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O redemoinho sagrado. A imaginação poético-pentecostal de Carlos Nejar em Riopampa: o moinho das tribulações

RESUMO

O discurso religioso é múltiplo, desafiador e convidativo, especialmente quando poesia e imaginação teológica se encontram, expandindo suas fronteiras. Carlos Nejar, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras, em seu romance Riopampa: o moinho das tribulações, fornece-nos ampla variedade de imagens, símbolos e experiências que podem ser atribuídas, dentre outras características, ao seu envolvimento com o Sagrado a partir da pentecostalidade, uma vez que Nejar é pastor pentecostal. No presente artigo, vamos refletir sobre o redemoinho Sagrado, dentre outras metáforas utilizadas por Nejar, para tentar responder à pergunta: por que a imaginação nejariana no romance Riopampa: o moinho das tribulações, dentro do espectro do discurso religioso, pode ser considerada pentecostal? Para esse fim, utilizaremos o aporte teórico da Análise do Discurso, sob os auspícios de Bakhtin e seu dialogismo, além de uma concisa pesquisa documental tendo o referido romance nejariano como base.

PALAVRAS-CHAVE:
Carlos Nejar; Riopampa; Discurso religioso; Pentecostalidade; Bakhtin

ABSTRACT

Religious discourse is multiple, challenging and inviting, especially when poetry and theological imagination find themselves expanding their boundaries. Carlos Nejar, poet member of the Brazilian Academy of Letters, in his novel Riopampa: o moinho das tribulações provides us with a wide variety of images, symbols and experiences that can be attributed, among other characteristics, to his involvement with the Sacred from of Pentecostality, since Nejar is a Pentecostal pastor. In this article, we will reflect on the Sacred whirlpool, among other metaphors used by Nejar, to try to answer the question: why can Nejar’s imagination in the novel Riopampa: o moinho das tribulações, within the spectrum of religious discourse, be considered Pentecostal? To this end, we will use the theoretical contribution of Discourse Analysis, under the auspices of Bakhtin and his dialogism, in addition to concise documentary research using the aforementioned Nejarian novel as a basis.

KEYWORDS:
Carlos Nejar; Riopampa; Religious discourse; Pentecostality; Bakhtin

Introdução

Carlos Nejar nasceu em Porto Alegre em 1939. É o quinto ocupante da cadeira nº 4 da Academia Brasileira de Letras, eleito em 24 de novembro de 1988. Escritor vasto - poesia, romance, conto, ficção, novela, literatura infantil -, sua obra é respeitada, reconhecida e amplamente premiada. A Academia Brasileira de Letras indicou Nejar três vezes ao Prêmio Nobel de Literatura da Academia Sueca. Seu primeiro livro de poesia foi Sélesis (1960). Dentre a vastidão de sua obra, podemos destacar Livro de Silbion (1999), Os viventes (1999), A engenhosa Letícia do Pontal (2003), Carta aos loucos (1998) e Riopampa: o moinho das tribulações (2006). Este último será objeto principal do nosso estudo.

Em Riopampa: o moinho das tribulações, Nejar inventa, reinventa e subverte linguagens, modelos e formas. O texto da quarta-capa da edição de 2006, pela Bertrand Brasil, descreve muito bem a obra nejariana:

Rabelais e rio; Maquiavel e cavalos; Montale e pássaros. Literatura, pensamento, natureza e espiritualidade se encontram e desencontram em Riopampa - o moinho das tribulações. Nesta obra, Carlos Nejar subverte e reinventa tudo: linguagem, estilo, disciplinas formais, etimologias. As margens não são limites para a narrativa. Sequer as próprias palavras. Desde que estejam no meio do redemoinho do pensamento - o mesmo que dá forma ao texto. Todos podem se recriar, se reposicionar, no fogo da imaginação. Não espere o leitor um livro convencional. Afinal, quem pode impor regras ao vento? (Nejar, 2006)

O texto nejariano, além das características descritas acima, tem ainda outro ingrediente interessante: Nejar é pastor pentecostal (Igreja Cristã Maranata) e permeia seu discurso pela presença do Sagrado em diálogo constante com a Bíblia. Ele costuma identificar-se como “Servo da Palavra” (2003, p. 307). Alfredo Bosi, em artigo sobre A poesia reunida de Carlos Nejar, fez um lembrete: “Não se pode esquecer que a palavra de Carlos Nejar é a palavra de um crente” (2009, p. 3). Podemos acrescentar que se trata de um crente pentecostal que, segundo Kenner Terra: “(…) seria justíssimo ao próprio Nejar, cujas pentecostalidade e carismatismo são por ele admitidos e tratados a partir da relação indissociável entre estética e êxtase, poiésis e carisma” (2020, p. 40).

Neste artigo, pretendemos refletir sobre a seguinte pergunta: por que a imaginação nejariana no romance Riopampa: o moinho das tribulações, dentro do espectro do discurso religioso, pode ser considerada pentecostal? Para responder a esse questionamento, faremos uma pesquisa documental sobre Nejar, essencialmente no romance em estudo, a partir das percepções do dialogismo em Bakhtin. Nosso referencial teórico é a Análise do Discurso, partindo da hipótese de que o uso das imagens, símbolos e linguagens poéticas nejarianas é perpassado por sua experiência pentecostal, presente como inspiração.

O artigo se organiza em três seções: na primeira, pretendemos refletir sobre a imaginação poético-teológica de Carlos Nejar, observando o trato que faz da Bíblia, tornando-a seu locus poeticus, o que o leva a fazer, em contrapartida, da poesia seu locus theologicus. O romance nejariano em estudo pode ser considerado uma amostra do ato poético-teológico de Nejar. Na segunda seção, lançaremos alguns olhares sobre as metáforas da pentecostalidade1 1 Davi Mesquiati de Oliveira (2011, p. 91) apresenta o conceito de pentecostalidade a partir das percepções do teólogo peruano Bernardo Campos: “(…) o princípio e a prática religiosa tipo informada pelo acontecimento (cristão) do Pentecostes. Esta ‘intuição central’ faz que a comunidade assim informada eleve a categoria de princípio (arque) ordenador e estruturante, a experiência primordial de Atos 2 e similares, e legitime e identifique suas práticas como prolongação daquela. Daqui a prática (pentecostalismos) e princípio ordenador e estruturante (a pentecostalidade) formam dois pólos diferenciáveis, mas mutuamente complementares”. nejariana, analisando seus símbolos e linguagens, com o auxílio bakhtiniano da dialogicidade. Na terceira seção, refletiremos sobre o redemoinho Sagrado e o diálogo interdiscursivo de Jó a Nejar.

A linguagem nejariana, polissêmica e dialógica, provoca imaginários múltiplos e rompe fronteiras artísticas, principalmente quando o nosso olhar exotópico permite a ampliação dos horizontes da palavra. Marco Lucchesi, no posfácio que escreveu sobre o romance em estudo, dá-nos uma amostra dessa percepção amplificada: “Saio das páginas de Riopampa - os olhos claros e a alma leve - tal como se terminasse um concerto de Mozart. Digamos o Concerto para flauta, harpa e orquestra em dó maior” (2006, p. 211). O redemoinho nejariano é assim: provoca sons e ruídos, subverte linearidades e propõe o novo dialógico.

1 A imaginação poético-teológica de Carlos Nejar

“A graça do mundo é o inventável” (Nejar, 2006NEJAR, Carlos. Riopampa: o moinho das tribulações. Posfácio de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006., p. 93). É assim que Nejar sinaliza a inventividade graciosa de sua imaginação na conversa dos personagens. Riopampa é um romance que desafia, pois sua estrutura em redemoinho, numa arquitetônica subversiva, evoca o plurilinguismo, o pluriestilismo e a plurivocalidade bakhtiniana (Campos, 2022CAMPOS, Maria Inês Batista. Questões de literatura e de estética: rotas bakhtinianas. In: BRAIT, Beth (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2022. p. 113-139., p. 137). As vozes, as relações de tempo e espaço, desconcertam e provocam o delírio imaginativo, uma cronotopia em movimento. Nejar viaja de Jó a Rabelais, de Cioran a Goethe, de Machado de Assis a João da Cruz (2006, p. 114-115). A imagem-em-ação torna-se exercício da palavra em movimento, levada pelo vento - instância simbólica profunda que vai do efeito natural ao imagético teológico do Espírito Santo: “O vento conversa com quem o sabe escutar” (Nejar, 2006, p. 9), num efeito de memória textual sugerida do evangelho: “O vento sopra onde quer, e ouves o seu som; mas não sabes de onde ele vem nem para onde vai: assim é todo que é nascido do Espírito” (Jo 3.8)2 2 Todas as referências bíblicas são extraídas da Bíblia Brasileira de Estudo. São Paulo: Hagnos, 2016. .

Em 2020, nas comemorações dos 60 anos de poesia de Nejar, um dos livros por ele publicados foi O evangelho segundo o vento (Life Editora), cuja epígrafe é justamente o texto do Evangelho de João 3.8, acima citado. A imaginação poético-teológica nejariana, em sua dialogicidade, não abre mão das imagens carregadas de simbolismos e densidades do Sagrado, sem, contudo, aprisionar-se. O discurso religioso de Nejar não é necessariamente um discurso da religião institucionalizada, uma defesa dogmática ou denominacional, mas eleva-se como texto da cultura. Como coloca Paulo Nogueira: “O religioso não se restringe ao clerical, sacerdotal e ao teológico. Há discursos sobre o sagrado e sobre a experiência religiosa em diferentes e inusitados lugares da sociedade. Este é o caso, em especial, das linguagens da arte” (2012, p. 15). Kenner Terra, em artigo sobre Nejar, afirma: “Mesmo admitindo filiação religiosa cristã e pentecostal e sua clara adesão espiritual à piedade místico-carismática, o ‘servo da palavra’ não é simplesmente considerado poeta das questões religiosas, mas da condição humana” (2020, p. 47).

Em Riopampa, a imaginação segue seu caminho ganhando contornos ao longo do texto. São pontuações imaginativas que podem servir como guia no redemoinho. Na ausência proposital das divisões formais de capítulos, títulos e subtítulos, a imaginação aparece ora acompanhada pelo vento ou pelo tempo, ora pelo despertar do sono ou da fome - tanto como necessidades do corpo quanto da alma: “E o tempo só pode ser inventado pelos que se amam - percebi mais tarde. Quando o tempo de meu pai passou para mim. Porque amava meu pai” (Nejar, 2006NEJAR, Carlos. Riopampa: o moinho das tribulações. Posfácio de Marco Lucchesi. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006., p. 15). A linguagem nejariana vai, ao longo do texto, adquirindo um tom bíblico, num diálogo com personagens e passagens do texto sagrado, mormente na própria forma simbólica que Nejar usa em Riopampa e outros de seus livros para se referir à Bíblia: “O Livro do Caminho” (2006, p. 17, 107, 115, 119, 176). Vera Lúcia de Oliveira, discorrendo sobre a poesia de Nejar, diz que “há nele também um diálogo profundo e ininterrupto com o transcendente, uma imperiosa busca de Deus” (2009, p. 36). A imaginação nejariana não teme o redemoinho. No romance, o narrador revela a razão dessa marcha destemida: “Porque o delírio é como Deus escreve. Pego o sentido que vou recebendo no andar. É andando que tenho destino” (2006, p. 109).

As imagens que Nejar utiliza da Bíblia em Riopampa podem ser percebidas como diálogos imagético-simbólicos que evocam as vozes e textos do passado com um olhar perpassado pelo Sagrado3 3 Numa conversa telefônica que tivemos o prazer de ter com Nejar, ele revelou seu profundo deleite em escrever Riopampa, pois em suas palavras: “Riopampa é o rio do Espírito que nasce em Deus”. Nejar, na conversa telefônica, assegurou o lugar de importância que Riopampa tem em sua vasta obra, como um dos textos mais importantes que ele escreveu. Conversamos por telefone no dia 08 de setembro de 2023, às 10h05min. . Os símbolos, por exemplo, são discutidos no próprio texto: numa conversa provocativa, o narrador pergunta a Tarsus: “Para explicar um símbolo empregas outro símbolo?”, e Tarsus responde: “Todas as coisas são símbolos ao usarmos as palavras” (2006, p. 75-76). Como escreveu Marco Lucchesi: “Sem essa transleiutra, é impossível seguir as correntezas de Riopampa, adivinhar sua língua passarinheira, contemplar seus desvãos. Medra em Riopampa o abismo da Palavra”(2006, p. 214). O texto nejariano casa bem com a noção de discurso na teoria bakhtiniana que, segundo Adail Sobral: “(…) é uma unidade arquitetônica de produção de sentido que é parte das práticas simbólicas de sujeitos concretos e articulada dialogicamente às suas condições de produção, o que envolve seu vínculo constitutivo com outros discursos” (2022, p. 176).

A imaginação teológico-poética em Riopampa costura sua dialogicidade com múltiplas passagens do Livro do Caminho, como Nejar configura a Bíblia no romance em estudo. A imagem simbólica do vento/Espírito, num exemplo, está por toda a parte, acompanhada por diálogos e provocações que podem ser conceituadas dentro da ideia de “hiperfísica de Nejar”, como propôs Marco Lucchesi (2006, p. 215). Em Riopampa, José Bernardo Róvia, pai do narrador, diz: “O acontecimento é vento. Algo está sucedendo e o vento quer contar. O vento sabe. Corre com o tempo atrás” (2006, p. 25). Em outro ponto, José Bernardo Róvia provoca: “Se a imagem dá cria, a imaginação engendra a sua ninhada de sonhos” (2006, p. 30). O redemoinho também é polifônico e plurilinguístico: “Deus avulta, quando os homens se cobrem de palavra. Quando o redemoinho vira, Deus para na onda” (2006, p. 155). Deus, Jó, a Bíblia, o vento e o tempo, todos podem estar dentro do redemoinho ou serem o próprio símbolo desse giro de eternidades.

O redemoinho como símbolo imaginativo também se propõe a encarar inimigos, dentre eles, a morte: figura da finitude, do limite que aterroriza e ameaça. Numa costura intrigante com uma passagem da Primeira Carta aos Coríntios 15.50-58, em que o apóstolo Paulo desafia a morte e provoca um futuro sem a sua presença: “A morte foi engolida pela vitória” (I Co 15.54), o narrador provoca: “E a morte não sabia mais o que fazer de si mesma. Sugeri que se matasse e ela me disse: ‘Só a Palavra me mata’. E eu na Palavra resolvi matá-la. Matei. Matada” (2006, p. 85). A vitória da vida, na poética imaginativa de Nejar, não está na cessação inevitável do morrer, mas na redescoberta diária de novas possibilidades, nas ressurreições dos sentidos, o mover incessante do moinho: “E viver não se repete. O virar do monjolo parece igual, mas não se repete” (2006, p. 95). Tempo e redescobertas vão se relacionando como as tramas de um texto que se renova a cada manhã: “E as coisas e os seres são palavras” (2006, p. 144). Essa “transgressão de limites” (Iser, 2013ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário: Perspectivas de uma antropologia literária. Tradução de Johannes Kretschmer. Rio de Janeiro: EdUMERJ, 2013., p. 45) pode ser vista em Nejar como uma espécie de “delírio da palavra” (2006, p. 21), uma retroalimentação na qual a poesia se nutre da imaginação teológica e a teologia sorve das fontes poéticas.

A construção imaginativa dos lugares também é intrigante. A cidade é descrita como um lugar de fronteira. Riopampa é uma cidade cujas imagens ,evocadas por Nejar, sempre provocam o imaginário: além do monjolo, surge, por exemplo, a imagem de um repolho: “Riopampa, o lugarejo, como um repolho avultava para dentro” (2006, p. 18), numa imagem que sugere os contornos para dentro, a espiral que se fecha no próprio ser. O povoado que faz divisa com Riopampa é Solturvo, cuja descrição já é, em si mesma, um efeito de contrários, no nome e no estado natural, um sol escuro e uma terra seca: “Ora, na divisa de Riopampa se aferroava um povoado, inimigo figadal: Solturvo. Caracterizava-se pela secura” (2006, p. 40). Em Solturvo, diferentemente de Riopampa, os moradores precisavam sofrer para conseguir água. A abundância de Riopampa entra em flagrante contraste com a escassez de Solturvo. O outro povoado vizinho, Assombro (2006, p. 138), cidade que aparece em outras obras de Nejar4 4 Assombro aparece como cidade em A engenhosa Letícia do Pontal (Rio de Janeiro: Objetiva, 2003) e como mulher em Carta aos loucos (Rio de Janeiro: Record, 1998), dentre outras obras. , também evoca o imaginário do transcendente, daquilo que espanta, assombra. É cidade e dimensão: redemoinho de sentidos e aplicações.

Em seu Caderno de fogo: ensaios sobre poesia e ficção, Nejar transita entre conceitos de sua própria escrita: “Os pensamentos e imagens são células do enredo e este serve à imaginação e ao mito. E todos os gêneros se mesclam. Porque a palavra transfigura o senso infatigável da realidade” (2000, p. 65). No mesmo livro, Nejar revela: “Para mim, a poesia é quando a linguagem delira e a infância sonha; e ficção é quando a linguagem sonha e a infância acorda. Mas acordamos sempre uma memória muito antiga que são os sonhos de nossas palavras” (2000, p. 79). Sua poesia e romance bebem abundantemente das fontes teológicas, numa interessante teologia poético-ficcional, como diz Márcio Cappelli em sua tese publicada em Portugal:

(…) é admirável afirmar que a poesia e, por extensão, outras linguagens artísticas são epifanias, pois trazem no seu bojo a experiência da realidade e desvelam o real de uma maneira tão diferente que linguagens como a filosófica e a científica não alcançam. A experiência poética possui uma semelhança fenomenológica com a experiência religiosa, mística, profética: surge de um pathos e é expressa pela imagem, pela metáfora que traduz o indizível (Cappelli, 2019CAPPELLI, Márcio. A teologia ficcional de José Saramago: aproximações entre romance e ficção teológica. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2019., p. 27).

Nejar não é um escritor de fácil assimilação. Sua escrita exige uma abertura ao dialogismo e à polifonia, para que o fenômeno multifacetado do seu texto não seja desperdiçado na leitura. Sua poesia está na base, na estrutura do romance, e sua teologia perpassa o tecido das obras como o redemoinho metafórico do romance em estudo. Tendo em mente as múltiplas perspectivas que a imaginação nejariana apresenta e sorve, é mais intrigante o mergulho nas metáforas nejarianas tão abundantes e convidativas. Na próxima seção vamos refletir sobre as metáforas da pentecostalidade nejariana, o que aprofundará a noção de diálogo com a esfera bíblica que Nejar faz com naturalidade. O recurso imaginativo que vimos até aqui deve servir como balizador das nossas incursões no universo textual nejariano. Nejar, descrevendo a relação entre a imaginação do autor e a recepção do leitor, diz: “Escrevemos o que a imaginação acendeu. E o leitor persiste imaginando” (2000, p. 33).

A imaginação poético-teológica de Carlos Nejar, especialmente em Riopampa, descortina possibilidades semânticas e simbólicas que seguem provocando o diálogo, escutando a polifonia. A leitura bíblica perpassada pela pentecostalidade propicia a Nejar outras multiplicidades de sentido, amplificando conceitos e resgatando olhares para os textos do passado. O discurso religioso de Nejar, colabora com a religião como texto da cultura, pois pode ser lido em chave literária e não apenas dogmática: sua teologia é da vida e não apenas da igreja. Sua poesia é da condição humana e não somente da estética do ritual. Maria João Cantinho, escrevendo sobre Nejar, esclarece: “Trata-se de uma escrita profundamente inatual e digo-o no sentido nietzschiano. (…) Nejar reserva o seu talento para a construção de uma cartografia do essencial, através de uma linguagem depurada e simples, despojada, liberta do ornamento” (2009, p. 73-74). Refletir sobre as metáforas da pentecostalidade nejariana é um desafio que merece o nosso tempo.

2 Metáforas da pentecostalidade nejariana

Alfredo Bosi, em artigo sobre a poesia reunida de Nejar, disse:

Cabe à poesia dizer o sentimento ora jubiloso, ora pungente, pelo qual a transcendência das coisas e dos acontecimentos se converte na imanência da palavra. A estrada real da linguagem poética de Nejar encontrou na metáfora o instrumento dúctil para exprimir com o máximo de concretude esse diálogo sempre recomeçado entre a transcendência e imanência, o fora que se faz dentro, o objeto que se funde com o sujeito (2009, p. 1)

Riopampa é uma ampliação da própria metáfora: como tempo, como vento, como o coração do homem e como o rio do Espírito de Deus. Todas essas acepções compartilham da mesma estrutura metafórica: a imaginação pentecostal de Carlos Nejar. Em sua experiência como pastor pentecostal, principalmente na Igreja Cristã Maranata, no estado do Espírito Santo, Nejar atuou como pregador e místico. Sua pentecostalidade aflora no uso das memórias bíblico-teológicas que sempre retornam ao ponto decisivo da experiência com o Espírito Santo. Em Riopampa, o vento, um dos símbolos do Espírito Santo na teologia pentecostal, é percebido como fio condutor do tempo: imanência e transcendência.

O próprio Nejar, em entrevista concedida a Ana Marques Gastão, de Lisboa, definiu Riopampa e o fez a partir das metáforas:

Riopampa é a história de uma cidade, cujos acontecimentos se dão num moinho. A narração não finda, não tem capítulos, porque é o redemoinho que no Livro de Jó, Deus fala, é o tempo que sempre se renova. E a profecia é a invasão de Riopampa pelos cavalos. (…) E o uso da metáfora no romance tem força de motor e de explosão. E a desmemória de Deus é o território ainda não revelado ao homem. (2009, p. 198).

A teologia pentecostal é rica em metáforas, sua pluralidade e multiplicidade de sentidos é abrangente e desafiadora. Seu arcabouço teológico e poético faz uso contínuo das imagens e dos símbolos como o vento, o fogo, a nuvem, o rio, dentre outros. O teólogo pentecostal Roger Stronstad, diz: “Ao descrever os fenômenos espetaculares do Pentecostes com metáforas de vento e fogo, Lucas usou a linguagem típica de teofania (p. ex., 1Rs 19.11-12)” (2020, p. 177). Stronstad explica: "Esses fenômenos teofânicos são, de fato, símbolos audíveis e visíveis, que anunciavam a presença invisível do Espírito Santo, porque 'todos foram cheios do Espírito Santo' ” (2020, p. 177). Em Riopampa, Nejar usa do mesmo “discurso pneumático” explicitado por Stronstad (2020NEJAR, Carlos. O evangelho segundo o vento. Campo Grande-MS: Life Editora, 2020., p. 177) na fala de João, o Velho, personagem que diz: “Escrevo o fogo em mim” (2006, p. 124). A pentecostalidade expressa nesta simbólica do fogo amplia o significado da alusão ou alegoria, pois implica um princípio existencial: “João, o Velho, (…) jamais deixou o Deus vivo. Ao contrário. Não O encontrou no convento, mas fora dele (…). Uma luz o chamou pelo nome. E na medida em que avançava aumentou a intensidade” (2006, p. 124). Nejar dialoga com Ap 1.10-16, quando João, o visionário, recebe a revelação.

Para compreendermos melhor as metáforas da pentecostalidade nejariana, podemos partir do pressuposto de James Smith: “(…) as práticas da espiritualidade pentecostal carregam consigo uma compreensão do mundo que transcende todo e qualquer rótulo sagrado ou secular” (2020, p. 62). Nejar faz essa leitura hiperfísica a partir das lentes de sua experiência, tanto como pregador quanto como poeta do Deus vivo. Victor Breno Farias Barrozo diz sobre Nejar que “(…)o poeta não fala apenas de Deus, mas com Deus - num diálogo entre amigos. O vivente Nejar e seu Deus vivo estão poeticamente entrelaçados nas malhas do mistério” (2022, p. 12). A vivência pentecostal nejariana aparece como palimpsesto experiencial e imaginativo.

Outra metáfora que se apresenta em Riopampa é a imagem do monte de Deus que dialoga com o texto bíblico de Êxodo 3, em que Moisés conversou com Deus a partir da experiência da voz que saía da sarça ardente. Em Riopampa, Horebe, que na Bíblia é o monte de Deus, é um personagem que também fala da sarça e evoca a imagem do monte: “Horebe tinha chamas que iam das mãos aos olhos, em rotação concisa. Era como se fosse o próprio monte, onde Moisés viu Deus” (2006, p. 108). Monte, fogo, Deus e palavra são significantes que, como diz o narrador de Riopampa: “Porque tudo é símbolo, mesmo o que se ignora” (2006, p. 201). Nejar trabalha na esfera da imaginação, usando sentidos e percepções de Deus que ampliam o alcance e a aplicabilidade dessa espiritualidade. Nessa mesma perspectiva, o redemoinho e os ventos podem ser englobados: como temas metafóricos de uma espiritualidade imaginativa que não teme transitar entre as fronteiras.

Smith, em sintonia com o teólogo Amos Young, e a “imaginação pentecostal” (Young, 2002, p. 119-149), diz: “a espiritualidade pentecostal é um nexo de práticas que nos posicionam para imaginar o mundo de uma maneira determinada, para ‘construir' o mundo com base em uma interpretação impregnada pelo Espírito” (2020, p. 69). Essa hermenêutica pneumatológica é percebida nos textos nejarianos, principalmente em suas obras a partir da década de 1990, quando mudou-se do Rio Grande do Sul para o Espírito Santo, após seu casamento com Elza, a mulher que o inspira e recebe a maioria das suas dedicatórias, incluindo o romance em estudo. Nejar faz com as metáforas o que Young compreende que deva ser feito: não reduzi-las a meros recursos de linguagem, mas “perguntar a respeito das implicações teológicas de tais metáforas fenomenológicas” (2022, p. 394). A teologia pentecostal procura pensar as metáforas e não apenas utilizá-las como arcabouço semântico.

A metáfora do coração do homem também encontra espaço importante em Riopampa. Numa imagem intrigante extraída do livro de Jeremias 17.9-10: “O coração é enganoso e incurável, mais que todas as coisas; quem pode conhecê-lo? Eu, o Senhor, examino a mente e provo o coração (…)”, Nejar, numa sequência bem ao estilo do redemoinho apresenta-nos o coração do homem com uma espécie de refrão repetido cinco vezes: “O coração do homem é terra que ninguém pisa” (2006, p. 166). Depois, discorre sobre a metáfora: “E se Riopampa é o coração do homem, que sonhos, desígnios ativam a esperança?” (2006, p. 166). E, então, amplia a metáfora: “O moinho das palavras gira com as pás, roda com minhas mãos, o texto roda no texto, roda o coração do homem. E Riopampa é o sangue. E o sangue é espírito” (2006, p. 166). Por fim, repete o refrão, colando a cidade ao coração: “Riopampa é o coração do homem, terra que ninguém pisa” (2006, p. 167).

A figura metafórica do coração tem múltiplas aplicabilidades, contudo, na perspectiva pentecostal, predomina o sentimento, a emocionalidade, a experiência do assombro, do encanto. James Smith coloca assim: “(…) é fundamental na interpretação pentecostal do mundo, uma sensação de ‘encantamento’” (2020, p. 80). Smith vai além: “Entende-se que o Espírito é a pessoa da Trindade em que a criação vive, se move e preserva a sua existência” (2020, p. 80). É o coração da divindade, a sede das sensações mais íntimas e também renovadoras. A criatividade imaginativa de Nejar, enquanto pastor pentecostal, não é apenas o talento com as palavras, mas o domínio das emoções entregues ao Espírito do Deus vivo. Nejar sinaliza para essa dualidade entre a letra fria e o espírito da palavra em um personagem sinistro: Abedón que, como imaginário apocalíptico, tenta convencer as pessoas de Riopampa à sua “teologia da letra” (2006, p. 177), num conceito que evoca o texto bíblico de II Co 3.6: “Foi ele quem nos capacitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata, mas o Espírito dá vida”. Sem coração, sobram apenas letras, não discurso.

Em Riopampa uma metáfora assustadora aparece como “nuvem escura” (2006, p. 205). É a imagem do mal. Nejar revela a presença do mal em uma série de imagens que dialogam com os contrastes: “Mas o mal não tem infância” (2006, p. 205), numa angustiante supressão do passado, das melhores memórias. Na fala do narrador, o mal segue projetado em novas imagens: “O mal tem floração desconhecida. E cores ignotas sobre o tronco. Não vi, porém, pressinto. Nunca está sozinho” (2006, p. 206). O narrador segue: “O mal é uma doença. De fora para dentro. Faz o caule secar” (2006, p. 206). Numa passagem bastante intrigante, o narrador assombra até Elisabeth, outra personagem, ao trazer Deus para o assunto do mal: “O mal é o que ficou, quando Deus”, ao que Elisabeth, perplexa, questiona: “Quando Deus?”, e o narrador continua: “Quando Deus caiu no sono, em Deus” (2006, p. 206). A figura da árvore, aqui, evoca a cruz e o crucificado, o Deus que dorme, e o sono aqui é também figura da morte, para que na ressurreição, a morte e o mal percam sua hegemonia, como diz Ap 1.18: “Eu sou o que vive; fui morto, mas agora estou aqui, vivo para todo sempre e tenho as chaves da morte e do inferno”.

A metáfora do mal não se esgota apenas na imagem da morte ou da doença, mas também no espírito de oposição e caos. Nejar faz uma paródia corajosa de Atos 17.23 e a inscrição no Areópago em Atenas: “Ao Deus desconhecido”. Em Riopampa, Nejar coloca “um monumento dedicado Ao Político Desconhecido” (2006, p. 37), cuja inocência criativa de Feijoo Lúcio, artista da cidade, acreditava representar, na forma de três cabeças, as ideias ou os interesses divergentes emanando do mesmo corpo nacional. Na inauguração do monumento, a paródia nejariana apresenta o governante da cidade - “Inominado” (2006, p.37) e, novamente em outra percepção arrepiante, dialoga com o imaginário do Éden, em Gn 3.24: “Nos primeiros meses, um soldado com a espada desembainhada guardava, dia e noite, o monumento” (2006, p. 37). O mal aparece como sombra sinistra, palavra não dita. Se o moinho move as águas trazendo vida, o mal está na secura, na sede provocada constantemente, na fome jamais saciada.

A espiritualidade pentecostal sempre utiliza dos imaginários apocalípticos, pois procura o horizonte escatológico da esperança. O Espírito que sopra sobre toda a carne, não é a acusação e/ou a destruição, mas o renovo, a esperança, a salvação. As águas da misericórdia, no discurso teológico-poético nejariano, são águas do Espírito que não é sujeito às nossas sedes: “Deus chegou e somos cobertos, plenos. Tudo é palavra. Depois só alma. Riopampa: tempo” (2006, p. 208). O redemoinho nejariano, que começa já na primeira página e não encontra o final, segue movendo as águas e os corações, as emoções e os sentidos, a poesia e a alma das experiências. As metáforas seguem seu percurso de mostrar e/ou encobrir, revelar e purificar. Nejar faz sua arte a partir de sua vivência, de seu envolvimento passional com o Espírito do Deus vivo, o que o coloca dentro de uma esfera muito particular de fenomenologia e epistemologia pentecostais.

Na próxima seção pretendemos lançar alguns olhares para a figura do redemoinho Sagrado e seu palimpsesto no Livro de Jó, pois a construção imagética e simbólica de Nejar bebe dessa fonte e dialoga com esse universo textual tão rico, desafiador e, por vezes, assombroso. Em Nejar, Jó aparece como referência, como sabedoria que dialoga com o Sagrado que se apresenta na tormenta e redefine processos, redescobre futuros e reorienta a vida.

3 O redemoinho sagrado: de Jó a Nejar

Na epígrafe de Riopampa, Nejar faz quatro citações: o poeta francês do século XII, Chrétien de Troyes; o poeta, místico e filósofo, Novalis; o grande poeta romano, Ovídio; e aquele de quem Nejar absorve a metáfora do redemoinho, Jó: “E Deus respondeu a Jó do alto do redemoinho” (Jó 38.1). Nejar tem entre suas características a capacidade de transitar com naturalidade entre Bíblia e literatura, fazendo ponte dialógica entre os textos da cultura, incluindo, nessa definição, a própria Bíblia. Acreditamos que ainda há uma carência de estudos sobre a relação entre a Bíblia e a literatura no Brasil, talvez pelos receios dogmáticos, ou, como diz Antônio Magalhães:

Os obstáculos não residem nas interdiscursividades e intertextualidades entre o texto bíblico e muitos textos da literatura ocidental, mas residem nos domínios ideológicos sobre o saber, em hermenêuticas teológicas restritivas e em crítica e teoria literária carente de maior diálogo com o texto bíblico (2008, p. 17).

O Livro de Jó é um dos textos bíblicos mais desafiadores. Poesia e caos se misturam numa trama que ainda desconcerta. A figura que Nejar utiliza do texto de Jó é a sugestiva e ameaçadora metáfora do redemoinho, ou da tempestade, como aparece em outras traduções do termo hebraico se’arah que, segundo Samuel Terrien, “designa o turbilhão de vento, talvez o furacão, que se torna instrumento ou símbolo da cólera e do poder de Iahweh” (1994, p. 274). Terrien afirma ainda: “Nos profetas e nos salmistas, a tempestade é um elemento de teofania escatológica” (1994, p. 274). Na leitura teológica de Luiz Alexandre Solano Rossi, é de dentro de uma tempestade que Deus expõe a criação: “Com Ezequiel e Naum aconteceu o mesmo - a tempestade (Ez 1.4; Naum 1.3)” (2005, p. 181). Rossi também lê a metáfora apoderando-se dela para uma lição teológica da vida:

O que é a nossa existência senão um redemoinho permanente no centro do qual rodopiamos arrastados pelos acontecimentos e padecimentos da vida? É confortável sabermos que Deus está onde os redemoinhos se apresentam. Ninguém pode negar que a história humana seja uma grande permanente convulsão. Deus está na história (2005, p. 181).

A imagem do redemoinho provoca leituras múltiplas, principalmente quando percebida através de termos correlatos, como tempestade e turbilhão. A poderosa simbólica evocada por esses termos alimenta imaginários e suscita possibilidades interpretativas diversas. Lidos em chave literária, os termos referentes ao redemoinho ganham amplitude e dialogam com os sentidos e as emoções, saindo da pura expressão de força da natureza para mergulhar nos domínios da interioridade, dos horrores que nos assaltam de dentro para fora. A poesia encontra aqui vasto material. Considerado o último texto escrito por William Shakespeare, provavelmente em 1623, A Tempestade discute os temas da vingança, da fúria e do perdão, numa das menores peças escritas pelo lendário poeta. Através dos olhares literários em comunhão com a riqueza do texto bíblico, o redemoinho provoca ainda mais. Como pontou Salma Ferraz:

No meio da Bíblia tinha uma pedra, tinha o Livro de Jó. No meio do caminho de Jó ele topou com uma pedra, ou melhor, uma montanha cósmica: Deus. Se até antes do Livro de Jó o homem buscava Deus nas montanhas, nesse livro Deus desce à terra no meio do redemoinho para buscar o homem. Mas, no meio do caminho de Deus, também tinha uma montanha: Jó. Apesar de todo o discurso defensivo de Deus no meio do redemoinho, ao final permanece um silêncio inquietador: o silêncio de Deus, o silêncio de Jó, o silêncio de todos nós… (2008, p. 85).

Salma Ferraz mostra que o Livro de Jó foi alvo de vários olhares e grandes polêmicas: desde a leitura psicanalítica de Carl Gustav Jung, até os textos intrigantes dos escritores portugueses famosos como Camões, Miguel Torga e Saramago que ousaram encarar o tema da teologia do sofrimento (2008, p. 79-86). A diferença que se estabelece quando a visão é a poética de Nejar está no fato de seu olhar ser perpassado por sua pentecostalidade. Em Riopampa, Nejar trabalha a metáfora do redemoinho dentro de vários aspectos, incluindo uma dimensão apocalíptica, amplificada na figura de Horebe que “tinha na mão um redemoinho e era a palavra. Tinha a palavra e o redemoinho girava” (2006, p. 116). Nesse ato profético/apocalíptico, Horebe provoca a ressurreição dos mortos. Nesse momento, Nejar apresenta a persona que habita o redemoinho: “E o redemoinho andava pelo meio deles” (2006, p. 117), esse que anda pelo meio deles é o Espírito Santo que dá vida, ato criativo que só pode vir de Deus nas Escrituras.

Na sequência da descrição, Horebe interage com os ressuscitados, dando-lhes funções de trabalho junto ao rio Tonho, porém, antes eles passam pelo ritual da nova nomeação: “Cada um pegava o seu nome como pedra branca do rio” (2006, p. 117), numa profunda imagem de Ap 2.17: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas. Ao vencedor darei do maná escondido e uma pedra branca, na qual está escrito um novo nome que ninguém conhece, a não ser aquele que o recebe”. O narrador, então, prossegue: “E o redemoinho da mão de Horebe parava. E entramos juntos no moinho. O sol parava e nos alegrávamos com a redemoinha palavra” (2006, p. 117). Nejar transita com força entre os redemoinhos: sua escrita segue subvertendo as fórmulas e colocando autor, narrador e leitor dentro do turbilhão. A pentecostalidade sabe fazer essas leituras porque compreende o Espírito de Deus não somente como um item da teologia sistemática, mas como um princípio ordenador da vida (Campos, 2018CAMPOS, Bernardo. O princípio da pentecostalidade: hermenêutica, história e teologia. Tradução David Mesquiati de Oliveira. São Paulo: Recriar, 2018., p. 9).

Na edição de Riopampa, da Bertrand Brasil, Fabrício Carpinejar, poeta e filho de Carlos Nejar, escreveu: “Talvez o escritor do pampa tenha encontrado o alfabeto que o poeta russo Khliébnikov buscava: as consoantes de metal e as vogais de vidro. É uma obra da maturidade, retirada incandescente da forja da criação” (2006, orelha do livro). Curiosamente, Geraldo Tadeu de Souza, entrevistando Boris Schnaiderman, afirma que Bakhtin fez um grande elogio à linguagem poética de Khliébnikov (2022BAKHTIN, Mikhail. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório e posfácio Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2022., p. 233), que se identificava com o formalismo russo. Podemos até refletir se Riopampa pode ou não entrar aqui na categoria de romance polifônico, objeto da metalinguística bakhtiniana, ou como disse Beth Brait, “(…) do que hoje se poderia chamar de Análise Dialógica do Discurso” (2022BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin, dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2022., p. 55). Nejar nos insere dentro do seu turbilhão, convocando-nos à sua dialogicidade, ao encontro com a tempestade e a divindade que ela oculta e revela.

Nejar se recusa a ver o redemoinho sem Deus: “Deus avulta, quando os homens se cobrem de palavra. (…) É o centrífugo motor. O círculo revoando como pássaro” (2006, p. 155). A relação dialógica aqui vai muito além da troca de vocábulos e conversas, há uma sinalização para o ato de se cobrir do verbo. É perceptível que Nejar tem um carinho especial com a palavra5 5 Em artigo publicado por nós, juntamente com David Mesquiati e Kenner Terra, tratamos do modo como Nejar lida com as palavras e a Palavra em seu romance Carta aos Loucos (cf. BRIZOTTI, Alan; MESQUIATI, David; TERRA, Kenner, 2022). , sua relação visceral faz dela instrumento de uma potência imaginativa transcendente, capaz de ultrapassá-lo, elevando-se para além dele como criador, alimentando expectativas: “Então o criador descobre que os símbolos, imagens ou metáforas que engendrou, podem voltar contra ele, se não os ultrapassar no tempo” (2000, p. 60). Em Riopampa, Nejar dialoga com esses horizontes entre palavra, símbolos, tempo e espiritualidade: “Pela palavra, com seu gatilho: tudo é visível. Eu olho nela. Amarro os trincos, agarro símbolos. Chorei um dia, agora assisto” (2006, p. 209).

O redemoinho nejariano, assim como o turbilhão de Jó, vai se tornando uma convocação ao leitor para que adentre no jogo metafórico, fazendo da experiência da leitura algo a mais, uma elevação significativa que aprofunda, inclusive, a própria concepção de dialogicidade. Os intertextos, os interdiscursos e a translinguística passam a ser ainda mais fortes como exercícios de aproximações, de reverberações das vozes e dos discursos. O Sagrado, o Pentecostal e o Bíblico se entrelaçam como experiência poético-teológica aprofundada, pois é vivenciada pela palavra: do poeta, do místico e do pastor. Tornam-se texto vivo, íntimo, provocador de sentidos, de emoções genuínas, não apenas sentimentalistas. Como coloca o narrador de Riopampa: “Não se pode perder a pura alegria, senão perdemos linguagem. E é como perder sangue” (2006, p. 175).

Em “Metodologia das ciências humanas”, ensaio da coletânea Estética da criação verbal, Bakhtin expressa essa unidade completa, esse todo que Nejar expressa em sua arquitetônica:

Não existe a primeira nem a última palavra, e não há limites para o contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascido no diálogo dos séculos passados, podem jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto). Não existe nada absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo (2011, p. 410; itálicos no original).

O modo como Bakhtin expõe as questões do sentido, da morte e da renovação, inclusive da ideia do tempo, são compatíveis com o olhar nejariano do redemoinho em Riopampa. No desfecho do livro - fim, aqui, visto apenas como última página, uma vez que o texto subverte a ideia de começo e fim - o narrador fecha com a mesma palavra que começa o livro, o vento:

Riopampa existe? Existe o tempo? Talvez a infância de algum futuro. Só há memória. E a desmemória desmemoriada de Deus. A desmemória memoriando tudo. Até ficarmos salvos do futuro. Até cairmos todos, todos. Todos em Deus. E dentro do vento (2006, p. 209).

A arquitetura nejariana é apaixonada pelo vento, pela metáfora e pela palavra, como num ato artesanal sem pressa. O vento, como símbolo do Espírito Santo na teologia pentecostal, é sempre múltiplo em significado, principalmente quando serve à inventividade do poeta. Como coloca Gutierres Siqueira: “O Espírito, o vento indomesticável, opera muito além de nossa limitada visão e de nossa cômoda institucionalização” (2023, p. 24). A metáfora - o redemoinho -, como imagem poderosa da manifestação de Deus, segue chacoalhando certezas e aprofundando perspectivas. Kenner Terra, em livro sobre Nejar, afirma: “Nejar, como de costume, dilui os claustros dos gêneros e desenvolve a poética do apocalíptico, a escatologia da poesia e a visão limite das metáforas” (2022, p. 38). O redemoinho de Nejar é lugar de encontro com o Sagrado que transforma. A palavra, matriz dos redemoinhos nejarianos, é a quem o poeta serve.

Conclusão

Refletir sobre a obra de Carlos Nejar é um desafio e um deleite. Riopampa é, sem dúvida, um dos maiores romances escritos pelo poeta do pampa. Sua vasta e premiada obra não pode ser degustada sem que se demore um tempo no meio do redemoinho sagrado nejariano. Começamos nossa viagem por Riopampa, buscando responder ao questionamento sobre a imaginação poético-teológica de Carlos Nejar ser, de fato, pentecostal. De acordo com o que observamos no trajeto investigativo do livro, sob o auxílio de grandes pensadores, como Bakhtin, bem como as pontuações de alguns teólogos pentecostais, acreditamos que sim, a imaginação poético-teológica de Carlos Nejar é inspirada, perpassada e construída a partir das lentes de sua pentecostalidade, como princípio ordenador de sua experiência.

Compreender esse ponto nos ajuda a ampliar a visão a respeito da obra do autor. Sua experiência religiosa não o diminui, pelo contrário, amplia e provoca-nos a lançarmos olhares mais profundos para a Bíblia como literatura e aos textos religiosos como textos da cultura. O discurso religioso nejariano não se preocupa em defender denominações ou instituições religiosas, mas, sim, em aprofundar a visão do Sagrado que se percebe nas tramas cotidianas, nas metáforas do tempo, do vento, do redemoinho e das nossas relações. Nejar não faz proselitismo, faz cultura. Em Nejar, a religião não é fuga nem apequenamento da vida, mas aprofundamento da existência e da linguagem.

Experimentar Nejar é um ato de coragem, essencialmente em Riopampa, pois significa se colocar dentro do furacão: abraçar a experiência, ser tocado pela epifania, pelo outro que vem como voz que propõe diálogo, que mistura silêncio e som, céu e terra, luz e escuridão, nuvem e chão. Em Nejar, o Espírito que vem abraçado à simbólica do vento faz-se companheiro de caminhada, inspiração que desafia a mesmice e propõe encontros de novidade. Utilizamos três verbos: refletir, compreender e experimentar, porque, assim como disse Pedro Bontorim, “Nejar é verbo” (2022BONTORIM, Pedro. Nejar é verbo: o tempo, a existência e a fé. In: TERRA, Kenner; LAGO, Davi (Orgs.) Carlos Nejar e o sagrado: aspectos literários, espirituais e proféticos. São Paulo: Recriar, 2022. p. 61-67., p. 61).

REFERÊNCIAS

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  • TERRIEN, Samuel. Jó. Tradução Benoni Lemos. São Paulo: Paulus, 1994.
  • YOUNG, Amos. O Espírito derramado sobre a carne: Pentecostalismo e a possibilidade de uma teologia global. Tradução Henrique Silva e Regis Trentim. Campinas, SP: Aldersgate, 2022.
  • Declaração de disponibilidade de conteúdo

    Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.
  • 1
    Davi Mesquiati de Oliveira (2011OLIVEIRA, David Mesquiati de. Pentecostalidade da missão latino-americana: uma nova Reforma na igreja? Vitória-ES, REFLEXUS-Revista Semestral de Teologia e Ciências das Religiões, Vol 5, Ed. 6, 2011, p. 89-98). https://revista.fuv.edu.br/index.php/reflexus/article/view/32/88. Acesso em 10 de novembro de 2022.
    https://revista.fuv.edu.br/index.php/ref...
    , p. 91) apresenta o conceito de pentecostalidade a partir das percepções do teólogo peruano Bernardo Campos: “(…) o princípio e a prática religiosa tipo informada pelo acontecimento (cristão) do Pentecostes. Esta ‘intuição central’ faz que a comunidade assim informada eleve a categoria de princípio (arque) ordenador e estruturante, a experiência primordial de Atos 2 e similares, e legitime e identifique suas práticas como prolongação daquela. Daqui a prática (pentecostalismos) e princípio ordenador e estruturante (a pentecostalidade) formam dois pólos diferenciáveis, mas mutuamente complementares”.
  • 2
    Todas as referências bíblicas são extraídas da Bíblia Brasileira de Estudo. São Paulo: Hagnos, 2016.
  • 3
    Numa conversa telefônica que tivemos o prazer de ter com Nejar, ele revelou seu profundo deleite em escrever Riopampa, pois em suas palavras: “Riopampa é o rio do Espírito que nasce em Deus”. Nejar, na conversa telefônica, assegurou o lugar de importância que Riopampa tem em sua vasta obra, como um dos textos mais importantes que ele escreveu. Conversamos por telefone no dia 08 de setembro de 2023, às 10h05min.
  • 4
    Assombro aparece como cidade em A engenhosa Letícia do Pontal (Rio de Janeiro: Objetiva, 2003) e como mulher em Carta aos loucos (Rio de Janeiro: Record, 1998), dentre outras obras.
  • 5
    Em artigo publicado por nós, juntamente com David Mesquiati e Kenner Terra, tratamos do modo como Nejar lida com as palavras e a Palavra em seu romance Carta aos Loucos (cf. BRIZOTTI, Alan; MESQUIATI, David; TERRA, Kenner, 2022TERRA, Kenner. Este é o nosso corpo: o sagrado em Os viventes. In: TERRA, K; LAGO, D. (Orgs.) Carlos Nejar e o sagrado: aspectos literários, espirituais e proféticos. São Paulo: Recriar, 2022. p. 23-36.).

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O artigo está adequado ao foco temático e em conformidade com a teoria proposta. O objetivo do estudo está explicitado e o desenvolvimento mostra sua realização de forma coerente. Uma das contribuições do estudo reside na análise cuidadosa da presença do discurso religioso no romance de Carlos Nejar, mostrando que esse autor aprofunda a visão do sagrado, que se percebe nas tramas cotidianas, nas metáforas do tempo, do vento, do redemoinho e das nossas relações. Ademais, no âmbito dos estudos bakhtinianos acerca do discurso religioso, a pesquisa estabelece um diálogo entre os textos bíblicos e a literatura. No caso específico, o estudo fornece uma análise de imagens, símbolos e experiências utilizadas por Nejar na escrita do romance Riopampa: moinho das tribulações, tecendo relações com textos da literatura bíblica e com outras obras da literatura ocidental. Digno de nota é que artigo mostra que há ainda uma carência de estudos sobre a relação entre os textos bíblicos e a literatura no Brasil. Diria que o artigo em apreciação apresenta uma significativa contribuições diante dessa lacuna. Considerando esses aspectos, sou de PARECER FAVORÁVEL à publicação do artigo.

Apresento três sugestões para a melhoria do texto:

  1. Ao longo do artigo, o articulista utiliza os termos “intertextualidade” e “paródia”, mas tais noções não foram distinguidas em relação a outros conceitos, como dialogismo, polifonia etc. Sugiro rever pontos do texto em que essa proposta aparece, por exemplo, no resumo é dito: “Para esse fim, utilizaremos o aporte teórico da Análise do Discurso, sob os auspícios de Bakhtin e os conceitos de intertextualidade, dialogismo, paródia e polifonia, além de uma concisa pesquisa bibliográfica”. Além disso, parece atribuir o conceito de “intertextualidade” a Bakhtin. Assim, seria preciso rever a distinção entre “intertextualidade”, “dialogismo”, “polifonia”, que aparecem no texto.

  2. Sugiro fazer uma revisão técnica do texto, principalmente, as normas da Revista quanto à forma de indicar uma supressão de partes de um texto numa citação direta e conferir a forma de citar autores entre parênteses, conforme a mais recente atualização da ABNT.

  3. Na página 2, após apresentar a pergunta de pesquisa, é dito: “Para responder esse questionamento, faremos uma pesquisa bibliográfica em Nejar [...]”. Sugiro pensar se é mesmo “uma pesquisa bibliográfica”. Como existe um tipo de pesquisa bibliográfica que segue outro caminho analítico, talvez fosse o caso de evitar essa classificação. Entendo que o estudo se aproxima mais de uma pesquisa do tipo “documental”, já que uma obra/um romance (que é um documento escrito da cultura humana) é tomado como material para análise. Até sugiro rever o conceito de “Cotejo”, que caberia perfeitamente para caracterizar o movimento analítico que é desenvolvido no estudo. De fato, o artigo põe em cotejo vozes do romance de Nejar com outras vozes (textos bíblicos, teologia, literatura, por exemplo). APROVADO COM RESTRIÇÕES [Revisado]

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    30 Dez 2023

Disponibilidade de dados

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2023
  • Aceito
    18 Fev 2024
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