Acessibilidade / Reportar erro

Corpus e objeto em perspectiva dialógica: uma análise em obras de M. Bakhtin

RESUMO

Por meio da análise dos estudos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin a propósito da obra de Fiódor Dostoiévski e François Rabelais, este artigo visa discutir as fronteiras e a relação entre corpus e objeto. Para tanto, observamos comparativamente duas edições brasileiras das obras bakhtinianas, sendo a pesquisa a respeito do autor francês e da cultura cômica popular cotejada com um conjunto de textos envolvendo o original em russo, textos-moldura, traduções e outros enunciados correlacionados. A reflexão apoia-se em uma perspectiva dialógica, sobretudo na noção de alteridade. Os resultados revelam que, ainda que corpus e objeto se apresentem a priori amalgamados, é a imprescindível relação do autor-pesquisador com esse corpus que vai, gradualmente, destacando o objeto.

PALAVRAS-CHAVE:
Corpus; Objeto; Bakhtin; Autor-pesquisador; Dostoiévski; Rabelais

ABSTRACT

Through the analysis of the studies developed by Mikhail Bakhtin regarding the work of Fyodor Dostoevsky and François Rabelais, this article aims to discuss the boundaries and the relationship between corpus and object. Therefore, we compared two Brazilian editions of Bakhtinian works, with the research on the French author and popular comic culture, with a set of texts involving the Russian original, frame-texts, translations, and other correlated utterances. The reflection is based on a dialogical perspective, particularly on the notion of alterity. The results show that, although corpus and object are a priori amalgamated, it is the essential relationship of the author-researcher with this corpus that gradually detached the object.

KEYWORDS:
Corpus ; Object; Bakhtin; Author-researcher; Dostoevsky; Rabelais

Introdução

No capítulo introdutório de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, de 1965, Bakhtin (2013, p.50)BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013. manifesta explicitamente que o objeto de seu trabalho é a obra do autor francês, e não a cultura cômica popular. Todavia, ao analisarmos o livro (BAKHTIN, 2013BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.), o texto original em russo (BAKHTIN, 2010bBAKHTIN, M. M. Бахтин. Собрание сочинений [M. M. Bakhtin. Obras reunidas]. vol. 4(2). Moscou: Iazyki Slaviánskikh Kultúry, 2010b.), algumas traduções (BACHTIN, 1998BACHTIN, M. L´opera di Rabelais e la cultura Popolare. Riso, carnevale e festa nella tradizione medievale e rinascimentale. Trad. Mili Romano. Torino: Giulio Einaudi, 1998.; BAJTÍN, 2003BAJTÍN, M. La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento: el contexto de François Rabelais. Version Julio Forcat y César Conroy. Madrid: Alianza Editorial, 2003.; BAKHTIN, 1984BAKHTIN, M. M. Rabelais and His World. Trans. H. Iswolsky. Bloomington: Indiana University Press, 1984.; BAKHTINE, 1970BAKHTINE, M. M. L ’ouevre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance. Trad. Andreé Robel. Paris: Gallimard, 1970.), seus textos-moldura, bem como trechos do registro da defesa de Bakhtin (PAN’KOV, 1998PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 1. Dialogism, n.1, p.11-29, 1998., 1999PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 2. Dialogism, n.2, p.7-40, 1999.) e outros enunciados correlacionados (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. M. Rabelais e Gógol (Arte do discurso e cultura cômica popular). In: BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014, p.429-439.; BAKHTIN, 2010cBAKHTIN, M. M. [Correspondência]. Destinatário: G. A. Soloviev e S. L. Leibovich. [S. l], 05 jul. 1962. In: BAKHTIN, M. M. Бахтин. Собрание сочинений [M. M. Bakhtin. Obras reunidas]. vol. 4(2). Moscou: Iazyki Slaviánskikh Kultúry, 2010c, p.637., 2010dBAKHTIN, M. M. [Correspondência]. Destinatário: V. V. Kozhinov. [S. l], 02 jul. 1962. In: BAKHTIN, M. M. Бахтин. Собрание сочинений [M. M. Bakhtin. Obras reunidas]. vol. 4(2). Moscou: Iazyki Slaviánskikh Kultúry, 2010d, p.636-637., 2010eBAKHTIN, M. M. [Correspondência]. Destinatário: G. A. Soloviev e S. L. Leibovich. [S. l], 05 jul. 1962. In: BAKHTIN, M. M. Бахтин. Собрание сочинений [M. M. Bakhtin. Obras reunidas]. vol. 4(2). Moscou: Iazyki Slaviánskikh Kultúry, 2010e, p.637.), que formam o corpus desta investigação1 1 Este artigo é resultado parcial da investigação desenvolvida por mim como Pesquisadora Associada na Queen Mary – University of London, nos anos de 2019 e 2020, financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, Processo Nº 88881.362209/2019-01, sob a coorientação do Professor Doutor Galin Tihanov, tendo como fontes de busca: British Library e Senate House Library, Londres, Reino Unido. No Brasil, a pesquisa de doutorado foi realizada sob a orientação da Profa. Dra. Beth Brait/LAEL/PUC-SP, com bolsa CNPq Proc. 168996/2018-9. , o que desponta é a controvérsia em torno do que seria o objeto de Bakhtin em seu estudo.

Com base nessa tensão que emerge entre o que enuncia Bakhtin (2013)BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013. a respeito do seu próprio fazer investigativo, confrontado com o que observamos no livro, propomos aprofundar a questão em torno das fronteiras e da relação entre o corpus e o objeto. Para tanto, partimos de Problemas da poética de Dostoiévski, de 1963 (BAKHTIN, 2010aBAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.), e de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (BAKHTIN, 2013BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.). As duas obras são aqui tomadas como enunciados concretos pertencentes à esfera científica, compreendidas como produto de um processo teórico-reflexivo, analítico, interpretativo e metodológico, ou seja, como produto de pesquisa. Na condição de corpus, os excertos não são citados como habitualmente se faz em artigos, mas apresentados em quadros. O uso de quadros visa estabelecer fronteiras explícitas na textualidade, delimitando visualmente os fragmentos advindos das obras nas circunstâncias em que esses estão submetidos à análise.

As reflexões visam contribuir com o aprofundamento teórico de noções advindas do pensamento dialógico, isto é, das proposições de Bakhtin e o Círculo, e da recepção desses autores no Brasil, bem como com subsídios para diretrizes metodológicas gerais a serem mobilizadas por pesquisas que se inspirem nesse pensamento.

1 O discurso bivocal em Problemas da poética de Dostoiévski

No famoso capítulo quinto de Problemas da poética de Dostoiévski, intitulado “O discurso em Dostoiévski”, Bakhtin (2010a)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a., após sugerir a necessidade de criação da Metalinguística como vertente do conhecimento, a qual se ocuparia do discurso, afina sua definição e declara as relações dialógicas como objeto dessa disciplina. A partir da definição abrangente do que compreende como objeto a ser observado por ângulos dialógicos, o autor-pesquisador delimita seu interesse:

Quadro 1
As relações dialógicas [...] são objetos da metalinguística. Mas aqui estamos interessados precisamente nessas relações, que determinam as particularidades da construção da linguagem nas obras de Dostoiévski.
  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.208)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a..
  • O emprego de “precisamente” indica a exatidão do que busca Bakhtin em relação à obra de Dostoiévski. O autor-pesquisador está em busca das “particularidades da construção da linguagem nas obras de Dostoiévski”, interessado, portanto, em relações dialógicas que o conduzam ao que é próprio e distintivo nos escritos dostoievskianos.

    A afirmação de Bakhtin com relação a tais particularidades é anunciada desde as primeiras páginas. Essa repetição se reafirma no primeiro capítulo, intitulado “O romance polifônico de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária”, do qual destacamos:

    Quadro 2
    A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes* constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. [...] é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes* e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade.
  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.4-5BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.; grifos no original).
  • Bakhtin aponta e ressalta, por meio do uso de itálico, a peculiaridade fundamental nas obras de Dostoiévski. A característica particular no conjunto da obra é enunciada desde o início. Outro exemplo pode ser encontrado ao final do quarto capítulo, intitulado “Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiévski”:

    Quadro 3

    A tarefa de todo o nosso trabalho é mostrar a originalidade singular da poética de Dostoiévski, “mostrar Dostoiévski em Dostoiévski”. [...]

    [...] Dostoiévski é o criador da autêntica polifonia, que, evidentemente, não havia nem poderia haver no “diálogo socrático”, nem na “sátira menipeia” antiga, nem nos mistérios medievais, nem em Shakespeare, Cervantes, Voltaire e Diderot e nem em Balzac e Victor Hugo. Mas a polifonia foi preparada essencialmente nessa linha de evolução da literatura europeia. Toda essa tradição, começando com os “diálogos socráticos” e a menipeia, renasceu e renovou-se em Dostoiévski na forma singularmente original e inovadora do romance polifônico.

  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.206BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.; grifo no original).
  • A afirmação é retomada pelo autor-pesquisador na “Conclusão”:

    Quadro 4

    [...] a originalidade de Dostoiévski como artista [...].

    Ao dar continuidade à “linha dialógica” na evolução da prosa ficcional europeia, Dostoiévski criou uma nova variedade de gênero no romance – o romance polifônico, cujas peculiaridades inovadoras procuramos elucidar no nosso ensaio.

  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.339BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.; grifos no original).
  • Bakhtin afirma que o romance polifônico, embora gestado pelos autores que antecederam Dostoiévski, só se torna efetivamente possível em Dostoiévski. Contudo, a polifonia em Dostoiévski não é, per se, a tese de Bakhtin. A própria proposição de romance polifônico já havia sido elaborada por Komaróvitch, citado por Bakhtin (2010a)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. no primeiro capítulo2 2 Tanto a polifonia proposta por Komaróvitch como a aproximação de metáforas musicais para a análise da obra dostoievskiana por Ivánov são anteriores à discussão de Bakhtin desde o livro de 1929. Para mais detalhes, ver Grillo (2021). . Embora haja relação com a polifonia, o que figura de fato como tese são as peculiaridades, “a originalidade de Dostoiévski como artista”.

    A questão que nos colocamos é: como Bakhtin chega a tais peculiaridades? Isto é, à “multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes” (BAKHTIN, 2010a, p.4BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.; grifos no original)? Interessa-nos buscar quais relações dialógicas específicas são estabelecidas como objeto para chegar à “originalidade singular da poética de Dostoiévski” (BAKHTIN, 2010a, p.206BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.).

    Retomemos o quinto capítulo, em que Bakhtin justifica visar o discurso bivocal:

    Quadro 5
    O objeto principal do nosso exame, pode-se dizer, seu herói principal, é o discurso bivocal, que surge inevitavelmente sob as condições da comunicação dialógica, ou seja, nas condições da vida autêntica da palavra.
  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.211BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.; grifos no original).
  • O discurso é para Bakhtin o que, de modo bastante abrangente, a metalinguística tem em vista. Pelo excerto, todavia, podemos observar que o autor singulariza esse discurso, até então noção abstrata, ao defini-lo como “discurso bivocal”. A especificação é conduzida consoante aos objetivos da pesquisa que Bakhtin empreende e apresenta. Assim, em conformidade com o título do capítulo, “O discurso em Dostoiévski”, o autor-pesquisador afirma o “discurso bivocal” como seu objeto principal, o qual também caracteriza como “herói principal”. A aproximação entre objeto e herói é retomada no exame do objeto de Bakhtin acerca da obra de Rabelais, como veremos mais adiante.

    Embora Bakhtin enuncie qual é o objeto de sua investigação, propomos observar como, no fazer investigativo, cujas marcas são observadas no texto, o autor-pesquisador se relaciona com esse objeto. Vejamos um trecho em que as peculiaridades em Dostoiévski são relacionadas ao discurso bivocal, reforçando a tese em torno não só da multiplicidade dos tipos de discurso, mas do modo como esses discursos são distribuídos:

    Quadro 6
    Mas o problema não reside, evidentemente, apenas na diversidade e na mudança brusca dos tipos de fala e no predomínio, entre estes, dos discursos bivocais internamente dialógicos. A originalidade de Dostoiévski reside na distribuição muito especial desses tipos de discurso e das variedades entre os elementos composicionais básicos da obra.
  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.233)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a..
  • Para afirmar os “tipos de fala” nessa altura do quinto capítulo, Bakhtin parte de uma proposta classificatória, afirmando:

    Quadro 7
    O próprio fato de existirem discursos duplamente orientados, que compreendem como momento indispensável a relação com a enunciação de um outro, coloca-nos diante da necessidade de fazer uma classificação completa e definitiva dos discursos do ponto de vista desse novo princípio desprezado pela estilística, a lexicologia e a semântica.
  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.213)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a..
  • Nesse fragmento, Bakhtin justifica e propõe uma categorização “completa e definitiva dos discursos”, a partir de um ponto de vista dialógico. Na sequência, o autor-pesquisador avança a proposta, classificando as variedades de discursos em torno de três tipos, para depois sintetizá-las e apresentá-las esquematicamente:

    Como Bakhtin antecipa ao leitor – antes mesmo de avançar à classificação que faz dos discursos –, amplo material a partir da obra de Dostoiévski é mobilizado e relacionado a cada um dos discursos inventariados3 3 Para detalhes, ver página 213, precisamente a nota de rodapé número 1, de Bakhtin (2010a). . Ao final da classificação, que define como de “caráter abstrato” (BAKHTIN, 2010a, p.228BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.), o autor-pesquisador retoma Dostoiévski:

    Quadro 8

    Voltemos a Dostoiévski.

    As obras de Dostoiévski impressionam acima de tudo pela insólita variedade de tipos e modalidades de discurso, [...].

  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.233)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a..
  • Bakhtin faz, então, uma série de apontamentos, citando trechos, por vezes extensos. Examina, por exemplo, fragmentos do primeiro romance do autor russo, Gente pobre, de 1846. Em umas dessas citações, podemos verificar que Bakhtin refere-se aos trechos citados e os analisa tendo em vista seu objeto:

    Quadro 9

    Em Gente pobre começa a elaborar-se uma variedade “rebaixada” desse estilo, representada pelo discurso torcido com uma mirada tímida e acanhada e com uma provocação abafada. Essa mirada se manifesta acima de tudo na inibição do discurso, característica desse estilo, e em sua interrupção com evasivas.

    [...]4 4 Supressão da citação que faz Bakhtin (2010a) de Gente pobre. Embora aparentemente redundante, a indicação que aqui fazemos opera como recurso que localiza e demarca na materialidade o que discutimos.

    Quase após cada palavra Diévuchkin lança uma mirada para a sua interlocutora ausente, teme que ela o imagine queixoso, procura destruir a impressão produzida pela notícia de que ele vive na cozinha, não quer lhe causar desgosto, etc. A repetição das palavras se deve ao empenho de reforçar-lhes a aceitabilidade ou dar-lhes um novo matiz tendo em vista a possível reação do interlocutor.

    No trecho que citamos, a palavra refletida é a palavra possível do destinatário, no caso Várienka Dobrossiélova. Na maioria dos casos, as palavras de Diévuchkin sobre si mesmo são determinadas pela palavra refletida da “pessoa estranha”. Vejamos como ele define essa “pessoa estranha”.

    [...]5 5 Idem.

  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.236-237)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.
  • O autor-pesquisador segue citando Gente pobre, examinando e relacionando trechos, caso do primeiro e do terceiro, tendo em vista seus propósitos de pesquisa:

    Quadro 10

    Já no primeiro trecho que citamos, onde Diévuchkin se dirige a Várienka Dobrossiélova, comunicando-lhe a respeito do seu novo quarto, observamos interrupções originais do discurso, que lhe determinam a estrutura sintática e acentual. É como se no discurso estivesse encravada a réplica do outro [...]. Mas a réplica do outro, afora a sua ação sobre a estrutura acentual e sintática, deixa às vezes no discurso de Diévuchkin uma ou duas palavras suas ou, outras vezes, uma proposição inteira: [...]6 6 Idem.

    No último trecho que citamos é ainda mais evidente e marcante a introdução de palavras e especialmente de acentos do discurso do outro no discurso de Diévuchkin. Aqui as palavras com o acento polemicamente deturpado do outro estão inclusive entre aspas: “Ora veja, ele é copista!...”

  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.239)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.
  • Na passagem, observamos que os apontamentos feitos por Bakhtin partem da materialidade dos romances de Dostoiévski, cujos indícios podem ser verificados pelas indicações: “primeiro trecho que citamos” e “No último trecho que citamos”. Nesse sentido, Gente pobre é para Bakhtin corpus, que o autor-pesquisador analisa e interpreta, tendo em vista o discurso bivocal, seu objeto de pesquisa. Marcas da tarefa interpretativa são as relações que ele faz entre os diferentes trechos, buscando demonstrar os graus de introdução “do discurso do outro no discurso de Diévuchkin”.

    Bakhtin (2010a, p.240)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. arrisca ainda uma “definição figurada” do fenômeno, convertendo um dos trechos citados de modo a demonstrar o outro de Diévuchkin. Na sequência, conclui:

    Quadro 11

    É evidente que esse diálogo imaginável é bastante primitivo, assim como a própria consciência de Diévuchkin ainda é substancialmente primitiva. [...]

    Os fenômenos que examinamos, produzidos pela palavra do outro na consciência e no discurso do herói, em Gente Pobre são apresentados numa roupagem estilística adequada do discurso de um pequeno funcionário petersburguense. As particularidades estruturais do “discurso com mirada em torno”, do discurso veladamente polêmico e interiormente dialógico, por nós examinadas, são aqui refratadas na maneira típico-social e hábil do discurso de Diévuchkin.

  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.241-242)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a..
  • Reiteramos, a partir da explicitação de Bakhtin e do que observamos materialmente no texto de um ponto de vista metodológico, que o material proveniente das obras de Dostoiévski constitui o corpus de pesquisa e o discurso bivocal conforma-se, de fato, como objeto. Bakhtin ainda analisa várias outras obras, caso de O duplo e do célebre Os irmãos Karamázov, último romance de Dostoiévski, relacionando as análises da estrutura narrativa que faz dos dois textos:

    Quadro 12
    ... citaremos a excitada narração de Ivan a Aliócha, que se segue imediatamente a esse diálogo. A estrutura dessa narração é análoga à estrutura de O duplo, que examinamos. Aqui se verifica o mesmo princípio de combinação de vozes, embora – diga-se a verdade – tudo aqui seja mais profundo e mais complexo.
  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.254)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a..
  • Mais adiante, Bakhtin analisa o discurso ideológico de Ivan Karamázov:

    Quadro 13

    No parágrafo seguinte, Bakhtin propõe analisar outra variedade de discurso:

    Quadro 14
    Focalizemos mais uma variedade do discurso em Dostoiévski: o discurso hagiográfico. Este se manifesta nos discursos de Khromonojka, nos discursos de Makar Dolgoruki e, por último, na vida de Zossima.
  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.288-289)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.
  • Bakhtin, portanto, desenvolve suas análises debruçando-se sobre as novelas e romances, que são efetivamente examinados, retomando e citando uma série de trechos, de modo a sustentar seus argumentos. Nesse percurso, o autor-pesquisador vai demonstrando, por meio do material dostoievskiano, a multiplicidade de discursos conforme a classificação das variedades proposta anteriormente (cf. Figura 1).

    Figura 1
    Tipos de discurso

    Ao final, Bakhtin demonstra como Dostoiévski reúne uma multiplicidade de discursos, sustentando ser a forma como ele organiza e dispõe esses múltiplos discursos, sua peculiaridade. E é precisamente essa a originalidade do chamado romance polifônico. O olhar atento de Bakhtin para essas marcas nos leva a identificar esse objeto, observado e conformado a partir do corpus. O movimento permite ao autor a sustentação de sua tese.

    No fim do quinto capítulo, Bakhtin comenta o objeto de Dostoiévski, atinente a um fazer literário que difere da atividade de pesquisa, reafirmando que compreende a polifonia tendo em vista a distribuição e interação das vozes nos romances dostoievskianos:

    Quadro 15

    O objeto das aspirações do autor não é, em hipótese nenhuma, esse conjunto de ideias em si mesmo, como algo neutro e idêntico a si mesmo. Não, o objeto é precisamente a passagem do tema por muitas e diferentes vozes, a polifonia de princípio e, por assim dizer, irrevogável, e a dissonância do tema. A própria distribuição das vozes e sua interação são importantes para Dostoiévski. [...]

    A cosmovisão dialógica, como vimos, prescreve toda a obra restante de Dostoiévski, a começar por Gente Pobre. Por isso, a natureza dialógica do discurso manifesta-se nela com imenso vigor e sensibilidade marcante. O estudo metalinguístico dessa natureza, particularmente das múltiplas variedades do discurso bivocal e sua influência em diversos aspectos da construção do discurso, encontra nessa obra matéria excepcionalmente abundante.

    [...] Considere-se que o objeto fundamental da sua representação é o próprio discurso, e precisamente o discurso plenissignificativo. As obras de Dostoiévski são o discurso sobre o discurso, voltado para o discurso.

  • Fonte: Bakhtin (2010a, p.310BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.; grifos no original).
  • Em síntese, identificamos no proceder investigativo de Bakhtin (2010a)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. o modo como o discurso bivocal conforma-se como objeto, a partir dos romances de Dostoiévski, tomados pelo autor-pesquisador como corpus de pesquisa. As fronteiras entre corpus e objeto e a relação que o autor-pesquisador estabelece com (e entre) corpus e objeto podem ser verificadas na materialidade do texto, visto por nós na condição de enunciado.

    2 A obra rabelasiana: corpus ou objeto?

    A afirmação que Bakhtin (2010a)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. faz a respeito de seu objeto em Problemas da poética de Dostoiévski parece se sustentar nas observações que fizemos de suas análises e do modo como o autor-pesquisador desenvolve e conduz sua discussão. Tal modo leva à construção da tese a respeito da peculiaridade do romance polifônico em Dostoiévski.

    Observamos um procedimento semelhante em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais:

    Quadro 16

    É isso que, também, assinala Bernardi (2012, p.76)BERNARDI, R. M. Rabelais e a sensação carnavalesca do mundo. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2012, p.73-94.: “o objeto de estudo de Bakhtin é a obra Gargantua e Pantagruel, um romance de quatro livros publicados por Rabelais de maneira irregular, a partir de 1533, em pleno período renascentista”.

    Será mesmo esse o objeto de estudo de Bakhtin em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, a despeito do que afirma o próprio autor e a intérprete? A nosso ver, a obra de François Rabelais, assim como a obra de Dostoiévski, deveria ser compreendida como corpus, e não como objeto, como tentamos argumentar a seguir.

    Na verdade, a questão que aqui expomos a respeito da noção de corpus e de objeto nas pesquisas bakhtinianas surge a partir de um olhar que buscava responder a outras questões, ligadas à noção de “autor” para Bakhtin. Nesse percurso, nos deparamos com alguns dados controversos, que a princípio se apresentavam como “ruídos”, mas que foram se configurando como dificuldade de se estabelecer, teórica e metodologicamente, limites precisos entre corpus e objeto de pesquisa nos estudos de Bakhtin acerca da obra de Rabelais. Tais “ruídos” não se apresentaram em relação a Problemas da poética de Dostoiévski. Seria possível dizer que aquilo que se apresenta como “ruído” talvez seja reflexo de uma confusão quanto ao objeto de Bakhtin na obra em questão?

    Nesse sentido, de acordo com Bakhtin (2011, p.5)BAKHTIN, M. M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2011, p.1-192.: “vivencia-se o trabalho criador, mas o vivenciamento não escuta e nem vê a si mesmo, escuta e vê tão somente o produto que está sendo criado ou o objeto a que ele visa”. Assim, constatamos na concepção bakhtiniana a importância de ir à obra como produto criado e aos seus objetos, e não ao artista, no nosso caso, ao pesquisador. É desse modo que propomos encaminhar nossa reflexão, buscando orientá-la tendo em vista a obra de Bakhtin a respeito de Rabelais visando verificar se o que enuncia o autor-pesquisador como objeto procede em suas análises e no desenvolvimento da discussão que empreende.

    Em Problemas da poética de Dostoiévski, ao discutir questões estilísticas em relação ao discurso do narrador e das personagens, analisa tanto o título do livro quanto dos capítulos, citando como exemplos o título de Os irmãos Karamázov e de quatro de seus capítulos (BAKHTIN, 2010a, p.291BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.). Bakhtin (2010a)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. parte do exame dos romances de Dostoiévski, mobilizados pelo pesquisador enquanto corpus, analisando o desenvolvimento do discurso do narrador, incluindo a observação dos títulos das obras e de seus respectivos capítulos. O autor elege tanto Os irmãos Karamázov como alguns dos títulos dos capítulos com o objetivo de exemplificar no e pelo texto a discussão que empreende no processo de pesquisa.

    Em seu estudo sobre a obra rabelasiana também vamos encontrar procedimentos que confirmam sua lente de pesquisador. Bakhtin (2013)BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013. problematiza, por exemplo, o tom moralista dado aos textos de Rabelais por uma parcela de seus intérpretes e ilustra essa tendência por meio da tradução do título de Gargântua, conforme vertido para o alemão por Fischart (BAKHTIN, 2013, p.54BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.). Segundo ele, o título dado pelo tradutor exprime a ideia de que as imagens grotescas rabelaisianas seriam negativas e, portanto, ultrajantes e reprováveis, distorcendo assim o caráter absolutamente positivo dos exageros que permeiam a obra. Ainda de acordo com Bakhtin (2013)BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013., a versão de Fischart é incapaz de dominar por completo as imagens rabelasianas.

    Destacamos, inicialmente, como Bakhtin mobiliza em suas análises o título e subtítulos dos enunciados que constituem seu corpus, visando ilustrar o desenvolvimento de seu raciocínio e apontar marcas constitutivas daquilo que discute. É o exame dos textos em diálogo com a totalidade dos enunciados que iluminam os caminhos do pesquisador.

    Em seguida, apontamos para o fato de que, ao olhar para a tradução da obra de Rabelais, que constitui parte de seu corpus, sobretudo do título vertido, o pesquisador identifica marcas fundamentais do processo de descaracterização da obra rabelaisiana no decorrer do tempo. Tais marcas justificam, ulteriormente, o rebaixamento de Rabelais e, consequentemente, a incapacidade de interpretá-lo em seus termos, como proposto por Bakhtin em suas análises. Do mesmo modo, propomos analisar e interpretar o título do estudo bakhtiniano a respeito de Rabelais, bem como algumas de suas traduções.

    Junta-se a isso a noção dialógica de enunciado concreto, que compreende “textos que se avizinham do texto principal, caso do título, subtítulos, dedicatórias, epígrafes, prefácio, posfácio, etc. e que, segundo vários teóricos, abrem caminho para o leitor adentrar os meandros do texto principal” (BRAIT, 2019, p.251BRAIT, B. Discursos de resistência: do paratexto ao texto ou vice-versa? Alfa, São Paulo, v.63, n.2, p.243-263, set. 2019. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/11452/8477. Acesso em: 12 abr. 2020.
    https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/a...
    ), paratextos que aqui designamos como textos-moldura (BRAIT; PISTORI, 2020BRAIT, B.; PISTORI, M. H. C. Marxismo e filosofia da linguagem: a recepção de Bakhtin e o Círculo no Brasil. Bakhtiniana, São Paulo, v.15, n.2, p.33-63, abr./jun. 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/44560/31602. Acesso em: 07 dez. 2020.
    https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
    ).

    Os enunciados concretos carregam características convencionadas pelas práticas sócio-histórico-culturais das esferas da atividade e da comunicação humana nas quais são produzidos, recebidos e por onde circulam. Teses, livros, artigos e simpósios – alguns dos tipos de enunciados da esfera acadêmico-científica ou, para recorrer às palavras de Bakhtin (2016a, p.12)BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016a, p.11-70., a respeito dos gêneros discursivos, “variadas formas das manifestações científicas” – comumente envolvem, além do que podemos qualificar como texto principal, outras partes adjacentes que igualmente compõem esses enunciados.

    Como indica Brait (2019)BRAIT, B. Discursos de resistência: do paratexto ao texto ou vice-versa? Alfa, São Paulo, v.63, n.2, p.243-263, set. 2019. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/11452/8477. Acesso em: 12 abr. 2020.
    https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/a...
    em relação aos paratextos, em geral, mais do que aceno e convite à leitura, estes operam estrategicamente como antecipadores por adiantarem questões abordadas pelo texto principal, potencializados pela peculiar característica de síntese requerida dos títulos. Assim, o título de uma obra na esfera acadêmico-científica, mas também no mercado editorial voltado a livros relacionados a essa esfera, demanda, por convenção, clareza e concisão de quem a intitula. Em contrapartida, é esperado que, uma vez formulado adequadamente, o título também seja capaz de nos revelar a essência do texto que o sucede. Por conseguinte, podemos assumir que o título condense marcas que, submetidas à análise, revelam-se como caminhos à profundidade do texto e do seu fazer. Guiados por essa perspectiva, observemos o título da obra de Bakhtin dedicada aos escritos rabelaisianos.

    Na tabela a seguir, cotejamos o título da tese doutoral de Bakhtin (TD), o título original de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (CPIMR) e traduções, incluída a versão para o português conforme nota de rodapé em “Rabelais e Gogól (Arte do discurso e cômica popular)” (RG).

    Quadro 17

    Ainda que não seja nosso objetivo discutir detalhes tradutórios, destacamos aqui o que Souza (2002)SOUZA, G. T. A construção da metalinguística (fragmentos de uma ciência da linguagem na obra de Bakhtin e seu Círculo). 2002. 204f Tese (Doutorado em Semiótica e Linguística Geral) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. aponta como, de um lado, mero confronto terminológico e, de outro, possíveis contribuições oriundas de um trabalho comparativo devidamente orientado. Constatamos que o termo russo “tvortchestvo”9 9 As possibilidades de tradução envolvendo o termo tvortchestvo também estão implicadas no título do texto bakhtiniano publicado em 1929 a respeito de Dostoiévski. pode ser empregado tanto como “obra”, no sentido da produção global de um determinado autor, isto é, da coletânea de todos os seus trabalhos, quanto como “criação” ou “processo de criação”, no sentido de produto de um trabalho criativo. Assim é que nesta pesquisa, sabidas as implicações envolvidas na escolha de uma ou outra palavra que corresponda a “tvortchestvo” na língua de chegada, optamos por preservar ambas as acepções.

    Desse modo, a tradução de “tvortchestvo” nos títulos em francês e italiano preserva tais sentidos, dado o uso dos termos de origem latina “ouevre” e “opera ”, respectivamente, ambos vertidos para o português no quadro comparativo como “trabalho/obra”. No título da edição brasileira, publicada pela primeira vez em 1987 e vertida a partir do texto em francês, aparece a palavra “contexto”. O mesmo ocorre na edição em espanhol, traduzida diretamente do russo e publicada em 1974. Como primeiro apontamento, destacamos na edição brasileira “o contexto de François Rabelais” ao invés de “Tvortchestvo Fransua Rable” [“A obra/O processo de criação de François Rabelais”].

    Na primeira nota de rodapé da edição brasileira do artigo “Rabelais e Gogól (Arte do discurso e cômica popular)” (BAKHTIN, 2014BAKHTIN, M. M. Rabelais e Gógol (Arte do discurso e cultura cômica popular). In: BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014, p.429-439.), o título do livro é traduzido para o português como A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular da Idade Média e da Renascença. Além da opção por “da” ao invés de “na/no”, bem como por “Renascença” ao invés de “Renascimento”, observamos que a palavra “tvortchestvo” é empregada como “obra”. Notamos nessa versão a aproximação com o título original.

    Como segundo apontamento, acrescentamos que o título da edição brasileira de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais é separado por dois-pontos (:), oferecendo assim, além do título, um subtítulo. Contudo, como se pode observar, o título original não se divide em título e subtítulo: Tvortchestvo Fransua Rable i narodnaia kulʹtura Srednevekovʹia i Renessansa [A obra/O processo de criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento].

    Tal separação também se atesta pelo uso dos dois-pontos (:) no título em espanhol, bem como em italiano, em que se emprega o ponto final (.) no lugar da conjunção “ i ” [“e”] em relação ao original. Observamos ainda que, em italiano, “Srednevekovʹia i Renessansa” [“na Idade Média e no Renascimento”] corresponde à “nella tradizione medievale e rinascimentale” [“na tradição medieval e renascentista”], além de “Riso, carnevale e festa” [“Riso, carnaval e festa”], em lugar de “narodnaia kulʹtura” [“a cultura popular”].

    Embora a tradução disponível em italiano manifeste as diferenças observadas, evidenciamos que a parte inicial do título é recuperada tal qual em russo, precisamente o fragmento “L ’opera di Rabelais e la cultura Popolare” [“O trabalho/A obra de François Rabelais e a cultura popular”] em relação ao fragmento original “Tvortchestvo Fransua Rable” [“A obra/O processo de criação de François Rabelais”].

    Averiguamos, ainda, que o título em francês, assim como o título em português em “Rabelais e Gogól (Arte do discurso e cômica popular)”, correspondem ao original russo:

    1. i. na edição francesa: L ’ouevre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance) [O trabalho/A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média durante o Renascimento];

    2. ii. no artigo “Rabelais e Gogól (Arte do discurso e cômica popular)”: A obra de François Rabelais e a Cultura Popular da Idade Média e da Renascença;

    3. iii. na edição russa: Tvortchestvo Fransua Rable i narodnaia kulʹtura Srednevekovʹia i Renessansa) [A obra/O processo de criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento].

    Ainda que a edição francesa constitua texto-fonte para a tradução em português, a mesma correspondência observada no texto de partida não ocorre no título da edição brasileira. No original, em oposição à edição brasileira, a designação do autor com o qual se ocupa Bakhtin, isto é, “Fransua Rable” [“François Rabelais”], apresenta-se antes de “narodnaia kulʹtura Srednevekovʹia i Renessansa” [“a cultura popular na Idade Média e no Renascimento”]. O que podemos sugerir com isso é que, no título em português, assim como em espanhol, a pontuação que o divide, combinada à sequência em que se apresentam as partes, denotam subordinação de “o contexto de François Rabelais” ao título principal. Tal hierarquização sugere o contexto do autor francês como uma espécie de delimitação do estudo sobre “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento”.

    O que estamos interpretando como “ruído” entre o original e a tradução em português, presentifica-se na capa da 8.ª edição brasileira de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais – a qual usamos como texto-base neste artigo. A capa é atribuída na orelha da referida edição a Luis Díaz.

    Figura 2
    Capa (BAKHTIN, 2013BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.)

    Como evidenciado pela imagem, “A CULTURA POPULAR NA IDADE MÉDIA E NO RENASCIMENTO” figura como título principal em versalete. O recurso de ênfase utilizado e o tamanho do primeiro trecho em relação a “O Contexto de François Rabelais” – apresentado logo abaixo, em tamanho menor e com apenas a primeira letra de cada palavra em maiúscula – mantêm certa ordenação que subentende uma hierarquia.

    É possível perceber que, embora não haja a separação das partes por meio do uso dos dois pontos, o que é comum em capas, a hierarquização entre as frações se mantém. Ratificando o aspecto até agora observado na edição brasileira, notamos ainda que, aquilo que para a tradução em português é subtítulo, isto é, “O Contexto de François Rabelais”, acaba por ser suprimido no espaço reservado à lombada. O que lemos é apenas “A CULTURA POPULAR NA IDADE MÉDIA E NO RENASCIMENTO”.

    Figura 3
    Lombada (BAKHTIN, 2013BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.)

    Apesar da ausência dos dois pontos entre as partes do título impressas na capa, é possível afirmar que na edição brasileira “o contexto de François Rabelais” é tido como título secundário – o que se confirma pela supressão verificada na lombada. O peso de “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento”, em detrimento de “o contexto de François Rabelais”, é reafirmado pelo emprego dos dois pontos na chamada falsa folha de rosto, a qual contém apenas o título da obra; na folha de rosto, onde se lê o nome do autor, o título da obra e dados sobre a tradução, edição e editora; além dos dados informados pela ficha catalográfica.

    Figura 4
    Falsa folha de rosto (BAKHTIN, 2013BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.)

    Figura 5
    Folha de rosto (BAKHTIN, 2013BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.)

    Figura 6
    Ficha catalográfica (BAKHTIN, 2013BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.)

    Assim, contrastamos a importância dada ao nome de Rabelais no texto original em relação ao título da edição brasileira. A diferença se dá não só pela questão da separação entre título e subtítulo marcada pelo uso dos dois pontos, ou pela eventual omissão da segunda parte do título, mas, sobretudo, pela inversão do que se apresenta no russo. Assim, no original, o nome do autor com o qual se ocupa Bakhtin em seu estudo figura no começo do título e como núcleo da estrutura sintática.

    Notamos ainda a referência a “Rabelais” em todas as traduções por nós comparadas, mesmo naquelas que apresentam mudanças significativas no título, como a edição em inglês – vertida direto do russo em 1968, sendo a primeira tradução do livro e primeira tradução em inglês de uma obra do autor russo: Rabelais and his world [Rabelais e seu mundo]10 10 No Prólogo da tradução, Holquist (BAKHTIN, 1984, p.xxi) afirma: “Rabelais and His World (or, as it is called in Russian, François Rabelais and the Folk Culture of the Middle Ages and Renaissance)” [“Rabelais e seu mundo (ou, como é intitulado em russo, François Rabelais e a cultura popular da Idade Média e do Renascimento)”], suprimindo tvortchestvo, mas mantendo o restante do título conforme o original. . Assim, mesmo em sua concisão, a versão publicada em inglês conserva do título original o nome de Rabelais.

    O “ruído” ou “detalhe”, como mostraremos adiante, parece ser muito relevante. Ele remonta ao título da dissertação doutoral de Bakhtin, intitulada Rable v istorii realizma [Rabelais na história do realismo]. A respeito do título da dissertação, Pan’kov (1999, p.23)PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 2. Dialogism, n.2, p.7-40, 1999. cita a opinião de teor acusatório manifestada por Piksanov durante a defesa, no ano de 1946: “este é um título completamente equivocado. Com o mesmo grau de exagero que você se permitiu na sua escolha de título, vou me permitir lhe propor uma alternativa: Rabelais empurrado de volta para o interior da Idade Média e da Antiguidade. É assim que sua dissertação deve ser intitulada”11 11 TN. Em inglês: “this is a wholly misleading title. With the same degree of exaggeration as you have indulged in your choice of title, I will allow myself to propose to you an alternative: Rabelais Pushed Back into the Middle Ages and Antiquity. That is how your dissertation should be titled”. . Em contraste, Pan’kov também menciona a visão de Finkel’shtein (PAN’KOV, 1999, p.27PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 2. Dialogism, n.2, p.7-40, 1999.), ao contrapor a provocação de Piksanov: “Pelo contrário, o seu é um Rabelais que está avançando”12 12 TN. Em inglês: “On the contrary, yours is a Rabelais who is moving forward”. .

    3 Formas populares, festivas e grotescas em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais

    É revelador que, além da controversa questão acerca da forma como Bakhtin aborda a obra de Rabelais em relação ao passado ou ao futuro (ou ambos), a referência ao título seja expressa por pontos de vista tão antagônicos, procedentes dos membros do Conselho Acadêmico e do público na ocasião da defesa. Também valorosa para a devida recomposição da questão é a carta de Bakhtin para Soloviev e Leibovich, datada de 5 de julho de 1962, onde o autor-pesquisador já afirma a mudança de título. Aqui o vertemos sem o trabalho acurado de uma tradução rigorosa, em tradução livre portanto, mantendo a controvérsia em torno de obra/criação:

    Quadro 18

    Envio-lhe o manuscrito do meu livro A obra/criação de Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (mudei o título original). Este livro foi concluído em 1940 e ampliado em 1948, [...].

    Meu livro, concluído há cerca de duas décadas, precisa, é claro, de uma certa atualização e acréscimos. Além disso, você terá que dar nas notas uma tradução de todos os textos em língua estrangeira, dar algumas explicações, às vezes tornar a apresentação mais leve, usar a nova tradução de H. M. Lyubimov, etc. Mas a essência do livro permanecerá inalterada.

  • Fonte: Bakhtin (2010e, p.637)BAKHTIN, M. M. [Correspondência]. Destinatário: G. A. Soloviev e S. L. Leibovich. [S. l], 05 jul. 1962. In: BAKHTIN, M. M. Бахтин. Собрание сочинений [M. M. Bakhtin. Obras reunidas]. vol. 4(2). Moscou: Iazyki Slaviánskikh Kultúry, 2010e, p.637.13 13 TN. No texto consultado em russo: “Высылаю Вам рукопись моей книги «Творчество Рабле и проблема народной культуры средневековья и Ренессанса» (я изменил первоначальное заглавие). Книга эта закончена в 1940 г. и дополнена в 1948 г., [...]. Книга моя, выполненная около двух десятилетий тому назад, нуждается, конечно, в известном обновлении и в дополнениях. Кроме того, придется дать в примечаниях перевод всех иноязычных текстов, внести некоторые пояснения, местами улегчить изложение, использовать новый перевод H. М. Любимова и т. п. Но сущность книги останется неизменной”. .
  • O que se observa é o título como publicado em russo, em 1965, exceto pela ausência de “François”, referido no título mencionado na carta apenas como “Rabelais”. Retomamos o quadro comparativo entre os títulos provenientes do original, diferentes traduções e enunciados correlacionados (cf. Quadro 17). Ao dispor o nome do autor em um plano secundário, as edições brasileira e espanhola parecem se contrapor ao que Bakhtin (2013, p.50BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.; grifos nossos) explicita no final do capítulo introdutório, retomando: “o objeto específico do nosso trabalho não é a cultura cômica popular, mas a obra de François Rabelais”. Diante de tal afirmação, a relevância de Rabelais pode parecer ser mais propensa ao lugar de título que de subtítulo.

    É o que afirma também Souza (2002, p.35)SOUZA, G. T. A construção da metalinguística (fragmentos de uma ciência da linguagem na obra de Bakhtin e seu Círculo). 2002. 204f Tese (Doutorado em Semiótica e Linguística Geral) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002., em nota de rodapé: “Na realidade o título original é mais adequado aos propósitos teóricos bakhtinianos [...], pois é em torno da obra (desse enunciado concreto) que Bakhtin estuda a transição da cultura popular entre essas duas épocas”.

    Reafirmando o que estamos até agora nomeando como “ruído”, retomamos as afirmações do autor russo durante sua defesa, cujo contexto imediato, como mencionamos anteriormente, foi marcado por controvérsias. Na ocasião, Bakhtin introduz a noção de herói, distinguindo-a da noção de objeto, explicando que, a princípio, Rabelais, embora objeto, não era um “herói” em si. Em suas palavras:

    Quadro 19

    Podemos lembrar, apesar de uma possível controvérsia, que, em Problemas da poética de Dostoiévski, Bakhtin (2010a)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. apresenta, enquanto autor-pesquisador, o discurso bivocal como objeto e herói principal de sua pesquisa. Desse modo, herói para Bakhtin é objeto – e não corpus.

    As consequências dessa organização do título e do subtítulo, de certo modo hierárquica, podem ser compreendidas pelo que afirma Gurevich (1990, p. 12)GUREVICH, A. IA. Srednevekovyi mir: Kultura bezmolvstvuiushchego bolʹshinstva. Moscow: Iskusstvo, 1990., retomado por Pan’kov (1998)PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 1. Dialogism, n.1, p.11-29, 1998., para quem o exame dos textos rabelaisianos “leva Bakhtin à conclusão de que esses romances manifestam e trazem para a superfície um antagonismo entre duas culturas da Idade Média – a cultura eclesiástica, escolástica, oficial, por um lado, e a cultura popular e carnavalesca do riso, por outro”15 15 TN. Em inglês: “led Bakhtin to the conclusion that these novels manifested and brought to the surface an antagonism between the two cultures of the Middle Ages – the ecclesiastical, scholarly, official culture on the one hand, and the popular, carnivalesque culture of laughter on the other”. .

    Nessa chave, mencionamos a fala de Bakhtin em suas conclusões durante a defesa, conforme registros e destacado uma vez mais por Pan’kov:

    Quadro 20
    Eu não me aproximei do tópico com uma concepção pronta, eu fui pesquisando e continuo a pesquisar.
  • Fonte: Pan’kov (1998, p.14)PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 1. Dialogism, n.1, p.11-29, 1998.16 16 TN. Em inglês: “in his concluding remarks Bakhtin said: ‘I did not approach the topic with a ready-made conception, I was searching and I continue to search...’”. .
  • A nosso ver, essa afirmação é fundamental para compreender como Bakhtin se aproxima e se relaciona com a questão partindo de uma abordagem dialógica por princípio, em que a relação do autor-pesquisador com o corpus e com o objeto é que vai apontando os caminhos possíveis. Tais caminhos não estão dados de antemão, assim como também não estão o corpus e o objeto, tal qual buscamos aqui demonstrar.

    Nesse sentido, de acordo com Pan’kov (1998)PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 1. Dialogism, n.1, p.11-29, 1998., a questão é mais complexa. Segundo ele,

    o trabalho foi baseado, é claro, em um esquema indutivo [, porém,] não foi o estudo sobre Rabelais que levou Bakhtin a descobrir o antagonismo entre duas culturas da Idade Média, a descoberta das duas culturas da Idade Média (sobretudo a cultura popular) foi o que levou Bakhtin a estudar Rabelais (PAN’KOV, 1998, p.14-15PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 1. Dialogism, n.1, p.11-29, 1998.)17 17 TN. Em inglês: “The work was based, of course, on an inductive scheme”, however, “it was not the study of Rabelais that pushed Bakhtin towards his discovery of the antagonism between the two cultures of the Middle Ages, the discovery of the two cultures of the Middle Ages (above all its popular culture) was what prompted Bakhtin to study Rabelais”. .

    Nosso intuito não é discutir qual deva ser o título mais adequado, mas apontar indícios do que desponta como uma tensão entre corpus e objeto. O que aparentemente surge como “ruído” na tradução para o português em relação ao original em russo é, na verdade, uma questão que envolve as fronteiras entre o que figura como corpus e o que figura como objeto na pesquisa de Bakhtin sobre, ou melhor, a partir da obra rabelaisiana. Esse “ruído” parece dizer mais a respeito do processo de pesquisa e da importância da relação com o objeto do que exclusivamente do objeto de Bakhtin.

    E se, como sugere Pan’kov (1998)PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 1. Dialogism, n.1, p.11-29, 1998., Bakhtin é levado a estudar Rabelais, esse levar-se na pesquisa não ocorre de modo aleatório. É o que se atesta o seguinte fragmento:

    só onde a relação se torna aleatória de nossa parte, meio caprichosa, e nos afastamos da nossa relação de princípio com as coisas e com o mundo, a determinidade do objeto resiste a nós como algo estranho e independente e começa a desagregar-se, e nós mesmos ficamos sujeitos ao domínio aleatório, perdemos a nós mesmos e perdemos também a determinidade estável do mundo (BAKHTIN, 2011, p.4BAKHTIN, M. M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2011, p.1-192.).

    Desse modo, embora o objeto fale e seja necessário ouvi-lo em uma relação autenticamente dialógica e de alteridade, isso não significa dizer que a relação do autor-pesquisador com seu objeto não respeite determinados preceitos. Nesse ponto, recorremos à reflexão de Amorim (2004)AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa, 2004.. Para a autora, diferentemente do contexto do cotidiano, que privilegia a interação do autor com o destinatário, o fazer de uma pesquisa é centrado na relação de interação entre autor-pesquisador e objeto, sendo o destinatário um terceiro participante. Como propõe, o destinatário desempenha muito mais o papel de observador dessa relação entre autor e objeto. A autora destaca, ainda, o caráter imprevisível das respostas que frequentemente obtemos na pesquisa, ponderando que tal imprevisibilidade não implica que métodos sejam dispensáveis ou que o mero acaso possa reinar.

    Bakhtin (2016b, p.71BAKHTIN, M. M. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016b, p.71-107.; grifos no original), ao afirmar o texto como dado primário das Ciências Humanas, aponta-o “como realidade imediata (realidade do pensamento e das vivências), a única fonte de onde podem provir essas disciplinas e esse pensamento. Onde não há texto não há objeto de pesquisa e pensamento”. Por essa razão, compreendemos o corpus como texto que serve de ponto de partida para a investigação, mas que não coincide com o objeto. A definição do objeto de pesquisa depende da relação do pesquisador com esse texto de partida. É a relação de alteridade com o corpus que vai lhe dando elementos para definir o objeto da pesquisa – e vice-versa, posto que não se trata de um modo de proceder linear. Nesse sentido, podemos ouvir Volóchinov (2017, p.143)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. ao afirmar “no início da pesquisa não se pode construir uma definição, apenas indicações metodológicas: é preciso, antes de mais nada, apalpar o objeto real da pesquisa, destacá-lo da realidade circundante e apontar previamente seus limites”.

    Discordamos de Bernardi (2012, p.76)BERNARDI, R. M. Rabelais e a sensação carnavalesca do mundo. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2012, p.73-94. a respeito do objeto de estudo de Bakhtin ser a obra rabelasiana. O que Bernardi define como objeto é, a nosso ver, corpus. Bakhtin, em A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, debruça-se sobre os livros do autor francês publicados no período renascentista e, nesses escritos (se bem que não restrito a eles), o investigador conduz sua busca de modo a encontrar perguntas e respostas para o que lhe figura como problema de pesquisa. Contudo, embora a princípio o objeto possa não se apresentar definidamente, isso não significa dizer que o corpus se confunda com objeto (e vice-versa).

    Dito de outro modo, mesmo que corpus e objeto se apresentem a priori amalgamados, a relação do pesquisador com esse corpus vai, gradualmente, desenhando seu objeto. Segundo, ainda, Volóchinov (2017, p.136)VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. – em nota de rodapé de Marxismo e filosofia da linguagem, ao discorrer a respeito da ideia de impressão total, tomada de empréstimo de outros autores –, “a impressão total é uma impressão ainda não separada do objeto como um todo, uma espécie de aroma do todo, que antecede e fundamenta o reconhecimento claro do objeto”. Parece, portanto, possível dizer que a princípio o autor-pesquisador tem uma ideia de qual possa ser seu objeto e de como esse objeto pode levá-lo a hipotetizar sobre, mas a relação com o objeto a partir do corpus é que vai determinando e estabilizando as fronteiras entre ambos.

    Apontamos que as marcas evidenciadas até aqui podem ser também averiguadas no decorrer do texto, isto é, postas em relação dialógica, apontando tensões que nos fornecem possíveis caminhos em direção ao método empreendido por Bakhtin em suas obras, sobretudo em relação ao seu objeto.

    Apenas para ilustrar, vejamos alguns exemplos no decorrer dos capítulos. Logo na apresentação do problema, ainda na introdução, o autor-pesquisador questiona:

    Quadro 21
    Quais são as características específicas das formas dos ritos e espetáculos cômicos da Idade Média e, antes de mais nada, qual é a sua natureza, isto é, qual é o seu modo de existência?
  • Fonte: Bakhtin (2013, p.5)BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013..
  • No segundo capítulo, intitulado “O vocabulário da praça pública na obra de Rabelais”, o autor-pesquisador afirma:

    Quadro 22
    O que nos interessa é saber como a praça pública penetrou na obra de Rabelais, como ela aí se refletiu.
  • Fonte: Bakhtin (2013, p.137)BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.
  • Como na obra sobre Dostoiévski, Bakhtin cita trechos do texto em análise.

    Quadro 23

    Como está construído o Prólogo de Pantagruel, isto é, do primeiro livro escrito e publicado?

    Vejamos o começo:

    [...]18 18 Supressão da citação que faz Bakhtin (2013) de Pantagruel.

    Como vemos, o autor louva a Crônica de Gargantua, celebrando ao mesmo tempo aqueles que se deleitaram com a sua leitura. [...]. Mas naturalmente, esses discursos estão muito distantes da publicidade ingênua e “séria”. Eles estão impregnados do riso do povo em festa.

  • Fonte: Bakhtin (2013, p. 138BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013. - grifo no original)
  • Bakhtin atrela os elogios verificados no trecho que cita ao estilo dos camelôs, charlatães da feira e vendedores de livros, situando-se no que isso representava no contexto da praça pública na Idade Média. É assim que o autor-pesquisador começa a relacionar o texto rabelaisiano com a Idade Média.

    No último capítulo, “As imagens de Rabelais e a realidade do seu tempo”, afirma:

    Quadro 24

    A tarefa essencial de Rabelais consistia em destruir o quadro oficial da época e dos seus acontecimentos, em lançar um olhar novo sobre eles, em iluminar a tragédia ou a comédia da época do ponto de vista do coro popular rindo na praça pública.

    [...] Vamos agora seguir numa série de exemplos a maneira como se refletiu a realidade da época, desde o ambiente imediato do escritor até aos grandes acontecimentos.

  • Fonte: Bakhtin (2013, p.386-387BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.; grifos no original)
  • Na sequência, Bakhtin começa por mencionar o capítulo do nascimento do herói, depois a compra das indulgências e segue mobilizando uma série de exemplos e citações à obra rabelaisiana, como faz em Problemas da poética de Dostoiévski, visando a praça pública. Nesse sentido, nos parece possível dizer que o objeto do autor é o que ele também chama de herói principal no excerto que citamos anteriormente, referente às conclusões da defesa (cf. Quadro 19). Assim, podemos dizer que as formas populares, festivas e grotescas são o objeto de Bakhtin na pesquisa que tem a obra de Rabelais como corpus sobre o qual se debruça. Por fim, vejamos o que afirma Bakhtin como original em Rabelais:

    Quadro 25
    Examinamos todos os aspectos mais importantes da obra rabelaisiana – na nossa opinião – e esforçamo-nos por demonstrar que sua excepcional originalidade é determinada pela cultura cômica popular do passado, cujos poderosos contornos se desenham por trás de todas as imagens de Rabelais.
  • Fonte: Bakhtin (2013, p.417)BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.
  • Ao analisarmos elementos concretos do livro a respeito de Rabelais, contrapondo-os a algumas traduções do título da obra e da dissertação, bem como estabelecendo relações dialógicas possíveis advindas dos registros da defesa de Bakhtin, o que verificamos a princípio como “ruído” entre traduções vai se configurando como questão de fronteiras entre corpus e objeto. Parece-nos que o próprio autor hesita em afirmar qual seria, de fato, seu objeto. Nesse sentido, a obra Gargantua e Pantagruel, ao contrário do afirmado por Bakhtin (2013)BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013. e reiterado por Bernardi (2012)BERNARDI, R. M. Rabelais e a sensação carnavalesca do mundo. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2012, p.73-94., é corpus do autor-pesquisador e não seu objeto, efetivamente, as formas populares, festivas e grotescas.

    Recorremos, uma vez mais, às palavras de Bakhtin (2016b, p.96BAKHTIN, M. M. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016b, p.71-107.; grifo nosso):

    Frequentemente, toda a análise científica se reduz à revelação de um dado inteiro, já presente e pronto antes da obra (o que foi encontrado de antemão e não criado pelo artista). É como se o dado inteiro fosse recriado no interior daquilo que fora criado, se transformasse nele. A redução ao que foi dado e preparado de antemão. O objeto pronto, os meios linguísticos prontos para sua expressão, o próprio artista pronto, sua visão de mundo pronta. E eis que por meio de recursos prontos, à luz de uma visão de mundo pronta, o poeta reflete o objeto pronto. Em realidade, também se cria o objeto no processo de criação, criam-se o próprio poeta, a sua visão de mundo, os meios de expressão.

    Na passagem citada, o que afirma Bakhtin (2016b)BAKHTIN, M. M. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016b, p.71-107. sobre a criação literária, aqui inspira nossas reflexões a respeito do criar científico. Assim, em perspectiva dialógica, a alteridade permeia e valoriza o processo investigativo, determinando o seu proceder. Nesse sentido, corpus e objeto assumem a posição de “outro” com que o autor-pesquisador, que igualmente se constitui no e pelo processo, se relaciona.

    Consciente dessa relação, Magalhães (2010, p.264)MAGALHÃES, A. S. Subjetivação, jornalismo e ética: uma abordagem dialógica. 2010. 275f Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010., também a partir de uma perspectiva dialógica, metaforiza a relação que estabelece com o objeto de sua pesquisa, que ele distingue do corpus, como uma “conversa”. A metáfora explicita o dialogismo como princípio desse modo de investigar que perpassa também o objeto. De acordo com Brait e Magalhães (2014, p.14)BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. Uma palavra sobre dialogismo. In: BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. (orgs.) Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota Editora, 2014, p.13-15., “para o sujeito da pesquisa, a condição subjetiva inerente ao que ele, o pesquisador, constrói como objeto impõe ao trabalho com a linguagem o desafio não apenas de falar desse objeto, mas principalmente dialogar com ele”. Assim, “o diálogo figura tanto como modo de funcionamento da linguagem quanto como ponto de vista que instaura um objeto de estudo” (BRAIT; MAGALHÃES, 2014, p.13BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. Uma palavra sobre dialogismo. In: BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. (orgs.) Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota Editora, 2014, p.13-15.). E é o que reitera Magalhães (2010, p.266)MAGALHÃES, A. S. Subjetivação, jornalismo e ética: uma abordagem dialógica. 2010. 275f Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010. nas linhas finais de sua tese, nas quais ressalta “a força discursiva do objeto” que “não poderia estar predeterminada na investigação”.

    De acordo com essa concepção, tanto objeto quanto corpus deixam de ser coisa para serem tomados como sujeitos: “A coisa, ao permanecer coisa, pode influenciar apenas as próprias coisas; para exercer influência sobre os indivíduos ela deve revelar seu potencial de sentidos, isto é, deve incorporar-se ao eventual contexto de palavras e sentidos” (BAKHTIN, 2017, p.71BAKHTIN, M. M. Por uma metodologia das ciências humanas [1930-1940]. In: BAKHTIN, M. M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2017. p.57-79.; grifos no original). É assim, numa relação genuína de alteridade que atravessa e determina a pesquisa em perspectiva dialógica, que se revelam os sentidos mais fundamentais para os interesses do que se investiga.

    Conclusão

    Ao contrário do que possa ser observado em eventuais definições do que é objeto nas obras bakhtinianas e até mesmo pelo que é afirmado por Bakhtin a respeito, o que se verifica nos textos do autor acerca dos escritos de Dostoiévski e Rabelais é que, embora a princípio o objeto do autor-pesquisador em cada uma das investigações possa não se apresentar de modo definido, isso não significa dizer que o corpus se confunda com objeto (e vice-versa).

    Nosso exame revela que, em seu processo investigatório, Bakhtin se aproxima e se relaciona com os textos como corpus e não como objeto, ainda que seja a partir da relação com o corpus que o autor-pesquisador construa o objeto de sua investigação, empreendendo uma abordagem genuinamente dialógica desde o princípio. Assim, compreendemos o corpus como texto que serve de ponto de partida para a investigação, contudo, o corpus não coincide com o objeto. Concluímos que, em perspectiva dialógica, o objeto não pode ser dado de antemão e que a relação de alteridade com o corpus é que fornece elementos para definir qual seja de fato o objeto de pesquisa.

    O corpus, contudo, tampouco está posto. A determinação de um corpus é, por si só, tarefa interpretativa. O corpus, antes de ser corpus, é um enunciado concreto que faz parte da ininterrupta cadeia comunicativa. Somos nós, como autores-pesquisadores, tendo em vista determinados propósitos, que nos aproximamos, recolhemos e emolduramos os enunciados, deslocando-os a fim de configurá-los como corpus a ser analisado. Ao fazer esse movimento, constituímos uma outra cadeia. Embora aqui não discutamos esse processo de conformação do corpus para Bakhtin em detalhes, saliento que o corpus do autor russo também não estava dado. Trata-se, portanto, de um proceder distante de uma relação causal entre corpus e objeto, marcada por etapas mecânicas.

    Assim, apontamos que, ainda que corpus e objeto se apresentem a priori amalgamados, é a imprescindível relação do autor-pesquisador com esse corpus que vai, gradualmente, destacando qual seja efetivamente seu objeto. Ressaltamos ainda que essa forma de proceder tampouco é mecânica, unidirecional ou linear, são as idas e vindas do autor-pesquisador entre seu corpus e seu objeto que vão delineando os limites e caminhos entre um e outro. Espera-se que a reflexão que aqui fazemos a respeito de Bakhtin, como autor-pesquisador, e seus objetos de pesquisa também faça refletir a nossa própria área de atuação, o nosso próprio fazer investigativo tendo em vista os nossos objetos.

    • 1
      Este artigo é resultado parcial da investigação desenvolvida por mim como Pesquisadora Associada na Queen Mary – University of London, nos anos de 2019 e 2020, financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, Processo Nº 88881.362209/2019-01, sob a coorientação do Professor Doutor Galin Tihanov, tendo como fontes de busca: British Library e Senate House Library, Londres, Reino Unido. No Brasil, a pesquisa de doutorado foi realizada sob a orientação da Profa. Dra. Beth Brait/LAEL/PUC-SP, com bolsa CNPq Proc. 168996/2018-9.
    • 2
      Tanto a polifonia proposta por Komaróvitch como a aproximação de metáforas musicais para a análise da obra dostoievskiana por Ivánov são anteriores à discussão de Bakhtin desde o livro de 1929. Para mais detalhes, ver Grillo (2021)GRILLO, S. V. de C. Problemas da criação de Dostoiévski (1929): gênese do texto e fontes bibliográficas. Bakhtiniana, São Paulo, v.16, n.2, p.266-297, abr./jun. 2021. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/48296/35162. Acesso em: 21 jun. 2021.
      https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
      .
    • 3
      Para detalhes, ver página 213, precisamente a nota de rodapé número 1, de Bakhtin (2010a)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a..
    • 4
      Supressão da citação que faz Bakhtin (2010a)BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a. de Gente pobre. Embora aparentemente redundante, a indicação que aqui fazemos opera como recurso que localiza e demarca na materialidade o que discutimos.
    • 5
      Idem.
    • 6
      Idem.
    • 7
      Tradução nossa (daqui em diante TN), exceto para a versão publicada em português.
    • 8
      Neste artigo, os títulos e termos originais são apresentados em russo transliterado.
    • 9
      As possibilidades de tradução envolvendo o termo tvortchestvo também estão implicadas no título do texto bakhtiniano publicado em 1929 a respeito de Dostoiévski.
    • 10
      No Prólogo da tradução, Holquist (BAKHTIN, 1984, p.xxiBAKHTIN, M. M. Rabelais and His World. Trans. H. Iswolsky. Bloomington: Indiana University Press, 1984.) afirma: “Rabelais and His World (or, as it is called in Russian, François Rabelais and the Folk Culture of the Middle Ages and Renaissance)” [“Rabelais e seu mundo (ou, como é intitulado em russo, François Rabelais e a cultura popular da Idade Média e do Renascimento)”], suprimindo tvortchestvo, mas mantendo o restante do título conforme o original.
    • 11
      TN. Em inglês: “this is a wholly misleading title. With the same degree of exaggeration as you have indulged in your choice of title, I will allow myself to propose to you an alternative: Rabelais Pushed Back into the Middle Ages and Antiquity. That is how your dissertation should be titled”.
    • 12
      TN. Em inglês: “On the contrary, yours is a Rabelais who is moving forward”.
    • 13
      TN. No texto consultado em russo: “Высылаю Вам рукопись моей книги «Творчество Рабле и проблема народной культуры средневековья и Ренессанса» (я изменил первоначальное заглавие). Книга эта закончена в 1940 г. и дополнена в 1948 г., [...].
      Книга моя, выполненная около двух десятилетий тому назад, нуждается, конечно, в известном обновлении и в дополнениях. Кроме того, придется дать в примечаниях перевод всех иноязычных текстов, внести некоторые пояснения, местами улегчить изложение, использовать новый перевод H. М. Любимова и т. п. Но сущность книги останется неизменной”.
    • 14
      TN. Em inglês: “I decided to make [Rabelais] the particular object of my research, but nevertheless he did not become my hero. For me he was just the clearest and most intelligible articulator of this world. Thus the hero of my monograph is not Rabelais, but this popular, festive-grotesque forms, the traditions revealed, illuminated for us in the work of Rabelais”.
    • 15
      TN. Em inglês: “led Bakhtin to the conclusion that these novels manifested and brought to the surface an antagonism between the two cultures of the Middle Ages – the ecclesiastical, scholarly, official culture on the one hand, and the popular, carnivalesque culture of laughter on the other”.
    • 16
      TN. Em inglês: “in his concluding remarks Bakhtin said: ‘I did not approach the topic with a ready-made conception, I was searching and I continue to search...’”.
    • 17
      TN. Em inglês: “The work was based, of course, on an inductive scheme”, however, “it was not the study of Rabelais that pushed Bakhtin towards his discovery of the antagonism between the two cultures of the Middle Ages, the discovery of the two cultures of the Middle Ages (above all its popular culture) was what prompted Bakhtin to study Rabelais”.
    • 18
      Supressão da citação que faz Bakhtin (2013)BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013. de Pantagruel.

    Agradecimentos

    Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela bolsa de doutorado concedida durante o período de realização desta pesquisa e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (CAPES) pelo estágio na Queen Mary – University of London.

    REFERÊNCIAS

    • AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa, 2004.
    • BACHTIN, M. L´opera di Rabelais e la cultura Popolare Riso, carnevale e festa nella tradizione medievale e rinascimentale. Trad. Mili Romano. Torino: Giulio Einaudi, 1998.
    • BAJTÍN, M. Adiciones y cambios a Rabelais In: AVERINTSEV, S.S.; MAKHLIN, V.L.; RYKLIN, M.; BUBNOVA, T. (ed.). En torno de la cultura popular de la risa Nuevos fragmentos de M.M. Bajtín (Adiciones y cambios a Rabelais). Rubí (Barcelona): Anthropos Editorial; México: Fundación Cultural Eduardo Cohen, 2000, p.165-218.
    • BAJTÍN, M. La cultura popular en la Edad Media y en el Renacimiento: el contexto de François Rabelais. Version Julio Forcat y César Conroy. Madrid: Alianza Editorial, 2003.
    • BAKHTIN, M. M. Rabelais and His World. Trans. H. Iswolsky. Bloomington: Indiana University Press, 1984.
    • BAKHTIN, M. M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5. ed. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010a.
    • BAKHTIN, M. M. Бахтин. Собрание сочинений [M. M. Bakhtin. Obras reunidas]. vol. 4(2). Moscou: Iazyki Slaviánskikh Kultúry, 2010b.
    • BAKHTIN, M. M. [Correspondência]. Destinatário: G. A. Soloviev e S. L. Leibovich. [S. l], 05 jul. 1962. In: BAKHTIN, M. M. Бахтин. Собрание сочинений [M. M. Bakhtin. Obras reunidas]. vol. 4(2). Moscou: Iazyki Slaviánskikh Kultúry, 2010c, p.637.
    • BAKHTIN, M. M. [Correspondência]. Destinatário: V. V. Kozhinov. [S. l], 02 jul. 1962. In: BAKHTIN, M. M. Бахтин. Собрание сочинений [M. M. Bakhtin. Obras reunidas]. vol. 4(2). Moscou: Iazyki Slaviánskikh Kultúry, 2010d, p.636-637.
    • BAKHTIN, M. M. [Correspondência]. Destinatário: G. A. Soloviev e S. L. Leibovich. [S. l], 05 jul. 1962. In: BAKHTIN, M. M. Бахтин. Собрание сочинений [M. M. Bakhtin. Obras reunidas]. vol. 4(2). Moscou: Iazyki Slaviánskikh Kultúry, 2010e, p.637.
    • BAKHTIN, M. M. O autor e a personagem na atividade estética. In: BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2011, p.1-192.
    • BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2013.
    • BAKHTIN, M. M. Rabelais e Gógol (Arte do discurso e cultura cômica popular). In: BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora F. Bernardini et al. 7. ed. São Paulo: Hucitec, 2014, p.429-439.
    • BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016a, p.11-70.
    • BAKHTIN, M. M. O texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas: um experimento de análise filosófica. In: BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016b, p.71-107.
    • BAKHTIN, M. M. Por uma metodologia das ciências humanas [1930-1940]. In: BAKHTIN, M. M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 2017. p.57-79.
    • BAKHTINE, M. M. L ’ouevre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance. Trad. Andreé Robel. Paris: Gallimard, 1970.
    • BERNARDI, R. M. Rabelais e a sensação carnavalesca do mundo. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2012, p.73-94.
    • BRAIT, B. Problemas da poética de Dostoiévski: a recepção brasileira. Bakhtiniana, São Paulo, v.16, n.2, p.70-89, abril/jun. 2021. Disponível em https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/48770/35074 Acesso em: 11 out. 2021.
      » https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/48770/35074
    • BRAIT, B. Discursos de resistência: do paratexto ao texto ou vice-versa? Alfa, São Paulo, v.63, n.2, p.243-263, set. 2019. Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/11452/8477 Acesso em: 12 abr. 2020.
      » https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/view/11452/8477
    • BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. Uma palavra sobre dialogismo. In: BRAIT, B.; MAGALHÃES, A. S. (orgs.) Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota Editora, 2014, p.13-15.
    • BRAIT, B.; PISTORI, M. H. C. Marxismo e filosofia da linguagem: a recepção de Bakhtin e o Círculo no Brasil. Bakhtiniana, São Paulo, v.15, n.2, p.33-63, abr./jun. 2020. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/44560/31602 Acesso em: 07 dez. 2020.
      » https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/44560/31602
    • GRILLO, S. V. de C. Problemas da criação de Dostoiévski (1929): gênese do texto e fontes bibliográficas. Bakhtiniana, São Paulo, v.16, n.2, p.266-297, abr./jun. 2021. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/48296/35162 Acesso em: 21 jun. 2021.
      » https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/48296/35162
    • GUREVICH, A. IA. Srednevekovyi mir: Kultura bezmolvstvuiushchego bolʹshinstva. Moscow: Iskusstvo, 1990.
    • MAGALHÃES, A. S. Subjetivação, jornalismo e ética: uma abordagem dialógica. 2010. 275f Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
    • PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 1. Dialogism, n.1, p.11-29, 1998.
    • PAN’KOV, N. ‘Everything Else Depends on How This Business Turns out...’: The Defence of Mikhail Bakhtin’s Dissertation as Real Event, as High Drama and as Academic Comedy: Part 2. Dialogism, n.2, p.7-40, 1999.
    • SOUZA, G. T. A construção da metalinguística (fragmentos de uma ciência da linguagem na obra de Bakhtin e seu Círculo). 2002. 204f Tese (Doutorado em Semiótica e Linguística Geral) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
    • VOLÓCHINOV, V. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Maio 2022
    • Data do Fascículo
      Apr-Jun 2022

    Histórico

    • Recebido
      10 Dez 2021
    • Aceito
      28 Fev 2022
    LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com