Dito isso, entendemos que as oficinas tornam-se uma prática em termos de experiência, exercício de pensamento e ensaio: experimentação. Um espaço organizado que opera com a sensibilidade dos encontros em que que coisas acontecem, se apresentem como tais, tornando-as públicas e presentes, fazendo aparecer o que talvez não apareceria sem essa prática (MASSCHELEIN, 2012). Esse tipo de oficina, portanto, se mostra como um espaço e tempo em que se abre passagem para experiência, oficina-experiência, de transformação de si e (des)construção subjetiva, em que “[...] um corpo passa a investigar as experiências em suas maquinações, mas ele também sofre a transmutação de valores e ideias [...]” (MOEHLECKE, 2012MOEHLECKE, V. Oficinar. In: FONSECA, T.; NASCIMENTO, M.; MARASCHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 165-168., p. 167). Assim, segundo Foucault (1994, p. 281 apud REVEL, 2005REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005., p. 47), “[...] a experiência é alguma coisa da qual saímos transformados [...]”.

No entanto, há distintos modos de compreender a “experiência”, essa é uma daquelas palavras que pode designar diferentes conceitos e perspectivas teóricas, e isso nos exige cautela e certa atenção. Perceba o sentido que nos referimos a essa palavra e que circula nas oficinas, escapa da ideia de experiência como experimento controlado ou controlável num laboratório, pois não buscamos empiricamente testar, validar ou desqualificar verdades e generalizações previamente elaboradas, nem neutralizamos as relações existentes (sujeito-objeto, por exemplo).

[...] Também não é a noção de experimentar da pesquisa-ação, a qual critica a reprodução do modelo de pesquisa em laboratório e a lógica de imparcialidade do pesquisador. Mas ainda orienta-se pela divisão entre sujeito e objeto, indicando a inserção no campo da pesquisa como modo de assegurar a validade do conhecimento produzido [...] (LOZZAROTTO, 2012LOZZAROTTO, G. D. R. Experimentar. In: FONSECA, T.; NASCIMENTO, M.; MARASCHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 99-101., p. 99).

Escapa, ainda, da ideia de experiência como prática, aquela que se adquire com o tempo, com a vivência cotidiana, que é comunicada e compartilhada, dando autoridade e poder para aquele que a possui. Diferentemente, pelos meandros da filosofia da diferença, a experiência que nos atravessa e se agencia com as oficinas é aquela que se dá quando o corpo é afetado pelos encontros e acontecimentos, pelos signos, produzindo uma abertura aos processos de criação e incitando um pensar no pensamento, uma experiência como pensamento. Experiência de pensamento: experimentar o pensar.

Nesse sentido, a experiência que acontece com as oficinas, é entendida como isso que nos passa, nos acontece, nos toca, nos afeta, nos atravessa, e ao nos passar, nos tocar, ela nos forma, mas, sobretudo, nos transforma (LARROSA, 2016LARROSA, J. Tremores: escritos sobre experiência. 2. Reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.), num movimento de dessubjetivação e subjetivação. Uma experiência que acontece no acontecer do instante. Uma experiência-limite que arranca o sujeito de si mesmo, impedindo-o de ser o mesmo (REVEL, 2005REVEL, J. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005.), uma experiência modificadora de si no jogo da verdade e da história ao “[...] tornarmo-nos o que nunca fomos [...]” (FOUCAULT, 2010a, p. 87). Isto pois nas oficinas não priorizamos ver aquilo que já está pensado ou dito, mas pensamos naquilo que vemos e naquilo que está dado, indagamos certezas, duvidamos de naturalidades, levantamos enunciados, problematizamos os efeitos de verdade, em transformação de si, como estudamos com Foucault. Afinal, efeitos de verdade que produzem um modo de pensar, olhar, representar e falar do mundo.

Para uma imagem do pensamento, que Deleuze (2006)DELEUZE, G. Diferença e repetição. 2. ed. Tradução de Roberto Machado e Luiz Orlandi. Rio de Janeiro: Graal, 2006. chama de dogmática, natural ou moral, acredita-se que pensar é o mesmo que conhecer, ou melhor, o mesmo que reconhecer, um processo que pode ser treinado, modelado e aperfeiçoado. “[...] Reconhecer é o contrário do encontro [...]” (DELEUZE; PARNET, 1998DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998., p. 16). No entanto, com as oficinas entendemos que pensar não é conhecer. Conhecer é identificar, compreender. O pensar que acontece com oficinas entre Arte e Matemática, com as palavras de Deleuze (1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 124), é “experimentar, é problematizar”. Pensa-se enquanto experimentação, no encontro com pessoas, movimentos, ideias, acontecimentos, como uma certa interrupção do nosso modo-de-estar-no-mundo, opondo as coisas do modo como aparentam ser, formulando outras rotas, não traçadas. Tratamos, assim, de experimentar e problematizar ao invés de tão somente explicar, identificar, representar e (re)conhecer.

Francisco (2017)FRANCISCO, B. M. Um oficinar-de-experiências que pensa com crianças: matemáticas-cubistas, formas brincantes e ex-posições. 259f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2017. e Kerscher (2018)KERSCHER, M. M. Uma martemática que per-corre com crianças em uma experiência abstrata num espaço-escola-espaço. 190f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2018 convidam-nos a caminhar entre oficinas-experiência, as quais foram fabuladas com a arte cubista e a arte abstrata geométrica, respectivamente, envolvendo a Matemática com crianças. Os autores nos colocam a perceber o exercício de pensamento operado (já que a própria pesquisa é experiência, é caminho a trilhar), mas, ao mesmo tempo, fazem com que exercitemos nosso pensamento com as reverberações dos encontros e acontecimentos que ecoaram. Com essas pesquisas, algumas pistas vão deixando suas marcas e alguns sentidos passam a ser produzidos.

[...] As oficinas dão a forma de um documento importante de experiências das crianças. [...] Uma invenção de deformações (no pensamento). Um lugar onde se pode coletivamente derrubar muros, fazer vazar coisas, e ver outros saberes, deixar o conhecido e aprender outras formas de viver, de pensar e nos relacionarmos com a educação, com a pesquisa em educação matemática [...] (FRANCISCO, 2017FRANCISCO, B. M. Um oficinar-de-experiências que pensa com crianças: matemáticas-cubistas, formas brincantes e ex-posições. 259f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2017., p. 72).

Daí que uma atitude experimental, um outro ethos, é exercitada para pensar com Matemática e com Arte nos envolvidos nas atividades (pesquisador, professor, crianças, escola, universidade, educação etc.), um modo de se relacionar consigo mesmo, com os outros e com o mundo (KERSCHER, 2018KERSCHER, M. M. Uma martemática que per-corre com crianças em uma experiência abstrata num espaço-escola-espaço. 190f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2018). Experimental no sentido da abertura para a experiência, de uma forma fluída, para se deixar tocar, sentir, falar, pensar, desenhar, criar, com Matemática, com Arte, com vida.

Assim, as oficinas se instalam como espaço de exposição, de estar exposto aos acontecimentos, de afetação, para viver sensações e parar o tempo, sentir o acontecimento, já que o acontecimento não é estado e nem coisa, sendo assim, não é produzido em meio a definições, mas sempre no momento em que acontece, no acontecer. E como, então, ser digno do oficinar-experimentar? De outro modo dito, como ser digno do acontecimento? Ora, para Deleuze (2015DELEUZE, G. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 2015., p. 152, grifo do autor), isso significa querer “[...] alguma coisa no que acontece, alguma coisa a vir de conformidade ao que acontece [...]”.

Dito isso, aprendemos com Deleuze que não se pensa porque se quer, mas sim porque algo nos faz pensar, nos força a pensar (DELEUZE, 2006). Disso, pois, as oficinas desempenham, ainda, a função de dispositivo. São oficinas-dispositivos, em que é a partir dos “[...] dispositivos que se pode fazer ver e dizer as experiências e as ressonâncias provocadas quando se depara com as imagens [...]” (FLORES, 2016FLORES, C. R. Descaminhos: potencialidades da arte com a educação matemática. Bolema, Rio Claro (SP), v. 30, n. 55, p. 502-514, 2016., p. 508) da Arte; uma potência de fazer falar, ver e estabelecer relações (DELEUZE, 1996DELEUZE, G. O que é um dispositivo. In: DELEUZE, G. (org.). O mistério de Ariana. Tradução e prefácio de Edmundo Cordeiro. Lisboa: Veja/Passagens, 1996. p. 83-96.), abrindo espaço para a experiência e para exercitar visualidades5 5 O termo visualidade, dito de forma rápida, é entendido como a soma de todos os modos como aprendemos a ver histórico e culturalmente. , para trazer à tona o modo como olhamos e nos relacionamos com a Arte, diagnosticando e denunciando, assim, os traços de existência dos discursos produzidos em relação aos enunciados da Matemática, demarcados e praticados pela visualização6 6 A visualização está ligada com a ação de ver. É pela visualização que o “olho vê” as práticas visuais e reafirma os discursos que foram sendo sedimentados ao longo do tempo e da cultura, pelas representações. . Isto é “[...] mostrando formas de olhar, conceber e desenhar, em que a naturalização matemática na representação [...] se dá como uma verdade inquestionável [...]” (FLORES, 2015FLORES, C. R. Entre Kandinsky, crianças e corpo: Um exercício de uma pedagogia pobre. Zetetiké, Campinas, v. 23, n. 43, p. 237-252, 2015., p. 238). Desse modo, “[...] o dispositivo alia-se aos processos de criação, e ao trabalho do pesquisador [...]” (KASTRUP; BARROS, 2015KASTRUP, V.; BARROS, R. B. Movimentos-funções do dispositivo na prática da cartografia. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 76-91., p. 79), caracterizando-se por sua força para romper aquilo que se encontrava bloqueado, acompanhando seus efeitos.

Deleuze (1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 124) diz que “pensar é ver e falar” e as oficinas enquanto dispositivos são máquinas de fazer ver e fazer falar (DELEUZE, 1996DELEUZE, G. O que é um dispositivo. In: DELEUZE, G. (org.). O mistério de Ariana. Tradução e prefácio de Edmundo Cordeiro. Lisboa: Veja/Passagens, 1996. p. 83-96.). Portanto, exercitam o pensar e fazem pensar. Se podemos dizer que há um objetivo para elas, esse é o de fazer cortar pensamentos (matemáticos), cortar saberes (FOUCAULT, 2010b), “[...] não nascente do cérebro, da razão, que se dá como justificativa, como explicação, mas potencializado por meio das pinturas [...], fazendo emergir discursos visuais que tatuam, de forma implacável, todo o corpo daquele que olha [...]” (FLORES, 2015FLORES, C. R. Entre Kandinsky, crianças e corpo: Um exercício de uma pedagogia pobre. Zetetiké, Campinas, v. 23, n. 43, p. 237-252, 2015., p. 239).

Nesse movimento, as oficinas com imagens da arte “[...] não funcionam como motivação para discutir conceitos, aprender conteúdos. Elas [as imagens] geram algo num intervalo ínfimo entre aquele que olha e aquilo que é visto, formando uma cadeia infinita de pensamentos [...]” (FLORES, 2015FLORES, C. R. Entre Kandinsky, crianças e corpo: Um exercício de uma pedagogia pobre. Zetetiké, Campinas, v. 23, n. 43, p. 237-252, 2015., p. 246), uma potência do pensamento. Essa articulação de olhar e pensar com as imagens, com a arte, “[...] que se faz no entremeio, no interstício ou na disjunção do ver e do falar [...]” (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 124), nesse intervalo ínfimo, que se prolonga no piscar dos olhos para ver a imagem de diferentes ângulos, formas, jeitos e fluxos, ou ainda que se prolonga com o movimento dos lábios quando eles justamente buscam as palavras para se expressar ao serem atravessados com suas visualidades.

E mais, no encontro com a noção de dispositivo de Deleuze, mas também de Foucault, dizemos ainda que são oficinas-dispositivos porque nelas há linhas de força em que são exercitadas práticas de saber e de poder, produzindo e inventando subjetivações como modos de existências. Nesse viés e ao se referir ao exercício com oficinas na formação de professores, Wagner e Flores (2018)WAGNER, D. R.; FLORES, C. R. De espaço de mediação a oficinas experiências: uma formação possível com professores que ensinam matemática. Perspectiva, Florianópolis, v. 36, n. 2, p. 468-489, abr/jun. 2018. dizem que, para fins de análise, as oficinas foram tomadas na pesquisa, por um lado,

[...] como dispositivo que produz e regula experiências de si, na medida em que estabelece normas e gera saberes que dizem sobre os modos de ser professor e de pensar o ensino de matemática por meio da relação matemática e arte. Por outro lado, assumiu o papel de dispositivo disciplinar que orienta a produção de sujeitos mediante determinadas práticas pedagógicas, estabelecendo relações de saber e poder, além de exercer formas de governo sobre os sujeitos que participam delas [...] (WAGNER; FLORES, 2018WAGNER, D. R.; FLORES, C. R. De espaço de mediação a oficinas experiências: uma formação possível com professores que ensinam matemática. Perspectiva, Florianópolis, v. 36, n. 2, p. 468-489, abr/jun. 2018., p. 470).

Dizemos, enfim, que sendo as oficinas experimentações e dispositivos que fazem alguma coisa funcionar, elas são tomadas como uma estratégia de investigação e de problematização, pois com elas podemos, de algum modo, fazer ver e fazer falar (DELEUZE, 1996DELEUZE, G. O que é um dispositivo. In: DELEUZE, G. (org.). O mistério de Ariana. Tradução e prefácio de Edmundo Cordeiro. Lisboa: Veja/Passagens, 1996. p. 83-96.) as ressonâncias do encontro entre Matemática e Arte e o mundo, acionando forças menores e fissurando forças maiores que operam no campo da Educação Matemática, seja com crianças, na sala de aula, e na formação de professores.

Assim, oficináticas fazem, no jogo das palavras, invenções e compõem silêncios (BARROS, 2015BARROS, M. Meu quintal é maior do que o mundo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.). Nelas ocorrem atravessamentos, estranhamento de si, do que se faz, do que se tem. É entrega, experiência, encontro, acontecimento. Possibilidade de dar a ver, sentir, estar, pensar. Um lugar para nos relacionarmos com a educação e com a pesquisa em Educação Matemática.

Oficinar com arte e matemática: um modo de estar em sala de aula com crianças e de pesquisar, como estratégia de investigação e como um modo de intervenção, como espaço de problematização na formação de professores e na prática docente. “Um processo cultivador – uma poesia no verbo infinitivo – em que, inclusive, pode ser sem-sentido em outro lugar, sob outros olhos [...]” (FRANCISCO, 2017FRANCISCO, B. M. Um oficinar-de-experiências que pensa com crianças: matemáticas-cubistas, formas brincantes e ex-posições. 259f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2017., p. 248). Disso, ainda nas palavras com poesia de Francisco (2017)FRANCISCO, B. M. Um oficinar-de-experiências que pensa com crianças: matemáticas-cubistas, formas brincantes e ex-posições. 259f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2017., ensaiamos:

montar oficinas (porém, também)

pensar.

inventar.

criar.

pôr no papel.

desmanchar.

pensar.

deformar.

desnaturalizar.

quebrar.

imaginar.

intencionar.

pensar.

elaborar.

atender.

criar.

juntar.

cubicar.

matematicar.

formar.

impensar.

retratar.

desenhar.

abstratizar.

reutilizar.

sensibilizar.

cultivar.

fazer.

dar vida [...] (FRANCISCO, 2017FRANCISCO, B. M. Um oficinar-de-experiências que pensa com crianças: matemáticas-cubistas, formas brincantes e ex-posições. 259f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2017., p. 85-86).

Daí que na reunião de dispositivos, experiências, experimentações, oficináticas, não poderíamos ser atravessados pelas sensibilidades de produções oficineiras, nem acompanhar, de certo modo, seus processos, se não mergulhássemos nas geografias dos afetos e abríssemos em possibilidades para a passagem de intensidades disparadas nos encontros e acontecimentos que são potencializados com as oficinas.

A cartografia grafada por Deleuze e Guattari, mais como uma estratégia de produção de conhecimento e menos como um método, deu-nos pistas e abriu-nos espaço para que tal atitude fosse experimentada e se encarnasse, de algum modo, como um ethos de operar o ensino de aprendizagem da matemática com oficinas e e com matemática e arte, com a pesquisa. Assim, nos aproximamos da cartografia e com ela apostamos na experimentação, sobretudo, na experimentação do pensamento, no:

[...] acompanhamento de percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas. [...] O rigor do caminho, sua precisão, está mais próximo dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo, de que fala Canguilhem. A precisão não é tomada como exatidão, mas como compromisso e interesse, como implicação na realidade, como intervenção [...] (PASSOS; KASTRUP; ESCOSSIA, 2015, p. 10-11).

3 Dos agenciamentos no e do campo de pesquisa: aquilo que se produz

Daí questionamos: como narrar o que acontece nas oficinas, afinal? Como “cientificizar” o acontecimento? É possível ? É preciso ? “[...] Em meio a gestos inventados, a potência do narrar invade a mesmice das significações já dadas e as faz transbordar [...]” (MOEHLECKE, 2012MOEHLECKE, V. Oficinar. In: FONSECA, T.; NASCIMENTO, M.; MARASCHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 165-168., p. 167). Talvez, aqui, poderíamos apostar que pelo ouvir, escutar Matemática, é que se agencia uma escrita em ficção, em poesia, pelos sentires.

É fa(o)to ou impressão?

Vejo meus ouvidos deixados em cantos da oficinática.

Em outros, o canto era de um gravador, de uma câmera.

Até de um grito, do caderno.

Mas num canto desconhecido ouvi do gravador:

– O profê é impressão minha ou é minha foto?

... . ... . ... . ... . ... . ... . ... . ... . ... . ... . ... . ... . ... . ... . ... .

No silêncio, acho que a prôfe deu um jeito de balanço na cabeça

(que serviu pra dizer se era, de fato, foto ou impressão de foto):

Teve-se essa impressão.

(FRANCISCO, 2017FRANCISCO, B. M. Um oficinar-de-experiências que pensa com crianças: matemáticas-cubistas, formas brincantes e ex-posições. 259f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2017., p. 174, grifo do autor).

Todos os momentos oficineiros podem ser registrados: gravados, fotografados e escritos. “[...] Ter a segunda (terceira, quarta...) experiência de ouvir as crianças [e os professores] pelos instrumentos de vídeo e áudio [nos] coloca a pensar e a transver intensidades [...]” (FRANCISCO, 2017FRANCISCO, B. M. Um oficinar-de-experiências que pensa com crianças: matemáticas-cubistas, formas brincantes e ex-posições. 259f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2017., p. 216). Ouvir, escrever: Tal como dizem? Tal como escuto? Gravar, escutar, fotografar. Os vídeos, os áudios, as imagens fotográficas são, pois:

[...] uma espécie de ‘captura’ de um acontecimento, que pode movimentar outros acontecimentos nos corpos que as observam, dilatando as sensações, o olhar para outros movimentos intensivos e criativos, o que pode abrir válvulas de sensações, que possam atingir o sistema nervoso e suscitar novos perceptos e afectos para além de uma imagem-pensamento do julgamento [...] (BRITO, 2015BRITO, M. R. Entre as linhas da educação e da diferença. São Paulo: Livraria da Física, 2015., p. 226).

Transcrever. Transouvir. Transmemorar.

Reinventar. Revisitar.

Daquilo que se escuta, ou se vê, ou se pensa, o que ficou? Que atenção é dada ao acontecimento para ser contado? Algo é produzido (nos estudantes, no ensinar e no aprender, na escola, na vida). E em cada um (professores, pesquisadores) também.

Assim, para agenciar Matemática no campo de pesquisa, ou mesmo matemáticas agenciadas com a pesquisa, tratamos de desaprender as velhas fórmulas e, num gesto problematizador, profanar o ensino da Matemática (FLORES, 2017FLORES, C. R. In-fante e profanação do dispositivo da aprendizagem matemática. Perspectivas da Educação Matemática, INMA/UFMS, v. 10, n. 22, seção temática, p. 171-188, 2017.), e até mesmo profanar as fontes transcritas na pesquisa em Educação Matemática, pois, muitas vezes, “[...] isso que nos toca, faz-nos querer tecer uma escrita outra. Faz-nos querer sair do aprisionamento da escrita acadêmica padronizada, naturalizada e cientificizada. Faz-nos querer desviar dessa escrita que é arranjo para produzir efeitos de verdade, que é objetivada e que generaliza [...]” (FLORES; KERSCHER; FRANCISCO, 2018, p. 132-133). Não que isso se torne regra, mas algo que vai se constituindo com afetos e com as sensibilidades mexidas pelo campo de pesquisa e com aquilo que é produzido.

Com isso, brincamos com modos de escritas, com modos de se colocar em pesquisa, com modos de falar (produzir e cultivar) com dados empíricos, com modos de ouvir gravações e transcrevê-las. Do empírico algo que é ficcional, mas também se torna real e que oferece experiência de sentidos, de mundo e de realidades. Isto pois, “[...] entre o arrepio e a atenção, pele e corpo dançam uma nova melodia, na qual eles se abrem às aventuras do empírico e passam a admirar os acontecimentos que se produzem nos interstícios do sentir e do pensar [...]” (MOEHLECKE, 2012MOEHLECKE, V. Oficinar. In: FONSECA, T.; NASCIMENTO, M.; MARASCHIN, C. (org.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p. 165-168., p. 167).

Vamos para a escola, para a universidade, para a sala de aula, com crianças, com professoras e professores, habitamos um lugar repleto de histórias e de vida. Como contar o que vivemos lá? Como escrever a experiência? O acontecimento? Talvez, não estejamos interessados em escrever a experiência, o acontecimento, a partir de dados empíricos a serem captados e coletados, distanciando sujeito e objeto, teoria e prática, campo de pesquisa e pesquisador, mas em pensar e escrever com experiência, no acontecimento, produzindo dados empíricos, cultivando-os, deixando-os vazar, não os explicando ou os interpretando, mas sendo afetados pelos sentidos, produzindo sentidos nas dobras entre sujeito-objeto, teoria-prática, campo de pesquisa-pesquisador.

Brincamos e ousamos nos detalhes das palavras, na miudeza dos ditos e não ditos que sobrevivem e se reinventam, na potencialidade dos sentidos. Jogamos com palavras que se entrecruzam com os afetos que se agenciam no percurso. Nos atentamos aos pormenores que implicam na sensibilidade de derivas dos conhecimentos naturalizados, encrustados, calejados: estranhando-os. Uma experimentação também com a própria escritura.

Assim, o que fazemos nas pesquisas que envolvem oficinas não é um pacto com a informação e descrição dos dados empíricos da pesquisa, verdades universais e realidades intransponíveis, transcrições e descrições, dadas por meio de categorizações e interpretações, excluindo ou minimizando erros.

– Eu me monteeei! Me montei!

[Mas vai ter que ir colando como faz

– E se tiver errado?

[Vai colando...

E será que tem certo? – alguém colocou interrogação no errado…

. . . .. .. .. . . . .. .. .. . . . .. .. ..

[Tem que pensar certo pra colar

– Eu já vou colando assim mesmo? Eu posso sair colando?

[Não! Tem que ver se tá certo!

[A professora disse que não precisa ser perfeito.

– Sério? (FRANCISCO, 2017FRANCISCO, B. M. Um oficinar-de-experiências que pensa com crianças: matemáticas-cubistas, formas brincantes e ex-posições. 259f. Dissertação (Mestrado em Educação Científica e Tecnológica) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2017., p. 211).

Daí um pacto de ficção com poesia pela escrita, e sensibilidades que nos convidam a deixar experimentar a emoção, a escuta, a atenção, o “erro”, e ao fazer isso, trans-crevemos, nos abrimos para a possibilidade de “[...] perceber a ironia, expressar o transtorno, o delírio, a perda da razão e o não-saber [...]” (FLORES; KERSCHER; FRANCISCO, 2018, p. 132). E, então, escolhemos escrever com poesia, com Arte, com imagens; no agenciamento de palavras uma Matemática com pensamentos, como acontecimento, como encontro.

Nesse movimento, é na escrita, no re-memorar do som, no revisitar das cenas, que o pensamento pode ser também potencializado; a escrita não é tão somente a expressão de um pensamento, mas a realização dele. Escrever é, sobretudo, criar, pensar. Assim, pensamos com palavras viventes e escrevemos com pensamentos que resvalam e fogem da unificação de sentido. “[...] Palavras são experimentadas com o acontecimento, com aquilo que nos passa. As palavras se mostram pelo riso, pela emoção, pelo incômodo, pela distração, pelos burburinhos, pela imaginação e por um pensamento que quer ser um sentir [...]” (FLORES; KERSCHER; FRANCISCO, 2018, p. 133). Ou, ainda, ensaiamos escrever com r(ab)iscos desenhados, com cores de um amanhecer inebriante (Imagem 2).

Imagem 2
– Espaço cheio de marrom

Não se trata de uma manifestação de irracionalismo (ou de racionalismo), mas de uma forma (entre tantas) de falar do mundo, de estar nele, de falar de Matemática, da vida, e de olhar para as coisas ditas, ouvidas, transcritas. E nisso tudo nos deparamos com uma Matemática que se agencia no/como pensamento, uma Matemática que reside em nossa linguagem, como prática e estética de pensamento sobre o mundo, na escuta, no entre-ouvido, no sentido.

Aqui, o componente de ficção ou mesmo poético se enreda pelo lugar da Arte, um lugar em que experimentamos as coisas em suas intensidades e, de certa forma, tentamos fugir das amarras da razão, aquela que nos deixa presos em um conceito de número, de medida, de forma, de cálculo, por exemplo. Ora, a oficina é lugar de invenção, de criação, de encontros, de fabulação, de ficção.

Nessa vibração, escolhemos colocar-nos num lugar de possibilidades de abertura e inacabamento, de criação e invenção. Produzimos um elo entre o pensar e o ser, entre o dizer e o não dizer, entre o sentir e o ouvir, entre diversas composições possíveis. Abrimos brechas para, de algum modo, comunicar o incomunicável, dizer o indizível, ouvir o silêncio barulhento das coisas. Para tanto, as palavras com poesia voam também com imagens pelo olhar, pelos devaneios com a vida, cartografando. Lembramos que, como aprendemos com Manoel de Barros, “a poesia está guardada nas palavras” (BARROS, 2015, p. 125), mas também nas coisas, nos olhares, nos sentires, e, porque não, na própria matemática.

Assim, produzimos pesquisas de iniciação científica, conclusão de curso, mestrado, doutorado, artigos, ensaios, experimentações. Fazemos anotações em diários de pesquisa para montar (ou desmontar e remontar) o pensamento, fazendo uma bricolagem de coleções de palavras lidas-ouvidas-tomadas-pensadas-traduzidas-inventadas-revisitadas de crianças e professores em sala de aula de Matemática, em oficinas, na pesquisa.

Entre palavras e imagens, exercitamos o pensamento, damos a ver e a pensar, problematizamos e não explicamos ou ditamos algo. Fazemos, portanto, pesquisas com o oficinar em que aposta na emergência de um pensar matemática que acontece no entre-meio da arte. Uma Matemática com Arte que é agenciada no modo de ser-estar no mundo, de falar no mundo, de experimentá-lo. Entretanto, vale dizer que isso tudo, ou tudo isso, não são mais que ensaios, experimentações, sendo produzidas com oficinas, com artes, com crianças, com pesquisas.

4 Do exercício de experimentar oficinas: aquilo que se provoca

As oficinas, como um exercício de provocar visualidades, saberes e experiências, de levantar enunciados e de re-existência ao pensar e colocar em questão aquilo que é habitual, mostram formas de olhar, conceber e desenhar, em que a naturalização da Matemática na representação das coisas no mundo, incluindo pela Arte, se abre à crítica e à denúncia das formas hegemônicas. Mas também se abre à forma criativa do pensamento, à liberdade, ao caos, desdobrando-se na multiplicidade, na heterogeneidade, na resistência e na invenção de outras possibilidades. É, pois, um movimento que pode ser exercitado na pesquisa, mas também em sala de aula com crianças e na formação de professores7 7 Cabe dizer que ao nos referirmos às oficinas na formação de professores não estamos inferindo que ensinamos aos professores como desenvolver oficinas com os estudantes. Não é isso. Nosso movimento na formação de professores é, sobretudo, uma postura de problematização, de questionar aquilo que é habitual com matemática, na prática docente, no ensinar e no aprender, de exercitar a Matemática com a Arte, quiçá, reverberando tal postura em seu próprio ethos de seu ofício. : uma abertura para pensar com Arte e Matemática.

Disso, fazemos pesquisas como formas de ensaios sobre o pensar no aprender Matemática com Arte. O que só pode ser realizado por um movimento em processo, nômade, num ato mesmo de caminhar, de parar, de olhar, de dar atenção, de perder tempo, de abrir-se aos encontros, ao imprevisível e forçar o pensar. O que se provoca com as oficinas, ainda, é uma abertura para o aprender, não tão somente como o reconhecimento de técnicas artísticas ou de conceitos matemáticos, mas aprender como

[...] acontecimento no pensamento, num sentido de passagem, processo, então aprender está na ordem da trans-formação: aprender alguma coisa é aprender com ela; o que não quer dizer sabê-la. O aprendizado, tomado como experimentação aleatória, exercita a interpretação de signos, na medida em que um signo é colocado como problema para o pensamento [...] (FLORES; KERSCHER, 2021FLORES, C. R.; KERSCHER, M. M. Sobre Aprender Matemática com a Arte, ou Matemática e Arte e Visualidade em Experiência na Escola. Bolema, v. 35, n. 69, p. 22-38, 2021., p. 36).

Daí que as oficinas como espaço para aprender Matemática incitam uma experiência e um pensar no pensamento, uma vez que compreendemos que pensar não é algo que se dá naturalmente (DELEUZE, 2006DELEUZE, G. Diferença e repetição. 2. ed. Tradução de Roberto Machado e Luiz Orlandi. Rio de Janeiro: Graal, 2006.). Desse modo, “colocamos sobre a mesa”, ou melhor, apresentamos e oferecemos nas oficinas coisas materiais e imateriais para pensar e despertar a atenção, criar o interesse pela matéria, pela Matemática, pelo mundo. “[...] A arte de apresentar não é apenas a arte de tornar algo conhecido; é a arte de fazer algo existir, a arte de dar autoridade a um pensamento, um número, uma letra, um gesto, um movimento ou uma ação e, nesse sentido, ela traz esse algo para a vida [...]” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015MASSCHELEIN, J; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução Cristina Antunes. 2 ed. Belo horizonte: Autêntica Editora, 2015., p. 135). Esse é, podemos dizer, um modo em que a sala de aula se transforma e transforma o mundo em matéria de estudo. Re-cria-se um tempo, um espaço, as materialidades e os procedimentos para o estudo. Se apresenta o tempo presente, o aqui-e-agora do estudo, suspendendo aquilo que naquele momento já não se aplica: as tarefas, as funções e os requisitos que governam lugares e espaços específicos, o enraizamento social, econômico, político, acadêmico, científico (MASSCHELEIN; SIMONS, 2015MASSCHELEIN, J; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução Cristina Antunes. 2 ed. Belo horizonte: Autêntica Editora, 2015.).

Cabe-nos, enfim, borrar a áurea que, talvez, um trabalho em sala de aula e na pesquisa, com oficinas, possa cintilar. Ora, elas próprias, as oficinas desenhadas aqui, como dito, são experimentações. Elas têm se constituído como um modo de pesquisa em Educação Matemática que um grupo de pesquisadores e estudantes têm esboçado. Disso, conceitos, métodos, teorias, são também experimentadas, ensaiadas. Algumas coisas, como palavras, práticas, modos de olhar, de escrever, podem ser descartados no processo, outros vão se incorporando, e outros, ainda, vão se forjando, se conceitualizando. Tudo isso só pode demonstrar que o próprio pesquisar com as oficinas se dá num movimento cartográfico, que se move, se ramifica, se cruza e entrecruza. Dito isso, se há alguma coisa que elas querem provocar é o gesto experimental que pode incidir na pesquisa em Educação Matemática, cujo efeito opera na prática do professor e na sala de aula.

Por fim, acentuamos mais uma vez, que as oficinas não são modelos a serem seguidos como uma prescrição didático-metodológica. Operar com oficinas é, tão somente, uma tecnologia, uma estratégia ou um dos modos de exercitar e experimentar a Matemática e a Arte em sala de aula, na formação de professores e na pesquisa, criando brechas para que outras e novas possibilidades possam ser artistadas e problematizadas nesse âmbito. E mais. Não afirmamos, de modo algum, que o trabalho com as oficinas é o melhor modo ou mais eficaz de experimentar na e a escola, de experimentar a Matemática com Arte, mas entendemos que é uma entre tantas possibilidades e que pode ser tomada como potência.

Ademais, também não podemos pensar que se embrenhar pelos traços oficineiros seja tarefa banal ou simplista, ao contrário, é complexa, é envolta em incertezas, é permeada por tomada de decisões. É complexa porque se envolve por uma rede de questionamentos que não tem respostas, mas deles, só problematizações. É incerteza porque é preciso se deixar flertar com o móvel, com o instante, com o que não poderia, com o imprevisível. É tomada de decisões porque é preciso escolher o que vai entrar em cena para o jogo do oficinar.

***

Matemática.

Arte.

Matemática e arte.

Matemática-entre-arte.

Martemática.

Interconexões, composições, experimentações, encontros, acontecimentos.

… Proporção. Simetria. Estética. Volume. Área. Formas. De-formas. Abstração. Matéria. Geometrias. Aritmética...

Aberturas. Potência. Possibilidades. Mundo. Vida...

… entre relações e composições: matemática & arte.

Agradecimentos

Agradecemos ao CNPq pela bolsa produtividade e a Capes-Proex pela bolsa de doutorado, oportunizando o desenvolvimento deste trabalho.

Referências

  • BARROS, M. Meu quintal é maior do que o mundo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.
  • BRITO, M. R. Entre as linhas da educação e da diferença. São Paulo: Livraria da Física, 2015.
  • COLI, J. O que é arte? São Paulo: Brasiliense, 2006.
  • DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
  • DELEUZE, G. O que é um dispositivo. In: DELEUZE, G. (org.). O mistério de Ariana Tradução e prefácio de Edmundo Cordeiro. Lisboa: Veja/Passagens, 1996. p. 83-96.
  • DELEUZE, G. Diferença e repetição 2. ed. Tradução de Roberto Machado e Luiz Orlandi. Rio de Janeiro: Graal, 2006.
  • DELEUZE, G. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 2015.
  • DELEUZE, G.; PARNET, C. Diálogos. São Paulo: Escuta, 1998.
  • FLORES, C. R. Entre Kandinsky, crianças e corpo: Um exercício de uma pedagogia pobre. Zetetiké, Campinas, v. 23, n. 43, p. 237-252, 2015.
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  • 1
    Viemos criando e desenvolvendo oficinas com Arte e Matemática, com crianças no Ensino Fundamental e na formação de professores, no âmbito de vários projetos de pesquisa. Atualmente, por meio da tese de doutorado da primeira autora, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica, da Universidade Federal de Santa Catarina, PPGECT, UFSC, com apoio CAPES, retorna-se às oficinas já realizadas nos outros projetos para um estudo mais analítico. Esse estudo perpassa os objetivos do projeto intitulado “Formas e De-formas no Olhar: Por uma Educação Matemática Fronteiriça e Criadora”, desenvolvido pela segunda autora, na modalidade produtividade, com apoio CNPq.
  • 2
    GECEM é o Grupo de Estudos Contemporâneos e Educação Matemática (www.gecem.ufsc.br), liderado pela Profa. Dra. Cláudia Regina Flores e situado na UFSC. Os vídeos que resultam das pesquisas com oficinas podem ser acessados em: https://gecem.ufsc.br/videos.
  • 3
    Em específico, quando nos referimos a Arte nas oficinas falamos das artes visuais, como a pintura, a escultura e instalações.
  • 4
    Aqui trazemos um alargamento e aprofundamento sobre o modo de pensar as oficinas como estratégia de investigação, que pode também ser encontrado, de modo mais sucinto, no texto “Traços de crianças: investigando a visualidade matemática por meio de oficinas de arte” (KERSCHER; FLORES, 2019KERSCHER, M. M.; FLORES, C. R. Traços de crianças: investigando a visualidade matemática por meio de oficinas de arte. In: XIII Encontro Nacional de Educação Matemática, 2019, Cuiabá. Anais… Cuiabá: SBEM, 2019. p. 1-15.), publicado nos Anais do XIII ENEM. No texto mencionado, exemplificou-se e explorou-se o modo de operar com oficinas e arte em quatro pesquisas, sendo duas de mestrado e duas de iniciação científica.
  • 5
    O termo visualidade, dito de forma rápida, é entendido como a soma de todos os modos como aprendemos a ver histórico e culturalmente.
  • 6
    A visualização está ligada com a ação de ver. É pela visualização que o “olho vê” as práticas visuais e reafirma os discursos que foram sendo sedimentados ao longo do tempo e da cultura, pelas representações.
  • 7
    Cabe dizer que ao nos referirmos às oficinas na formação de professores não estamos inferindo que ensinamos aos professores como desenvolver oficinas com os estudantes. Não é isso. Nosso movimento na formação de professores é, sobretudo, uma postura de problematização, de questionar aquilo que é habitual com matemática, na prática docente, no ensinar e no aprender, de exercitar a Matemática com a Arte, quiçá, reverberando tal postura em seu próprio ethos de seu ofício.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Set 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2022
  • Aceito
    17 Nov 2022
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