Espiritualidade na concepção do paciente oncológico em tratamento antineoplásico

Resumo

Além de ser uma modalidade de enfrentamento, ressignificação do sofrimento e concepção de vida, a espiritualidade é fonte de esperança e confiança para pacientes oncológicos. Com base nessas premissas, objetivou-se desvelar a concepção de espiritualidade de pacientes oncológicos em tratamento antineoplásico a fim de compreender sua influência no enfrentamento da doença. Trata-se de estudo descritivo, de delineamento qualitativo, realizado no ambulatório de quimioterapia de um hospital público brasileiro. A amostra foi composta por 18 pacientes oncológicos submetidos a sessões de quimioterapia, em tratamento ambulatorial, maiores de 18 anos, de ambos os sexos. Para confecção dos resultados, utilizou-se a análise de conteúdo temática, que revelou duas categorias: 1) espiritualidade como fonte de esperança e confiança; e 2) espiritualidade como fonte de ressignificação do sofrimento e de uma renovada concepção de vida.

Espiritualidade; Neoplasias; Pesquisa qualitativa; Religião; Oncologia

Abstract

In addition to being a way of coping with and attributing new meanings to suffering and conceiving life, spirituality is a source of hope and confidence for cancer patients. From these premises, the aim of this study was to present the perception of spirituality of cancer patients undergoing antineoplastic treatment in order to understand its influence on how patients cope with the disease. This is a descriptive and qualitative study carried out in the outpatient chemotherapy clinic of a Brazilian public hospital. The study sample consisted of 18 cancer patients undergoing outpatient chemotherapy, over 18 years of age, of both genders. Thematic content analysis was used, which revealed two thematic categories: 1) spirituality as a source of hope and confidence; and 2) spirituality as a source of new meanings to suffering and of a renewed view of life.

Spirituality; Neoplasms; Qualitative research; Religion; Medical Oncology

Resumen

Además de ser una modalidad de afrontamiento, resignificación del sufrimiento y concepción de la vida, la espiritualidad es una fuente de esperanza y confianza para los pacientes oncológicos. Partiendo de estas premisas, el objetivo de este trabajo fue desvelar la concepción de la espiritualidad de los pacientes con cáncer sometidos a tratamiento antineoplásico para comprender su influencia en el afrontamiento de la enfermedad. Se trata de un estudio descriptivo de diseño cualitativo, realizado en el ambulatorio de quimioterapia de un hospital público brasileño. La muestra se compuso de 18 pacientes oncológicos sometidos a sesiones de quimioterapia, en tratamiento ambulatorio, mayores de 18 años, de ambos sexos. Para confeccionar los resultados, se utilizó el análisis de contenido temático, que reveló dos categorías: 1) la espiritualidad como fuente de esperanza y confianza; y 2) la espiritualidad como fuente de resignificación del sufrimiento y de una concepción renovada de la vida.

Espiritualidad; Neoplasias; Investigación Cualitativa; Religión; Oncología Médica

O câncer é um sério problema de saúde pública, representando a segunda causa de morte na maioria dos países ocidentais. Segundo o Instituto Nacional de Câncer (Inca), a estimativa é de que ocorram 625 mil novos casos no triênio de 2020-2022 ¹ . As doenças oncológicas são entendidas como sinal do fim da vida e proximidade do óbito, de tal forma que os indivíduos diagnosticados alimentam todo tipo de incertezas sobre o futuro e buscam estratégias de enfrentamento da doença que aumentem as chances de sobrevida, como a busca ou a reaproximação da espiritualidade e religiosidade ² , ³ .

Entende-se espiritualidade como a busca pessoal pela compreensão da finitude da vida e seus significados, bem como a consciência, ou a crença, de que existe algo de sagrado no mundo, que transcende os limites dos rituais religiosos. Entre as práticas que caracterizam a religiosidade estão orações e leituras coletivas ou individuais dos livros sagrados ⁴ . Ambas as práticas trazem em si a busca por sentido na existência pelos indivíduos que as praticam, particularmente após o impacto diante do diagnóstico de doenças graves.

Entre os benefícios da espiritualidade estão a melhora da autoestima, sensação de bem-estar, esperança, otimismo e maior suporte emocional e social, além da diminuição do medo, ansiedade, estresse e depressão ³ , ⁵ - ⁸ .

Dessa forma, conclui-se que a espiritualidade tem relevância ao longo do processo do tratamento oncológico, vez que, após o diagnóstico, os pacientes poderão ser submetidos a procedimentos agressivos, como a quimioterapia, que geralmente amedronta a eles e seus familiares em razão dos efeitos colaterais desagradáveis. Desde o início do tratamento, os efeitos indesejados impõem a eles uma desconstrução da autonomia e da autoimagem, que leva, invariavelmente, à queda da expectativa de melhora ⁹ , ¹⁰ .

Nesse contexto, é necessário que a equipe de enfermagem tenha conhecimento da dimensão espiritual no cuidado ao paciente oncológico. Para tanto, deve agir de forma humanizada e manter comunicação eficiente, reconhecendo os momentos de sofrimento e dor, e oferecendo medidas paliativas para esse processo, que pode ser comparado a um martírio ¹¹ , ¹² .

Partindo do pressuposto de que o indivíduo é um todo formado por características físicas, psicológicas, biológicas, sociais e espirituais, buscou-se responder aos seguintes questionamentos: como pacientes em tratamento oncológico vivenciam a espiritualidade? Como a espiritualidade atua no processo de assimilação do diagnóstico e tratamento da doença?

Entre as justificativas deste estudo está a incipiência de pesquisas de caráter qualitativo sobre a experiência dos pacientes, especialmente em tratamento antineoplásico. A partir da identificação de seus benefícios, espera-se que os resultados fomentem a inclusão da espiritualidade entre os recursos no tratamento de pacientes oncológicos.

Método

Trata-se de estudo descritivo e de delineamento qualitativo. A abordagem qualitativa visa compreender o fenômeno de acordo com o ponto de vista do sujeito, ou seja, aplica-se ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões; produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam ¹³ .

O estudo foi realizado em hospital público situado em um município do interior do estado de São Paulo. A população foi composta por 18 pacientes oncológicos submetidos a sessões de quimioterapia, em tratamento ambulatorial, maiores de 18 anos, de ambos os sexos; e considerou-se o critério de saturação dos dados para o encerramento das entrevistas ¹³ . Excluíram-se aqueles com perda ou alteração do nível de consciência, pois o estado deles inviabilizaria a participação.

O estudo recebeu aprovação do comitê de ética em pesquisa envolvendo seres humanos da instituição em que foi desenvolvido. Em conformidade aos preceitos da Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde, todos os participantes formalizaram sua adesão por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido ¹⁴ . Para identificar as falas, utilizou-se a letra P, de participante, acrescida de números arábicos sequenciais.

A coleta de dados foi realizada entre agosto e setembro de 2018 por meio de entrevista semiestruturada, por possibilitar a obtenção de dados tanto de natureza objetiva, quanto subjetiva. Esse foi um momento de troca entre entrevistador e entrevistado, no qual este pôde discorrer sobre o tema sem limitações ¹³ .

As entrevistas tiveram duração média de 25 minutos e ocorreram em ambiente privativo, individualmente, nas dependências da instituição participante. Utilizaram-se três perguntas abertas que abordaram o significado de espiritualidade e sua influência no momento da descoberta da enfermidade e durante o tratamento antineoplásico. Em acréscimo, buscou-se identificar os participantes segundo as variáveis: idade, sexo, estado civil, escolaridade, classificação socioeconômica, vínculo empregatício, início do tratamento antineoplásico, local da neoplasia, e religião/crença.

O exame dos resultados se deu por meio do método da análise de conteúdo temática, em que foi feita a inferência e interpretação dos conteúdos por categorias e similaridades, sistematizada nas seguintes fases:

• Pré-análise: leitura dos conteúdos das entrevistas, preconizando os princípios da pertinência, exaustividade, homogeneidade e representatividade;

• Exploração do material: codificação a partir da identificação de temas correlatos, palavras-chave e organização das informações em categorias temáticas;

• Interpretação: tratamento dos resultados, isto é, das inferências e interpretações propriamente ditas por meio da descrição dos principais achados ¹³ , ¹⁵ .

Resultados e discussão

A média de idade foi de 52 anos e a maioria dos participantes era do sexo feminino (n=14), vivia em união estável (n=12), pertencia à classe socioeconômica baixa (n=10), não possuía vínculo empregatício (n=15) e tinha ensino fundamental completo (n=8). Quanto à religião, destacou-se a cristã, com predomínio de católicos e evangélicos (56%), sendo apenas dois não praticantes (11%). O tempo de tratamento antineoplásico variou entre dois meses e seis anos, com média de dois anos, e os casos mais frequentes foram neoplasias de ovário, ossos, esôfago, intestino, mama, útero, fígado, próstata, leucemia e casos de metástases.

A partir das entrevistas, emergiram duas categorias temáticas: 1) espiritualidade como fonte de esperança e confiança; e 2) espiritualidade como fonte de ressignificação do sofrimento e de uma renovada concepção de vida.

Espiritualidade como fonte de esperança e confiança

Por meio da espiritualidade os pacientes vivenciavam sentimentos de esperança e/ou confiança, que auxiliavam no sucesso do tratamento, seja ao expressarem que o sofrimento não se sobrepõe a fé, seja ao citar exemplos de pessoas que enfrentaram e venceram a doença.

“No momento do diagnóstico eu não pedi nada (...), simplesmente agradeci. Agradeci a Deus antes de ser operada, pois tinha certeza [de] que já estava curada. Deus não abandona ninguém e nunca dá uma cruz que não podemos carregar” (P3).

“Eu me fortaleci muito em Deus, que é todo-poderoso (...). E quando você pensa positivo e tem um propósito, que, no meu caso, era cuidar dos meus filhos e da minha família, não pude deixar a doença me abater (...). Eu acreditei que tudo acabaria dando certo, pois essa missão foi me dada por Deus e essa doença não vai prevalecer” (P6).

“Eu não me deixei abater ou cair porque sabia que muitas pessoas que tiveram essa doença, com confiança em Deus, conseguiram vencer. Acredito que também conseguirei vencer, pois tenho muita confiança em Deus” (P7).

“Sou muito espiritualizado e tenho muita fé! Conversei com Deus e falei: ‘Deus, eu sei que o Senhor não irá me abandonar, e eu te agradeço porque eu tenho certeza (de) que eu sou uma pessoa curada’ (...)” (P16).

A partir dos depoimentos, nota-se que a fé foi utilizada como sustento de esperança para defrontar o diagnóstico da doença. A espiritualidade e a fé oferecem finalidade e designação ao sofrimento e ao momento difícil que o paciente atravessa, além de gerar esperança, altruísmo e idealismo, trazendo confiança no tratamento e melhoria do bem-estar ¹⁶ .

Em determinadas situações, eventos adversos durante a trajetória de vida levam ao desenvolvimento de fatores protetores que podem transformar situações difíceis, fazendo que sejam concebidas como algo suportável. A espiritualidade, a partir da fé, é um ponto de resiliência do ciclo vital que leva ao cultivo da esperança e desenvolvimento da força para lutar pela vida diante do diagnóstico da doença.

Nos depoimentos coletados, a espiritualidade foi considerada de modo positivo e em conjunto com as crenças de cada participante, pois trouxe-lhes a convicção de que, no final da trajetória, todas as coisas terminariam bem. Observou-se também que, por meio da espiritualidade, foi possível obter uma visão otimista das condições. Assim, mesmo conhecendo e realizando as intervenções médicas necessárias, não desanimaram e acreditaram no poder da cura por meio das experiências registradas por terceiros.

A espiritualidade é inerente a muitas pessoas, atuando como uma forma de completar lacunas, oferecendo propósito à vida. No caso dos pacientes oncológicos, ela pode atenuar a dor e os efeitos colaterais indesejáveis, além de contribuir para uma melhor aceitação do diagnóstico ¹⁷ , ¹⁸ .

De fato, a espiritualidade pode ser vista como um mecanismo de defesa na oncologia, fazendo-se presente em três importantes momentos: na descoberta do adoecimento; durante o tratamento; e na impossibilidade de cura. O momento da descoberta do câncer traz consigo a incerteza, o medo do desconhecido e, para muitos, a iminência da morte ¹⁹ .

Em cada etapa do tratamento, os receios do que essa doença pode causar fazem que muitos indivíduos busquem por algo positivo, que reafirme o sentido da vida e lhes ofereça instrumentos de resiliência para a situação. Portanto, é justamente nesse momento que muitos encontram a espiritualidade como recurso de restabelecimento para sua saúde física e psicológica, assim como de bem-estar espiritual ²⁰ .

Ressignificando o sofrimento e a concepção de vida a partir da espiritualidade

Um dos traços comuns observados nos depoimentos dos participantes da pesquisa é a comparação de seu sofrimento ao martírio de Cristo. Tal como o messias, eles vislumbram a vitória de sua “ressureição”, isto é, se imaginam capazes de superar as dificuldades e alcançar a cura.

“A única coisa que me ajudou muito foi acreditar em Deus (...). O meu sofrimento não seria menor do que o sofrimento do outro ou de Jesus” (P1).

“Eu tenho Jesus como meu exemplo, que sofreu e passou humilhação, mas veio preparar a gente para uma coisa melhor em outro lugar (...). Então, por acreditar nisso, e ter Jesus como exemplo, e ver todo o seu sofrimento, isso me trouxe muita paz” (P4).

“Eu confio nesse Deus que está acima de tudo. Ele pode tudo (...). Eu confio e entrego a minha doença a Ele, e nada irá me derrotar. Meu sofrimento sumirá” (P13).

“Nesse mundo tereis tribulações, diz a Bíblia. Sofrimentos fazem parte da vida. Mas a vitória vem com o sofrimento, como Cristo que passou pela cruz e ressuscitou vencendo a morte” (P11).

A espiritualidade e a religiosidade destacam-se como fatores culturais importantes, pois dão sentido à vida e servem como mecanismo de enfrentamento especialmente útil em caso de doenças crônicas, como o câncer ²¹ - ²³ . A impossibilidade de pressagiar momentos incontroláveis causa sofrimento, no entanto as estratégias de enfrentamento são valorizadas em determinada situação estressora, atuando de maneira protetiva e renovadora da vida ³ , ⁹ .

Para enfrentar as sessões de quimioterapia, pacientes que passam pelo tratamento antineoplásico buscam forças na fé e na religião, bem como intervenções dos irmãos de fé, por meio de orações, por exemplo. Eles fazem uma conjugação entre religião, fé e espiritualidade. Com base nessa tríplice convicção, e por meio de rezas e crenças, de alguma maneira sentem-se protegidos pelas boas intenções advindas de grupos, colegas, familiares e comunidades religiosas.

Há uma crença, ou sensação, muito forte e convicta de que as orações, por serem atividade de origem espiritual, estabelecem contato com o transcendente. Desse modo, elas são “recebidas” por um ser superior, que “envia de volta” ânimo e disposição para enfrentar o tratamento do câncer ¹⁶ .

A fé pode ser vista de forma antropológica e/ou religiosa: no primeiro caso relaciona-se aos valores humanos, à atribuição de significado aos acontecimentos e relações; no segundo, quando aliada à fé antropológica, traz consigo um conjunto de crenças e dogmas que orientam sua prática, imanentemente atrelada a algum tipo de religião ⁹ . A união dos dois tipos de fé possibilita a ressignificação do sofrimento por meio de parábolas de origem religiosa e histórias bíblicas ou pautadas na fé.

A espiritualidade, ao contrário do conceito de religião, tem uma definição mais ampla, podendo ser classificada como sentimento íntimo capaz instigar as pessoas lançar um olhar mais profundo para a comunidade a que pertencem, bem como para si próprias. Por meio dela, abre-se a consciência para que os sentimentos de culpa, raiva, tristeza e desesperança sejam encarados de maneira mais sutil, como se a realidade da doença fosse desafiada por algo além do que se pode ver e sentir concretamente ²⁴ . Portanto, como auxílio e refúgio às dificuldades da vida, ultrapassa todos os sentidos palpáveis e não abstratos, que muitos consideram um sentimento inerente à humanidade.

Considerações finais

Os depoimentos dos participantes revelaram que a espiritualidade é uma fonte de esperança e confiança, particularmente para a cura – mas não somente para ela, pois contempla também o suporte necessário para enfrentar as adversidades do tratamento. Revelou-se também que a espiritualidade oferece ao fiel uma fonte de apoio, ressignificação de seu sofrimento e concepção de vida, uma vez que ele assimila seu sofrimento e sua “vitória” à de Cristo.

Em suma, a espiritualidade configurou-se como importante modalidade de enfrentamento da doença oncológica, em particular no que concerne ao tratamento, etapa crucial em que os pacientes ficam extremamente debilitados, física e psicologicamente. Assim, este estudo traz contribuições para subsidiar e aprimorar as práticas assistenciais em oncologia, demonstrando que, apesar da espiritualidade não estar amplamente inserida nos serviços de saúde, seus benefícios à prática clínica são reais e efetivos.

O estudo apresenta limitações que não permitem generalizar as conclusões, como ter comtemplado somente pacientes com possibilidades terapêuticas, o que, embora intencional, impossibilitou a percepção da espiritualidade pessoas sem chance de cura – grupo que pode ser entrevistado em futuras pesquisas.

Outra limitação refere-se ao fato de a grande maioria dos participantes serem cristãos, o que pode ter influenciado a maneira como vivenciam a espiritualidade, de forma possivelmente diferente de outras religiões. Por fim, a divergência entre o tempo de tratamento e os tipos de câncer deve ser considerada nas próximas pesquisas.

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• Aprovação CEP-Unip 2.821.689

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  18 Mar 2022
• Data do Fascículo
  Oct-Dec 2021

Histórico

• Recebido
  8 Jul 2020
• Revisado
  14 Out 2021
• Aceito
  26 Out 2021