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Bakhtin, discurso teatral e educação estética: uma entrevista com Dick McCaw

Apresentação

Dick McCaw é professor do Departamento de Drama, Teatro e Dança da Royal Holloway, Universidade de Londres. Autor, entre outros importantes trabalhos, da obra Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski [Bakhtin e teatro: diálogos com Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski] (McCaw, 2016McCAW, D. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski. Abingdon: Routledge, 2016.), um dos primeiros estudos em língua inglesa publicados em livro a abordar as relações entre Bakhtin e as Artes Cênicas. Como já dissemos quando resenhamos a obra (GONÇALVES; CABARRÃO SANTOS, 2016GONÇALVES, J. C.; CABARRÃO SANTOS, M. MCCAW, Dick. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski [Bakhtin e o teatro: diálogos com Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski]. Abingdon: Routledge, 2015. 264p. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 11, n. 3, pp.213-218, Dec. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732016000300213&lng=en&nrm=iso.Acesso em 22 set. 2020. https://doi.org/10.1590/2176-457328069
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), ela “examina as conexões entre o pensamento do autor russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) e a produção teatral de diretores e pesquisadores teatrais contemporâneos de Bakhtin: Konstantin Stanislavsky (1863- 1938), Vsevelod Meyerhold (1879-1940) e Jerzy Grotowski (1933-1999)” (GONÇALVES; SANTOS, 2016GONÇALVES, J. C.; CABARRÃO SANTOS, M. MCCAW, Dick. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski [Bakhtin e o teatro: diálogos com Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski]. Abingdon: Routledge, 2015. 264p. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 11, n. 3, pp.213-218, Dec. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732016000300213&lng=en&nrm=iso.Acesso em 22 set. 2020. https://doi.org/10.1590/2176-457328069
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, p.214), constituindo, assim, um texto de importância ímpar, tanto para estudiosos de Bakhtin quanto para pesquisadores da área de estudos teatrais.

Quando convidado a integrar, como membro colaborador estrangeiro, o Laboratório de estudos em Educação performativa, Linguagem e Teatralidades (ELiTe/UFPR/CNPq), grupo que lidero na Universidade Federal do Paraná, Dick McCaw passou não somente a integrar o coletivo, mas a contribuir significativamente com a pesquisa sobre as relações entre Bakhtin e o Teatro, participando, especialmente, de projetos editoriais vinculados ao tema. Tomo como exemplo o Volume 14, Número 3 de Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, dedicado a Bakhtin e às Artes do Espetáculo, no qual Dick McCaw e eu atuamos como Editores ad hoc. Nesse número, seu olhar para as artes cênicas e para o corpo se refletem tanto no texto editorial (GONÇALVES; McCAW, 2019GONCALVES, J. C.; McCAW, Dick. Bakhtin e as artes do espetáculo. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 14, n. 3, p.5-14, Set. 2019. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732019000300005&lng=en&nrm=iso.Acesso em 14 out. 2020. Epub Ago 05, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/2176-457343919.
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) quanto no artigo Corpos em Bakhtin (McCAW, 2019McCAW, D. Corpos em Bakhtin/Bakhtin's Bodies. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 14, n. 3, p.35-56, Sept. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732019000300035&lng=en&nrm=iso. Acesso em 22 set. 2020. Epub Aug 05, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/2176-457341642.
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), que retoma aspectos fundamentais para a compreensão de corpo na obra bakhtiniana.

Dick nos apresenta, em seus textos, modos de ler o mundo que unem a perspectiva dialógica ao campo das artes do corpo e da cena e da própria arte de viver a vida, assunto tão caro ao próprio Bakhtin, principalmente na formulação de caráter mais filosófico que constitui seus primeiros ensaios. Em “O autor e a personagem na atividade estética” (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: Bakhtin. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.3-194. [1920-22]. [1920-22]), por exemplo, vemos um Bakhtin muito interessado nas reflexões sobre o teatro de sua época; a arte do ator, ressaltemos, é tema presente em várias passagens que, por uma leitura um tanto desatenta, ou não interessada no tema, podem passar despercebidas1 1 Uma reflexão mais densa sobre esta questão pode ser lida no capítulo “Apontamentos sobre teatro e referências à arte do ator na obra de Bakhtin e o Círculo” (GONÇALVES, 2019), que escrevi para o livro Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev), organizado por Beth Brait, Maria Helena Cruz Pistori e Pedro Farias Francelino. .

Em setembro de 2020, em uma troca de e-mails com Dick McCaw sobre parcerias e projetos que estamos desenvolvendo juntos, senti a necessidade de saber um pouco mais sobre sua trajetória, sua relação com a teoria bakhtiniana e suas expectativas quanto a continuarmos estudando Bakhtin neste século XXI, cujos primeiros anos já se revelam tão assustadores e indecifráveis. O resultado desse vai e vem palavreado, escrito, em tela, é uma entrevista, muito vinculada ao formato de conversa, que apresenta ao leitor algumas curiosidades, carregadas, sempre, da cientificidade característica de Dick McCaw, mas que revelam, ao mesmo tempo, nuances e facetas da vida de um pesquisador em sua luta dialógica com um teórico que o fascina.

Entrevista

Jean Carlos Gonçalves: Caro Dick, conte-nos um pouco sobre sua relação com a teoria bakhtiniana. Como conheceu a perspectiva dialógica? Como Bakhtin passou a fazer parte da sua vida e do seu universo teatral?

Dick McCaw: Minha história com Bakhtin - Descrevi minha história em detalhes no Prefácio de Bakhtin and Theatre, por isso retomo a citação:

A conexão entre Bakhtin e o teatro foi principalmente autobiográfica e me remete a 1982, quando estava com os Medieval Players (1981–1992) – uma companhia itinerante de teatro que criei com o diretor e ator Carl Heap. A produção que planejamos para o verão de 1983 era uma adaptação do Gargântua de Rabelais, na tradução apimentada de Sir Thomas Urquhart. Enquanto a ideia de Rabelais era imensamente atrativa, a realidade do romance propunha dois problemas: eu não o considerava engraçado e não conseguia acessar o seu universo. Carl me sugeriu ler a obra de um excêntrico russo chamado Bakhtin, uma leitura “repetitiva e cheia de voltas”, mas que poderia me ajudar a entender melhor Rabelais. Ele estava certo: A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais deu sentidos às imagens e valores no romance, e me deu um apetite pela obra de Bakhtin que dura até hoje.

Gradualmente, mais e mais referências de Bakhtin começaram a infiltrar as palestras e os workshops que eu costumava fazer em escolas e universidades para conseguir apoio para nossas apresentações. As vívidas evocações de Bakhtin à cultura medieval e renascentista eram um meio certo de ganhar a atenção da audiência – ele transmitia brilhantemente o humor vital, vulgar, terreno e generoso de Rabelais. Quando os livros de Bakhtin começaram a ser traduzidos na década de 1980, foram incorporados a todas as minhas palestras subsequentes. O que começou como um feliz acidente se transformou em uma fascinação de mais de 30 anos por esse pensador russo (2016.p.xi)2 2 Original na versão em inglês, neste número (16.3, p.197). .

Jean Carlos Gonçalves: Publicamos, em 2016, na Bakhtiniana: Revista de estudos do discurso, uma resenha do seu livro Bakhtin e o teatro: diálogos com Stanislavski, Meyerhold e Grotowski [Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavski, Meyerhold and Grotowski] (GONÇALVES; CABARRÃO SANTOS, 2016GONÇALVES, J. C.; CABARRÃO SANTOS, M. MCCAW, Dick. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski [Bakhtin e o teatro: diálogos com Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski]. Abingdon: Routledge, 2015. 264p. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 11, n. 3, pp.213-218, Dec. 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732016000300213&lng=en&nrm=iso.Acesso em 22 set. 2020. https://doi.org/10.1590/2176-457328069
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). Quando e porque você decidiu escrever esta obra? Os principais interlocutores desse trabalho são pesquisadores bakhtinianos ou artistas da cena?

Dick McCaw: Por que escrevi Bakhtin and Theatre? - Mencionei anteriormente que costumava dar palestras sobre Bakhtin para promover as apresentações dos Medieval Players. Todavia, em algum momento, comecei a ser convidado para conferências e reuniões. Depois, me convidaram para publicar, em uma publicação romena chamada Unitext, um seminário que dei a diretores de teatro em Bucareste. Acho que cheguei na página 90 de um texto chamado Sobre o Riso e percebi que não poderia escrever sobre Bakhtin e o Círculo até que tivesse estudado suas obras com mais profundidade. Então, comecei o pós-doutorado em setembro de 1997, o qual defendi com sucesso no verão de 2004. Quando indagado se queria publicar a tese, respondi enfaticamente “não”. Apesar das partes úteis, ela não formava um argumento consistente e, certamente, não fazia uma conexão significativa entre os escritos de Bakhtin e o Círculo e a prática teatral. Abandonei, portanto, o “projeto Bakhtin” ao começar a treinar para me tornar um praticante de Feldenkrais e a trabalhar no movimento Laban com Geraldine Stephenson (que havia aprendido com o próprio Laban).

Comecei a pensar sobre Bakhtin e teatro novamente em 2011 e passei dois anos pensando como a tese poderia se tornar um livro. Em 2013, percebi que a discussão precisava ser organizada em função de questões teatrais. Teria adorado se “Questões teatrais” fosse o título da obra, mas assim revelaria pouco sobre o tema e não traria o nome Bakhtin. “Questões teatrais” foi central para trazer o pensamento de Bakhtin e o pensamento subjacente à prática teatral para essa relação dinâmica. Concentrei o foco no debate entre Meyerhold, Grotowski e Stanislavsky, cujas carreiras teatrais se desenvolveram na época de Bakhtin. Esses três diretores/pedagogos se questionavam constantemente, e um ao outro, sobre a natureza do teatro, sobre o trabalho do ator no teatro e seus diálogos com o público. Quanto mais eu pensava sobre o assunto, mais percebia que os escritos de Bakhtin – principalmente os mais antigos – formavam a base para essas questões. Embora Bakhtin as aplicasse a uma concepção filosófica de romance, ficou claro que essas questões poderiam nortear o estudo acerca do trio de diretores teatrais que havia escolhido. O resultado é um livro altamente seletivo em seu uso de materiais: faço poucas referências aos textos mais conhecidos de Bakhtin e escolhi apenas certos aspectos de seu pensamento.

O mesmo se aplica aos escritos de e sobre encenadores teatrais; qualquer coisa que não ajudasse a enquadrar, responder e exaurir o potencial dessas questões teatrais precisou ser deixada de lado. O livro seria (deveria ser) maior se explorasse o diálogo sobre as questões teatrais, desenvolvido por Vakhtangov em Moscou, por Michael Chekhov primeiro em Moscou e depois na Inglaterra e nos Estados Unidos e, finalmente, por Brecht na República Democrática da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. Tais discussões cabiam no escopo da minha discussão, mas deixariam o livro inaceitavelmente longo, então viraram um projeto para o futuro.

Jean Carlos Gonçalves: Seu artigo Corpos em Bakhtin (McCaw, 2019McCAW, D. Corpos em Bakhtin/Bakhtin's Bodies. Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 14, n. 3, p.35-56, Sept. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732019000300035&lng=en&nrm=iso. Acesso em 22 set. 2020. Epub Aug 05, 2019. http://dx.doi.org/10.1590/2176-457341642.
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), publicado em Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, aponta algumas perspectivas do Círculo sobre o corpo, e para a relação entre corpo, filosofia e linguagem. Como você imagina que a teoria bakhtiniana pode contribuir para a compreensão de corpo hoje, cem anos após os primeiros escritos de Bakhtin?

Dick McCaw: A teoria de Bakhtin sobre o corpo e a compreensão do corpo hoje - Após o livro sobre Bakhtin, escrevi dois outros volumes sobre o corpo do ator: Training the Actor’s Body: A Guide [Treinando o corpo do ator: um guia] (2018) e Rethinking the Actor’s Body: Dialogues with Neuroscience [Repensando o corpo do ator: diálogos com a Neurociência] (2020). Essas obras refletem tanto meu treinamento no método Feldenkrais (qualifiquei em 2007) quanto meus estudos e ensino dos princípios do movimento de Rudolf Laban, os quais resultaram em duas obras editadas: em 2006McCAW, D. (Ed.). An Eye for Movement. London: Routledge, 2006., An Eye for Movement [Um olhar para o movimento] e, em 2011McCAW, D. (Ed.). The Laban Sourcebook. London: Routledge,2011., The Laban Sourcebook [O livro das fontes do pensamento de Laban]. Novas oportunidades para pensar sobre Bakhtin foram propostas por Slav Gratchev, que comissionou o ensaio Towards a Philosophy of the Moving Body e por você, Jean, que continua me convidando a pensar sobre Bakhtin.

A partir da lista de publicações citadas, é evidente meu interesse, nos últimos vinte anos, no funcionamento e na capacidade do corpo humano. Pode parecer que minha abordagem baseada em evidências para entender o corpo em ação traria um conflito com a abordagem filosófica e literária de Bakhtin. Certamente, temos diferenças em nossas perspectivas metodológicas e em nossas atitudes, bem como na possibilidade da autoexperiência levar ao autoconhecimento. A proposta de Feldenkrais é centrada na consciência pelo movimento.

Bakhtin descreve muito bem a experiência corporificada e faz uma boa análise do sentido do outro como imagem. Mas acredito que existam limitações em seu pensamento sobre como fazemos sentido de nós mesmos tanto quanto sujeitos moventes como objetos narrativos. Da mesma forma, diria que embora apenas possamos conhecer o outro como um personagem, uma história, sabemos que ele é, como eu sou, um “eu” imprevisível e incompleto. Tenho certeza que alguns acadêmicos colocaram os primeiros desenvolvimentos de Bakhtin ao lado do pensamento de Buber em Eu e Tu (Ich und Du), quando distingue entre o endereçamento pessoal (eu e tu) e o endereçamento instrumental (eu e você). Bakhtin estabelece um binário entre primeira e terceira pessoas, enquanto Buber distingue diálogos entre tipos de primeira e segunda pessoas. Além disso, diria que a descoberta do neurônio espelho por Rizolatti e outros preparou o terreno para a teoria de que sujeitos corporificados podem entender os possíveis sentimentos dos outros ao observar suas ações. Quando vemos outra pessoa tropeçar e cair, nos impactamos com a possibilidade de se machucarem. Somos programados para vivenciar empatia. Ainda não tive oportunidade de escrever sobre Bakhtin e neurofisiologia, mas não posso evitar imaginar o que Bakhtin pensaria das descobertas nesse campo. Tenho certeza que ele integraria muitos dos achados à sua teoria do comportamento intersubjetivo.

Jean Carlos Gonçalves: Você acha que o Círculo Bakhtiniano teve, efetivamente, participação na vida teatral da Rússia? Cito, aqui, por exemplo, a passagem dos bakhtinianos pela efervescência cultural de Vitebsk, como nos conta Aleksandra Semenovna Shatskikh em seu livro Vitebsk: The Life of Art [Vitebsk: a vida da arte] (Shatskikh, 2007SHATSKIKH, A. Vitebsk: The Life of Art. Translation by Katherine Foshko Tsan. New Haven: Yale University Press, 200). Temos, ainda, informações sobre Medviédev, que participou da Irmandade do Teatro Itinerante, foi editor da revista Teatra, diretor de repertório e depois redator da revista Notas de um Teatro Itinerante [Zapísski peredvijnógo teatra] (Medvedev, Medvedeva, 2014). O que você tem a nos dizer sobre a relação de Bakhtin e os membros do Círculo com o campo das artes cênicas? Você acredita que sofremos algum tipo de apagamento histórico desta relação e da própria teoria bakhtiniana nos estudos teatrais?

Dick McCaw: O Círculo de Bakhtin e as Artes Cênicas - Na verdade, foi assim que conheci Bakhtin. Novamente, se me permite, cito o prefácio de Bakhtin and Theatre para mostrar como outras companhias de teatro têm considerado as ideias de Bakhtin:

Como descobri depois, os Medieval Players não eram a única companhia de teatro inspirada por O contexto de François Rabelais. Wlodimierz Staniewski, diretor do Centro de Práticas Teatrais de Gardzienice; Robert Sturua, diretor de teatro georgiano; e Yuri Lyubimov, diretor russo, são apenas três referências internacionais inspiradas por Bakhtin. Birgit Beumers descreve como as ideias de Bakhtin ofereciam uma solução à aparente imperfomável Boris Godunov de Pushkin: “a modalidade carnavalesca eliminava barreiras entre atores e audiência ao sugerir um espaço compartilhado e um tempo estético não penetrados pelas convenções; limitações teatrais e sociopolíticas eram ignoradas nesse pequeno universo para dar lugar ao diálogo direto”. Por mais interessante que essa informação seja – e existem estudos a serem escritos para documentar em detalhes a considerável influência de Bakhtin sobre os artistas teatrais contemporâneos –, ela ainda não atinge a conexão teórica fundamental entre as ideias de Bakhtin e a prática teatral (McCAW, 2016McCAW, D. Bakhtin and Theatre: Dialogues with Stanislavsky, Meyerhold and Grotowski. Abingdon: Routledge, 2016., p xi)3 3 Original na versão em inglês, neste número (16.3, p.200). .

Não estou certo se quero ser a pessoa a documentar essa “considerável influência de Bakhtin sobre os artistas teatrais contemporâneos”, mas teria interesse em ler tal estudo.

O aspecto que ainda me resta explorar é como a noção de cronotopo de Bakhtin se relaciona ao tempo e ao espaço do teatro. Uma das imagens mais duradouras que tenho de Problemas poética de Dostoievski (2008)4 4 BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008. é o espaço limiar – a importância da porta e da escada. Elas não somente produzem sentido nos romances de Dostoievsky, mas se relacionam ao êxtase bakhtiniano com a imagem das duas faces de Janus, uma que olha além do limiar para o mundo exterior à sua casa, enquanto a outra olha para o interior doméstico. Entradas e saídas são igualmente cruciais e diferentes nos vários gêneros teatrais. Lembremos os “floreios” do teatro elisabetano, no qual um grupo de atores entra quando outro sai – já comparado ao processo de diástole e sístole cardíaca. (Tal pode ser visto em produções no Teatro Globo em Londres). Ou pense em como as farsas trabalham entradas e saídas. Depois, há o tempo dentro e fora do palco. Eu diria que quão mais longe da audiência, maior a probabilidade de o estilo de atuação ser formal, e o movimento se configurar como tableaux5 5 Tableau vivant, plural tableaux vivants. Expressão Francesa para definir um modelo de encenação a partir de uma obra pictórica estática. Ganha notoriedade no século XIX com o advento da fotografia. . Robert Weimann, alemão estudioso do teatro, investigou esse fenômeno em seu livro Shakespeare and the Popular Tradition [Shakespeare e a tradição popular] (uma grande influência em meu pensamento nos Medieval Players. Novamente, penso no teatro medieval e elisabetano (e o teatro do espanhol Calderón de la Barca). O palco móvel usava o tableau formal enquanto a encenação nas ruas se constituía uma troca mais informal, um lugar para personagens de status inferior, vícios e demônios. Isso permitia o contato direto com o público em direções outras, além da frente do palco. A noção de cronotopo de Bakhtin nos propõe considerações mais amplas e questões de pesquisa para as artes cênicas. Desde seu primeiros escritos, Bakhtin era sensível ao fato que toda existência se dá no tempo e no espaço, sua quarta dimensão.

No ensaio “Corpos em Bakhtin” [Bakhtin’s Bodies] comecei a explorar algumas das imagens acerca de sua concepção grotesca do corpo. Sonho em editar um livro ilustrado que mostre a riqueza visual associada a esse conceito do corpo grotesco. Por outro lado, receio que alguns acadêmicos acreditam que Bakhtin estava exagerando ou inventando esse lugar na imaginação popular, que é rico, vulgar e mais comum do que Bakhtin poderia imaginar. O problema dessa obra está no custo e no trabalho para conseguir as permissões necessárias para reproduzir as imagens. Mas sonhar é permitido.

Finalmente, sinto que não aproveitei o suficiente do conceito bakhtiniano de dialogismo quando discuti os diálogos entre Stanislavski, Meyerhold e Grotowski em Bakhtin e Teatro [Bakhtin and Theatre]. Seus trabalhos se influenciavam mutuamente. No ápice da revolução cultural, até meados da década de 1920, Meyerhold não admitiu críticas a seu antigo mestre Stanislavsky. Ele permitia apenas a si mesmo criticar o velho mestre em cartas e outros escritos. E quando Stanislavsky refutava a “teatralidade” ou o “modernismo”, era evidente que pensava em seu antigo aprendiz. Por sua vez, Grotowski manteve um diálogo sobre a natureza daquilo que Stanislavski chamou de a “ação física” durante sua vida profissional. Ele não concordava com todas as respostas de seu antigo mestre, mas sabia que as questões originais eram as certas. Para entender o trabalho desses três diretores/pedagogos, creio que é preciso levar em conta aquilo que Bakhtin chamou de “contexto dialogizante” para seus enunciados em escritos, entrevistas e correspondências.

Jean Carlos Gonçalves: Como explicar o sucesso duradouro da teoria bakhtiniana em um mundo com tantas outras perspectivas e olhares para a condição humana, as relações sociais e a própria linguagem? Porque insistimos em estudar Bakhtin no Século XXI?

Dick McCaw: A teoria bakhtiniana e a condição humana - Quanto mais aprendo sobre Bakhtin, mais me apaixono por ele. A tradução de Gratchev dos diálogos com Duvakin revelam um lado de Bakhtin que apenas aprofunda meu respeito e afeto por ele. Não gosto de gatos, mas o fato de que suas conversas com seu gato durante as entrevistas foram transcritas me tornam parciais a ele e ao gato.

Quando fui aluno em Cambridge, entre 1974 e 1978, o estruturalismo francês, particularmente os escritos de Roland Barthes, eram novidade. Levei seu desafio muito a sério e passei um ano longe dos meus cursos para ler tudo de Barthes em francês. Ainda que admire a elegância de Barthes enquanto escritor (especialmente seus últimos escritos) e o poder de seus argumentos, me deparei com um problema grave em relação a como fazemos escolhas, como nos relacionamos uns com os outros. Achei que os estruturalistas não tinham a resposta para essas questões existenciais fundamentais. Apenas quando conheci Bakhtin e outros membros do Círculo que me foi dada a compreensão da língua como forma de falantes se referirem um ao outro no tempo e no espaço e não simplesmente como um fenômeno estrutural. Isso fez uma diferença enorme para minha visão de mundo. Eu me alinho inteiramente a essa concepção histórica/social do diálogo humano. É uma bagunça, mas caracteriza todos os processos dinâmicos.

Claro que tenho problemas com Bakhtin, mas a publicação de suas anotações durante a guerra e as entrevistas com Duvakin mostram um pensador que insistiu na importância do processo em nossos atos de produção de sentido. Ele defende a continuidade dos nossos atos de produção de sentidos com o riso carnavalesco assim como lamenta eloquentemente a falsa seriedade que tenta impedir esse processo. Esse tom mais sombrio em suas notas recém-publicadas tem a mesma origem que a alegria carnavalesca de O contexto de François Rabelais. Bakhtin sempre chamou agelasta quem, como o petulante e insípido Trump, não possui generosidade e flexibilidade mental para ver além de seus interesses pessoais. As notas de Bakhtin falam muito sobre o amor enquanto a motivação para o diálogo. O mundo seria um lugar mais feliz, mais produtivo se o amor nos motivasse em nossas palavras e nossas ações.

  • 1
    Uma reflexão mais densa sobre esta questão pode ser lida no capítulo “Apontamentos sobre teatro e referências à arte do ator na obra de Bakhtin e o Círculo” (GONÇALVES, 2019GONÇALVES, J. C. Apontamentos sobre teatro e referências à arte do ator na obra de Bakhtin e o Círculo. In: BRAIT, B.; PISTORI, M. H. C.; FRANCELINO; P. Linguagem e Conhecimento. Campinas: Pontes Editores, p.73-96.), que escrevi para o livro Linguagem e conhecimento (Bakhtin, Volóchinov, Medviédev), organizado por Beth Brait, Maria Helena Cruz Pistori e Pedro Farias Francelino.
  • 2
    Original na versão em inglês, neste número (16.3, p.197).
  • 3
    Original na versão em inglês, neste número (16.3, p.200).
  • 4
    BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 4. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
  • 5
    Tableau vivant, plural tableaux vivants. Expressão Francesa para definir um modelo de encenação a partir de uma obra pictórica estática. Ganha notoriedade no século XIX com o advento da fotografia.

REFERENCES

  • BAKHTIN, M. O autor e a personagem na atividade estética. In: Bakhtin. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.3-194. [1920-22].
  • BAKHTIN, M. Author and Hero in Aesthetic Activity (ca. 1920-1923). In: BAKHTIN, M. Art and Answerability. Early Philosophical Essays by M. M. Bakhtin Translated by Vadim Liapunov. Austin: University of Texas Press, 1990, pp.4-256.
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  • BAKHTIN, M. Rabelais and His World. Trans. H. Iswolsky. Bloomington: Indiana University Press, 1984.
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    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-45732016000300213&lng=en&nrm=iso» https://doi.org/10.1590/2176-457328069
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2021
  • Data do Fascículo
    July/Sept. 2021

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2020
  • Aceito
    17 Jun 2021
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