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A criança com restrição verbal e o conceito de intercompreensão e multimodalidade na clínica da linguagem: um estudo de caso

RESUMO

Este artigo tem por objetivo analisar o processo de intercompreensão sob a ótica da Neurolinguística Discursiva. Como metodologia, foi realizado um estudo de caso de uma criança com perfil linguístico de restrição verbal, que diz respeito à dimensão dos enunciados que envolve as palavras e a sua morfologia. A interpretação dos dados ocorreu com base na perspectiva bakhtiniana, que aborda a “compreensão” como um processo ativo responsivo e a significação como emergente na relação entre enunciados. Os resultados evidenciaram que o conhecimento compartilhado entre as interlocutoras permitiu a construção conjunta da significação mesmo diante da restrição verbal, e aspectos como os elementos não verbais e o reconhecimento do papel ativo-responsivo da criança também favoreceram a intercompreensão. Conclui-se que a atenção aos diferentes recursos multimodais como modos de expressão legítimos possibilita às crianças com restrição verbal ocupar a posição de “falantes”, independentemente de seus modos de expressão.

PALAVRAS-CHAVE:
Neurolinguística discursiva; Multimodalidade; Restrição verbal; Dialogia; Intercompreensão

ABSTRACT

This article aims to analyze the process of mutual understanding from the perspective of Discursive Neurolinguistics. As a methodology, a case study was carried out on a child with a linguistic profile of verbal restriction, which concerns the dimension of utterances involving words and their morphology. Data interpretation was based on the Bakhtinian perspective, which addresses ‘understanding’ as an active-responsive process and meaning as emerging from the relationship between utterances. The results showed that the interlocutors’ common ground allowed the joint construction of meaning even in the face of verbal restrictions, and aspects such as nonverbal elements and the recognition of the child’s active-responsive role also favored mutual understanding. As a conclusion, the attention to different multimodal resources as legitimate modes of expression allows children with verbal restrictions to fulfill the role of “speakers” regardless of their modes of expression.

KEYWORDS:
Discursive Neurolinguistics; Multimodality; Verbal restriction; Dialogism; Mutual understanding

Introdução1 1 Este texto foi produzido a partir de resultados obtidos da pesquisa de mestrado desenvolvida pela primeira autora deste artigo e do projeto de pesquisa “Avaliação da Compreensão: Avanços e Desafios”, coordenado pela segunda autora (PQ/CNPq Processo 311127/2019-3).

A queixa de “não falar” ou da “criança não verbal” na clínica da linguagem abrange casos bastante diferentes entre si, envolvendo adultos e crianças com diagnósticos diversos (afasia, surdez, transtornos motores da fala, encefalopatia crônica não progressiva, transtorno do espectro autista, síndromes e vários transtornos do neurodesenvolvimento e neurológicos). Embora distintos, esses diagnósticos têm um ponto em comum: a restrição e/ou ausência da linguagem oral, entendida como a forma linguística da interação social que envolve as palavras - diferentemente dos elementos considerados “não verbais” da situação, tal como os gestos, o olhar, as expressões faciais ou mesmo as vocalizações não articuladas. É importante salientar que sujeitos com diferentes diagnósticos e capacidades muitas vezes têm recebido o mesmo tratamento social, educacional e terapêutico por serem vistos como sujeitos que “não falam” e, desse modo, as singularidades de cada caso são subestimadas sob o mesmo prisma: a “ausência de fala”.

No entanto, como Lucia Arantes (2003)ARANTES, Lucia. A clínica psicanalítica e a fonoaudiologia com crianças que não falam. Distúrbios da comunicação, São Paulo, v. 1, p. 59-69, 2003. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/dic/article/download/11340/22675. Acesso em: 24 jan. 2024.
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afirma, há uma heterogeneidade no grupo que se abriga sob o sintoma de “não falar”, que expõe modos diferentes de relação com a linguagem e, portanto, posições subjetivas singulares. Para a autora, no modo singular de olhar para o sintoma “não falar” está implicada uma clínica da linguagem que se afasta de uma concepção ortopédica, a qual vigora, em grande parte, na clínica fonoaudiológica tradicional, e abre espaço para uma clínica que considera um sujeito que possui um lugar de falante. Nas palavras da autora: “Nessa perspectiva, o fonoaudiólogo interpreta os gestos da criança, sejam eles vocais (ou não) - nesse caso, o fonoaudiólogo empresta seu imaginário e coloca em texto, o que ainda não ganhou lugar na fala” (Arantes, 2003ARANTES, Lucia. A clínica psicanalítica e a fonoaudiologia com crianças que não falam. Distúrbios da comunicação, São Paulo, v. 1, p. 59-69, 2003. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/dic/article/download/11340/22675. Acesso em: 24 jan. 2024.
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, p. 62).

Sobre esse ponto, Ana Paula de Oliveira Santana (2015)SANTANA, Ana Paula de Oliveira. Grupo terapêutico no contexto das afasias. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 4-15, 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/dic/article/view/18313. Acesso em: 25 jan. 2024.
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também ressalta que o fonoaudiólogo deve oferecer possibilidade ao sujeito de assumir seu papel de interlocutor, ou seja, seu papel de sujeito falante. Nesse sentido, “o olhar do clínico é tanto sobre o que o sujeito fala quanto sobre o que ele não fala, mas queria falar, e como ele fala. Construindo, assim, a fala do outro a partir da sua própria fala, para constituir os processos de significação” (Santana, 2015SANTANA, Ana Paula de Oliveira. Grupo terapêutico no contexto das afasias. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 4-15, 2015. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/dic/article/view/18313. Acesso em: 25 jan. 2024.
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, p. 13). Para a autora, nesses casos, as práticas com as outras modalidades da linguagem - gestual e escrita - são aspectos importantes para serem significados na interação. Não se pode deixar de fora os outros elementos multimodais da linguagem.

Para os estudos que consideram a multimodalidade da linguagem, como os de Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante (2019)CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Perspectiva multimodal da aquisição da linguagem. In: MOTA, Mailce Borges; NAME, Cristina (orgs.). Interface linguagem e cognição: contribuições da Psicolinguística. Santa Catarina: Copiart, 2019. p. 67-88., os enunciados concretos realizam-se por meio da “fala” (vocal) de modo intimamente integrado aos “gestos”. Os estudos sobre a relação gesto/fala ressaltam que, desde muito cedo, as crianças fazem uso dos elementos multimodais da língua(gem). Pode-se dizer que, sob o guarda-chuva da multimodalidade, os gestos passam a ser entendidos como parte do fenômeno linguístico e, portanto, vêm sendo concebidos como aspecto multimodal coatuante na matriz da linguagem (Cavalcante, 2018CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Contribuições dos estudos gestuais para as pesquisas em aquisição da linguagem. Revista Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 21, n. esp., p. 5-35, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/rle/article/view/15112/9289. Acesso em: 25 jan. 2024.
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). Nessa perspectiva teórica, a linguagem é desenvolvida nas modalidades oral-auditiva e cinestésica de modo conjunto, sem que haja primazia da fala sobre o gesto e vice-versa (Barros; Fonte; Souza, 2020BARROS, Isabela Barbosa do Rêgo; FONTE, Renata Fonseca Lima da; SOUZA, Ana Fabrícia. Ecolalia e gestos no autismo: reflexões em torno da metáfora enunciativa. Forma y Función, [Bogotá], v. 33, n. 1, 2020. DOI: https://doi.org/10.15446/fyf.v33n1.84184. Acesso em: 24 jan. 2024.
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), pois se entende que o “gesto” e a “fala” formam uma esfera indissociável (McNeill, 1985MCNEILL, David. So you Think Gestures Are Nonverbal? Psychological Review, Whashington, v. 92, p. 350-371, 1985. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1985-30454-001. Acesso em: 25 jan. 2024.
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).

Na perspectiva de David McNeill (1985)MCNEILL, David. So you Think Gestures Are Nonverbal? Psychological Review, Whashington, v. 92, p. 350-371, 1985. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1985-30454-001. Acesso em: 25 jan. 2024.
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, porém, tanto “fala” quanto “gesto” deveriam ser consideradas como dimensões inseparáveis do processo de elaboração “verbal”. A teoria proposta pelo autor é a de que “gesto” e a “fala vocal” (speech) representam respectivamente a expressão global-sintética e linear-segmental da comunicação verbal. Neste estudo, contudo, trabalhamos com um conceito de “verbal” mais restrito, que representa somente a dimensão da “fala” que McNeill propõe, isto é, o uso das palavras com sua característica linear, articulada e convencional. Essa dimensão verbal complementa-se com a dimensão não verbal nos enunciados concretos, que neste trabalho abrange tanto os “gestos” manuais aos quais McNeill faz referência, quanto outras formas que integram a composição dos enunciados, tal como expressões faciais, olhares, orientação do corpo, entre outros.

Nesse sentido, seguimos a proposta de autores que adotam o termo gestos, no plural, considerando que o termo pode ser compreendido no sentido mais amplo, não se restringindo apenas à investigação de gestos manuais, mas também de outros movimentos corporais, a exemplo de expressões faciais, olhares, orientação do corpo, entre outros (Cavalcante; Faria, 2015CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra; FARIA, Evangeline Maria Brito de (orgs.). Cenas em aquisição da linguagem multimodalidade, atenção conjunta e subjetividade. João Pessoa: Editora da UFPB, 2015.). A Figura 1 ilustra melhor essa questão.

Figura 1
Linguagem gestual. Fonte: Elaborada pelas autoras (2024).

O estudo sobre como a multimodalidade é explorada nas interações sociais, entretanto, exige considerar os contextos sócio-históricos e culturais em que essas interações ocorrem, uma visão introduzida por Mikhail Bakhtin e o Círculo nos estudos da linguagem (Volóchinov, 2017VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Nessa perspectiva, o emprego da multimodalidade deve ser impactado por fatores situacionais e sociais em que a interação ocorre, incluindo quem são os parceiros da interação, onde estão interagindo, em que momento falam, qual esfera de atividade social está em curso, entre outros fatores. Assim, para compreender o desenvolvimento da linguagem nessa perspectiva, é preciso observar dados de discurso espontâneo e analisar a cena interacional como um todo, buscando verificar como a significação emerge no processo dialógico e como fatores diversos do contexto situacional e social podem influenciar essas interações.

Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017. já ressaltava em seu trabalho que a significação envolve todas as manifestações verbais e demais manifestações de natureza semiótica, como a mímica, a linguagem gestual, os gestos condicionados, o tom volitivo-emocional vinculado à palavra. Pode-se dizer, nesse sentido, que, para que a significação possa ocorrer, é necessário que se considere toda a multimodalidade envolvida na interação.

A significação pertence, assim, a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores e só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. Segundo João Wanderley Geraldi (1991GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 19), “no processo de compreensão ativo-responsiva é a presença da fala do outro que deflagra uma espécie de inevitabilidade de busca de sentido; essa busca, por seu turno, deflagra que quem compreende se oriente para a enunciação do outro”.

Assim, pode-se dizer que a compreensão é de natureza semiótica. Nesse sentido, Valentin Volóchinov (2017VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017., p. 181) entende que “nunca pronunciamos ou ouvimos palavras, mas ouvimos uma verdade ou mentira, algo bom ou mal, relevante ou irrelevante, agradável ou desagradável e assim por diante”. A palavra, para o teórico, está sempre carregada de um sentido ideológico ou vivencial. É dessa forma que compreendemos as palavras e reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida. Compreender é, em seus termos, opor a palavra do locutor a uma contrapalavra.

Com base nesses pressupostos, o termo que adotamos neste estudo e que reflete essa perspectiva é o de intercompreensão. Tal termo foi inicialmente utilizado por Geraldi (1991)GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. para afastar qualquer interpretação que pudesse tornar o sujeito a fonte de sentido. Para o autor, há dois níveis que se intercruzam nesse processo:

(...) aquele da produção histórica e social de sistemas de referências em relação aos quais os recursos expressivos se tornam significativos e aqueles das operações discursivas que, remetendo aos sistemas de referências, permitem a intercompreensão nos processos interlocutivos apesar da vagueza dos recursos expressivos utilizados. Nestas operações pode-se dizer que há ações que os sujeitos fazem com a linguagem e ações que fazem sobre a linguagem; no agenciamento de recursos expressivos e na produção de sistemas de referências pode-se dizer que há uma ação da linguagem (Geraldi, 1991GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991., p. 16).

O termo “intercompreensão” também foi empregado por Renata Fugiwara (2013FUGIWARA, Renata. Processos de (inter)compreensão nas afasias. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 2013. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/Acervo/Detalhe/920983. Acesso em: 25 jan. 2024.
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, p. 131) para se referir tanto à noção de “compreensão conjunta”, como à noção de “um trabalho em que ambos os parceiros da comunicação verbal operam sobre os enunciados um do outro para construir a significação” (Fugiwara, 2013FUGIWARA, Renata. Processos de (inter)compreensão nas afasias. Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 2013. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/Acervo/Detalhe/920983. Acesso em: 25 jan. 2024.
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, p. 155). No campo dos estudos discursivos, a intercompreensão2 2 Segundo Pierre Escudé e Francisco Calvo del Olmo, a palavra “intercompreensão” foi cunhada em 1913 pelo linguista francês Jules Ronjat, embora não seja tão usada atualmente. Para o autor, “é simples explicar o que esse termo significa: dois interlocutores se encontram, cada um falando - ou escrevendo - sua própria língua e se esforçando para entender a língua do outro” (Ronjat, 1913 apud Escudé; Calvo Del Olmo, 2019, p. 11). O termo como está sendo aqui utilizado é distinto daquele que vem sendo empregado em estudos multilíngues para enfatizar a interação entre duas ou mais línguas utilizando diferentes recursos semióticos (García, 2018). marca a compreensão enquanto um processo ativo em que a significação só se dá dialogicamente, envolvendo a multimodalidade da linguagem.

É nesse sentido que dizemos que a compreensão contém sempre os elementos da resposta, pois respondemos a qualquer enunciação de nosso interlocutor, se não com palavras, pelo menos com um gesto: um movimento de cabeça, um sorriso, uma pequena sacudidela da cabeça, entre outros recursos (Bakhtin, 1992BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 277-326.).

Em nosso estudo, partimos da Neurolinguística Discursiva (ND)3 3 A Neurolinguística Discursiva inaugurou seus estudos com a avaliação de linguagem de sujeitos afásicos, nos seguimentos longitudinais, ancorada na historicidade do sujeito e do tempo em que vive, na centralidade da interlocução na produção dos dados, sendo mediada por uma concepção de linguagem e de cérebro como construtos humanos historicamente determinados (Coudry; Freire, 2017). , que a partir dos estudos de Maria Irma Hadler Coudry (1996)COUDRY, Maria Irma Hadler. Diário de Narciso: discurso e afasia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. apresenta uma visão discursiva de língua e linguagem que vem questionando os limites das teorias estruturalistas frente a modelos idealizados que sintetizam a complexa relação entre a produção e a compreensão e que excluem os parceiros de comunicação, partindo do ponto de vista do locutor, como se este estivesse sozinho na interação (Fugiwara; Novaes-Pinto, 2013FUGIWARA, Renata; NOVAES-PINTO, Rosana. Avaliação de compreensão nas afasias: o limite dos instrumentos metalinguísticos e a contribuição das análises discursivas. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 42, n. 2, p. 903-915, 2013. Disponível em: https://revistas.gel.org.br/estudos-linguisticos/article/view/975. Acesso em: 25 jan. 2024.
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).

A ND parte dos estudos sócio-históricos, com base em Alexander Romanovich Luria (1981)LURIA, Alexander Romanovich. Fundamentos de neuropsicologia. Tradução de Juarez Aranha Ricardo Rio de Janeiro. São Paulo: EDUSP, 1981., Lev Semenovitch Vygotsky (1998)VYGOTSKY, Lev Semenovitch. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. Tradução José Cipolla Neto; Luis Silveira Menna Barreto; Solange Castro Afeche. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. e o círculo de Bakhtin4 4 Círculo de Bakhtin é a denominação dada ao grupo de intelectuais russos que se reunia entre 1919 e 1974, dentre os quais participavam Mikhail Bakhtin, Valentin Volóchinov e Pavel Medviédev. (Volóchinov, 2017VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Para esses estudos, consideram-se como pontos principais a esfera social, o contexto imediato e o contexto mais amplo das interações, a heterogeneidade dos sujeitos, os lugares e as posições sociais historicamente construídas, bem como os aspectos de ordem histórica (subjetiva) e social (ideológica), tanto do sujeito, quanto do seu interlocutor (Santana; Santos, 2017SANTANA, Ana Paula; SANTOS, Karoline Pimentel dos. A perspectiva enunciativo-discursiva de Bakhtin e a análise da linguagem na clínica fonoaudiológica. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 174-190, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/bak/a/99qXsdGWrbQ455rgZmjtvNt/?lang=pt. Acesso em: 25 jan. 2024.
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). Esses aspectos, considerados como constitutivos da linguagem no fluxo da comunicação discursiva, ocorrem independentemente da forma de expressão utilizada. Isso significa que, mesmo diante de situações de interação com sujeitos que apresentam restrição verbal ou, ainda, mesmo diante de enunciados ininteligíveis ou considerados não convencionais, o modo como o seu interlocutor responde a esses enunciados vai se constituir em diferentes acabamentos (Bakhtin, 1992BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 277-326.) sobre o querer-dizer5 5 Querer-dizer ou intuito discursivo é um conceito bakhtiniano estreitamente relacionado com o conceito de enunciado. do sujeito, revelando o papel mais (ou menos) ativo de cada interlocutor frente ao discurso do outro, expondo a sua compreensão quanto às semioses construídas dialogicamente (Canonico; Del Ré, 2022CANONICO, Silvia Aparecida; DEL RÉ, Alessandra. Funcionamento da linguagem na criança com Transtorno do Espectro Autista: interação, multimodalidade, formatos. In: ZUIN, Poliana Bruno; DEL RÉ, Alessandra (org.). Linguagem na educação infantil a partir dos contos de fadas. São Carlos: Pedro & João Editores, 2022. p. 279-298.). Por esse motivo, dialogia transcende o diálogo em seu sentido estrito (face a face) e reflete um princípio de funcionamento real da linguagem, seja ela interna (monólogo) ou externa (Volóchinov, 2017VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Como explica Fiorin (2018FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Contexto, 2018., p. 22):

Segundo Bakhtin, a língua, em sua totalidade concreta, viva, em seu uso real, tem a propriedade de ser dialógica. Essas relações dialógicas não se inscrevem ao quadro estreito do diálogo face a face, que é apenas uma forma composicional, em que elas ocorrem. Ao contrário, todos os enunciados no processo de comunicação, independentes de sua dimensão, são dialógicos. Neles, existe uma dialogização interna da palavra, que é perpassada sempre pela palavra do outro, é sempre inevitavelmente também a palavra do outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que está presente no seu.

Nesse sentido, sendo a língua/linguagem essencialmente dialógica, significa dizer que ela só pode ser compreendida no fluxo da comunicação verbal/discursiva. É isso que vamos apresentar neste trabalho. Aprofundamos a análise de situações de interação de crianças com restrição verbal que, muitas vezes, não dispõem de recursos verbais para dizer algo com palavras, mas dispõem de processos alternativos de significação (Coudry, 1996COUDRY, Maria Irma Hadler. Diário de Narciso: discurso e afasia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.), tais como vocalizações, gestos, desenhos, imagens, dentre outros. Em contextos de restrição verbal, como os interlocutores constroem a significação? Que recursos utilizam para se fazerem compreender? E, ainda, de que forma os interlocutores atuam na, com e sobre a linguagem de um interlocutor com restrição verbal para construir a intercompreensão?

A partir dessas considerações, o objetivo deste artigo é analisar o processo de intercompreensão a partir de uma visão sócio-histórica de pensamento bakhtiniano. Apresentaremos essa discussão a partir de um estudo de caso de uma criança com restrição verbal.

1 Aspectos metodológicos

Em relação aos princípios metodológicos, esta pesquisa tem as seguintes características: quanto aos meios, é um estudo qualitativo, do tipo estudo de caso; e, quanto ao tempo e ao contexto, é denominada de transversal-naturalística.

Para Maria Cecília de Souza Minayo (2014)MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14. ed. São Paulo: Hucitec, 2014., a pesquisa qualitativa caracteriza-se por envolver fenômenos sociais que podem ser compreendidos como uma dinâmica de investigação que integra a análise de aspectos objetivos e subjetivos. Dessa forma, toma-se o compreender como eixo principal de análise, pois toda compreensão é parcial e inacabada, tanto para o entrevistado como para o pesquisador, já que todos somos limitados no que compreendemos e interpretamos.

Além desses pressupostos, o estudo está embasado em uma perspectiva bakhtiniana e, em particular, da Neurolinguística Discursiva (ND), segundo a qual a interação humana pode ser mais adequadamente avaliada a partir de dados contextualizados com a vida cotidiana dos sujeitos da pesquisa. Assim, os dados da pesquisa emergiram de situações dialógicas entre os sujeitos participantes do estudo em variadas práticas de linguagem, realizadas em seu contexto social cotidiano. As gravações em vídeo foram escolhidas como forma de geração de dados, pois conseguem captar os recursos multimodais presentes na interação.

Para o estudo, foram realizados recortes dos dados da primeira autora em sua pesquisa de mestrado. O caso estudado é de uma criança que chamaremos de Gabriela. Além de Gabriela, três sujeitos foram convidados para participar desta pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)6 6 Esta pesquisa recebeu a autorização do Comitê de Ética e Pesquisa do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH/UFSC), com número do CAAE: 55848022.5.0000.0121 e número do parecer: 5.286.272. autorizando o registro e a exploração dos dados de vídeo: sua mãe e duas profissionais que atendem a criança no programa de estimulação precoce. Os participantes são: Ana, a mãe de Gabriela, com 42 anos de idade, Maria, com 43 anos de idade, e Joana, com 34 anos de idade.

A geração dos dados da pesquisa ocorreu durante 53 dias, na instituição onde a criança realiza o programa de estimulação precoce. Depois de registradas as interações nos primeiros 20 minutos, e de selecionados os dados, ocorreu o tratamento dos registros audiovisuais a partir do uso da ferramenta Eudico Linguistic Annotator (ELAN), criada no Max Planck Institute for Psycholinguistics, em Nijmegen, Holanda. O software funciona como uma ferramenta de transcrição de dados que possibilita a descrição de diferentes recursos multimodais da linguagem, como gestos e produção vocal, por exemplo, no tempo exato de sua ocorrência.

1.1 Quem é Gabriela?

Gabriela é uma criança de 3 anos e 10 meses de idade que reside com os pais e o irmão de 16 anos. Sua mãe, Ana, relata que a gestação foi sob acompanhamento neonatal de alto risco em razão de Ana apresentar um quadro de hipertensão. Por essa razão, seu nascimento se deu prematuramente, com 35 semanas de gestação. Após o nascimento, precisou permanecer por três horas na UTI neonatal.

Por volta dos nove meses, Gabriela iniciou uma jornada de investigação diagnóstica. O diagnóstico de encefalopatia crônica não progressiva7 7 A encefalopatia crônica não progressiva (ECNP) é uma patologia que decorre de uma lesão estática em cérebros imaturos em desenvolvimento, prejudicando o tônus, a postura e a motricidade do sujeito. (ECNP - CID G 80.2) ocorreu no mês de março de 2019, quando, aos dez meses de idade, Gabriela realizou a primeira ressonância magnética do crânio com a seguinte conclusão: Malácia em território silviano superficial esquerdo - infarto; leucopatia; cisto aracnoideo polar esquerdo”. Durante a investigação da ECNP, os achados clínicos mostraram uma alteração sugestiva da síndrome de Turner8 8 A Síndrome de Turner é uma condição rara decorrente da deleção total ou parcial do cromossomo X. (ST). O diagnóstico genético da ST foi confirmado por meio do exame genético, que evidenciou a monossomia completa do cromossomo X.

Em relação ao desenvolvimento de linguagem, nos primeiros meses de vida de Gabriela, as expressões eram predominantemente de sons vocálicos e do gesto de apontar. No processo de aquisição, segundo a mãe, foi marcante o fato de a primeira palavra, “papai”, emitida por volta dos 24 meses, ter sido produzida de forma bastante articulada: “ela falava certinho. Só que aí de repente, depois, parou” (cf. relato da mãe). Outra característica era o uso generalizado de partes de uma palavra, como, por exemplo, da sílaba /ma/ (significado: mãe) para chamar a mãe, o pai e qualquer outro adulto. Gabriela usa do apontamento para pedir o que deseja (pipoca, roupa etc.) e de “gestos caseiros” para pedir desenhos animados, que gosta de assistir na televisão, ou para pedir a história que quer ouvir contada pela mãe na hora de ir dormir.

2 Análise dos dados

As análises visam compreender o processo de intercompreensão entre Gabriela, uma criança com restrição verbal, e suas interlocutoras em contexto naturalístico, partindo do pressuposto teórico de que a linguagem não pode ser entendida/avaliada independentemente dos contextos de interação e tampouco fora do fluxo da comunicação verbal. Para tanto, realizamos a análise de quatro cenas interativas transcritas a partir de registros audiovisuais. Na análise da cena interativa 1, o objetivo é o de discutir o trabalho contínuo de construção da intercompreensão entre a mãe e a criança e o papel dos enunciados multimodais da díade neste trabalho. Na cena 2, demos ênfase ao sistema alternativo de significação constituído entre a criança e a mãe. Na cena 3, discutimos as relações discursivas envolvidas na interpretação de produção de enunciados vocais não reconhecidos ou atípicos. Por fim, na cena 4, tratamos do papel dos recursos gestuais empregados por Gabriela na interpretação de seus enunciados pela interlocutora.

Cena interativa 1: “A-Lála”

Idade da criança: 3 anos e 10 meses.

Local: refeitório.

Participantes na cena: criança, mãe e pesquisadora.

Contexto: nesse primeiro episódio, entram no refeitório a criança, a mãe e a pesquisadora. Após a sequência organizada pela mãe (sentar e posicionar a criança à mesa, aquecer o alimento e iniciar sua oferta à criança), sentadas à mesa, Gabriela dirige-se à mãe e inicia a interlocução.

Quadro 1
Cena interativa 1 “A-Lála?” Fonte: Alves-Silva (2022ALVES-SILVA, Cristiane. O processo de intercompreensão na situação dialógica um estudo de caso em um contexto de restrição verbal. 2022.124f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022., p.71)

Essa é uma cena rotineira entre a criança e a mãe: a hora da alimentação. Na cena transcrita, observamos inicialmente que a criança produz simultaneamente a expressão vocal “Eee” e o gesto de apontar (Turno 1), provocando uma reação na mãe, que olha para a criança e interpreta a sua produção multimodal como um pedido e responde com um questionamento aberto: “O que você quer?” (Turno 2). Após a criança pegar no antebraço da mãe (Turno 3), aponta na direção da mochila (Turno 5). A mãe reformula seu questionamento, mas, dessa vez, com um questionamento fechado, do tipo “sim/não”: “Queres água?” (Turno 6); ao que a criança responde “Não”, por meio de um emblema (Turno 7). O conhecimento compartilhado coloca a mãe em uma posição de compreensão ativa ao relacionar a mochila com os itens que podem estar dentro dela, como a água, considerando ainda que está no horário da alimentação. Contudo, a criança refaz seu enunciado e vocaliza “Eee” e pega no antebraço da mãe (Turno 8).

Dessa vez, a mãe inclina seu tronco e cabeça para frente, aproximando-se mais da criança, olhando-a de frente e reformulando pela terceira vez o questionamento: “Água?” (Turno 9). O início da resolução da sequência ocorre quando a criança direciona o seu olhar novamente para o lado da mochila, inicia o seu gesto de apontamento para o celular que estava ao lado e vocaliza “Eeaaii” (Turno 10). O gesto de apontar reduz com a ambiguidade e a mãe reformula seu enunciado enquanto aponta para o celular: “Esse aqui?” (Turno 12). A criança então sorri e faz o emblema de “Sim” com ambas as mãos, acompanhado da vocalização “Edeee” (Turno 13). A mãe então pega o celular e coloca-o em frente à criança (Turno 14), que continua sorrindo e, apontando para a tela, vocalizando “A-lála” (Turno 15).

Queremos chamar atenção para dois aspectos: (i) o trabalho contínuo de construção da intercompreensão entre a mãe e a criança; e (ii) o papel dos enunciados multimodais da díade. Ao longo da interação, é perceptível como a mãe vai direcionando as possibilidades de significação da criança a partir de um processo interacional sensível à multimodalidade (Alves-Silva, 2022ALVES-SILVA, Cristiane. O processo de intercompreensão na situação dialógica um estudo de caso em um contexto de restrição verbal. 2022.124f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022.). Com base em gestos de apontar e em vocalizações da criança, a mãe produz três questionamentos sucessivos: “O que você quer?”, “Queres água?” e “Água?”. Essas ações linguísticas da mãe, sob a forma de um diálogo, possibilitam a reversibilidade de papéis e dão possibilidade à criança de responder ao questionamento por meio das palavras da mãe: “Sim” (quero água) ou “Não” (não quero água).

De acordo com Renata Fugiwara e Rosana Novaes-Pinto (2013), são essas ações linguísticas, como atos de reflexão praticados nas interações, que Geraldi (1991)GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. considera essenciais para o processo de aprendizagem da linguagem, pois apreender a linguagem já é um ato de reflexão. Como abordam as autoras, “compreender a fala do outro e se fazer compreender pelo outro tem a forma de diálogo: quando compreendemos o outro, fazemos corresponder à sua fala uma série de palavras nossas” (Fugiwara; Novaes-Pinto, 2013FUGIWARA, Renata; NOVAES-PINTO, Rosana. Avaliação de compreensão nas afasias: o limite dos instrumentos metalinguísticos e a contribuição das análises discursivas. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 42, n. 2, p. 903-915, 2013. Disponível em: https://revistas.gel.org.br/estudos-linguisticos/article/view/975. Acesso em: 25 jan. 2024.
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, p. 912).

Ao olhar para os elementos multimodais, vê-se que o gesto de apontar é bastante usado pela criança (Turnos 1, 5, 10 e 14), assim como pela mãe, ao buscar confirmação do objeto de interesse da criança também por meio de um gesto dêitico (Turno 12). Segundo Cavalcante (2012)CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Hologestos - produções linguísticas numa perspectiva multimodal. Revista Letras, Fortaleza, v. 1/2, p. 9-16, 2012. Disponível em: https://www.periodicos.ufc.br/index.php/revletras/article/view/1057. Acesso em: 25 jan. 2024.
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, o gesto de apontar exerce uma posição de destaque em relação aos emblemas produzidos pela criança.

Outros gestos produzidos por Gabriela foram os emblemas de “negação” e de “positivo” (Turnos 7 e 13). O uso desse tipo de gesto revela que a criança possui, como parte do seu repertório comunicativo, signos convencionais e simbólicos, que têm um estatuto similar ao das palavras nas línguas orais (McNeill, 1985MCNEILL, David. So you Think Gestures Are Nonverbal? Psychological Review, Whashington, v. 92, p. 350-371, 1985. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1985-30454-001. Acesso em: 25 jan. 2024.
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). Essa observação sugere que Gabriela tem possibilidades de se comunicar de modo convencional e simbólico por meio de gestos manuais, levantando a questão sobre o seu potencial de aprender um sistema linguístico de base manual - como as línguas de sinais utilizadas pelos surdos - para estruturar e ampliar o seu repertório comunicativo.

Ao olharmos para as vocalizações da criança (Quadro 2), podemos identificar algumas produções que também chamaram a atenção. As primeiras duas produções usadas para expressar o pedido foram iguais: “Êee” (Turnos 1 e 8). Combinadas com gestos de apontar, essas produções podem estar associadas a um modo convencional de Gabriela fazer algum “pedido”.

Quadro 2
Recorte das produções vocais da criança. Fonte: Alves-Silva (2022ALVES-SILVA, Cristiane. O processo de intercompreensão na situação dialógica um estudo de caso em um contexto de restrição verbal. 2022.124f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022., p.74).

As outras três produções vocais também se destacam por sua possível aproximação em relação a construções típicas do português. Na primeira (c), a criança vocaliza “Eeeaaii” (Turno 10), quando aponta para o celular, ao que a mãe responde: “Esse aqui?”. Podemos refletir em que medida a mãe utilizaria de modo intuitivo pistas sonoras presentes da vocalização da criança para reformular de modo reflexivo a sua produção, já que a sequência de vogais da produção de Gabriela (‘e-a-i’) é similar à resposta da mãe: ‘e(sse) a(qu)i’. Um processo similar pode ter ocorrido em seguida, quando poderíamos hipotetizar que a resposta de Gabriela (d), “Edee”, seria uma aproximação vocal da fala anterior da mãe, “Esse”.

Embora não seja conclusivo, a última fala de Gabriela pode fortalecer tal hipótese. Ao olhar a sua última produção (e), transcrita aqui como “A-Lála” (Turno 15), uma visão restrita apenas a essa interação poderia sugerir que fosse apenas uma vocalização aleatória. Contudo, cruzando esse dado com outro referente ao repertório verbal e não verbal de Gabriela, que solicitamos à mãe que fizesse (Quadro 3 abaixo), vemos que “A-Lála” é uma holófrase que Gabriela usa com sua mãe cotidianamente para se referir à expressão “A Dora”, do desenho “Dora Aventureira”. Nesse sentido, a partir desse episódio, é possível presumir que as vocalizações de Gabriela não são aleatórias e que buscar pistas sonoras de palavras aproximadas desempenharia um possível papel no processo de construção do significado por seus interlocutores.

Durante a entrevista com a mãe, foi solicitado que ela indicasse palavras utilizadas em sua interação cotidiana com Gabriela. A mãe citou as palavras que fazem parte do repertório da criança, algumas das quais são exemplificadas no Quadro 3.

Quadro 3
Lista parcial de vocalizações convencionais de Gabriela registradas por sua mãe. Fonte: Alves-Silva (2022ALVES-SILVA, Cristiane. O processo de intercompreensão na situação dialógica um estudo de caso em um contexto de restrição verbal. 2022.124f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022., p.75)

Em suma, nessa primeira cena, como diz Lucia Aparecida de Campos Scisci (2004)SCISCI, Lucia Aparecida de Campos. Estudo da atribuição de sentido a processos de significação verbais e não verbais de sujeitos afásicos. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 2004. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/319922. Acesso em: 25 jan. 2024.
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, o conhecimento mútuo compartilhado pelos sujeitos é fator relevante para a compreensão do que se está querendo dizer. Nesse caso, vimos que os enunciados da criança estão intimamente ligados ao seu querer-dizer. Segundo Bakhtin (1992)BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 277-326., o enunciado é marcado pelas circunstâncias individuais, pelos parceiros individualizados e suas intervenções anteriores. Assim, os parceiros de uma comunicação que conhecem a situação e enunciados anteriores percebem o intuito discursivo, o querer-dizer do interlocutor logo nas primeiras palavras ouvidas. A partir disso, podemos considerar que a convivência com sujeitos que apresentam alguma alteração de linguagem propicia ao interlocutor compreender com mais facilidade os gestos, as pausas e os demais recursos utilizados por esses sujeitos na busca de se fazer entender pelo outro (Scisci, 2004SCISCI, Lucia Aparecida de Campos. Estudo da atribuição de sentido a processos de significação verbais e não verbais de sujeitos afásicos. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 2004. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/319922. Acesso em: 25 jan. 2024.
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).

Cena interativa 2: “Ela está mostrando o pé”.

Idade da criança: 3 anos e 10 meses.

Local: refeitório.

Participantes na cena: criança, mãe e pesquisadora.

Contexto: nesse fragmento, que acontece alguns instantes após a cena interativa 1, a pesquisadora, desconhecendo o desenho que a criança via no celular e não reconhecendo a sua produção “A-Lála”, pergunta a mãe o que Gabriela gostava de assistir.

Quadro 4
Cena interativa 2 “Ela está mostrando o pé”. Fonte: Alves-Silva (2022ALVES-SILVA, Cristiane. O processo de intercompreensão na situação dialógica um estudo de caso em um contexto de restrição verbal. 2022.124f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022., p.77)

A cena interativa 2, envolvendo a tríade “criança-mãe-pesquisadora”, mostra o papel discursivo que a mãe assume na cena interativa, ao tomar o lugar de interlocutora e de constituir a criança como uma falante potencial, convocando-a novamente a enunciar. Inicialmente, a pesquisadora endereça um questionamento para a criança sobre que outro desenho ela gosta. Diante do silêncio da criança, então, a mãe intervém na interação, porém continuando a atribuir um estatuto ativo-responsivo às ações de Gabriela, mesmo não sendo essas ações de natureza verbal. Ao observar sua filha deslizando o dedo de baixo para cima no celular, Ana reformula seu questionamento aberto na forma de uma afirmação, “Outro desenho...”, e, ao observar que Gabriela continua buscando no celular a sua resposta, mais uma vez reformula: “Não... fala pra ela qual outro desenho...” (Turno 1).

O Turno 1 da mãe apresenta alguns elementos que destacamos. Primeiro, a expressão “Não”, que inicia o turno, mostra que a mãe continua reconhecendo a ação de Gabriela de deslizar o dedo no celular como a busca de uma resposta. Ao mesmo tempo, a fala da mãe exige que a criança encontre outro recurso para responder ao questionamento. Em seguida, a expressão “Fala pra ela” interpela explicitamente Gabriela enquanto um sujeito ativo-responsivo do discurso. Essa enunciação apresenta Gabriela não apenas como alguém que seja capaz de “falar”, mas também de “relatar” experiências que extrapolam o contexto imediato do aqui-agora.

A mãe, então, atua como tradutora na mediação entre Gabriela e a pesquisadora, que até então desconhecia que o gesto de tocar o pé era um símbolo convencional em seu ambiente familiar para se referir ao desenho da Cinderela. “Ela tá te falando. Ela tá mostrando o pé. É a Cinderela” (Turno 3). Se não fosse a mediação da mãe, sustentada pelo conhecimento mútuo (Coudry, 1996COUDRY, Maria Irma Hadler. Diário de Narciso: discurso e afasia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.) que ela compartilha com sua filha, esse gesto de tocar o pé poderia eventualmente ser considerado uma ação aleatória ou ainda ter um sentido vago para outros interlocutores que não compartilham dessa base comum.

Nessa cena interativa, portanto, destacamos a importância dos recursos multimodais na comunicação de Gabriela. No caso da referência à Cinderela, fica evidente o fato de que sujeitos “barrados” pela condição verbal fazem uso de diferentes tipos de recursos multimodais para significar. No caso de Gabriela, a restrição no uso da modalidade oral põe em evidência “a força criadora da linguagem” (Coudry, 1996COUDRY, Maria Irma Hadler. Diário de Narciso: discurso e afasia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.) por meio da emergência de signos não verbais possibilitados na e pela interlocução com a mãe.

Quando cruzamos esses dados com a entrevista realizada junto à mãe, fica evidente que os gestos manuais já são explorados cotidianamente como parte do repertório de Gabriela, constituindo-se em um importante recurso comunicativo. O Quadro 5, abaixo, apresenta alguns dos gestos que compõem o seu repertório familiar.

Quadro 5
Repertório parcial de gestos caseiros usados por Gabriela em seu cotidiano com sua mãe. Fonte: Alves-Silva (2022ALVES-SILVA, Cristiane. O processo de intercompreensão na situação dialógica um estudo de caso em um contexto de restrição verbal. 2022.124f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022., p. 90).

É interessante notar as semelhanças entre os processos descritos pela mãe sobre o uso de gestos por Gabriela e o que percebem outros pesquisadores que estudam crianças surdas nascidas em famílias de ouvintes, como os chamados “gestos caseiros” ou “gestos domésticos”, porque circulam apenas no contexto familiar (Santana, 2007SANTANA, Ana Paula de Oliveira. Surdez e linguagem: aspectos e implicações neurolinguísticas. São Paulo: Plexus, 2007.). Embora os gestos caseiros não sejam considerados um sistema linguístico completo, tais sistemas apresentam um embrião das propriedades essenciais das línguas humanas (Mylander; Goldin-Meadow, 1991MYLANDER, Carolyn; GOLDIN-MEADOW, Susan. Home Sing Systems in Deaf Children: The Development of Morphology without a Conventional Language Model. In: SIPLE, P.; FISHER, S. D. (eds.). Theoretical Issues in Sign Language Research. Chicago: The University de Chicago Press, 1991.). Quando incentivadas, essas produções têm o potencial de desenvolver características típicas de signos linguísticos, assim como os das línguas de sinais faladas pelas pessoas surdas, explorando a “força criadora da linguagem” (Coudry, 1996COUDRY, Maria Irma Hadler. Diário de Narciso: discurso e afasia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.).

Em suma, como a cena interativa 2 mostra e a entrevista reforça, o sistema alternativo de significação constituído entre a criança e a mãe parece ampliar as possibilidades do estabelecimento de diálogos com maior diversidade de temáticas e contextos. Dessa forma, também influencia de maneira positiva o desenvolvimento afetivo, cognitivo, linguístico-discursivo e social da criança.

Cena interativa 3 “É-tchãa”

Idade da criança: 3 anos e 11 meses.

Local: sala de atendimento terapêutico.

Participantes na cena: Gabriela, Maria e pesquisadora.

Contexto: na cena interativa, a interlocutora conduz a interação solicitando que Gabriela pegue um objeto dentro da caixa. O brinquedo que Gabriela pega é um personagem de desenho animado conhecido como “George”, irmãozinho da “Peppa Pig”. A interlocutora então pede para Gabriela levar o George até uma mesa localizada a poucos metros de distância da caixa. A cena interativa a seguir inicia com uma imagem que mostra o que parece ser uma inquietação de Gabriela, quando ela larga a caixa, vira seu corpo na direção da mesinha, olha para o George, sendo então interpretada pela interlocutora no Turno 1.

Quadro 6
Cena interativa 3 “É-tchãa”. Fonte: Alves-Silva (2022ALVES-SILVA, Cristiane. O processo de intercompreensão na situação dialógica um estudo de caso em um contexto de restrição verbal. 2022.124f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022., p.94)

Nesse fragmento, observamos, de forma mais evidente, as relações discursivas envolvidas na interpretação da produção de enunciados vocais não reconhecidos ou atípicos. Primeiramente, observa-se que Gabriela modifica seu engajamento na interação com a interlocutora Maria, que continuava conduzindo a atenção da criança, virando seu corpo e direcionando seu olhar para o brinquedo “George” ao invés da caixa. Diante dessa mudança, Maria interpreta os sinais corporais de Gabriela e tenta novamente trazê-la para o foco da atividade, “Você quer o George? Vem cá” (Turno 1).

A partir desse momento, Gabriela passa a expressar o seu objeto de interesse em diversos turnos, de modo persistente. Ao pegar o “George” nas mãos, vê-se a primeira de muitas produções vocais-gestuais de Gabriela que foram enunciadas para a interlocutora. Como primeira observação, pode-se verificar que as produções da criança nos Turnos 2, 4, 8, 10, 12, 14 e 16 foram similares, ou seja, é perceptível um padrão envolvendo o mesmo ritmo, o mesmo número de sílabas e o mesmo contorno entoacional. Em relação ao número de sílabas, pode-se observar que as produções da criança foram dissílabas, com a ocorrência do acento tônico na primeira sílaba, “É”. No que diz respeito à articulação fonética/fonológica, observa-se que, embora o som articulado na primeira sílaba se aproxime do fonema /e/ da língua portuguesa, há uma maior variabilidade de produção na segunda sílaba9 9 Ressalta-se que a segunda sílaba das produções de Gabriela foi transcrita a partir da observação aproximada da pesquisadora porque elas não são nitidamente identificáveis. .

Em relação aos gestos produzidos pela criança, toma-se a classificação como gesticulação que, de acordo com Paulo Vinícius Ávila-Nóbrega e Mariane Carvalho Bezerra Cavalcante (2015ÁVILA-NOBREGA, Paulo Vinícius; CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. O envelope multimodal em aquisição de linguagem: momento do surgimento e pontos de mudanças. In: CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra; FARIA, Evangelina Maria Brito de (org.). Cenas em aquisição da linguagem: multimodalidade, atenção conjunta e subjetividade. João Pessoa: Editora da UFPB, 2015, v. 1. p. 11-44.), define-se como um movimento idiossincrático, não convencional, sem propriedades linguísticas (verbais), realizada concomitantemente à fala. Porém, percebe-se que essa gesticulação tem as características de gestos conhecidos como “batidas”, que marcam o ritmo da fala e são coordenadas com a prosódia (McNeill, 1992MCNEILL, D. Hand and Mind: What Gestures Reveal about Thought. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.). Assim, na sílaba forte, “É”, o gesto é realizado mais ao alto e, na segunda sílaba, mais fraca, o gesto é realizado mais abaixo.

Um segundo aspecto a ser levantado é que, nessa cena entre Gabriela e Maria, notamos que a produção vocal-gestual da criança levanta algumas possibilidades interpretativas por parte da interlocutora: “O que você quer? George é um porquinho. Você quer brincar com ele?” e “Você viu na TV?” (Turnos 3 e 5). Por outro lado, percebendo que Gabriela demonstra não estar sendo entendida, Maria tenta mudar o tópico, pedindo para a criança pegar outro bicho na caixa e, em seguida, pegando ela própria uma baleia e convidando a criança para brincar com ela (Turnos 11, 13 e 15).

Ao longo de todo esse trecho, é possível observar o intuito discursivo de Gabriela, mesmo diante das tentativas da interlocutora de mudar o tópico da conversa. A criança posiciona-se de modo persistente na interlocução, sustentando claramente um certo querer-dizer (Bakhtin, 1992BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 277-326.). Acrescenta-se que a cena interativa mostra também quais são as pistas interacionais que possibilitam compreender aquilo que Gabriela expressava - o que se evidencia pelo emblema de “positivo” que ela produziu diante do enunciado da pesquisadora, “É a Peppa que você quer?” (Turnos 18 e 19, respectivamente).

Naquele momento, dois aspectos permitiram a interpretação de suas produções pela pesquisadora presente na cena interativa. Primeiro, no contexto imediato da cena, é possível perceber que Gabriela, logo após segurar e olhar repetidamente para o “George”, volta-se para dentro da caixa parecendo procurar “algo”. Além disso, o segundo aspecto foi a forma das vocalizações, que mantinham as características prosódicas e apresentavam uma sonoridade aproximada da palavra “Peppa” - o nome da irmã do personagem “George” no desenho.

Cena interativa 4: “O quê que tem? Tá com fome?”

Idade da criança: 3 anos e 11 meses.

Local: sessão terapêutica.

Participantes ativos na cena: Gabriela, Joana e pesquisadora.

Contexto: nesse episódio, Joana e Gabriela estão interagindo em uma brincadeira com a “cozinha em miniatura”. Na cena, Joana brinca de “cozinhar uma sopa” com Gabriela. Em dado momento, Joana gira o brinquedo na direção da criança e introduz um questionamento, dando início ao episódio.

Quadro 7
Cena interativa 4 - “Mão na barriga”. Fonte: Alves-Silva (2022ALVES-SILVA, Cristiane. O processo de intercompreensão na situação dialógica um estudo de caso em um contexto de restrição verbal. 2022.124f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022., p.99).

Nesse episódio, Gabriela novamente está engajada na interação com a sua interlocutora, como já foi descrito nos excertos analisados anteriormente. Contudo, uma primeira observação que distingue esse dado dos anteriores é que, aqui, Gabriela está fazendo apenas uso dos gestos, sem vocalizações. O Quadro 8 abaixo apresenta o conjunto de produções gestuais de Gabriela nessa cena interativa.

Quadro 8
Produções gestuais de Gabriela na cena interativa 4. Fonte: Alves-Silva (2022ALVES-SILVA, Cristiane. O processo de intercompreensão na situação dialógica um estudo de caso em um contexto de restrição verbal. 2022.124f. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2022., p. 100)

Diferentemente das demais cenas interativas descritas, nesse episódio a interlocutora atribui sentido às ações corporais da criança apenas quando ela produziu gestos que se assemelham aos emblemas convencionados culturalmente (Cavalvante, 2018). Em relação aos demais gestos, pantomimas que ilustram modos de ação produzidas pela criança, observa-se que a sua significação não foi trabalhada pela interlocutora ao longo da interação. Ou seja, a interlocutora não reconhece o potencial semiótico das pantomimas, não entrando no jogo simbólico/dialógico proposto pela criança10 10 Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante, 2022, conforme comunicação pessoal. .

Assim, nos Turnos 2, 4 e 6, as ações gestuais de Gabriela parecem não ser reconhecidas como respostas, considerando que sua interlocutora reformula diversas vezes a mesma pergunta: no Turno 1 (“Vê se tem alguma coisa aqui, ó. Tem alguma coisa aí dentro, tem?”); no Turno 3 (“Tem alguma coisa aí?”); no Turno 5 (“Tem alguma coisa aí dentro?”); e no Turno 7 (“Olha pra mim. Tem alguma coisa aí dentro?”).

Vemos que a produção de Gabriela é reconhecida como uma resposta para as perguntas nos Turnos 8 e 10. No Turno 8, a criança faz o emblema de “positivo”, que a interlocutora interpreta e dá sequência no Turno 9 (“Tem?... O quê?... Pega.”). Em seguida, no Turno 10, a criança produz um gesto de passar a mão na barriga, também um emblema familiar em nossa cultura para designar “fome”, sendo novamente significado pela interlocutora no Turno 11 (“Quê que tem? Tá com fome?”). Contudo, embora Joana atribua sentido ao gesto de Gabriela, esse acabamento não é explorado de modo subsequente no decorrer da interação. Assim, nos Turnos 12, 14 e 16, ela retorna ao tópico que vinha desenvolvendo previamente, questionando a criança sobre o que tinha dentro do brinquedo, ao invés de elaborar o novo tópico introduzido pela criança: a “fome” estaria no faz-de-conta pelo fato de a geladeira não ter nada? Ou pelo fato de Gabriela estar com fome? Ou de estar chegando a hora de ir almoçar com a mãe? Essas e outras possibilidades de desenvolvimento do novo tópico introduzido pela criança fortaleceriam o seu papel ativo responsivo ao longo do processo interacional.

Considerações finais

Neste trabalho, partimos de alguns questionamentos quanto às possibilidades de construção de significação em contextos de restrição verbal. Mostramos a importância de o interlocutor direcionar as possibilidades de significação da criança a partir de um processo interacional sensível à multimodalidade da linguagem, ao conhecimento mútuo entre os interlocutores e à atenção a detalhes do contexto imediato situacional.

O estudo mostra que a criança pode se posicionar como um sujeito (mais ativo ou menos ativo) da linguagem a depender dos modos de interação que os interlocutores estabelecem com ela, em particular se esses interlocutores se mostravam atentos (ou não) ao querer-dizer da criança, oferecendo acabamentos para os seus enunciados independentemente de seus modos de expressão.

Em suma, a partir da perspectiva teórica da ND adotada neste estudo, o “outro”, o parceiro interacional, desempenha um papel central no processo de constituição não apenas da linguagem, mas também dos sujeitos sociais. A constituição do sujeito é um processo dialógico, pois ele se funda e se alicerça em práticas sociais que se dão com a língua(gem). Portanto, não há posição passiva na interação, mas uma alternância nas posições de locutor e de ouvinte, ambos trabalhando ativamente na construção da intercompreensão.

  • 1
    Este texto foi produzido a partir de resultados obtidos da pesquisa de mestrado desenvolvida pela primeira autora deste artigo e do projeto de pesquisa “Avaliação da Compreensão: Avanços e Desafios”, coordenado pela segunda autora (PQ/CNPq Processo 311127/2019-3).
  • 2
    Segundo Pierre Escudé e Francisco Calvo del Olmo, a palavra “intercompreensão” foi cunhada em 1913 pelo linguista francês Jules Ronjat, embora não seja tão usada atualmente. Para o autor, “é simples explicar o que esse termo significa: dois interlocutores se encontram, cada um falando - ou escrevendo - sua própria língua e se esforçando para entender a língua do outro” (Ronjat, 1913 apud Escudé; Calvo Del Olmo, 2019CALVO DEL OLMO, Francisco; ESCUDÉ, Pierre. Intercompreensão: a chave para as línguas. São Paulo: Parábola, 2019., p. 11). O termo como está sendo aqui utilizado é distinto daquele que vem sendo empregado em estudos multilíngues para enfatizar a interação entre duas ou mais línguas utilizando diferentes recursos semióticos (García, 2018GARCÍA, Ofélia. The Multiplicities of Multilingual Interaction. International Journal of Bilingual Education and Bilingualism, Philadelphia, v. 21, n. 7, p. 881-891, 3 out. 2018. Disponível em: https://eric.ed.gov/?id=EJ1198122. Acesso em: 24 jan. 2024.
    https://eric.ed.gov/?id=EJ1198122...
    ).
  • 3
    A Neurolinguística Discursiva inaugurou seus estudos com a avaliação de linguagem de sujeitos afásicos, nos seguimentos longitudinais, ancorada na historicidade do sujeito e do tempo em que vive, na centralidade da interlocução na produção dos dados, sendo mediada por uma concepção de linguagem e de cérebro como construtos humanos historicamente determinados (Coudry; Freire, 2017COUDRY, Maria Irma Hadler; FREIRE, Fernanda Maria Pereira. Avaliação discursiva das afasias. Revista de Pesquisa Qualitativa, [S. l.], v. 5, n. 5, p. 360-377, 2017. https://editora.sepq.org.br/rpq/article/view/93. Acesso em: 25 jan. 2024.
    https://editora.sepq.org.br/rpq/article/...
    ).
  • 4
    Círculo de Bakhtin é a denominação dada ao grupo de intelectuais russos que se reunia entre 1919 e 1974, dentre os quais participavam Mikhail Bakhtin, Valentin Volóchinov e Pavel Medviédev.
  • 5
    Querer-dizer ou intuito discursivo é um conceito bakhtiniano estreitamente relacionado com o conceito de enunciado.
  • 6
    Esta pesquisa recebeu a autorização do Comitê de Ética e Pesquisa do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEPSH/UFSC), com número do CAAE: 55848022.5.0000.0121 e número do parecer: 5.286.272.
  • 7
    A encefalopatia crônica não progressiva (ECNP) é uma patologia que decorre de uma lesão estática em cérebros imaturos em desenvolvimento, prejudicando o tônus, a postura e a motricidade do sujeito.
  • 8
    A Síndrome de Turner é uma condição rara decorrente da deleção total ou parcial do cromossomo X.
  • 9
    Ressalta-se que a segunda sílaba das produções de Gabriela foi transcrita a partir da observação aproximada da pesquisadora porque elas não são nitidamente identificáveis.
  • 10
    Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante, 2022, conforme comunicação pessoal.
  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

REFERÊNCIAS

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  • FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin São Paulo: Contexto, 2018.
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  • FUGIWARA, Renata. Processos de (inter)compreensão nas afasias Tese (Doutorado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Campinas, 2013. Disponível em: https://repositorio.unicamp.br/Acervo/Detalhe/920983 Acesso em: 25 jan. 2024.
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  • SANTANA, Ana Paula de Oliveira. Surdez e linguagem: aspectos e implicações neurolinguísticas. São Paulo: Plexus, 2007.
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  • VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.
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Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

Trata-se de um texto muito bem escrito, claro, com uma linguagem totalmente compatível com um artigo científico, com todas as partes bem-organizadas e articuladas. A autora propõe a discussão de um tema atual, original e de grande relevância, não apenas para os estudos sobre a linguagem, mas também com grande impacto para a sociedade, de um modo geral, desconstruindo, entre outras coisas, uma visão ultrapassada que muitos profissionais ainda têm, sobretudo da área da saúde, de que sujeitos que não falam, não sinalizam ou que têm restrições nesse sentido não estão na linguagem. O título reflete claramente essa proposta. Nesse sentido, o texto em questão contribui não apenas com os estudos em Fonoaudiologia, mas também com aqueles sobre o processo de Aquisição da Linguagem em crianças típicas e não-típicas, ambos de um ponto de vista teórico discursivo/dialógico.

A fim de analisar o processo de intercompreensão que envolve situações em que participam, a criança, a mãe e a pesquisadora, e outra em que estão presentes a criança, a mãe e a fonoaudióloga, a autora propõe 3 questões que pretende responder ao longo do texto, a partir de um olhar bakhtiniano: 1) “Em contexto de restrição verbal, como os interlocutores constroem a significação? 2) “Que recursos utilizam para se fazerem compreender?” 3) “De que forma os interlocutores falantes (verbal) atuam na, com e sobre a linguagem do outro (não-verbal) para construir a intercompreensão?” As três perguntas são respondidas ao longo do texto e discutidas ao final, a partir do resultado da análise de 4 cenas interativas.

Para tanto, o artigo em questão propõe a análise dos dados a partir de um olhar bakhtiniano, que considera, entre outros aspectos, a noção de linguagem envolvendo seus aspectos multimodais, a de intercompreensão, de acabamento. E justamente para esses dois últimos aspectos, a autora propõe um diálogo com a Neurolinguística Discursiva, com vistas a dar conta da complexa relação entre produção e compreensão, incluindo, portanto, todos os parceiros de comunicação nesse processo.

Uma ressalva, que necessita de uma revisão, com relação à coerência desse diálogo entre teorias. A autora coloca (p.2):

“Para os estudos que consideram a multimodalidade da linguagem, concebe-se, na matriz da fala, a presença de outro tipo de modalidade, tal como o gesto (CAVALCANTE, 2019CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Perspectiva multimodal da aquisição da linguagem. In: MOTA, Mailce Borges; NAME, Cristina (orgs.). Interface linguagem e cognição: contribuições da Psicolinguística. Santa Catarina: Copiart, 2019. p. 67-88.). Os estudos sobre a relação gesto/fala ressaltam que, desde muito cedo, as crianças são capazes de fazer uso dos elementos multimodais da língua(gem). Assim, o caráter da multimodalidade da língua(gem) se mostra primordial para a compreensão das interações envolvendo semioses verbais e não-verbais (ANDRADE; ALVES, 2019ANDRADE, Cássio Kennedy de Sá.; ALVES, Giorvan Ânderson dos Santos. Execução dos gestos emblemáticos na criança com transtorno do espectro autista. Revista Prolíngua, João Pessoa, v. 14, n. 2, p. 239-249, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/prolingua/article/view/48749/30262. Acesso em: 25 jan. 2024.
https://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.ph...
; CRUZ; COTS; LUIZ, 2017). Pode-se dizer que, sob o guarda-chuva da multimodalidade, os gestos vêm adquirindo um estatuto linguístico e, portanto, vêm sendo concebidos como aspecto multimodal co-atuante na matriz da linguagem (CAVALCANTE, 2018CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Contribuições dos estudos gestuais para as pesquisas em aquisição da linguagem. Revista Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 21, n. esp., p. 5-35, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/rle/article/view/15112/9289. Acesso em: 25 jan. 2024.
https://periodicos.ufpel.edu.br/index.ph...
). Nessa perspectiva teórica, a linguagem é desenvolvida nas modalidades oral-auditiva e cinestésica, conjuntamente, sem que haja primazia da fala sobre o gesto e vice-versa (BARROS; FONTE; SOUZA, 2020BARROS, Isabela Barbosa do Rêgo; FONTE, Renata Fonseca Lima da; SOUZA, Ana Fabrícia. Ecolalia e gestos no autismo: reflexões em torno da metáfora enunciativa. Forma y Función, [Bogotá], v. 33, n. 1, 2020. DOI: https://doi.org/10.15446/fyf.v33n1.84184. Acesso em: 24 jan. 2024.
https://doi.org/10.15446/fyf.v33n1.84184...
), pois entende-se que o gesto e a fala formam uma esfera indissociável (MCNEILL, 1985MCNEILL, David. So you Think Gestures Are Nonverbal? Psychological Review, Whashington, v. 92, p. 350-371, 1985. Disponível em: https://psycnet.apa.org/record/1985-30454-001. Acesso em: 25 jan. 2024.
https://psycnet.apa.org/record/1985-3045...
).”

Se “gesto e fala formam uma esfera indissociável”, por que o uso dos termos “verbal” e “não-verbal” ao longo do texto? Não seria tudo “verbal”, já que ambos integram a linguagem, sem que um seja mais importante que o outro? Nesse sentido, uma distinção que envolve aquilo que é da ordem do vocal me parece mais coerente e a autora traz igualmente esse termo em alguns momentos do texto. Há, portanto, uma flutuação no emprego desses termos que precisa ser revista ao longo do texto. APROVADO COM RESTRIÇÕES [Revisado]

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    04 Set 2023

Parecer II

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer II

O artigo objetiva “analisar o processo de intercompreensão a partir de uma visão sócio-histórica de pensamento bakhtiniano”. Metodologicamente, é enfatizado que “o estudo está embasado em uma perspectiva bakhtiniana; e, em particular, por meio da Neurolinguística Discursiva (ND)” (seção 1. Aspectos Metodológicos, p. 06).

Quanto ao título, mediante o objetivo explicitado, entende-se que apresenta adequação, no entanto, no que se refere à coerência ao percurso metodológico percorrido, sugere-se a inclusão de subtítulo visando sua melhor explicitação.

O trabalho desenvolvido segue ao encontro da proposição temática apresentada. Todavia, considerando a objetividade e a metodologia desenvolvida, com vistas à maior adequação ao tema proposto e à maior transparência e coerência quanto aos procedimentos metodológicos empregados, sugere-se, principalmente no Resumo, o acréscimo da menção quanto ao referencial da Neurolinguística discursiva, conforme expresso na nota de rodapé 4 e nas Considerações Finais: “análise do processo de intercompreensão, embasado em estudos neurolinguísticos e discursivos” (p. 22).

O estudo apresenta atualização no que tange aos referenciais utilizados, principalmente quanto ao referencial relativo à Neurolinguística discursiva - (Coudry, 1996COUDRY, Maria Irma Hadler. Diário de Narciso: discurso e afasia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.). Quanto ao referencial bakhtiniano, aponta-se a necessidade de maior desenvolvimento, ao longo do texto, dos conceitos expressos tanto no Resumo quanto nas Considerações Finais, em especial no que tange ao conceito de dialogia, haja vista que esse conceito aparece expresso somente no Resumo, Palavras-chave e Considerações finais. Ao encontro do colocado, sugere-se as seguintes adequações:

- melhor explicitação do conceito de dialogia/dialogismo em Bakhtin, evitando uma conceituação estreita do termo e evidenciando que “a relação dialógica é uma relação (de sentido) que se estabelece entre enunciados na comunicação verbal” (Bakhtin, 1997, p. 345)

- desenvolvimento do que se entende por “visão sócio-histórica de pensamento bakhtiniano” e/ou acréscimo do aspecto cultural também enfatizado pelo autor, conforme explicitado na página 3 do artigo: “perspectiva histórico-cultural e dos estudos dialógicos dos discursos”;

- ao evidenciar que também quanto à metodologia, “o estudo está embasado em uma perspectiva bakhtiniana”, indicação de qual texto de Bakhtin embasa metodologicamente a pesquisa, por meio da colocação dos anos referente à(s) obra(s). Se forem as mesmas que já se encontram explicitadas no corpo do texto e nas Referências, não há necessidade de nova(s) inclusão(ões), somente de indicação de ano(s);

- quanto à referência Bakhtin (2006), revisão da obra para que a autoria do livro Marxismo e filosofia da linguagem seja referenciada a Valentin Volóchinov e não a Mikhail Bakhtin, conforme última tradução, a partir do original russo, realizada por Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Assim, destaca-se a alteração da referência:

De: - BAKHTIN, M. MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM. 12. ed. [s.l.] HUCITEC, 2006.

Para: -VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017, 373p.

E, por consequência, a alteração da referência (autoria, ano e citações) em todo o corpo do texto.

Quanto à clareza, correção e adequação da linguagem a um trabalho científico, o texto apresenta poucos pontos que requerem revisão quanto ao aspecto linguístico-textual, os quais se encontram destacados no corpo de arquivo anexo e explicitados nos quadros de revisão do word, que se referem, mais especificamente, a questões de concordância do verbo na voz passiva sintética e de normalização.

Quanto à aplicação das normas da ABNT, orienta-se a adequação referente às novas regras (ABNT NBR 10520/2023) e atenção quanto às alterações constantes nas regras da Revista, principalmente quanto aos seguintes pontos:

- "Indicação de autoria pessoa física, dentro dos parênteses, deve ser feita em letras maiúsculas e minúsculas";

- “A primeira vez que um autor for citado deve-se utilizar seu nome completo sem abreviaturas".

Para além das sugestões indicadas, considera-se que o estudo apresenta temática original e expressiva, revelando contribuição não somente para o campo da Fonoaudiologia, como também para os estudos que tangenciam o trabalho (atendimento) com (a) sujeitos com perfil de restrição na linguagem verbal e para os estudos linguístico-discursivos de maneira geral.

Mediante as considerações explicitadas, compreende-se a possibilidade de publicação do artigo, ressalvando-se a necessidade de adequação quanto aos pontos ressaltados. APROVADO COM RESTRIÇÕES [Revisado]

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    26 Out 2023

Parecer III

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer III

A nova versão do texto incorpora as modificações requeridas anteriormente, assim, desse ponto de vista, meu parecer é positivo, contudo essas alterações necessitam de uma revisão (tanto gramatical quanto no que se refere ao modo de citar os autores) que tomei a liberdade de realizar em um documento que segue em anexo. Essas correções são, portanto, obrigatórias para a publicação do artigo. APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    18 Dez 2023

Parecer IV

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer IV

Após nova leitura e análise do artigo e haja vista que a maioria das sugestões/apontamentos foram acatadas(os), quais sejam:

- menção no Resumo quanto ao referencial da Neurolinguística discursiva;

- explicitação do conceito de dialogia/dialogismo em Bakhtin (p. 06-07);

- adequação quanto aspecto cultural relativamente aos estudos bakhtinianos (p. 04);

- adequação quanto à autoria do livro Marxismo e filosofia da linguagem: (Volóchinov, 2017VOLÓCHINOV, Valentin (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Ensaio introdutório de Sheila Grillo. São Paulo: Editora 34, 2017.);

- e demais adequações no corpo do texto,

somos de parecer favorável à aprovação do artigo para publicação.

Ressalvamos que, relativamente às novas normas da ABNT e da Revista, as autoras realizaram a adequação quanto à primeira vez que um autor for citado (utilização de seu nome completo sem abreviaturas), entretanto não houve a adequação da indicação de autoria de pessoa física, dentro dos parênteses: devendo ser feita em letras maiúsculas e minúsculas, conforme explicitado no Parecer e em quadro de revisão constante em arquivo enviado.

Logo, torna-se necessário que tal adequação aconteça no corpo de todo o texto (Indicação de autoria pessoa física, dentro dos parênteses, deve ser feita em letras maiúsculas e minúsculas) para que o artigo seja publicado. Ex. p. 03 de (CAVALCANTE, 2018CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Contribuições dos estudos gestuais para as pesquisas em aquisição da linguagem. Revista Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 21, n. esp., p. 5-35, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/rle/article/view/15112/9289. Acesso em: 25 jan. 2024.
https://periodicos.ufpel.edu.br/index.ph...
) para (Cavalcante, 2018CAVALCANTE, Marianne Carvalho Bezerra. Contribuições dos estudos gestuais para as pesquisas em aquisição da linguagem. Revista Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 21, n. esp., p. 5-35, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/index.php/rle/article/view/15112/9289. Acesso em: 25 jan. 2024.
https://periodicos.ufpel.edu.br/index.ph...
) e demais referências entre parênteses em todo o texto (ABNT NBR 10520-2023). APROVADO

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    27 Nov 2023

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2023
  • Aceito
    21 Fev 2024
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
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