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O gênero discursivo e a disputa pelas formas de (re)construção das práticas sociais

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo discutir o modo como a (co-)construção do gênero discursivo aponta para disputas sobre a (re)construção da realidade social. Para tanto, ensaia-se uma reflexão teórica, aproximando os postulados bakhtinianos aos da Análise Crítica de Discurso, na formulação da Análise Crítica de Gêneros. Analisa-se uma sessão de grupo socioeducativo para homens autores de violência contra a mulher, ilustrando a disputa discursiva sobre o recorte constituinte do tema do gênero. Os dados analisados foram gerados em pesquisa de tipo etnográfico, ao longo de 12 meses de trabalho em campo. A discussão permite perceber a natureza aberta da linguagem e das práticas, tornada inteligível por meio da análise crítica de gêneros discursivos, e aponta para pontos de aberturas imprescindíveis na luta política por mudanças sociais.

PALAVRAS-CHAVE:
Gênero discursivo; Análise crítica de gênero; Mudança social

ABSTRACT

This article aims to discuss how the (co-)construction of discourse genre shows disputes over the (re)construction of social reality. To accomplish this, a theoretical review is done, bringing the Bakhtinian postulates closer to those of Critical Discourse Analysis, in the formulation of Critical Genre Analysis. A socio-educational group session (sessão de grupo socioeducativo) for men who have committed violence against women is analyzed, illustrating the discursive dispute regarding the constituent frame of the genre’s theme. The data analyzed was generated over 12 months of ethnographic research field work. The discussion allows us to perceive the open nature of language and practices, made intelligible through critical analysis of discourse genres, and points to essential openings in the political struggle for social change.

KEYWORDS:
Discourse genre; Critical Genre Analysis; Social change

Introdução

A partir dos estudos discursivos críticos, acredita-se que as práticas sociais e as práticas discursivas se retroalimentam, de modo que a linguagem é tanto meio quanto resultado de processos sociais, discursivos e ideológicos mais amplos. Nesse contexto, recaem sobre os gêneros discursivos – aspecto realizador das práticas – disputas no âmbito temático e estilístico-composicional que apontam para disputas acerca das próprias práticas. É sobre tais embates que trata o presente artigo. Especificamente, objetiva-se mostrar a forma como a co-construção do horizonte temático do gênero sessão de grupo socioeducativo ocorre de modo a (des)legitimar a necessidade de mudanças nas relações entre masculinidades e feminilidades.

Para tanto, num primeiro momento, discuto as transformações da intimidade no âmbito do discurso da modernidade, especialmente em termos de masculinidades e feminilidades. Em segundo lugar, nas duas seções seguintes, abordo as relações entre linguagem (no aspecto gênero discursivo) e práticas sociais. Em seguida, apresento as instâncias de geração e análise dos dados que compõem a pesquisa para, então, na seção seguinte, analisar propriamente um excerto do gênero sessão de grupo socioeducativo, apontando para o modo como seu horizonte temático figura disputas sobre as práticas que compõem a rede da qual esse gênero é parte.

1

Práticas de masculinidades e feminilidades no discurso da modernidade

Diversos autores (CONNELL, 2003CONNELL, R. W. Masculinidades. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003.; CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013; KIMMELL, 1998KIMMELL, M. A produção simultânea de masculinidades hegemônicas e subalternas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 4, n. 9, p.103-117, out. 1998. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/ha/v4n9/0104-7183-ha-4-9-0103.pdf.Acesso em 25 de agosto, 2020
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; WELZER-LANG, 2001WELZER-LANG, D. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista de Estudos Feministas. ano 9 462, p.461-482, 2º semestre, 2001. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8635.pdf.Acesso em 25 de agosto, 2020.
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, entre outros) têm apontado para o fato de as masculinidades (e feminilidades) não serem uma espécie de “[...] entidade fixa encarnada no corpo ou nos traços da personalidade dos indivíduos, [mas] configurações de práticas que são realizadas na ação social [...]” (CONNELL, 2003CONNELL, R. W. Masculinidades. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003., p.72). Especificamente, as masculinidades “[...] são configurações de práticas estruturadas pelas relações de gênero [social]. Elas são inerentemente históricas e se fazem e refazem como um processo político que afeta o equilíbrio de interesse da sociedade e a direção da mudança social” (CONNELL, 2003CONNELL, R. W. Masculinidades. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003., p.72).

Considerando o jogo de forças históricas, há a emergência do que Connell (2003)CONNELL, R. W. Masculinidades. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003. nomeia de masculinidade hegemônica – resultado da incorporação da forma historicamente mais “honrada” de ser homem num determinado tempo-espaço. Ela exige, nas palavras de Connell e Messerschmidt (2013, p.245), “[...] que todos os outros homens se posicionem em relação a ela e legitima ideologicamente a subordinação global das mulheres aos homens”1 1 Cf. CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013; KIMMELL, 1998; WELZER-LANG, 2001. . Isso se dá por meio de símbolos, por construções que nem sempre dizem respeito a possibilidades reais de vivências, uma vez que “[...] a hegemonia trabalha em parte através da produção de exemplos de masculinidade [...], símbolos que têm autoridade, apesar do fato de a maioria dos homens e meninos não viver de acordo com eles” (CONNELL; MESSERSCHIMIDT, 2013CONNELL, R. W.; MESSERSCHIMIDT, J. W.; Masculinidade hegemônica: repensando o conceito In.: Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, 21(1): 424, janeiro-abril/2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-026X2013000100014/24650.Acesso em 25 de agosto, 2020.
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, p.263).

Segundo Giddens (1993)GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora da Unesp, 1993., a Modernidade2 2 O conceito de Modernidade pode ser entendido, a partir de Giddens (1991, p.11), como sendo o “[...] estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”. Embora Giddens o tome como um fato, entendo aqui que esse fenômeno teve repercussões diferentes nos diferentes lugares que “alcançou”, principalmente naqueles que são/foram colônias dos países europeus, onde a Modernidade se configura, na verdade, em uma estratégia colonial. implicou substantivas transformações na intimidade e, consequentemente, das práticas de masculinidades e feminilidades. Assim, por exemplo, mudanças sociais mais amplas contribuíram para a emergência do que o autor chama de “amor romântico”, ou seja, uma relação baseada “[...] em outras considerações além dos julgamentos do valor econômico” (GIDDENS, 1993, p.34). Há, nesse contexto, explica Giddens (1993)GIDDENS, A. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Tradução Magda Lopes. São Paulo: Editora da Unesp, 1993., a liberação do vínculo conjugal de laços de parentesco mais amplos, centrados apenas nas relações econômicas (GIDDENS, 1993; 2002).

Tal tipo de relação, a partir do que explica o sociólogo, ocorre principalmente no seio das classes burguesas europeias e se difunde discursivamente como um modelo para as colônias. Nesse caso, valores como hombridade e civilidade, por um lado, e docilidade e maternidade, por outro, atrelaram-se às práticas de, respectivamente, masculinidades hegemônicas e feminilidades enfatizadas, que constituem as relações pautadas pelo “amor romântico”.

Especificamente, incorporando elementos do amor paixão (centrado na sexualidade) aos ideais do matrimônio, o amor romântico articula-se com i) a “criação do lar”, ou seja, a separação entre o espaço público e o privado; ii) a modificação nas relações entre pais e filhos, uma vez que a vida doméstica e a educação desses fica a cargo da mulher e, articuladamente; iii) a “invenção da maternidade” (GIDDENS, 1993).

Nesse quadro, a mulher se restringe ao contexto privado, sendo responsável pela reprodução e educação das crianças, bem como pelo cuidado do marido. Já o homem intensifica-se como agente do contexto público, afastando-se do lar, sobretudo devido ao trabalho (NOLASCO, 1993NOLASCO, S. A. O trabalho como base para a identidade. In: NOLASCO, S. A. O mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1993, p.50-72.). Esse modelo de relações é difundido nas colônias europeias, entre as quais está o Brasil, articulando-se com aspectos locais que compunham a estratégia colonial. Nesse caso, ressalte-se principalmente o racismo, especialmente no século XIX, contexto da abolição da escravatura. Tal fato figura-se, por exemplo, nas políticas de embranquecimento via incentivo da imigração de trabalhadores brancos europeus ao país (cf. BESSE, 1999; MISKOLCI, 2012MISKOLCI, R. O desejo de nação: masculinidade e branquitude no Brasil de fins do século XIX. São Paulo: Annablume, 2012.).

Assim, a masculinidade hegemônica forjou-se via discurso de valorização da “civilidade”, do trabalho, da separação dos contextos público (para o homem3 3 Veja-se que homem e mulher são entendidos a partir de um padrão europeu e tomados como categorias universais. ) e privado (para a mulher), aos moldes europeus. Em contrapartida, nesse caso, legitimava-se também o modelo de feminilidade enfatizada, centrada na docilidade e no cuidado do lar e dos filhos.

Embora tal modelo de masculinidade – relacionado à civilidade e ao trabalho – implicasse no contexto europeu o distanciamento, por exemplo, da violência física, não significou o fim das relações de dominação masculina, uma vez que o modelo de “homem viril” ainda estava atrelado à noção de domínio, inclusive domínio sobre a mulher. Nas palavras de Baubérot (2013BAUBÉROT, A. Não se nasce viril, torna-se viril. In: CORBIN, A. COURTINE, J. J.; VIGARELO, G. História da virilidade. Tradução Noeli Correa de Melo Sobrinho e Thiago de Abreu e Lima Florêncio, direção de volume Jean-Jacques Courtine. Vol. 3. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, p.189-220., p.216), a masculinidade hegemônica, “civilizada”, da modernidade

[...] insiste sobre uma absoluta dominação, cujo primeiro exemplo é aplicar-se na doma “dos cavalos que são mais fogosos”. Ele sublinha mais ainda uma relação muito precisa com a esposa, a qual deve ser “governada como uma pupila”: súdita deliberadamente frágil, dama que “deve estar tão pronta a obedecer quanto é vosso dever de comandar”.

Embora hegemônico, tal modelo tem sido problematizado no seio da própria Modernidade, uma vez que fatos como a emergência da sexualidade plástica (GIDDENS, 1993) e a cada vez maior inserção das mulheres nos espaços públicos, especialmente a partir do século XX, implicaram questionamentos acerca do modelo de masculinidades e, principalmente, feminilidades. Esse questionamento se fortalece no que tem sido nomeado a segunda onda do feminismo, quando o modelo da esposa “rainha do lar” é problematizado. Nesse sentido, outros aspectos também da Modernidade implicam problematizações daquilo que emerge desse mesmo contexto. Assim, os sistemas peritos4 4 Sistemas peritos dizem respeito a “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que reorganizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje. [...] os sistemas nos quais está integrado o conhecimento de peritos influenciam muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua. [...] são sistemas de desencaixe porque [...] eles removem as relações sociais das imediações do contexto” (GIDDENS, 1991, p.38-9). No Brasil, isso se viu fortemente quanto ao controle sobre as relações sociais e principalmente ao domínio sobre a mulher, atrelado ao projeto de desenvolvimento da pátria nas décadas de 1910 a 1940 (governo Vargas), que passa das mãos dos maridos para os médicos (especialistas) (cf. BESSE, 1999). , por exemplo, e a noção de estilos de vida5 5 Estilo de vida é entendido aqui como “um conjunto mais ou menos integrado de práticas que o indivíduo abraça, não só porque essas práticas preenchem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular da auto-identidade” (GIDDENS, 2002, p.79). envolvem tensões que orbitam os aspectos contraditórios do contexto moderno. Isso se aplica em termos de intimidade.

Essas contradições – focos de tensionamentos – aparecem no contexto nacional. Assim, a “modernização” tão almejada pelas elites havia trazido ao país, segundo essas mesmas elites, alguns “riscos”, sobretudo no que tange às mudanças de costumes das mulheres (suas roupas, seus cabelos, sua postura). Segundo explica Besse (1999)BESSE, S. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil, 1914-1940. Tradução de Lólio Lourenço Oliveira. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999., o discurso corrente no final do século XIX e, principalmente, início do século XX, por exemplo, era o de que tais mudanças estariam provocando uma “crise na família”, algo que representava um risco ao projeto de desenvolvimento do país, cujo sucesso dependia em grande medida da manutenção da divisão sexual do trabalho, que permitia tanto a liberação dos homens para o serviço no âmbito público quanto a manutenção de reserva de mão de obra barata das mulheres no ambiente doméstico.

Essas contradições, tensionamentos e disputas constituem e são constituídas via práticas sociais ao longo da história. Masculinidades e feminilidades (tanto como determinadas configurações de práticas quanto “modelos”, ou melhor, discursos) legitimam-se e se constituem por meio das/nas práticas nas quais as pessoas se engajam – ou mesmo sejam levadas a se engajarem por forças sociais diversas. Nesse caso, a dimensão discursiva das práticas assume um papel relevante, sobretudo porque é por meio de discursos que as práticas são justificadas, legitimadas, existem. É sobre essa relação entre discurso e práticas sociais que trata a próxima seção.

2

Pressupostos teóricos para uma análise de gêneros discursivos vinculada à análise das práticas sociais

O discurso diz respeito à “[...] língua em sua integridade concreta e viva, e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso” (BAKHTIN, 2018BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostiévski. Tradução direta do russo, notas e prefácio de Paulo Bezerra. 5ª ed. Rio de Janeiro Forense Universitária, 2018., p.207). Num sentido amplo, o discurso diz respeito à língua enquanto material semiótico constitutivo das e constituído pelas práticas sociais (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: Textual Analysis for Social Research. London: Routledge, 2003.). Ele é parte das práticas e se materializa em enunciados concretos (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.), ou em textos (FAICLOUGH, 2001; 2003), nas diferentes interações (eventos) nas quais se engajam sujeitos, em diferentes esferas de atividades. Nesse sentido, discurso pressupõe sempre a materialidade linguística saturada da realidade social – das relações dialógicas, axiológicas e intersubjetivas que pressupõem essa realidade.

Sendo parte das práticas sociais, ou seja, das “[...] maneiras habituais, vinculadas a tempos e espaços particulares, nas quais pessoas aplicam recursos – materiais e simbólicos – para agirem juntas no mundo” (CHOULIARAKI; FAIRCOUGH, 1999, p.21), o discurso funciona de modo sobredeterminado em relação a outras instâncias das práticas, como atividade material, fenômeno mental e relações sociais. Tais dimensões, conforme explicam Chouliaraki e Fairclough (1999)CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity: Rethinking Critical Discourse Analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999., constituem-se mutuamente, de modo que, por um lado, toda a dimensão “extralinguística” tradicionalmente excluída dos estudos da área, por exemplo, constitui o discurso.

Por outro lado, o discurso constitui as outras dimensões da prática, uma vez que “[C]cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade” (VOLOCHÍNOV, 2014BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michael Lahud e Yara Frateshi Viera com colaboração de Lúcia Teixeira Winsnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2014., p.33; grifo meu). Por meio do signo, há a “refração” de uma realidade material, sendo que essa “refração”, de natureza sígnica, é constitutiva dessa mesma realidade “refratada”. Em resumo, o discurso constitui a realidade social sobre a qual fala (FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Coordenação de tradução, revisão técnica e posfácio Izabel Magalhães. Brasília: Editora UnB, 2001.).

A natureza daquilo que nomeio aqui de realidade pode ser entendida a partir das postulações do Realismo Crítico, que subsidia a discussão em Análise Crítica de Discurso e em parte da Análise Crítica de Gêneros, teorias que sustentam a presente discussão. Nessa perspectiva, a realidade é um sistema aberto e estratificado, cujas instâncias mantêm uma relação de mútua constitutividade. Conforme explica Resende (2009)RESENDE, V. Análise do discurso crítica e realismo crítico: implicações interdisciplinares. Campinas, SP: Pontes Editores, 2009., a realidade é composta de três domínios: real, realizado e empírico. O primeiro corresponde ao que existe, seja natural ou social, independentemente de ser um objeto empírico para nós e de termos uma compreensão adequada de sua natureza, sendo, portanto, uma estrutura potencial. O segundo se refere ao que acontece se e quando os poderes causais das estruturas, do que é potencial, são ativados. O terceiro se refere às experiências particulares de eventos específicos (FAIRCLOUGH; JESSOP; SAYER, 2016FAIRCLOUGH, N.; JESSOP, B.; SAYER, A. Realismo crítico e semiose. Tradução de Gabriel Valdez Foscaches. Revista Letra Capital, v. 1 n. 1, p.43-69, jan./jun. 2016. Disponível em https://periodicos.unb.br/index.php/lcapital/article/view/8600/7159.Acesso em 25 de agosto, 2020.
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).

Nessa abordagem, a linguagem, como sistema semiótico, pertence ao domínio das estruturas – do real6 6 Resende (2009) utiliza o termo “potencial”, ao invés de “real”, pois esse seria mais adequado ao sentido empregado pelo Realismo crítico, ou seja, de que há estruturas que existem enquanto potenciais a serem ativados. Assim, ao longo da explanação, podem aparecer ambos os termos como sinônimos. – ao passo que os textos, como material concreto de cada evento discursivo, relacionam-se ao domínio do empírico. Já as práticas sociais se constituem na instância intermediária entre estruturas (linguagem) e eventos (textos ou enunciados concretos), compreendendo, assim, o domínio dos gêneros discursivos, ou seja, dos enunciados relativamente estabilizados historicamente (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.). A sistematização dessa abordagem é apresentada no quadro a seguir:

Quadro 1 Articulações teóricas acerca das dimensões da realidade social
Domínios de estratificação da realidade (segundo Realismo Crítico) Domínios de estratificação da realidade (articulação proposta na Análise Crítica de Discurso) Dimensão da linguagem (articulação proposta na Análise Crítica de Gêneros)
Real Estruturas sociais Língua
Realizado Práticas sociais Gêneros Discursivos
Empírico Eventos Enunciados
Fonte: Ferretti (2020)

Sendo a realidade um sistema aberto, dada a natureza dialógica entre estrutura (estabilizado) e eventos sociais (inédito), ou seja, ao fato de que estrutura social é tanto meio quanto resultado de práticas e eventos localizados, conforme propõe Giddens (1984)GIDDENS, A. The Constitution of Society. Cambridge: Polity Press, 1984., ela pressupõe teoricamente a possibilidade de mudanças sociais. Conforme afirma Meurer (2004MEURER, J. L. Ampliando a noção de contexto na Linguística sistêmico-funcional e na Análise crítica do discurso. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n. Especial, p.133-157, 2004. Disponível em http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/linguagem-em-discurso/0403/040306.pdf.Acesso em 25 de agosto, 2020.
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, p.143), “[...] à medida que os indivíduos agem no mundo, fazem uso de – e ao mesmo tempo recriam – estruturas sociais específicas”. Tal fato se dá, uma vez que a relação aqui entre estruturas e eventos, locus da ação humana, é dialética, transformacional.

Nas palavras de Bhaskar (1993BHASKAR, R. Realismo crítico, relações sociais e argumentos para o socialismo. Tradução do capítulo (2005) de Astrid Baecker Avila; revisão (2006) de Mário Duayer (UFF) e Maria Célia Marcondes de Moraes (UFSC). In: BHASKAR, R. Reclaiming Reality: A Critical Introduction to Contemporary Philosophy. London: Verso, 1993., p.2), tal postura defende “[...] uma compreensão da relação entre as estruturas sociais e o agir humano baseada em uma concepção transformacional da atividade social”. Nesse sentido, “[...] estruturas sociais e ação humana são dialeticamente relacionadas, de modo que se evita tanto o voluntarismo como a reificação” (BHASKAR, 1993BHASKAR, R. Realismo crítico, relações sociais e argumentos para o socialismo. Tradução do capítulo (2005) de Astrid Baecker Avila; revisão (2006) de Mário Duayer (UFF) e Maria Célia Marcondes de Moraes (UFSC). In: BHASKAR, R. Reclaiming Reality: A Critical Introduction to Contemporary Philosophy. London: Verso, 1993., p.2).

Em resumo, a ação sobre cada um dos mecanismos gerativos que constituem cada uma das instâncias das práticas sociais – e, por consequência, das estruturas e eventos – implica a ação sobre a realidade. Considerando que a instância das práticas sociais (com a qual se relacionam os gêneros) abarca tanto o que há de inédito (eventos/enunciados concretos) quanto de estabilizado (estrutura/linguagem), esta é um locus fértil de análise de mudanças sociais, conforme defende Fairclough (2001FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Coordenação de tradução, revisão técnica e posfácio Izabel Magalhães. Brasília: Editora UnB, 2001.; 2003). Vejamos, então, especificamente, as dimensões que constituem os gêneros discursivos, uma das instâncias de constituição das práticas.

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Os gêneros discursivos como instância de lutas sociais pela configuração das práticas

Segundo Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016., os gêneros7 7 O conceito de gêneros discursivos tem sido caro nas análises de base dialógica, embora esses tenham sido objeto de pesquisa em diferentes vertentes teóricas. A própria ACD, por exemplo, utiliza diferentes pressupostos, como a sociorretórica (SWALES, 1990, MILLER, 1984) e a análise de gênero (BAZERMAN, 1988; BHATIA, 1993) para o tratamento do fenômeno, conforme é possível perceber em Fairclough (2003). No entanto, mesmo nessa obra, há certo diálogo com os estudos bakhtinianos, sobretudo pela tomada do conceito de dialogismo, embora não o haja no tratamento do conceito de gênero discursivo especificamente. Esse mesmo posicionamento tem sido presente em diversas análises críticas de gêneros, como esta tem sido proposta a partir do Brasil (MEURER, 2002; MOTTA-ROTH, 2008; BONINI, 2010). No entanto, mais recentemente, a ACG tem encontrado nas discussões bakhtinianas acerca do conceito de gênero uma abordagem mais orgânica para o fenômeno, sobretudo porque tal perspectiva consegue, com uma taxionomia enxuta, dar conta de aspectos centrais para o tratamento do fenômeno, especialmente porque consegue articular aspectos textuais e sociais num mesmo conceito. discursivos são formas relativamente estáveis de enunciados concretos e são também a instância por meio da qual a linguagem nos é dada. Eles são atravessados, então, como tenho apontado desde a seção anterior, tanto pelo estável quanto pelo instável. Os enunciados, por sua vez, como “[...] a unidade real da comunicação discursiva [...]” (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016., p.22), são concretos e únicos, sendo também constituídos pelos horizontes: espacial e temporal; temático e axiológico (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.; RODRIGUES, 2005RODRIGUES, R. H. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem. In: MEURER, J.L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (org.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005, p.152-183.).

Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016. aponta como critérios de acabamento/distinção entre os enunciados: a) a alternância dos sujeitos no discurso; b) a expressividade; e c) a conclusibilidade. Isso se dá a partir de três fatores: o tratamento exaustivo do objeto e do sentido; a intencionalidade do falante e os gêneros do discurso (BAKHITIN, 2016). Assim, gênero e enunciado se interligam na efetivação de práticas sociais nas/pelas quais as pessoas “vivem suas vidas” (GIDDENS, 1984GIDDENS, A. The Constitution of Society. Cambridge: Polity Press, 1984.).

Em termos materiais, as fronteiras do enunciado concreto, conforme as propõe Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016., apontam para um acabamento realizado por um autor (pessoal ou institucional), que emerge como a voz que orquestra todas as outras (enunciado-pleno8 8 A classificação dos enunciados em enunciado-pleno e enunciado-recorte é uma proposta de Bonini (2004). Nesse viés, enunciado-pleno diz respeito ao enunciado bakhtiniano, com fronteiras marcadas conforme propõe Bakhtin (2016). Já enunciado-recorte diz respeito aos fenômenos que pressupõem fronteiras não marcadas pela troca de turno de fala, mas por instâncias enunciativas mais abrangentes. Assim, a delimitação do enunciado-recorte se dá a partir não de um interlocutor que interage no interior de uma conversa, por exemplo (como seria a delimitação do enunciado-pleno, bakhtiniano), mas de um observador que delimita o enunciado por meio de critérios a partir dos quais traça o início e fim de um ritual interativo. Nesse caso, uma audiência judicial, por exemplo, pode ter suas fronteiras marcadas no momento em que o juiz a inicia e a encera, dando lugar à emergência (resposta, do ponto de vista dialógico bakhtiniano) de outros enunciados-recorte (conversa entre advogado e réu) ou mesmo enunciados-plenos (mandado de prisão). ). No entanto, há também formas discursivas estabilizadas que possuem autores diversos, cuja combinação/negociação/disputa discursiva forma um determinado gênero (enunciado relativamente estável), como nos casos da reunião, do chat, da consulta médica etc. (enunciado-recorte). Nesse caso, a orquestração é realizada conjuntamente, com assinatura dos diferentes sujeitos sob um mesmo gênero discursivo, uma espécie de “grande enunciado” relativamente estabilizado.

Desse modo, o gênero, de maneira mais ampla, é entendido como uma unidade discursiva tipificada em sua dimensão temática e estilístico-composicional, cujas fronteiras são marcadas pelo acabamento dado pelo próprio enunciador (enunciado-pleno) ou por um observador9 9 Embora a interpretação primeira para esse observador seja a de que se trata do analista de gênero que, de fato, irá recortar o fenômeno que constitui enquanto seu objeto, há aqui outros sujeitos que assumem esse lugar. Veja-se que qualquer interlocutor é capaz de definir fronteiras enunciativas para identificar uma reunião, uma missa, uma consulta etc. Nesse caso, esse observador não se restringe ao pesquisador, mas contempla o conhecimento que os próprios interlocutores possuem acerca dos gêneros nos quais se envolvem. (enunciado-recorte). Ressalto, então – dada sua pertinência aos dados analisados adiante –, o fato de, no caso dos enunciados-recorte, ser ainda mais explícito o caráter dialógico de co-construção do mundo e dos sujeitos (a intersubjetividade) via embates discursivos nas práticas sociais.

Veja-se que aquilo a que chamamos muitas vezes de “vozes” participantes de um determinado gênero, orquestradas por um determinado autor (nos enunciados-plenos), estão nesse tipo de enunciado (enunciado-recorte), por exemplo, encarnadas e em luta dialógica umas com as outras, orientando-se para um acabamento conjunto que é ele mesmo pleiteado como forma de disputar os modos de construção da prática e, por extensão, do mundo. É nesse sentido que os gêneros emergem como instância de lutas sociais pela configuração das práticas, uma vez que eles são uma instância que tanto restringe os enunciados quanto é por eles (re)definida10 10 Os aspectos estáveis dos gêneros discursivos podem ser entendidos em termos de regras/recursos, no âmbito da teoria da estruturação de Giddens. Conforme discute Meurer (2004, p.142), “Os elementos normativos dizem respeito às ‘sanções aos modos de conduta social’ ou ‘técnicas ou procedimentos generalizáveis aplicados à implementação/reprodução da vida social’”. , alcançando estruturas e sendo objeto de disputas/negociações que vão e voltam pelas (redes de) práticas diversas em relações intercontextuais11 11 Intercontextualidade diz respeito à “condição em que dois ou mais contextos se interligam e interpenetram em uma determinada prática social. Na intercontextualidade um contexto é ‘levado’ para outro contexto e dá-se o compartilhamento de características de ambos, muitas vezes com o predomínio de um sobre o outro” (MEURER, 2004, p.135). de configuração das práticas.

Assim, as disputas pelo horizonte temático entre os sujeitos que (re)produzem o gênero discursivo e os embates sobre as escolhas estilístico-composicionais do gênero encarnam a própria luta social acerca dos aspectos da realidade sobre os quais o gênero age, os quais o discurso constitui. Vejamos mais de perto essa questão quando tratamos, especificamente, do horizonte temático.

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O horizonte temático e a disputa pelas formas de acabamento da realidade

A regularidade temática de um gênero é caracterizada pelo contato entre significação e realidade concreta em circunstâncias típicas (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.). Em outras palavras, o tema se relaciona com “[...] a realidade que dá lugar à formação de um signo [...]” (VOLOCHÍNOV, 2014BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michael Lahud e Yara Frateshi Viera com colaboração de Lúcia Teixeira Winsnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2014., p.46). No âmbito do enunciado, e consequentemente do enunciado tipificado, o tema é “[...] determinado não só pelas formas linguísticas que entram na composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entonações), mas igualmente pelos elementos não verbais da situação.” (VOLOCHÍNOV, 2014BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michael Lahud e Yara Frateshi Viera com colaboração de Lúcia Teixeira Winsnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2014., p.133). Além disso, “[...] o tema é inseparável tanto do todo da situação do enunciado quanto dos elementos linguísticos” (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P.N. Os elementos da construção artística. In: MEDVIÉDEV, P.N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e nota das tradutoras Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016, p.193-207., p.197).

Embora não prescinda da significação, o tema se diferencia desta na medida em que a toma como “aparato técnico” para sua realização, sendo ele, em última medida, emergente somente pela e na enunciação concreta. Nesse caso, porém, não se trata de uma abertura semântica total, o que tornaria a interação verbal impossível, já que “[...] o tema deve apoiar-se sobre uma certa estabilidade da significação; caso contrário, ele perderia seu elo com o que precede e o que segue, ou seja, ele perderia, em suma, o seu sentido” (VOLOCHÍNOV, 2014BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michael Lahud e Yara Frateshi Viera com colaboração de Lúcia Teixeira Winsnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2014., p.134). Em outras palavras, “a significação não quer dizer nada em si mesma, ela é apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto” (VOLOCHÍNOV, 2014BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michael Lahud e Yara Frateshi Viera com colaboração de Lúcia Teixeira Winsnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2014., p.136).A relação entre significação e tema pode ser entendida, assim, de modo paralelo à relação existente entre estrutura, prática social e evento, numa relação de mútua constitutividade, conforme discuti nas seções anteriores. Nesse viés, a significação se relaciona com a língua como estrutura potencial que, embora constituída pelas práticas sociais, fornece a estas os potenciais de sua realização. Já o tema se relaciona com as práticas sociais e com os eventos. Nesse caso, haveria uma diferença (taxionômica, não concreta) entre o tema do gênero e o tema do enunciado. Neste último, tema diz respeito ao domínio de sentido constituído no contato entre a significação e a enunciação concreta. Daí decorre o fato de ele se constituir “[n]um sentido definido e único, uma significação unitária, [...] uma propriedade que pertence a cada enunciação como um todo” (VOLOCHÍNOV, 2014BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michael Lahud e Yara Frateshi Viera com colaboração de Lúcia Teixeira Winsnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2014., p.133).

Essa situação, no entanto, mesmo sendo sempre inédita, é tipificada ao longo da história e é essa tipificação que dá origem aos enunciados relativamente estáveis, cujos aspectos são – assim como os eventos – tipificados. Em resumo, temos aqui os gêneros dos discursos e seus temas típicos. Nas palavras de Bakhtin (2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016., p.52): “Os gêneros correspondem a situações típicas da comunicação discursiva, a temas típicos, por conseguinte, a alguns contatos típicos dos significados das palavras com a realidade concreta em circunstâncias típicas”. A título de exemplo: “morte” como significação existe como um potencial realizável na língua. Se “morte” aparecer como tema de uma piada ou de uma nota de falecimento, adquirirá contornos específicos em cada um desses dois gêneros, mas isso não é suficiente ainda para alcançar o tema do enunciado concreto e afirmar que morte terá sempre o mesmo sentido em todas as piadas e em todas as notas de falecimento, pois há aspectos que compõem o tema que são dados estritamente pela situação imediata de interação, pelo momento concreto de existência (tema do enunciado). Portanto, estão em operação a estrutura de significação, o tema tipificado enquanto realizável no gênero e o tema concreto enquanto realização e reiteração (ou mudança) das instâncias concretas/vivas. Há sempre, portanto, um trabalho sobre as estruturas potenciais de significação.

Esse trabalho sobre o significado potencial na construção temática, conforme explica VOLOCHÍNOV (2014), se relaciona com a expressividade, ou seja, com o acento apreciativo do(s) falante(s), que se orienta(m) duplamente para a realidade: para os interlocutores e para a vida, por meio de seu conteúdo temático (MEDVIÉDEV, 2016MEDVIÉDEV, P.N. Os elementos da construção artística. In: MEDVIÉDEV, P.N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e nota das tradutoras Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. Apresentação Beth Brait. Prefácio Sheila Vieira de Camargo Grillo. São Paulo: Contexto, 2016, p.193-207.). Assim, o sentido é construído e ingressa na cadeia dialógica já saturado pelo horizonte axiológico daquele que o constrói, ou seja, “[...] quando um conteúdo objetivo é expresso (dito ou escrito) pela fala viva, ele é sempre acompanhado por um acento apreciativo determinado” (VOLOCHÍNOV, 2014BAKHTIN, M. (VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michael Lahud e Yara Frateshi Viera com colaboração de Lúcia Teixeira Winsnik e Carlos Henrique D. Chagas Cruz. 16. ed. São Paulo: Hucitec, 2014., p.137). Esse acento apreciativo corresponde aqui ao acento dado pelo autor que expressa pela fala viva seu objeto de dizer.

No entanto, explica Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016., o enunciado é um fenômeno complexo e multiplanar, “pleno de tonalidades dialógicas”. Nesse sentido, o conteúdo semântico-objetal de um determinado enunciado não é algo tomado como uma entidade asséptica, neutra e isenta, sobre a qual em cada interação há um investimento axiológico primeiro. O conteúdo semântico-objetal entra na cadeia dialógica – e assim é constitutivo do enunciado – sempre e já saturado da expressividade intrínseca do enunciado outro. Nesse sentido, “a expressão do enunciado, em maior ou menor grau, responde, isto é, exprime a relação do falante com os enunciados do outro, e não só a relação com os objetos do seu enunciado” (BAKHTIN, 2016BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016., p.58). Nesse contexto, uma disputa por determinado sentido, dentro de uma determinada esfera (ou entre esferas em relação intercontextual), é também uma disputa por determinadas posições axiológicas, por determinadas formas de se orientar para o mundo (dar-lhe acabamento), para o outro, e de (re)construí-los.

Essa relação se torna substancial na análise de mudanças sociais, na medida em que o embate de diferentes posições axiológicas, sua negociação e a relativa estabilização de certos sentidos – significação – apontam para a possibilidade de processos de deslocamentos no horizonte axiológico de interlocutores, de grupos sociais e de esferas de atividades e da própria constituição dos gêneros discursivos. Mais do que “apontar”, esse aspecto – conforme compreendido aqui – possibilita a emergência de sentidos outros que, a depender do manejo discursivo dos interlocutores nas práticas sociais, podem contribuir para efetivação de processos de (in)transitividade ou transitividade crítica (FREIRE, 2006FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.), sendo esse um dos pontos centrais na pesquisa em ACG (BONINI, 2013BONINI, A. Análise crítica de gêneros discursivos no contexto das práticas jornalísticas. In: SEIXAS, L.; PINHEIRO, N. F. (orgs.). Gêneros: um diálogo entre Comunicação e Linguística Aplicada. Florianópolis: Insular, 2013, p.103-120.).

Dado o caráter mutuamente constitutivo entre estruturas sociais e eventos, o manejo do sentido e, progressivamente, da significação é parte dos modos possíveis de (re)construir as práticas. Isso se dá por meio de embates coletivos diversos em diferentes práticas sociais, possibilitando também diferentes formas de orientação para o mundo, para o outro e para si mesmo.

A seguir, apresentarei, então, a análise de um excerto de uma sessão de grupo socioeducativo para homens autores de violência contra a mulher, no sentido de ilustrar o funcionamento dessas relações entre gênero e prática social em uma prática situada. Antes disso, porém, vejamos o contexto de geração e análise desses dados.

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Aspectos metodológicos e contexto dos dados

Estando sob o guarda-chuva das pesquisas em Linguística Aplicada, a análise apresentada na seção seguinte, que ilustra as asserções teóricas propostas até aqui, se debruça sobre problemas socialmente relevantes que têm a linguagem como um aspecto central (MOITA-LOPES, 2006MOITA-LOPES, L. P.(org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006.), buscando intervir sobre tais problemas a partir da reflexão crítica. Em termos mais estritos, a pesquisa a ser apresentada assume a perspectiva qualitativa (MASON, 1998MASON, J. Qualitative Researching. London: SAGE Publications, 1998.) e agencia instrumentos etnográficos para a geração de dados (observação participante, gravações em áudio, notas e diário de campo), que são descritos e interpretados (FAICLOUGH, 2003) à luz das postulações teóricas assumidas.

Nesse sentido, o problema social relevante é a recorrência dos diversos tipos de violência contra a mulher e sua relação com os modos de dar sentido às relações de gênero (gender) a partir de padrões hegemônicos de masculinidades e feminilidades (centrados em diversos tipos de violência). A partir disso, a reflexão se debruça sobre as práticas sociais que buscam já intervir sobre o problema. Nesse caso, trata-se da prática do grupo socioeducativo para homens autores de violência contra a mulher, proposta como uma política pública fomentada pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e realizada pelo Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), gerido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SEMUDES), numa cidade12 12 Nome da cidade não é divulgado devido ao acordo firmado com os participantes em Termo de Compromisso Livre e Esclarecido (TCLE). do Sul do país.

Essa política funciona no município em questão desde 2004 e atende homens que tenham protagonizado situações de violência contra a mulher (especialmente no âmbito conjugal) e que acessam o SUAS, por suas diferentes frentes, especialmente pelos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS). Desde 2014, o grupo atende também homens encaminhados compulsoriamente pelo Sistema Judiciário, em cumprimento de pena ou de medida protetiva de urgência.

Em termos organizacionais, o grupo é planejado a partir de um bloco de 12 sessões com cerca de 1h30min cada, que ocorrem a cada 15 dias e cujas temáticas compreendem desde a “Lei Maria da Penha”, passando por “Paternidade” até chegar a, mais explicitamente, “Questões de gênero (gender)”. As sessões são planejadas para ocorrerem de maneira cíclica, de modo que os temas se repetem. No entanto, os dados apontam que, na prática, há replanejamento constante a depender dos acontecimentos internos ao grupo e do próprio contexto social mais amplo. O grupo em pauta foi acompanhado via observação participante durante 12 meses, período em que se realizou a gravação em áudio de um bloco de 12 sessões consecutivas, que foram posteriormente transcritas, conforme Anexo, e constituem os dados centrais da análise.

Sendo um texto-ritual, a estruturação estilístico-composicional da sessão é marcada pelas fronteiras de seu funcionamento. Assim, é possível recortá-la, traçando suas fronteiras na abertura e no fechamento, que são indicialmente marcados, ou seja, podem ser recuperados por meio das marcas linguísticas que mantêm uma relação de contiguidade com o contexto mais imediato da situação (HANKS, 2008HANKS. W. Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. Organização Anna Christina Bentes, Renato C. Rezende, Marco Antônio R. Machado. Revisão técnica Anna Christina Bentes, Maurizio Gnerre. Prefácio Maurizio Gnerre. São Paulo: Cortez, 2008.). Entre essas fronteiras, a sessão é constituída por outros dois aspectos recorrentes: a apresentação de si e a atividade, sendo esse último o que ocupa a maior parte da sessão e pode ser subdividido em apresentação/explicação e execução/discussão. Em termos sequenciais, a sessão se organiza, então, em: i) abertura, ii) apresentação de si, iii) atividades e iv) fechamento.

A sessão que ilustra a discussão deste artigo aconteceu em setembro de 2016 e teve a participação de 09 integrantes, sendo 02 homens que protagonizaram situações de violência contra a mulher e que participam do grupo de modo voluntário: Alexandre13 13 Os nomes de todos/as os/as participantes (exceto da pesquisadora) são fictícios devido ao acordo firmado via TCLE. (desempregado/51 anos) e Vicente (zelador/44 anos); 03 homens que protagonizaram situações de violência contra a mulher e que participam do grupo de modo compulsório: Silvio (NI14 14 Não informado. ), Jaime (Microempresário/29 anos) e Beto (Mecânico/30 anos); 02 funcionárias do CREAS e facilitadoras do grupo: Silvia (psicóloga/39 anos) e Ilma (psicóloga/35 anos); 01 funcionário do CREAS e facilitador do grupo: Roberto (assistente social/40 anos) e a pesquisadora: Vanessa (professora/32 anos).

Vejamos, então, o modo como o tema do gênero sessão de grupo socioeducativo é disputado entre os participantes e age sobre embates sociais mais amplos acerca da necessidade de mudança nas relações de gênero (gender), sobretudo acerca dos modelos de masculinidades e feminilidades difundidos a partir do discurso da Modernidade.

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Construindo sentidos na/da prática: a disputa pelo horizonte temático em sessão de grupo socioeducativo para homens autores de violência contra a mulher

Conforme explicado anteriormente, a proposta apresentada neste artigo é um recorte de uma pesquisa maior de doutoramento, realizada entre os anos de 2014 e 2018, e intitulada “- Mas tem gente que não entende assim’ // -‘É. É por isso que a gente tá aqui”: a sessão de grupo socioeducativo para homens autores de violência contra a mulher e a (re)construção discursiva de masculinidades.” A pesquisa se vincula ao projeto “Análise crítica de gêneros e políticas de ensino de práticas de linguagem”, no âmbito de estudos do Núcleo de Estudos em Linguística Aplicada (NELA), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e tem por objetivo investigar o modo como o gênero discursivo sessão de grupo socioeducativo opera na (re)configuração discursiva de masculinidades.

No contexto da pesquisa, a sessão de grupo socioeducativo apresenta-se como o gênero central realizador da prática, cujo horizonte temático diz respeito à legitimação da necessidade de mudanças nas relações de gênero social (gender). Isso é figurado tanto nos subtemas que conduziram as 12 sessões analisadas quanto no modo dialogal em que se estrutura a dimensão estilístico-composicional do gênero15 15 Dadas às limitações de espaço e escopo deste artigo, sugiro que a leitora/o leitor consulte Soares (2018) para maior compreensão da pesquisa. .

A natureza heterogênea dos participantes (homens que protagonizaram situações de violência contra a mulher e foram ou encaminhados compulsoriamente ao grupo ou voluntariamente, psicólogas, assistente social e pesquisadora) implica a confluência de diferentes (e opostos) horizontes axiológicos na configuração discursiva da sessão e, por extensão, da própria realidade social. Como se trata de um enunciado-recorte, a construção do horizonte temático do gênero, então, implica disputas substanciais em termos de (re)confirguração de práticas que (des)legitimam modelos hegemônicos de masculinidades e feminilidades.

O excerto a seguir é parte da sessão 01, na qual se discutia o seguinte enunciado, apresentado ao grupo como um ditado popular: “Uma mulher só fica completa quando se casa e tem filhos”. No trecho que antecede o enunciado de Jaime, Roberto descreve o estilo de vida de seus pais, enfatizando o modo como sua mãe vive para o ambiente doméstico (Não sei como é que é as mães de vocês, mas a... a minha mãe, a história da minha mãe tem uma trajetória que é da porta da casa... pra dentro, tá? No mundo privado, tá? Pra família, pra horta dela, tá? E a minha mãe tá com setenta e três anos, cara, a vida dela passou e ela ficou nessa vida a vida inteira – Roberto_S01L243-249) enquanto seu pai vive para o contexto externo (Ela não dirige, tá?... o pai dirige, ela não. Tem amigos no bar, nunca foi no bar, o pai tem amigos de tudo que é tipo de jeito, ele não fica em casa, sai de tarde, de manhã... e o pai tá com setenta e sete anos... setenta e seis... viaja e tal... [...] – Roberto_S01L249-254).

Roberto aponta que esse era o modo tradicional de relacionamentos conjugais, modelo bastante convergente ao que foi propagado a partir da Modernidade. Roberto marca, ainda, seu descontentamento com esse estilo de vida, ressaltando que vem tentando convencer sua mãe a se inserir em práticas públicas ([...] a vida dela é isso, tipo... e agora tô brigando com ela direto, porque eu quero que ela participe do grupo de idosos, ela pode... é... dançar... sair um pouco do foco da família, tá? Conviver um pouco pra fora... – Roberto_S01L262-266). Em resposta, Jaime se enuncia (cf. excerto 01, abaixo), apontando que seus avós vivem de modo diferente. A orientação aqui, então, é a problematização dos modelos postos, sobretudo aquele que enfatiza a masculinidade hegemônica como a discutida na segunda seção deste artigo.

(01)

A partir dessa problematização é que se instalam de modo mais explícito as disputas discursivas acerca de uma valoração positiva de práticas de masculinidades e feminilidades alternativas à “tradição moderna”.

Segundo o participante Jaime, sua avó de setenta e seis anos tem objetivos divergentes daqueles mencionados por Roberto em relação à sua mãe, ou seja, a avó de Jaime não quer cuidar de netos, mas viajar (linhas 344-346). Ao enunciar-se, Jaime se distancia de Roberto, mostrando que aquilo que este diz não se aplica à vida do participante. Assim, Jaime constrói para si uma autoidentidade positiva diante dos outros, já que o estilo de vida valorizado pelos facilitadores e objetivado pela prática do grupo já seria o vivenciado por Jaime, por sua família (tomada de modo metonímico pelos avós).

No entanto, o discurso do próprio Jaime denuncia um posicionamento marcado pela legitimação do estilo de vida contrário à mudança. Isso se dá pelo silenciamento da possibilidade de escolha da mulher quanto ao casamento, aspecto mencionado por Silvia (linhas 352-357) e quase inteiramente ignorado por Jaime.

Silvia, especificamente, constrói a ideia de casamento como mais uma alternativa de estilo de vida. Seu posicionamento está afinado com as transformações pelas quais a intimidade tem passado no contexto da modernidade tardia, as quais dizem respeito, por exemplo, ao surgimento da sexualidade plástica e do relacionamento puro, aspectos transformadores dos modos de se relacionar (GIDDENS, 1993). Afinal, como pontua Giddens (1993, p.152), “[...] um relacionamento nos dias de hoje não é, como foi um dia o casamento, uma ‘condição natural’ cuja durabilidade pode ser assumida como certa [...]”16 16 Ao menos nas previsões de Giddens acerca de seu contexto – a Europa. .

Nesse sentido, Silvia recria de modo comparativo dois contextos distintos socio-historicamente (Conforme as expressões e nos seus vinte anos versus hoje em dia – linhas 348; 352, e uso de verbos no pretérito, como “permitia”, “queria”, “não tinha”, aconteceu, não foi, foi versus no presente, como escolhem, quero – linhas 349; 350; 352; 356; 357; 354, respectivamente), nos quais há diferentes marcações cronotópicas que desencadeiam diferentes relações também entre “pressão social” e “escolha individual”. No início de seu enunciado, a facilitadora discursiviza a ação da avó de Jaime, no passado, como uma escolha individual da qual ela mesma fora agente ([...] ela talvez não se permitia parar e pensar se ela queria mesmo casar e ter filhos [...], linhas 249-350). Veja que Silvia usa o pronome reflexivo para indicar os motivos da escolha da avó de Jaime.

Tal avaliação, marcada pela modalização (talvez), no entanto, vai sendo alterada ao longo do enunciado de Silvia, quando esta, então, reformula tal ato como fruto de uma pressão social, marca de um contexto sócio-histórico, já que abrange não apenas a avó de Jaime, mas a maioria das mulheres ([...] o que aconteceu lá, com a tua avó ou com a maioria não foi nem uma escolha, foi meio que um... [...] uma pressão social – linhas 455-457; 459) e enfatiza que na época havia outra conjuntura com determinadas relações de gênero social (e de poder) e, portanto, outras eram as escolhas (Talvez não tinha... é... o poder de escolha e hoje em dia já tem – linha 352-353).

Esse aspecto mostra, por exemplo, como por meio da sessão do grupo se está agindo intercontextual e discursivamente sobre as práticas sociais topicalizadas aqui (no caso, os tipos de relacionamento). Além disso, figura a reflexividade17 17 A reflexividade diz respeito ao fato de que “a cada momento o indivíduo é instado a auto-interrogar-se em termos do que está acontecendo [...] a reflexividade pertence à historicidade reflexiva da modernidade, uma forma distinta de monitoramento reflexivo mais geral da ação” (GIDDENS, 2002, p 75). institucional acerca dessas práticas na pessoa da facilitadora, uma perita representante de um sistema abstrato (psicologia), nos termos de Giddens (2002)GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.. Ainda, figura substancialmente a oficialização18 18 Tal processo se relaciona também com o que Hanks (2008), retomando Silverstein, chama de indexicalização, ou seja, o modo como a linguagem em uso num determinado contexto de interação alça novas significações ao sistema semiótico, reverberando em outras práticas sociais. Relaciona-se, portanto, à instauração de novos significados às práticas sociais via manejo temático de enunciados discursivos. em mais uma esfera social, qual seja, a Assistência Social e, portanto, a legitimação social de práticas anteriormente tidas como não legítimas, como é o caso da opção das mulheres pelo não casamento. Há, portanto, pontos de disputa/deslocamento acerca de determinadas relações entre o modelo hegemônico de masculinidade e relações de gênero social alternativas.

Nesse caso, enfim, Silvia aponta para as mudanças sociais que legitimam seu horizonte axiológico (e é por meio dele legitimada) acerca do casamento, concebido aqui como um dentre inúmeros outros possíveis estilos de vida. Esse aspecto se estende a toda a prática do grupo socioeducativo, ou seja, a discussão com fins de desnaturalização de relações de gênero social, característica dessa prática, é então oficializada e, portanto, legitimada, contribuindo, em tese, para mudanças macrossociais. Assim, esse aspecto figura, então, a ação sobre a articulação de regras sociais no que tange às estruturas de legitimação e significação (cf. Meurer, 2004MEURER, J. L. Ampliando a noção de contexto na Linguística sistêmico-funcional e na Análise crítica do discurso. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n. Especial, p.133-157, 2004. Disponível em http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/linguagem-em-discurso/0403/040306.pdf.Acesso em 25 de agosto, 2020.
http://linguagem.unisul.br/paginas/ensin...
).

No excerto em pauta, Silvia se dirige aos participantes e, especificamente, a Jaime, que lhe responde. Embora, ao longo da fala de Silvia, o participante tenha proferido enunciados de conformidade (Exato, é. – linhas 351; É. – linha 358), esses são ressignificados à luz de seu enunciado em resposta a partir da linha 360, assumindo um valor metadiscursivo, ou seja, estão a serviço da manutenção do momento de fala e da marcação de sua orientação para Silvia19 19 Expressões de concordância são típicas no estilo de Jaime. Ele as usa recorrentemente, mesmo quando em enunciados subsequentes ele apresenta uma orientação discursiva oposta à afirmação. Muitas vezes, inclusive, conjuga a afirmação com “mas”. Nesse sentido, é possível perceber que utiliza essas expressões como formas de se orientar em relação aos interlocutores, marcando discursivamente sua presença no diálogo e criando uma aparência de convergência com os facilitadores, fruto possivelmente do eufemismo (HANKS, 2008), ou seja, das forças de cerceamento discursivo exercidas pela esfera em que ele se encontra e mais ainda pela relação desta com a esfera que o encaminhou ao grupo, qual seja, a judiciária. . Veja-se que, ao respondê-lhe, Jaime não focaliza o aspecto de mudança nas relações de gênero social, figurado na possibilidade de escolha da mulher, conforme enfatizara Silvia e já vinha sendo apontado por Roberto (cf. S01L213-274). Antes, ele focaliza sua abordagem no desenvolvimento tecnológico (Esses tempos atrás aí ((risos)) eu postei uma foto no Facebook e a primeira pessoa a curtir foi minha vó ((risos)) E eu olhei e minha vó tem setenta e seis anos... ela tem Facebook, WhatsApp, ela manda ‘bom dia’”– linhas 338-342).

Tal ação implica o apagamento da mudança nas relações sociais como tema em discussão. Assim, embora Jaime mencione mudanças nas ações de sua avó com relação a práticas vinculadas a determinadas relações sociais discursivizadas aqui como sendo do passado ([...] eu perguntei pra ela [...] ‘Não quer criar os netos?’ ‘Que criar neto o que...eles se cria... eu quero é viajar e...’ Aí eu penso, tá? Há um tempo atrás aí... a minha vó no Facebook – linhas 342-347), ele não as focaliza em seu enunciado. Além disso, mesmo essas mudanças são apresentadas em meio a risos, marcador de carnavalização dos fatos enunciados.

No único trecho em que menciona mudanças nas relações de gênero social, por meio da reenunciação de perguntas feitas a sua avó, ele se mostra surpreso diante das mudanças, conforme aponta a ênfase em “a minha avó no facebook”, contraposta à constatação Aí eu penso, tá? Há um tempo atrás aí... Em outras palavras, Jaime constata que houve mudanças, mas sente-se surpreso diante delas, discursivizadas, inclusive, como algo repentino (<mas>, eu fico assim meio de cara, sabe? Como é que pode, as coisas mudarem tão de repente assim? – linhas 378-379; [...] falei ‘meu Deus do céu’... – linhas 369-370), o que demonstra seu distanciamento desse “outro cenário social”.

Ademais, no tratamento das mudanças, centradas no desenvolvimento tecnológico, o modo como Jaime discursiviza a avó, uma mulher de setenta e seis anos, coloca-a numa posição de mulher moderna, pois ela usa de modo proficiente ferramentas deste tempo. Isso é percebido pelas escolhas lexicais que nomeiam suas ações (ela se encaixou nessa modernidade, agora com essa tecnologia e tá indo, sabe? – linha 361-363, se aperfeiçoou – linha 382). No entanto, ao mesmo tempo, a mulher é colocada em volta de uma feminilidade enfatizada (CONNELL, 2003CONNELL, R. W. Masculinidades. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2003.), aos moldes hegemônicos, já que o que a avó faz no computador é procurar receitas culinárias ([...] esses dias eu vi ela procurando uma receita no Google [...] – linhas 368-369). Além disso, ao enunciar que sua avó “se encaixou nessa modernidade”, Jaime aponta para o caráter de pressão da modernidade sobre as ações individuais da mulher e sua provável rendição, afinal “se encaixar” não é mudar situações sociais, mas se adequar a elas. Há aqui, portanto, um movimento de apassivização da mulher, escamoteado na ideia de “ser uma mulher moderna (porque usa a tecnologia de informação) aos setenta e seis anos”.

Esse modo de discursivizá-la é intensificado quando Jaime a compara com seu avô e é seguido por Beto, que enfatiza o lugar de ambos na sociedade e o entendimento de mudança que está co-construindo com Jaime nesse contexto, ou seja, a mudança é nomeada como “moda” (A mulher já anda na moda, tá? Já o homem é mais carrancudo – Beto_S01L385-6), algo que está submisso a uma espécie de sazonalidade, marcando seu caráter superficial e, portanto, não diz respeito a mudanças estruturais profundas, dignas de crédito. Metaforicamente, há nessas escolhas também a marcação da oposição entre mudança (a mulher/andar/moda) e “tradição” (homem/ser/carrancudo).

Assim, em termos de horizonte temático, há dois modos diversos de dar acabamento à realidade discursivizada, ou seja, a que diz respeito às mudanças nas relações de gênero social. De um lado, Jaime e Beto desvinculam a ideia de mudança nas relações de gênero social e, de outro lado, Roberto e Silvia as legitimam como possibilidade real num mundo em mudança.

É claro que mesmo a orientação de Silvia e Roberto são fruto desse mesmo discurso da Modernidade, uma vez que incorporam as noções de “estilos de vida”, representam o conhecimento perito na sessão etc. No entanto, é inegável o deslocamento de sentidos no interior desse mesmo discurso a partir dos diferentes horizontes axiológicos em pauta.

Nesse sentido, Jaime aciona o mesmo discurso da modernidade para fugir da questão de masculinidade que é problematizada também no interior desse discurso. Assim, o discurso da modernidade serve tanto para encampar a permanência quanto a mudança nas relações de dominação masculina, uma vez que incorpora as tensões desse contexto social mais amplo. Por um lado, ainda, constrói-se aqui – via disputas sobre o horizonte temático do gênero sessão de grupo socioeducativo – a dimensão discursiva das práticas de masculinidade e feminilidade e também, indiretamente, daquilo que seja modernidade, ou melhor, práticas da modernidade.

Considerações finais

O aspecto de mútua constitutividade entre linguagem e práticas sociais é marcado pelas disputas acerca dos modos de se orientar à realidade e de construir as práticas. Nesse sentido, o presente artigo articulou proposições advindas da ACD, a partir de sua focalização nas práticas sociais, e os postulados advindos do Círculo de Bakhtin, sobretudo das relações entre realidade social e horizonte temático dos gêneros discursivos – movimentos de aproximação que têm constituído uma das formulações da ACG. Tais inter-relações foram figuradas numa análise em que se disputam recortes das realidades na constituição do tema em uma sessão de grupo socioeducativo para homens autores de violência contra a mulher. De um lado: a mudança em padrões de feminilidades e masculinidades é contextualizada positivamente como parte de uma mudança estrutural mais ampla. De outro, tal mudança é dissimulada i) pelo deslocamento temático para “mudanças tecnológicas” e ii) pela eufemização, que discursiviza mudanças desse teor como fruto da moda. Assim, a natureza aberta de ambas as instâncias: linguagem e práticas sociais foram tornadas inteligíveis e apontam para pontos de aberturas, imprescindíveis na luta política por mudanças sociais.

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    » https://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8635.pdf
  • 1
    Cf. CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013; KIMMELL, 1998KIMMELL, M. A produção simultânea de masculinidades hegemônicas e subalternas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 4, n. 9, p.103-117, out. 1998. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/ha/v4n9/0104-7183-ha-4-9-0103.pdf.Acesso em 25 de agosto, 2020
    https://www.scielo.br/pdf/ha/v4n9/0104-7...
    ; WELZER-LANG, 2001WELZER-LANG, D. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista de Estudos Feministas. ano 9 462, p.461-482, 2º semestre, 2001. Disponível em https://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8635.pdf.Acesso em 25 de agosto, 2020.
    https://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8635....
    .
  • 2
    O conceito de Modernidade pode ser entendido, a partir de Giddens (1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991., p.11), como sendo o “[...] estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência”. Embora Giddens o tome como um fato, entendo aqui que esse fenômeno teve repercussões diferentes nos diferentes lugares que “alcançou”, principalmente naqueles que são/foram colônias dos países europeus, onde a Modernidade se configura, na verdade, em uma estratégia colonial.
  • 3
    Veja-se que homem e mulher são entendidos a partir de um padrão europeu e tomados como categorias universais.
  • 4
    Sistemas peritos dizem respeito a “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que reorganizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje. [...] os sistemas nos quais está integrado o conhecimento de peritos influenciam muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua. [...] são sistemas de desencaixe porque [...] eles removem as relações sociais das imediações do contexto” (GIDDENS, 1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991., p.38-9). No Brasil, isso se viu fortemente quanto ao controle sobre as relações sociais e principalmente ao domínio sobre a mulher, atrelado ao projeto de desenvolvimento da pátria nas décadas de 1910 a 1940 (governo Vargas), que passa das mãos dos maridos para os médicos (especialistas) (cf. BESSE, 1999).
  • 5
    Estilo de vida é entendido aqui como “um conjunto mais ou menos integrado de práticas que o indivíduo abraça, não só porque essas práticas preenchem necessidades utilitárias, mas porque dão forma material a uma narrativa particular da auto-identidade” (GIDDENS, 2002, p.79).
  • 6
    Resende (2009)RESENDE, V. Análise do discurso crítica e realismo crítico: implicações interdisciplinares. Campinas, SP: Pontes Editores, 2009. utiliza o termo “potencial”, ao invés de “real”, pois esse seria mais adequado ao sentido empregado pelo Realismo crítico, ou seja, de que há estruturas que existem enquanto potenciais a serem ativados. Assim, ao longo da explanação, podem aparecer ambos os termos como sinônimos.
  • 7
    O conceito de gêneros discursivos tem sido caro nas análises de base dialógica, embora esses tenham sido objeto de pesquisa em diferentes vertentes teóricas. A própria ACD, por exemplo, utiliza diferentes pressupostos, como a sociorretórica (SWALES, 1990SWALES, J. M. Genre Analysis: English in Academic and Research Settings. New York: Cambridge University Press, 1990., MILLER, 1984MILLER, C. Genre as Social Action. Quartely Journal of Speech, vol. 70, p.151-176, 1984.) e a análise de gênero (BAZERMAN, 1988BAZERMAN, C. Shaping Written Knowledge: the Genre as Activity of Experimental Article in Science. Madison: The University of Wisconsin Press, 1988.; BHATIA, 1993BHATIA, V. Analysing Genre: Language Use in Professional Settings. London: Longman, 1993.) para o tratamento do fenômeno, conforme é possível perceber em Fairclough (2003)FAIRCLOUGH, N. Analysing Discourse: Textual Analysis for Social Research. London: Routledge, 2003.. No entanto, mesmo nessa obra, há certo diálogo com os estudos bakhtinianos, sobretudo pela tomada do conceito de dialogismo, embora não o haja no tratamento do conceito de gênero discursivo especificamente. Esse mesmo posicionamento tem sido presente em diversas análises críticas de gêneros, como esta tem sido proposta a partir do Brasil (MEURER, 2002MEURER, J. L. Uma dimensão crítica do estudo dos gêneros textuais. In: MEURER, J. L.; MOTTA-ROTH, D. Gêneros textuais e práticas discursivas: subsídios para o ensino da linguagem. Bauru: EDUSC, 2002, p.17-29.; MOTTA-ROTH, 2008MOTTA-ROTH, D. Análise crítica de gêneros: contribuições para o ensino e a pesquisa de linguagem. DELTA, v. 24, n. 2, p.341-383, 2008. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44502008000200007&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.Acesso em 25 de agosto, 2020.
    https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
    ; BONINI, 2010BONINI, A. Critical Genre Analysis and Professional Practice: The Case of Public Contests to Select Professors for Brazilian Public Universities. Linguagem em (dis)curso, v. 10, n. 3, pp.485-510, 2010. Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-76322010000300004.Acesso em 25 de agosto, 2020.
    https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
    ). No entanto, mais recentemente, a ACG tem encontrado nas discussões bakhtinianas acerca do conceito de gênero uma abordagem mais orgânica para o fenômeno, sobretudo porque tal perspectiva consegue, com uma taxionomia enxuta, dar conta de aspectos centrais para o tratamento do fenômeno, especialmente porque consegue articular aspectos textuais e sociais num mesmo conceito.
  • 8
    A classificação dos enunciados em enunciado-pleno e enunciado-recorte é uma proposta de Bonini (2004)BONINI, A. Gênero textual/discursivo: o conceito e o fenômeno. In: CRISTOVÃO, V. L. L.; NASCIMENTO, E. L. (orgs.). Gêneros textuais: teoria e prática. Londrina, PR: Moriá, 2004, p.13-17.. Nesse viés, enunciado-pleno diz respeito ao enunciado bakhtiniano, com fronteiras marcadas conforme propõe Bakhtin (2016)BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução posfácio e notas Paulo de Bezerra; notas da edição russa Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016.. Já enunciado-recorte diz respeito aos fenômenos que pressupõem fronteiras não marcadas pela troca de turno de fala, mas por instâncias enunciativas mais abrangentes. Assim, a delimitação do enunciado-recorte se dá a partir não de um interlocutor que interage no interior de uma conversa, por exemplo (como seria a delimitação do enunciado-pleno, bakhtiniano), mas de um observador que delimita o enunciado por meio de critérios a partir dos quais traça o início e fim de um ritual interativo. Nesse caso, uma audiência judicial, por exemplo, pode ter suas fronteiras marcadas no momento em que o juiz a inicia e a encera, dando lugar à emergência (resposta, do ponto de vista dialógico bakhtiniano) de outros enunciados-recorte (conversa entre advogado e réu) ou mesmo enunciados-plenos (mandado de prisão).
  • 9
    Embora a interpretação primeira para esse observador seja a de que se trata do analista de gênero que, de fato, irá recortar o fenômeno que constitui enquanto seu objeto, há aqui outros sujeitos que assumem esse lugar. Veja-se que qualquer interlocutor é capaz de definir fronteiras enunciativas para identificar uma reunião, uma missa, uma consulta etc. Nesse caso, esse observador não se restringe ao pesquisador, mas contempla o conhecimento que os próprios interlocutores possuem acerca dos gêneros nos quais se envolvem.
  • 10
    Os aspectos estáveis dos gêneros discursivos podem ser entendidos em termos de regras/recursos, no âmbito da teoria da estruturação de Giddens. Conforme discute Meurer (2004MEURER, J. L. Ampliando a noção de contexto na Linguística sistêmico-funcional e na Análise crítica do discurso. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n. Especial, p.133-157, 2004. Disponível em http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/linguagem-em-discurso/0403/040306.pdf.Acesso em 25 de agosto, 2020.
    http://linguagem.unisul.br/paginas/ensin...
    , p.142), “Os elementos normativos dizem respeito às ‘sanções aos modos de conduta social’ ou ‘técnicas ou procedimentos generalizáveis aplicados à implementação/reprodução da vida social’”.
  • 11
    Intercontextualidade diz respeito à “condição em que dois ou mais contextos se interligam e interpenetram em uma determinada prática social. Na intercontextualidade um contexto é ‘levado’ para outro contexto e dá-se o compartilhamento de características de ambos, muitas vezes com o predomínio de um sobre o outro” (MEURER, 2004MEURER, J. L. Ampliando a noção de contexto na Linguística sistêmico-funcional e na Análise crítica do discurso. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n. Especial, p.133-157, 2004. Disponível em http://linguagem.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/linguagem-em-discurso/0403/040306.pdf.Acesso em 25 de agosto, 2020.
    http://linguagem.unisul.br/paginas/ensin...
    , p.135).
  • 12
    Nome da cidade não é divulgado devido ao acordo firmado com os participantes em Termo de Compromisso Livre e Esclarecido (TCLE).
  • 13
    Os nomes de todos/as os/as participantes (exceto da pesquisadora) são fictícios devido ao acordo firmado via TCLE.
  • 14
    Não informado.
  • 15
    Dadas às limitações de espaço e escopo deste artigo, sugiro que a leitora/o leitor consulte Soares (2018)SOARES, V. A. S. F. - Mas tem gente que não entende assim.// - É. É por isso que a gente tá aqui: a sessão de grupo socioeducativo para homens autores de violência contra a mulher e a (re)construção discursiva de masculinidades. 2018. 893f. Tese. (Doutorado em Linguística) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018. para maior compreensão da pesquisa.
  • 16
    Ao menos nas previsões de Giddens acerca de seu contexto – a Europa.
  • 17
    A reflexividade diz respeito ao fato de que “a cada momento o indivíduo é instado a auto-interrogar-se em termos do que está acontecendo [...] a reflexividade pertence à historicidade reflexiva da modernidade, uma forma distinta de monitoramento reflexivo mais geral da ação” (GIDDENS, 2002, p 75).
  • 18
    Tal processo se relaciona também com o que Hanks (2008)HANKS. W. Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. Organização Anna Christina Bentes, Renato C. Rezende, Marco Antônio R. Machado. Revisão técnica Anna Christina Bentes, Maurizio Gnerre. Prefácio Maurizio Gnerre. São Paulo: Cortez, 2008., retomando Silverstein, chama de indexicalização, ou seja, o modo como a linguagem em uso num determinado contexto de interação alça novas significações ao sistema semiótico, reverberando em outras práticas sociais. Relaciona-se, portanto, à instauração de novos significados às práticas sociais via manejo temático de enunciados discursivos.
  • 19
    Expressões de concordância são típicas no estilo de Jaime. Ele as usa recorrentemente, mesmo quando em enunciados subsequentes ele apresenta uma orientação discursiva oposta à afirmação. Muitas vezes, inclusive, conjuga a afirmação com “mas”. Nesse sentido, é possível perceber que utiliza essas expressões como formas de se orientar em relação aos interlocutores, marcando discursivamente sua presença no diálogo e criando uma aparência de convergência com os facilitadores, fruto possivelmente do eufemismo (HANKS, 2008HANKS. W. Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de Bourdieu e Bakhtin. Organização Anna Christina Bentes, Renato C. Rezende, Marco Antônio R. Machado. Revisão técnica Anna Christina Bentes, Maurizio Gnerre. Prefácio Maurizio Gnerre. São Paulo: Cortez, 2008.), ou seja, das forças de cerceamento discursivo exercidas pela esfera em que ele se encontra e mais ainda pela relação desta com a esfera que o encaminhou ao grupo, qual seja, a judiciária.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Set 2021
  • Data do Fascículo
    July/Sept. 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2020
  • Aceito
    12 Jul 2021
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