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O que (não) é Educação Estética?

RESUMO

O artigo, de caráter ensaístico-bibliográfico, busca refletir sobre os usos e sentidos do termo Educação Estética, abordando, primeiramente, o conceito de estética a partir dos ensaios O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária, de Mikhail Bakhtin e Mal-estar na estética, de Jacques Rancière, para, então, mobilizar, desde uma perspectiva latino-americana, suas relações com o campo da educação. O texto se constitui enquanto exercício teórico-metodológico para se pensar os rumos do que se concebe hoje por Educação Estética sob ângulos e prismas ainda pouco investigados na literatura vigente sobre o tema.

PALAVRAS-CHAVE:
Estética; Educação; Bakhtin; Rancière

ABSTRACT

The article, of essayistic-bibliographic character, seeks to reflect on the uses, powers and meanings of the term Aesthetic Education in scientific research, starting, firstly, from approaches on the concept of aesthetics from the texts The Problem of Content, Material and Form in Literary Creation, by Mikhail Bakhtin and Malaise dans l’ésthetique, by Jacques Rancière, to then mobilize, from a Latin American perspective, its relations with the field of education in dialogue with Latin American authors. The text is constituted as a theoretical-methodological exercise to think the Aesthetic Education from angles and prisms still little investigated in the current literature on the subject.

KEYWORDS:
Aesthetics; Education; Bakhtin; Rancière

Uma (não) introdução

O presente texto, de caráter ensaístico-bibliográfico, nasce de uma inquietação nossa a respeito do termo Educação Estética, utilizado em diferentes áreas de pesquisas para designar práticas, procedimentos e teorias em disputa. O objetivo deste artigo é refletir sobre os usos e sentidos do termo Educação Estética, partindo de abordagens sobre o conceito de estética em Bakhtin e Rancière, para, então, mobilizar, desde uma perspectiva latino-americana, suas relações com o campo da educação.

Para cumprir o presente objetivo, propomos, na primeira seção, um diálogo entre dois textos de dois autores situados em cronotopos distintos entre si, tanto no que se refere à sua época e contexto geográfico/social de produção intelectual, quanto pelo viés da abordagem sobre estética que utilizam em seus escritos. O primeiro deles é o ensaio “O problema do material, do conteúdo e da forma na criação literária”, de Mikhail Bakhtin (1895-1975), escrito em 1924 e publicado no volume Questões de literatura e de estética: A teoria do romance (conjunto de ensaios, escrito entre 1924 e 1941, organizado pelo autor em Moscou, e publicado somente em 1975, após sua morte; publicado pela primeira vez no Brasil em 1988) (Bakhtin, 2014). O segundo é a obra Mal-estar na estética, de Jacques Rancière (1940-), publicada na França em 2004 e recentemente traduzida para o português/Brasil (Rancière, 2023). Nesta seção, colocamos as discussões de Bakhtin e Rancière sobre estética em contato, a partir da discussão de alguns fragmentos do material teórico estudado, no intuito de chegar a um “consenso”, obviamente nunca acabado ou esgotado.

Em seguida, na seção 2, ao aproximar a estética do campo educacional, buscamos pensar o termo Educação Estética desde suas demarcações e pertencimentos ditos tradicionais, até uma tentativa de apontar possibilidades para uma expansão mais descentrada do termo, para que se possa pensá-lo enquanto dispositivo teórico-metodológico conectado a diferentes esferas do saber, da linguagem e da vida. Esta segunda parte é dedicada, então, especificamente ao desdobramento das contribuições dos autores (Bakhtin e Rancière), aliadas a outros estudos sobre o tema, especialmente os latino-americanos, de modo que seja possível ampliar o debate sobre a questão central desse trabalho, sem, no entanto, respondê-la de forma unicista ou categórica.

A discussão sobre estética, empreendida por Bakhtin na Rússia do século XX, toma como princípio as relações dialógicas com conceitos como ética, valor, axiologia e exotopia, entre outros. Toda a sua obra, vinculada ao que denominamos Círculo (Bakhtin e o Círculo), passeia por uma dialogicidade intrínseca à própria produção dos textos, fortemente enraizada na relação entre os autores do Círculo, seus objetivos e buscas em um mundo sedento por mudança e revolução, característico de um período que os historiadores chamam de modernidade. Importa ressaltar que, embora a discussão bakhtiniana não impulsione seus esforços intelectuais diretamente ao campo de uma Educação Estética, os textos são interessados na vida social, na interação entre sujeitos e nas dinâmicas de linguagem existentes em diversos espaços e tempos, inclusive aqueles de caráter educacional, nos quais todos esses fenômenos se tornam, mais do que presentes, matizes para espelhar o funcionamento de modos de viver, ser e agir em comunidade.

As contribuições de Rancière aos estudos da estética tem ganhado algum espaço na contemporaneidade. Atravessando uma época (a nossa) ainda inominável do ponto de vista histórico, o autor tem um legítimo interesse em discutir, a partir de um repertório já considerável, o caráter estético da vida, suas relações com a política, a arte, e outros domínios culturais de sociabilidade. Entre seus textos, é possível notar uma crítica a determinadas discussões sobre o que pode ou não se configurar enquanto uma Educação Estética, esta abordada a partir da sua diferença quanto ao conceito de experiência estética, como veremos mais adiante. Embora, em suas reflexões, Rancière adentre o campo educativo, a centralidade de seu trabalho advém do e para o campo da filosofia, o que, de modo algum, minimiza sua contribuição para o enfrentamento das especificidades do que aqui estamos perseguindo: o termo Educação Estética.

O título desse artigo merece um olhar atento por parte do leitor: O que (não) é Educação Estética? O não, entre parênteses, aliado à interrogação, é ao mesmo tempo proposital, já que pode funcionar como provocação para uma leitura acadêmica questionadora e reflexiva; e, também, sinalizador de uma dúvida genuína de pesquisa sobre o tema investigado, calcada nas incertezas que movem esse texto e fazem surgir um caleidoscópio de possibilidades. Talvez o próprio título possa justificar as escolhas teóricas e os recortes metodológicos desenvolvidos para a construção deste trabalho, que assume, no desenvolvimento da escrita, o risco da ausência de diálogo com frentes teóricas esperadas e, até mesmo, com uma certa tradição acadêmica sobre Educação Estética (que prefere afirmar ao invés de negar ou interrogar, e por isso não nos parece adequada nesse momento).

1 O que Bakhtin e Rancière (não) nos dizem sobre estética?

Para evitar mal-entendidos, daremos à técnica na arte uma definição bastante precisa: denominamos elemento técnico na arte tudo aquilo que é absolutamente indispensável à criação da obra de arte na sua determinação físico-matemática ou linguística - a isso relaciona-se também todo o conjunto da obra de arte acabada, tomada como coisa, mas que não entra diretamente no objeto estético, que não é um componente do todo artístico; os elementos técnicos são os fatores da impressão artística, e não os constituintes esteticamente significativos do conteúdo dessa impressão, ou seja, do objeto estético (Bakhtin, 2014BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (1924). In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Nazário e Homero Freitas de Andrade. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p. 13-70., p. 49).

A estética atravessa o pensamento bakhtiniano1 1 Os estudos bakhtinianos ou o pensamento bakhtiniano é o conjunto de formulações teóricas advindas do chamado Círculo de Bakhtin. Embora existam diferentes atribuições ao termo por parte de alguns pesquisadores, não faremos uma explanação explicativa e histórica, mas utilizamos “Bakhtin e o Círculo” para fazer referência ao conjunto da obra que traz ideias produzidas por intelectuais russos, desde a segunda década do século XX, a saber “Mikhail Bakhtin (1895-1975); Valentin N. Volóchinov (1895-1936); Pável N. Medviédev (1891-1938); Matvei I. Kagan (1889-1937); Lev V. Pumpiánski (1891-1940); Ivan I. Sollertínski (1902-1944); M. Iúdina (1899-1970); K. Váguinov (1899-1934); B.Zubákin (1894-1937)” (Brait, 2012). e todo o projeto do autor em sua busca por uma teoria do romance. A maior prova desse atravessamento são as pontuações (que, inclusive, mereceriam um estudo mais aprofundado) teóricas sobre uma estética literária em diferentes textos, desde a juventude até os ensaios considerados mais maduros. A presença de uma preocupação com a estética, na obra de Bakhtin e seus pares, parece, então, possibilitar o delineamento de alguns aspectos que norteiam os usos e os sentidos de estética para o grupo de intelectuais russos.

No texto “O problema do conteúdo, do material e da forma”, de 1924, Bakhtin nos dá algumas dicas sobre uma possível conceituação de estética, a partir, mas não somente, do campo literário. Unindo a estética à arte, o autor defende uma visão que condiciona (orienta) a estética sobre a arte: “o que é estético se realiza plenamente só na arte” (Bakhtin, 2014, p. 26). Além disso, segundo o autor, não há como dissociar uma teorização sobre estética dos estudos filosóficos, o que delimita, de algum modo, o trabalho de analistas interessados em uma expansão do conceito e suas vinculações postuladas pela tradição histórico-acadêmica.

Realmente, o estético, de certo modo, encontra-se na própria obra de arte, o filósofo não o inventa, mas para compreender cientificamente a sua singularidade, a sua relação com o ético e o cognitivo, seu lugar no todo da cultura humana e, enfim, os limites de sua aplicação, necessita-se da filosofia sistemática com os seus métodos (Bakhtin, 2014BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (1924). In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Nazário e Homero Freitas de Andrade. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p. 13-70., p. 16).

Essa introdução de seu leitor ao campo da estética funciona, aqui, como atestado para uma certa propriedade da estética por parte da arte e da filosofia no campo intelectual. Desse modo, para que se compreenda o funcionamento e a mobilização da estética na vida, no mundo, na cultura, é preciso, segundo o autor, dominar alguns princípios artísticos e filosóficos que delimitam o que poderia se configurar enquanto um conceito de estética. É importante lembrar, no entanto, que atualmente, com o alargamento de termos e seus usos nas ciências humanas, sociais e da linguagem, essa acepção parece destoar dos movimentos de compreensão teórica que vêm sendo construídos na academia, pelos quais se entende que a tradição deva estar associada a perspectivas descentradas de um saber hegemônico e dominante. A autorização, instaurada historicamente, portanto, concedida ao mundo da arte ou da filosofia para que possa/pudesse definir (até aqui) o que é ou não estética é uma das primeiras questões que gostaríamos de colocar em suspenso nesse trabalho. Bakhtin (2014BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (1924). In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Nazário e Homero Freitas de Andrade. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p. 13-70., p. 16) nos diz que:

O conceito de estético não pode ser extraído da obra de arte pela via intuitiva ou empírica: ele será ingênuo, subjetivo e instável; para se definir de forma segura e precisa esse conceito, há necessidade de uma definição recíproca com os outros domínios, na unidade da cultura humana.

O que poderia parecer, por uma primeira e rápida olhadela, é que o autor se contradiz nesses dois fragmentos escolhidos para essa discussão. Há de se considerar, no entanto, que, em ambos, o lugar da cultura humana é marcado com toda a sua diversidade e é pela compreensão desse lugar que se mobiliza o que poderia se configurar como o conjunto de marcadores que o autor utiliza para enfrentar teoricamente o conceito de estética. Sem defini-lo categoricamente (o que é uma marca considerável dos trabalhos do Círculo), Bakhtin nos oferece pistas para entender que o conceito só se torna possível quando discutido do ponto de vista da interação e do diálogo, ou seja, quando se realiza uma análise estética. A abordagem do tema contemplação é, nesse aspecto, um caso particular que tomamos como exemplo, e a ela o autor denomina de conteúdo da atividade estética, orientado sobre a obra - o objeto estético (Bakhtin, 2014, p. 22).

Como metodologia para uma análise estética, Bakhtin sugere (mas não impõe) três passos/fases, que se complementam no sentido de buscar uma ideia de composição de uma obra. Embora o autor esteja mais direcionado a compreender o funcionamento da estética no universo da literatura, sua abordagem pode ser aplicada a outros campos, já que um dos interesses dos pensadores do Círculo era justamente a ampliação e expansão do que se concebia, à época de seus escritos, por cultura e arte.

A primeira tarefa para a realização de uma análise estética seria, então, a compreensão do objeto estético em sua singularidade, o que implica vê-lo por sua estrutura puramente artística. À visão do “todo” da obra em sua exclusividade/particularidade, o autor denomina objeto estético arquitetônico. A partir dessa sugestão, é possível pensar diferentes esferas para as quais a empregabilidade dessa sugestão se efetiva.

Algumas perguntas se tornam, a nosso ver, urgentes enquanto possibilidade de movimento dessa discussão para diferentes campos: onde está (existe) o estético no mundo? É necessário que haja, então, uma obra, como materialidade, para que se realize uma experiência estética? Quem diz o que é ou não passível de uma análise estética na sociedade contemporânea? Como proceder uma análise a partir da mobilização do que denominamos, hoje, obra, ou melhor, como reconhecer o estético em uma experiência na qual a obra pode não ser artística ou literária?

Voltemos às sugestões de Bakhtin.

Um segundo passo seria abordar a obra de modo puramente cognitivo, sua realidade original, independente do objeto estético. “(...) o esteta deve tornar-se um geômetra, um físico, um anatomista, um fisiólogo, um linguista, como também o artista, até um certo ponto, é obrigado a sê-lo” (Bakhtin, 2014BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (1924). In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Nazário e Homero Freitas de Andrade. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p. 13-70., p. 22). Tal perspectiva concebe uma compreensão voltada ao fenômeno da língua, vinculada somente à cientificidade do material puramente linguístico. Como etapa de análise, essa sugestão poderia se sustentar, talvez, na necessária delimitação ou recorte de um objeto que, nesse caso, seria a própria obra, ao tornar-se material de trabalho do analista ou, nas palavras de Bakhtin, do esteta.

Um terceiro momento estaria ligado à compreensão exterior da obra, que funcionaria como aparato técnico da realização estética (Bakhtin, 2014BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (1924). In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Nazário e Homero Freitas de Andrade. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p. 13-70., p. 22). Essa terceira tarefa pressupõe que já estejam conhecidos e estudados, nesse momento, tanto o objeto estético em todas as suas especificidades quanto a obra material, por um viés que considere sua realidade extra estética. Essa fase de análise não pode desconsiderar um dos princípios fundantes do pensamento bakhtiniano: o diálogo.

E é justamente a ideia de diálogo que sustenta o convite a Rancière para essa discussão. Em sua obra Mal-estar na estética, publicada em 2004 na França e traduzida para o português em 2023 (Rancière, 2023), o autor provoca seus leitores, tanto aqueles mais acostumados com discussões sobre estética, advindos especialmente dos campos da filosofia e das artes, quanto aqueles iniciantes ou estudantes, que chegam ao seu texto sem concepções prévias, a pensar sobre um conceito complexo e inacabado. Nesse trabalho, Rancière discute, de forma bastante específica, as relações entre arte, estética e política, e se nega, de algum modo a situar o conceito de estética em uma temporalidade recortada, ou seja, nem modernismo, nem pós-modernidade, nem qualquer outra nomenclatura pode carregar uma concepção de estética delimitada ou fechada em algum tempo-espaço específico.

No prefácio à edição brasileira da obra, escrito em 2020, Rancière propõe que seja recolocado em cena o “horizonte de emancipação” que o termo estética carrega (Rancière, 2023, p. 14), especialmente em tempos em que é preciso demarcar campos políticos e reforçar a democracia. Ao apontar certa má reputação da estética como conceito, o autor percorre um caminho de enfrentamento teórico no qual a dúvida se faz intrínseca aos limites e possibilidades da construção científica sobre o tema: “Se ‘estética’ é o nome de uma confusão, essa ‘confusão’ é de fato o que nos permite identificar os objetos, os modos de experiência e as formas de pensamento da arte que pretendemos isolar para denunciá-la” (Rancière, 2023, p. 19-20).

Estética e política estão, na abordagem do autor, entrelaçadas em um nó que une práticas e discursos, desde uma tradição que coloca as belas-artes em um lugar de privilégio com relação a manifestações populares e comunitárias, até a compreensão dos modos como a afirmação (ou, a nosso ver, negação) da legitimidade da experiência estética funcionam no maquinário de poderes na atualidade.

Um primeiro e importante alerta que o autor nos faz é o fato de que a estética precisa ser vista pela ótica das relações: uma abordagem relacional que rejeita qualquer pretensão de autossuficiência da arte e também os sonhos de que a própria vida possa ser transformada pela arte, ao mesmo tempo em que acredita na construção de teias subjetivas que possam reconfigurar de forma material e simbólica o território do comum. Desse modo, a aceitação dos deslocamentos e desespecificações dos instrumentos, materiais ou dispositivos das diferentes artes em prol da ocupação de lugares nos quais corpos, imagens, espaços e tempos possam convergir como ideia artística ultrapassa, por exemplo, a própria expressão “arte contemporânea” que, segundo Rancière (2023RANCIÈRE, Jacques. Mal-estar na estética. Tradução de Gustavo Chataignier e Pedro Hussak. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/Editora PUC-Rio, 2023., p. 36) não significa “de modo algum uma tendência comum que caracterizaria as diferentes artes hoje”. A arte não seria, assim, um conceito comum que poderia unificar as diferentes artes, mas poderia ser um dispositivo para torná-las visíveis.

Nesse ponto, caberia à política2 2 É importante frisar que não se trata de uma política “partidária”, e sim de política como um conceito amplo que, nos atravessamentos de sua própria complexidade, estabelece vínculos com o plano do possível e do comum. reconfigurar a partilha do sensível (experiência estética) que poderia definir o comum de uma comunidade, tornando visível o que não era. Rancière (2023RANCIÈRE, Jacques. Mal-estar na estética. Tradução de Gustavo Chataignier e Pedro Hussak. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/Editora PUC-Rio, 2023., p. 38) denomina esse movimento como um “trabalho de criação do dissenso”. Esse trabalho seria responsável pela constituição de uma “estética da política”, resultando, assim, na suspensão das coordenadas que definem ou não uma experiência sensorial e possibilitando que ela seja possível em diferentes esferas, artísticas ou não. Isso porque essa assinatura (do que pode ser chamado ou não de arte) depende muito mais das maneiras e acordos que envolvem e singularizam uma comunidade do que do caráter próprio da arte, mais ligado ao universo da tradição e, por consequência, do desejo histórico e social de elitização, com visíveis demarcações e restrições de acesso: “Arte e política estão, assim, ligadas por debaixo de si mesmas como formas de presença de corpos singulares em um espaço e um tempo específicos” (Rancière, 2023, p. 39).

Bakhtin e Rancière, embora não consagrados na literatura vigente como intelectuais-referência no campo da estética, deixam importantes reflexões para que o arsenal conceitual sobre a estética se amplie, alcançando horizontes ainda inexplorados na ciência sobre o tema. Suas contribuições, conectadas nesse texto pela ideia de diálogo, surtem efeito especialmente quando, mais do que afirmar, se propõem a entrelaçar aspectos e faces de um conceito para o qual não há acordo, nem mesmo entre os estudiosos que o investigaram de forma mais aprofundada. Avancemos, então, à outra conexão, não menos instigante: da estética ao campo da educação.

2 Educação Estética: o que (não) precisamos definir?

Falar das relações entre estética e educação não é o mesmo que falar de Educação Estética, por isso, essa tarefa é sempre de difícil afiliação e construção teórica. É preciso considerar que, historicamente, os estudos na área se distribuem, ainda majoritariamente, entre aqueles mais voltados a uma educação em arte e também por uma perspectiva situada ao Norte (os autores mais citados e utilizados representam, em boa parte, concepções epistemológicas europeias). Há, ainda, um esforço (de certo ponto de vista, legítimo) do campo da filosofia em manter a estética sob seu domínio, ou seja, em determinadas frentes, apenas filósofos são convocados e aprovados a pensar a estética em sua relação com a construção científica.

Para esse texto, que se pretende muito mais como uma negação de limites ou recortes do que como tessitura de uma trama conceitual, escolhemos buscar em autores latino-americanos sentidos possíveis para que se estabeleçam perguntas que possam mobilizar o termo Educação Estética desde uma perspectiva assumidamente expandida e, às vezes, em contraposição a algumas abordagens mais direcionadas à centralização de ideias e saberes sobre o tema. Comecemos por apresentar a ideia de estética de re-existência, discutida por Albán Achinte (2014)ALBÁN ACHINTE, Adolfo. Artistas indígenas y afrocolombianos: entre las memorias y las cosmovisiones. Estéticas de la re-existencia. In: PALERMO, Z.; MELLADO, J.; ALBÁN ACHINTE, A. Arte y estética em la encrucijada descolonial. Buenos Aires: Del Signo, 2014. p. 53 -73.. Para o autor:

As estéticas de reexistência são as do descentramento, as dos pontos de fuga que permitem visualizar cenários de vida diferentes, divergentes, disruptivos, em contracorrente às narrativas de homogeneização cultural, simbólica, econômica, sociopolítica, que se situam nas fronteiras onde é difícil para as instituições cooptarem as autonomias que são construídas e naqueles espaços liminares onde o poder se fratura e revela as fissuras da sua própria impossibilidade de se realizar plenamente (Albán Achinte, 2014, p. 117; tradução do autor)3 3 Trecho original: “Las estéticas de re-existencias son las del descentramiento, las de los puntos de fuga que permiten visualizar escenarios de vida distintos, divergentes, disruptivos, en contracorriente a las narrativas de la homogenización cultural, simbólica, económica, socio-política, las que se ubican en las fronteras donde a la institucionalidad le cuesta cooptar las autonomías que se construyen y en esos espacios liminares em que elpoder se fractura y deja ver las fisuras de su propia imposibilidad de realizarse plenamente”(Albán Achinte, 2014, p. 117). .

O autor atribui às estéticas de re-existências a missão de repensar a sociedade, de modo que se possibilite a existência da diversidade e, através dela, outras concepções para que as noções de beleza e criatividade insurjam. Esse movimento implica dar lugar e visibilidade, no campo da educação, a narrativas sobre o cotidiano, o que se constituiria enquanto mecanismo pedagógico para o desenvolvimento da construção de novas simbologias e pluralidades na contemporaneidade.

Nessa direção, ao pensar uma historiografia educativa da estética e das sensibilidades na América Latina, o argentino Pablo Pineau (2018PINEAU, Pablo. Historiografía educativa sobre estéticas y sensibilidades en América Latina: un balance (que se sabe) incompleto. Revista Brasileira de História da Educação, v. 18, e023, 2018., p. 10) aponta, por exemplo, para uma estreita relação entre uma estética escolar e a cultura escolar:

A estética é entendida como um registro que permeia toda a vida escolar, não se limitando aos espaços específicos que lhe foram propositalmente destinados. Pode ser intencional (‘ensino das artes’, ‘preparação e apresentação’, ‘educação do corpo’), ou presente nas demais dimensões do ato escolar (cultura material, proposta curricular, formação de professores, etc.) (Pineau, 2018PINEAU, Pablo. Historiografía educativa sobre estéticas y sensibilidades en América Latina: un balance (que se sabe) incompleto. Revista Brasileira de História da Educação, v. 18, e023, 2018., p. 10; tradução do autor)4 4 Trecho original: “La estética es entendida como un registro que impregna la totalidad de la vida escolar no limitada a los espacios específicos que a propósito le fueron dedicados. Puede ser intencional (‘enseñanza de las artes’, ‘aseo y presentación’, ‘educación del cuerpo’), o presentarse en el resto de las dimensiones de lacto escolar (cultura material, propuesta curricular, formación docente etc.)” (Pineau, 2018, p. 10). .

A cultura escolar tem, desse modo, para esse autor, uma estética própria que:

(...) implica uma relação de produção de sentido entre determinados estímulos sensoriais e um sujeito - individual ou coletivo - que produz uma interpretação particular deles - ‘sensibilidade’ - que envolve necessariamente o seu presente, o seu passado e as suas projeções sobre o futuro (Pineau, 2018PINEAU, Pablo. Historiografía educativa sobre estéticas y sensibilidades en América Latina: un balance (que se sabe) incompleto. Revista Brasileira de História da Educação, v. 18, e023, 2018., p. 11; tradução do autor)5 5 Trecho original: “(...) implica una relación de producción de significados entre determinados estímulos sensoriales y un sujeto - individual o colectivo - que produce uma interpretación particular de ellos - la ‘sensibilidad’ - que involucra necesariamente su presente, su pasado y sus proyecciones sobre el futuro (Pineau, 2018, p. 11). .

Como vemos, a partir das afirmações de Pineau, é possível situar a Educação Estética em um lugar que não nega definitivamente o artístico, mas, em algum aspecto, independe dele para existir. Defender o termo Educação Estética por uma ótica, seja na escola ou em outros contextos educacionais, que ultrapasse a disciplina de artes seria, nesse sentido, um avanço considerável quando ainda há professores que acreditam que a experiência estética só se torna possível em saídas de campo, visitas a museus, conservatórios e teatros, ou somente quando a arte adentra os espaços educacionais. Entender o caráter estético da vida educacional é, portanto, nesse viés de análise e discussão, dar ao conceito uma independência no que se refere ao atrelamento da Educação Estética ao que chamamos de experiência artística.

Retomando as contribuições de Rancière (2023RANCIÈRE, Jacques. Mal-estar na estética. Tradução de Gustavo Chataignier e Pedro Hussak. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/Editora PUC-Rio, 2023., p. 39), para quem “não há sempre arte, mesmo que haja sempre poesia, pintura, escultura, música, teatro ou dança”, podemos refletir sobre a presença da estética na educação em contextos outros que não os artísticos. Será que a educação pode se configurar, por si só, uma experiência estética? Ou, talvez, possamos lançar uma pergunta às avessas: o ato educacional contém, na sua própria realização, elementos estéticos? Essas questões se apresentam como potência para o levante de um outro ponto que merece ser discutido: a quem (não) pertence a discussão sobre estética na educação?

Entre os estudos consultados para a elaboração do presente artigo, é notável e considerável o fato de que as pessoas interessadas na discussão desse tema possuem formação e expertise, em sua maioria, na área de artes6 6 A título de exemplificação, sugerimos a leitura dos textos de Santos (2019) e Moraes (2018). . Há, de um modo bastante volumoso em termos quantitativos, uma série de textos interessados em afirmar seu pertencimento a um constructo teórico-metodológico ou a um grupo específico, especialmente quando se fala de uma produção intelectual latino-americana.

Essa constatação nos leva a certa preocupação com o risco de que uma insurgência e uma insistência das reflexões sobre Educação Estética permaneçam apenas em campos já ditos ou marcados como tradicionais, como é o caso da fácil e corriqueira vinculação da estética ao universo artístico (e, também, filosófico). Concordamos com Trezzi (2011TREZZI, Clóvis. Schiller e Freire: um olhar sobre a educação estética. Revista Eletrônica de Ciências da Educação (RECE), v. 10, n. 1, 2011. Disponível em: https://www.periodicosibepes.org.br/index.php/reped/article/view/878. Acesso: 08 set 2023.
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, p. 69), para quem “a estética não se prende à dimensão do belo, muito menos à arte, embora tenha estreita relação com esta”. Há, no entanto, um caminho teórico e metodológico a ser percorrido para que esse entendimento reverbere cientificamente, já que historicamente essa é uma relação que se encontra estabelecida. Importa ressaltar que arte, filosofia e Educação Estética podem ocupar, obviamente, os mesmos espaços de saber, sejam eles teóricos ou práticos. Restringir ou reduzir a discussão somente a vinculações determinantes é, aí sim, um exercício que nos parece deslocado das demandas atuais para o tema.

É necessário pensar, também, nas vozes que, de alguma maneira, se sobressaem quando o assunto pautado é a Educação Estética. Embora uma expansão da compreensão conceitual sobre o tema seja urgente, principalmente por conta da ideia de descentralização do conhecimento que marca os tempos atuais, nota-se a ausência de uma discussão local/regional em detrimento do uso de autores, tidos como centrais, que ainda dão o tom, mesmo quando as vozes de um outro eixo geográfico epistemológico começam a surgir e buscar por espaços de dialogicidade.

Na construção do presente texto, as recorrências iniciais a Bakhtin e Rancière, e suas concepções sobre estética, buscam o diálogo, em alguma medida ainda incipiente, com uma elaboração teórica latino-americana que pense uma Educação Estética pelas lentes das suas próprias lutas e temas. É aí que, talvez, a insistência desse texto por uma vinculação da Educação Estética ao universo político encontre espaço para se efetivar de forma mais objetiva. Retomando as contribuições de Bakhtin, nos parece urgente pensar nas relações e gentes (política e posicionamento) envolvidas nessa discussão:

(...) tudo se reconhece, mas tudo está longe de ser identificado por um conceito adequado. Se este reconhecimento que penetra em tudo não existisse, o objeto estético, ou seja, o que é artisticamente criado e percebido, fugiria a todas as ligações da experiência, quer seja teórica, quer seja prática. (...) Do mesmo modo, a criação e a contemplação artísticas, privadas de qualquer participação na possível unidade do conhecimento, não atravessadas por ela nem reconhecidas do interior, transformar-se-iam simplesmente num estado isolado de inconsciência, de cuja existência pode-se ficar sabendo somente post factum, pelo tempo que flui (Bakhtin, 2014BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (1924). In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Nazário e Homero Freitas de Andrade. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p. 13-70., p. 40).

O caráter estético da experiência educacional precisa ser, então, mais do que incentivado, reconhecido, tanto pelos teóricos quanto pelas comunidades nas quais a presença da estética é, já, inegável e totalmente visível. O que dizer, por exemplo, do modus operandi das diferentes salas de aula, em contextos e fases distintas, escolares ou não, muitas vezes invisibilizadas ou ignoradas pelas rotinas, métodos, cumprimentos de planos, cronogramas e avaliações? O que pensar quando se pede aos docentes e discentes que deem conta de toda materialidade possível que categorize a seleção e aplicação de conteúdos em detrimento da escuta ou da contemplação no campo educacional?

Silva (2021SILVA, Luiz Maurício Azevedo da. Uma invisibilidade performática: pedagogia estética e materialismo literário em bell hooks. Nau Literária, v. 18, n. 1, 2022. DOI: 10.22456/1981-4526.126956. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/126956. Acesso em: 8 set. 2023.
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, p. 9) nos instiga a refletir sobre a possibilidade de uma pedagogia estética “que passa por um acerto de contas do indivíduo com suas próprias prioridades, e que oferece a ele tanto quanto retira”. Nesse viés, o trabalho estético na educação deveria se voltar, muito mais, às performances desencadeadas pelos ritos da própria educação, incluídos aí olhares para os modos de viver, ser e agir no e sobre o mundo. Concordamos também com Copatti (2015COPATTI, Carina. Educação estética na escola indígena kaigang: propostas para o ensino de geografia. 2015. 196 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2015., p. 59), que, em sua pesquisa em uma escola indígena kaigang no Rio Grande do Sul - Brasil, defende que:

A Educação Estética considera o ser humano no cosmo, tendo em vista a construção de uma sociedade mais humana, que seja capaz de reconstruir as relações com a natureza, sendo parte integrante deste espaço e ao qual precisa respeitar. No contexto escolar, precisa inserir-se para além das diferentes disciplinas, sendo vivenciada no cotidiano dos alunos, nos corredores, nas salas de aula, nas diversas atividades que ocorrem no ambiente. Constitui-se como uma forma de aproximar tanto alunos quanto professores a fim de transformar o ambiente escolar, a prática docente e a postura de ambos.

Estetizar o educativo pela resistência nos parece, então, o advento de uma mola propulsora para o exercício de uma Educação Estética outra - distanciada de todo movimento elitista, seja ele artístico ou intelectual, e calcada no âmbito do imprevisível enquanto chave de acesso à experiência dos sujeitos que habitam, com seus corpos-memória, o ambiente da educação.

Assumir, talvez, a perspectiva das pequenas crises, de Gumbrecht (2006GUMBRECHT, Hans Ulrich. Pequenas crises: experiência estética nos mundos cotidianos. In: GUIMARÃES, César; LEAL, Bruno Souza Leal; MENDONÇA, Carlos Camargos (ed.). Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.), pela qual a experiência estética se constitui enquanto interrupção do fluxo cotidiano, pode se configurar enquanto possibilidade para uma Educação Estética em sua forma mais expandida e descentrada, ao mesmo tempo conectada com a realidade dos espaços, sujeitos e tempos da educação. O autor nos auxilia a perceber que os “conteúdos da experiência estética se nos apresentam como epifânicos, isto é, eles aparecem repentinamente (‘como um relâmpago’) e desaparecem de repente e irreversivelmente, sem permitir-nos permanecer com eles ou de estender sua duração” (Gumbrecht, 2006, p. 55).

Pelas frestas de uma Educação Estética não estigmatizada e que não precise responder necessariamente aos preceitos da arte ou de uma determinada tradição filosófica, é possível pleitear, em contextos educativos, um espaço para novas e outras experiências cujo interesse recaia sobre a vida em toda a sua dinamicidade, força e narrativa. O estético se apresenta, então, como meio, sempre processual, e nunca finito, nuance que se desdobra em um potencial para que o rigor teórico-metodológico, tarefa essencial do campo acadêmico, abarque questões ainda não discutidas quando se fala em Educação Estética, reconfigurando suas premissas e tornando-a dispositivo para a compreensão de diversos fenômenos contemporâneos, situados geográfico-semanticamente em diferentes polos de atividade humana.

Considerações (não) finais

A negativa é persistente e intrínseca a esse texto. É pela insistência em negar delimitações ou cerceamentos de um conceito que acreditamos ser possível, também, fazer uma ciência conectada com seu tempo, seu espaço e seus sujeitos. O não, entre parênteses, que intitula esse texto de conclusão, também dialoga com uma perspectiva de colocar em suspenso aquilo que se espera de um artigo científico: apresentar ao leitor as conclusões de um estudo, apontando novidades e contribuições sobre o tema estudado. De certa forma, não fugimos dessa convenção.

O presente texto pode funcionar como mobilizador do conceito de estética e, por consequência, do termo Educação Estética, por um viés que, ao recusar um percurso de afirmação ou sustentação teórico-metodológica de uma ideia a partir de perspectivas aceitas ou validadas por práticas de pesquisa anteriormente testadas/avaliadas, entra nessa arena de vozes sem o intuito de disputar mais um pertencimento ou alocação a/em uma ou outra área de investigação. O que queremos, ainda, negar, a partir dessa hipótese, é o fato de que seja preciso que a Educação Estética esteja necessariamente ligada a, no mínimo, dois fatores que a acompanham ao longo da história de sua construção como termo/noção/ideia: a) ao campo artístico, já que tal vinculação parece se estabelecer de modo contínuo e, em alguns casos, como reforço de uma relação inseparável; b) a uma tradição filosófica distante de realidades, comunidades e suas práticas locais e regionais, ou seja, com discussões distanciadas teórica, metodológica e temporalmente da experiência estética cotidiana.

As abordagens sobre estética presentes nas obras aqui referenciadas, de Bakhtin e Rancière, nos auxiliaram na busca de alguns nortes possíveis para que pudéssemos trabalhar em uma articulação conceitual ainda pouco explorada na literatura vigente, pondo em diálogo autores e textos ainda não reconhecidos, quando se fala em grande tempo, como referência sobre o tema. Tanto o texto de Bakhtin (“O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária”), quanto o de Rancière (Mal-estar na estética), se constituem enquanto reflexões complexas que podem facilmente encontrar resistência quando colocadas em contato com alguns autores e estudos sobre o tema.

Já a segunda parte do texto buscou, no diálogo com autores vinculados a outras epistemologias e/ou por escolhas teóricas propositadamente descentradas, discutir, por uma perspectiva de indefinição, o termo Educação Estética no intuito de oferecer ao leitor possibilidades de reflexão que pudessem ampliar o que (não) se sabe, até então, sobre esta noção tão cara e, ao mesmo tempo, desprezada, em certos aspectos, pelo campo educacional, especialmente quando considerados sua força e alcance para além da tradição intelectual e das belas artes.

Uma pequena radicalidade pousa seus interesses, nesse texto, em uma abordagem não balizadora quanto ao seu objeto. Ao defender uma Educação Estética liberta de amarras teórico-metodológicas instauradas por movimentos que já não respondem às demandas atuais, essas considerações não finais evocam a necessidade e urgência da reavaliação do que se entende cientificamente por Educação Estética. Uma costura acadêmica dessa natureza só pode ser realizada por questionamentos e exercícios de negação de algumas estruturas teóricas que insistem em se manter de pé, em tempos que clamam pela floresta7 7 Importa destacar, em um artigo dedicado ao tema Educação Estética, que o trabalho de revisão com vistas à finalização desse texto foi realizado em meio à floresta amazônica, nas dependências da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (Manaus/AM - Brasil), no âmbito da 41ª Reunião Nacional da ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. , pela ancestralidade. Movimento esse que acontece aos poucos, mas com força, em meio a enfrentamentos, embates e lutas, ou seja, pelas vias de um diálogo responsável e comprometido com a sua própria época.

REFERÊNCIAS

  • ALBÁN ACHINTE, Adolfo. Artistas indígenas y afrocolombianos: entre las memorias y las cosmovisiones. Estéticas de la re-existencia. In: PALERMO, Z.; MELLADO, J.; ALBÁN ACHINTE, A. Arte y estética em la encrucijada descolonial. Buenos Aires: Del Signo, 2014. p. 53 -73.
  • BAKHTIN, Mikhail. O problema do conteúdo, do material e da forma na criação literária (1924). In: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Nazário e Homero Freitas de Andrade. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014. p. 13-70.
  • BRAIT, Beth. Importância e necessidade da obra O método formal nos estudos literários: Introdução a uma poética sociológica. In: MEDVIÉDEV, Pável. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução: Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora Contexto, 2012. p. 11-18.
  • COPATTI, Carina. Educação estética na escola indígena kaigang: propostas para o ensino de geografia. 2015. 196 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2015.
  • PINEAU, Pablo. Historiografía educativa sobre estéticas y sensibilidades en América Latina: un balance (que se sabe) incompleto. Revista Brasileira de História da Educação, v. 18, e023, 2018.
  • GUMBRECHT, Hans Ulrich. Pequenas crises: experiência estética nos mundos cotidianos. In: GUIMARÃES, César; LEAL, Bruno Souza Leal; MENDONÇA, Carlos Camargos (ed.). Comunicação e experiência estética. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
  • MORAES, Ana Cristina. Educação estética e (auto)formação: singularidades no tornar-se docente. Revista Digital do LAV, v. 11, n. 2, p. 20-39, 2018. DOI: 10.5902/1983734830973. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/30973 Acesso em: 8 set. 2023.
    » https://doi.org/10.5902/1983734830973» https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/30973
  • RANCIÈRE, Jacques. Mal-estar na estética. Tradução de Gustavo Chataignier e Pedro Hussak. São Paulo/Rio de Janeiro: Editora 34/Editora PUC-Rio, 2023.
  • SANTOS, Deribaldo. Educação Estética. Revista GESTO-Debate, v. 2, n. 1-17, 2018, recuperado em 19 set. 2022. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/gestodebate/article/view/17077 Acesso em: 08 set. 2023.
    » https://periodicos.ufms.br/index.php/gestodebate/article/view/17077
  • SILVA, Luiz Maurício Azevedo da. Uma invisibilidade performática: pedagogia estética e materialismo literário em bell hooks. Nau Literária, v. 18, n. 1, 2022. DOI: 10.22456/1981-4526.126956. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/126956 Acesso em: 8 set. 2023.
    » https://doi.org/10.22456/1981-4526.126956» https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/126956
  • TREZZI, Clóvis. Schiller e Freire: um olhar sobre a educação estética. Revista Eletrônica de Ciências da Educação (RECE), v. 10, n. 1, 2011. Disponível em: https://www.periodicosibepes.org.br/index.php/reped/article/view/878 Acesso: 08 set 2023.
    » https://www.periodicosibepes.org.br/index.php/reped/article/view/878
  • Apoio:

    CAPES - PROEX Programas Conceito 7 e CNPq - Bolsa de Produtividade em Pesquisa, Processo: 310808/2020-0
  • Declaração de disponibilidade de conteúdo

    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    Os estudos bakhtinianos ou o pensamento bakhtiniano é o conjunto de formulações teóricas advindas do chamado Círculo de Bakhtin. Embora existam diferentes atribuições ao termo por parte de alguns pesquisadores, não faremos uma explanação explicativa e histórica, mas utilizamos “Bakhtin e o Círculo” para fazer referência ao conjunto da obra que traz ideias produzidas por intelectuais russos, desde a segunda década do século XX, a saber “Mikhail Bakhtin (1895-1975); Valentin N. Volóchinov (1895-1936); Pável N. Medviédev (1891-1938); Matvei I. Kagan (1889-1937); Lev V. Pumpiánski (1891-1940); Ivan I. Sollertínski (1902-1944); M. Iúdina (1899-1970); K. Váguinov (1899-1934); B.Zubákin (1894-1937)” (Brait, 2012BRAIT, Beth. Importância e necessidade da obra O método formal nos estudos literários: Introdução a uma poética sociológica. In: MEDVIÉDEV, Pável. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução: Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora Contexto, 2012. p. 11-18.).
  • 2
    É importante frisar que não se trata de uma política “partidária”, e sim de política como um conceito amplo que, nos atravessamentos de sua própria complexidade, estabelece vínculos com o plano do possível e do comum.
  • 3
    Trecho original: “Las estéticas de re-existencias son las del descentramiento, las de los puntos de fuga que permiten visualizar escenarios de vida distintos, divergentes, disruptivos, en contracorriente a las narrativas de la homogenización cultural, simbólica, económica, socio-política, las que se ubican en las fronteras donde a la institucionalidad le cuesta cooptar las autonomías que se construyen y en esos espacios liminares em que elpoder se fractura y deja ver las fisuras de su propia imposibilidad de realizarse plenamente”(Albán Achinte, 2014ALBÁN ACHINTE, Adolfo. Artistas indígenas y afrocolombianos: entre las memorias y las cosmovisiones. Estéticas de la re-existencia. In: PALERMO, Z.; MELLADO, J.; ALBÁN ACHINTE, A. Arte y estética em la encrucijada descolonial. Buenos Aires: Del Signo, 2014. p. 53 -73., p. 117).
  • 4
    Trecho original: “La estética es entendida como un registro que impregna la totalidad de la vida escolar no limitada a los espacios específicos que a propósito le fueron dedicados. Puede ser intencional (‘enseñanza de las artes’, ‘aseo y presentación’, ‘educación del cuerpo’), o presentarse en el resto de las dimensiones de lacto escolar (cultura material, propuesta curricular, formación docente etc.)” (Pineau, 2018PINEAU, Pablo. Historiografía educativa sobre estéticas y sensibilidades en América Latina: un balance (que se sabe) incompleto. Revista Brasileira de História da Educação, v. 18, e023, 2018., p. 10).
  • 5
    Trecho original: “(...) implica una relación de producción de significados entre determinados estímulos sensoriales y un sujeto - individual o colectivo - que produce uma interpretación particular de ellos - la ‘sensibilidad’ - que involucra necesariamente su presente, su pasado y sus proyecciones sobre el futuro (Pineau, 2018PINEAU, Pablo. Historiografía educativa sobre estéticas y sensibilidades en América Latina: un balance (que se sabe) incompleto. Revista Brasileira de História da Educação, v. 18, e023, 2018., p. 11).
  • 6
    A título de exemplificação, sugerimos a leitura dos textos de Santos (2019)SANTOS, Deribaldo. Educação Estética. Revista GESTO-Debate, v. 2, n. 1-17, 2018, recuperado em 19 set. 2022. Disponível em: https://periodicos.ufms.br/index.php/gestodebate/article/view/17077. Acesso em: 08 set. 2023.
    https://periodicos.ufms.br/index.php/ges...
    e Moraes (2018MORAES, Ana Cristina. Educação estética e (auto)formação: singularidades no tornar-se docente. Revista Digital do LAV, v. 11, n. 2, p. 20-39, 2018. DOI: 10.5902/1983734830973. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revislav/article/view/30973. Acesso em: 8 set. 2023.
    https://periodicos.ufsm.br/revislav/arti...
    ).
  • 7
    Importa destacar, em um artigo dedicado ao tema Educação Estética, que o trabalho de revisão com vistas à finalização desse texto foi realizado em meio à floresta amazônica, nas dependências da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (Manaus/AM - Brasil), no âmbito da 41ª Reunião Nacional da ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

O trabalho apresenta importantes reflexões que analisam os possíveis lugares (e não lugares) conferidos à educação estética . Com base em uma gama de autores que discutem o assunto sob variados enfoques e épocas distintas, o texto responde às suas indagações iniciais com uma perspectiva inquietante e crítica. Há consonância entre título, objetivos, indagações e desenvolvimento do trabalho, o que representa mérito acadêmico do mesmo. No decorrer do trabalho, vou sugerindo algumas poucas alterações de revisão textual, como contribuição à melhoria do texto. Considero o trabalho favorável à publicação, dada a relevância e atualidade do recorte temático feito. APROVADO COM SUGESTÕES [Revisado]

  • recomendação: accept-in-principle

Histórico

  • Parecer recebido em
    25 Set 2023

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O artigo empreende uma discussão interessante sobre "refletir sobre usos, potências e sentidos do termo Educação Estética na pesquisa científica, partindo, primeiramente, de abordagens sobre o conceito de estética em Bakhtin e Rancière, para então mobilizar suas relações com o campo da educação sob dois aspectos norteadores [...]", partindo de uma perspectiva "dos estudos da decolonialidade". O texto, com pouquíssimas incorreções nas pontuações, é claro e percorre um caminho de investigativo pela negação - o que torna a leitura também provocativa. No entanto, algumas questões, para mim, não ficaram bem pontuadas: a decolonialidade e a questão do uso, potência e sentido do termo Educação Estética na pesquisa científica. Embora a autoria tenha trazido referências latino-americanas para pensar a estética e a educação (principalmente na sala de aula), isso não aproxima o texto dos estudos decoloniais. Caberia, nesse sentido, uma maior aproximação do conceito e uma clara filiação do decolonial que a autoria empreende discutir. No mais, creio que o acercamento entre Bakhtin e Rancière funcionou, mas carecia de uma melhor retomada (ou costura) com o item Educação Estética: o que (não) precisamos definir? Embora as restrições/sugestões não sejam comprometedoras, no texto anexo, pontuo sugestões de correções gramaticais e sugiro rever e adequar (conforme diretrizes da revista) algumas poucas coisas como, por exemplo, nota de rodapé, citações, chamadas de referências, etc. APROVADO COM RESTRIÇÕES/SUGESTÕES [Revisado]

  • recomendação: accept-in-principle
  • Parecer editorial

    Solicitamos que leia atentamente os pareceres, assim como os textos enviados, e altere o artigo no que julgar conveniente, atendendo às solicitações dos autores. Informamos, ainda, que ambos estão dispostos a interagir com o autor, por meio do site da revista. O artigo deve ser enviado novamente para a revista até 31/10/2023.

Histórico

  • Parecer recebido em
    11 Out 2023

Parecer III

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer III

Como observado na releitura do artigo, o autor levou em consideração as sugestões dos avaliadores e incorporou-as no texto. Com isso, dou meu parecer favorável e considero o trabalho aceito para publicação. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    09 Nov 2023

Parecer IV

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer IV

A autoria seguiu as orientações do parecer. Do ponto de vista conceitual, o artigo está oportuno para publicação. No entanto, não tenho muita certeza quanto à adequação das diretrizes da revista quanto ao espaçamento entre as citações longas e os parágrafos. Sinalizo isso porque pode ser que ao abrir no meu computador, tenha alterado alguma coisa nesse sentido. No mais, tudo certo.

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    08 Nov 2023

Disponibilidade de dados

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2023
  • Aceito
    04 Jan 2024
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