Acessibilidade / Reportar erro

O processo de criação de João Anzanello Carrascoza: diálogos com Bakhtin

RESUMO

Este trabalho tem o propósito de refletir sobre o processo de escritura de João Anzanello Carrascoza, a partir do conceito de criação como rede, ampliado pelo pensamento bakhtiniano sobre a multiplicidade de vozes. São estudados os arquivos do escritor, sob a perspectiva das práticas comunicativas, com ênfase no dialogismo dos sujeitos em comunidade, travando diálogos de naturezas diversas. São apresentadas algumas questões que movem seu projeto literário, as materialidades da construção de suas obras e a diluição de fronteiras entre processo e obra.

PALAVRAS-CHAVE:
Dialogismo; Processo de criação; Rede; Bakhtin; João Anzanello Carrascoza

ABSTRACT

The purpose of this paper is to reflect on João Anzanello Carrascoza’s writing process, based on the concept of creation as network and expanded with Bakthin’s discussions on polyphony. The writer’s files are studied from the perspective of communicative practices, with emphasis on the dialogism of subjects in community, who engage in dialogues of different natures. We present questions that move the author’s literary project, the materialities of the construction of his work and the dilution of boundaries between process and work.

KEYWORDS:
Dialogism; Writing process; Network; Bakhtin; João Anzanello Carrascoza

O objetivo deste artigo é apresentar um estudo sobre o escritor João Anzanello Carrascoza (1962-), cuja obra vem sendo investigada por muitos estudiosos sob diferentes perspectivas. No entanto, seu processo de criação tem sido pouco discutido, como veremos adiante.

É importante lembrar que somos atraídos pelos percursos de criação de obras que nos instigam como leitores. Depois de nos aproximarmos de seus modos de produção, voltamos aos livros e nos deparamos com autorias ressignificadas, novas camadas reveladas e conhecimento das obras adensado. Trata-se, portanto, de uma relação de interação e complementariedade com a crítica literária.

Nossa experiência no campo dos estudos sobre arquivos da criação contemporâneos nos deu algumas certezas. Uma delas é a total impossibilidade de se saber a priori o que o pesquisador vai encontrar ao começar as conversas com os artistas/escritores que desejamos estudar. No caso da literatura, muitas dessas pesquisas são sobre cartas, rascunhos e diários, sabendo que cada tipo de registro oferece diferentes informações sobre o processo. Por exemplo, a importância das interlocuções com seus contemporâneos em meio ao desenvolvimento de seus projetos literários, os princípios que regem as alterações nas diferentes versões do texto em construção, questões que envolvem a contextualização do processo sob uma grande diversidade de aspectos ou anotações relativas às obras em processo. Nos últimos anos, em meio à experimentação contemporânea a pergunta feita aos escritores é: o que você considera importante para os estudos de seu processo?

Em nossa primeira entrevista com Carrascoza, ficou claro que não havia sido feita nenhuma pesquisa sobre seu processo de criação. Daí a certeza do ineditismo da que se iniciava. Conhecíamos alguns artigos dedicados às marcas textuais de metaficção; no entanto, nenhum que tivesse se debruçado sobre seus arquivos de criação.

Nesse contexto, depois de alguns encontros remotos, em tempos de pandemia, recebemos do escritor arquivos digitais com entrevistas, resenhas críticas e manuscritos de oito livros enviados para as editoras.

Os objetos de pesquisa desta reflexão, a partir do conceito de criação como rede1 1 Ver Salles, (2021). , serão as diferentes versões do livro Tramas de meninos (2021CARRASCOZA, João Anzanello. Tramas de meninos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2021.), da editora Alfaguara, geradas pelo diálogo com os editores, por ser a documentação que ofereceu mais dados sobre seu processo de criação. Tal discussão ganhará alguns desdobramentos em diálogo com seu livro Inventário do azul (2022aCARRASCOZA, João Anzanello. Inventário do azul. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2022a.).

Ainda nesta contextualização inicial sobre o escritor, não podemos deixar de destacar sua ação em oficinas literária e na publicidade, como redator e professor, além de suas publicações sobre o tema. Só para citar um exemplo mais recente, destacamos a organização do livro O mimetismo publicitário: product placement, arte e consumo (2022bCARRASCOZA, João A Anzanello (org.). O mimetismo publicitário: product placement, arte e consumo. São Paulo: Pimenta Cultural, 2022b.). Seu pós-doutorado, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre a interface Publicidade e Literatura, realizado entre 2012 e 2014, também nos interessa como objeto de investigação.

Ainda em uma perspectiva geral, podemos observar que os arquivos da criação de Carrascoza falam, de modo significativo, de uma das questões que movem os processos de criação, isto é, as tendências das buscas artísticas sob o ponto de vista das práticas comunicativas. Neste caso, estamos falando da relação com os editores, crítica, resenhas e entrevistas. Algumas postagens no seu Facebook trazem outro aspecto que envolve a continuidade do processo, que são leituras de suas obras feitas por diferentes pessoas.

Nesse contexto, lembramo-nos de Mário de Andrade, mais especificamente do compositor Janjão, no Baquete: “Toda arte é social porque toda arte é um fenômeno de relação entre seres humanos” (1989ANDRADE, Mário. O banquete. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1989., p. 61).

Discutiremos essas questões, em mais profundidade, adiante. Nesse primeiro momento, é importante destacar que os documentos cedidos pelo escritor trazem à tona a relação comunicativa que envolve todos os processos, porém, nem sempre ela é foco de interesse na literatura. Nos anos de 1990, quando nossas pesquisas se iniciaram, esse aspecto foi muitas vezes negado, talvez por confrontar uma visão romântica da criação. Tal postura não aceita a presença do potencial leitor, por considerar que o escritor faria algum tipo de concessão para que seu livro fosse comprado e lido. É uma visão sustentada pela crença de que a criação se dá por sujeitos isolados e, consequentemente, não discute o contexto de produção de cada escritor em suas singularidades.

No caso de Carrascoza, o que fica claro é que isso não é uma questão a ser evitada. Ao contrário, é assim que ele se coloca publicamente, conhecedor da rede de interações que tornam a literatura possível. A partir dos arquivos estudados, discutiremos seu projeto literário, a materialidade das práticas comunicativas e a diluição de fronteiras entre processo e obra.

Sob o ponto de vista da abordagem teórica, o estudo propõe o estabelecimento de relações entre Charles Sanders Peirce, Pierre Musso, Vincent Colapietro e Italo Calvino, já desenvolvidas em outras publicações. Este artigo traz um diálogo novo, no contexto dos estudos de processo de criação a partir dos arquivos de escritores2 2 Os estudos que nasceram no ITEM/CNRS (Institut des Textes et Manuscrits Modernes) nos anos de 1960 com o nome de Crítica Genética. , com Mikhail Bakhtin.

1 O que move o projeto literário de Carrascoza?

Quando falamos em projeto do escritor, estamos nos referindo, no âmbito do conceito de criação como rede, sustentado pela semiótica de Charles S. Peirce (1955)PEIRCE, Charles Sanders. Philosophical Writings. New York: Dover Publication Inc., 1955. e o conceito de rede de Pierre Musso (2004)MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. In: PARENTE, André. (org.). Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004., aos princípios direcionadores de natureza política, ética e estética presentes nas práticas criadoras. Estão relacionados à produção de obras específicas e atam a obra daquele criador como um todo. São as teorias implícitas no fazer relativas à singularidade de cada escritor. São planos de valores, formas de representar o mundo, gostos e crenças que regem o seu modo de ação. Esse projeto está inserido no espaço e tempo da criação que inevitavelmente o afetam. A busca, como processo contínuo, é sempre incompleta. O próprio projeto que direciona a produção das obras muda ao longo do tempo. O processo tende para a construção do projeto poético.

A criação, nessa perspectiva, como uma atualização do conceito de semiose, é um processo contínuo. A ação sígnica é um processo contínuo com tendências, ou seja, um processo de causação final (Peirce, v. 1, §211 [1931-1935PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers. Editado por Charles Hartshorne e Paul Weiss. USA: Harvard Press [1931-1935], v. 1-6.]). Tendências são rumos vagos que orientam o processo de construção dos objetos em um ambiente de incerteza e imprecisão. Rumos que geram trabalho em busca de algo a ser descoberto. As tendências, no contexto de uma leitura semiótica dos processos de criação, podem ser observadas sob duas perspectivas: a constituição de projetos poéticos e as práticas comunicativas.

Falemos, primeiro, do projeto poético de Carrascoza. Nas entrevistas e conversas com a pesquisadora, surge um romancista-poeta, falando de temas que são “reservas colossais de poesia do cotidiano”, com referência a Carlos Drummond de Andrade. Parece ser movido por uma literatura como “rede de afetos”, um “inventário de sentimento”. “Eu queria um grau de sentimento intenso”, como aparece em suas entrevistas. Assim, vai explorando todos os tipos de afetos e, ao mesmo tempo, sempre terá novos a serem narrados.

Falar em todos os afetos não é pretensioso, mas o que parece tornar seu projeto literário suportável porque sempre haverá algum aspecto da condição humana ainda não explorado. Sempre alguma relação entre familiares ainda não escrutinada ou abrangência de tempo da vida de um personagem não contada.

Quanto à necessidade de narrar sentimentos, em uma entrevista para o portal Vida Simples, ele conta que, aos 12 anos, começou a escrever poesia. “Frequentava a biblioteca da cidade para ler poemas porque a escrita do sentimento me interessava. Não era só o factual” (Coneglian, 2020CONEGLIAN, Matheus. Onde a escrita nasce. In: Vida simples. 2020. Disponível em: https://vidasimples.co/vida-emocional/onde-a-escrita-nasce/ . Acesso em: 4 fev. 2023.
https://vidasimples.co/vida-emocional/on...
, n.p.).

Mais adiante, na mesma entrevista, diz que para ser um escritor é preciso ser inquieto. É necessário trabalhar com a palavra, com algum elemento do universo do sensível para conseguir seguir. Segundo ele, o cotidiano é tão bruto que é preciso encontrar nesse outro mundo uma forma de união

Em outra conversa jornalística, ao ser perguntado por Helder Moraes Miranda, editor do portal Resenhando.com, “Qual o mote que faz você ficar mais confortável para escrever?, responde que é “A vida cotidiana. O nada e o tudo de cada dia” (Miranda, 2023MIRANDA, Helder Moraes. Entrevista João Anzanello Carrascoza: “escrever é alternar luzes e sombras”. In: Resenhando: Portal de Cultura e Entretenimento. 8 jan. 2023. Disponível em: https://www.resenhando.com/2023/01/entrevista-joao-anzanello-carrascoza.html?fbclid=IwAR0B06WkhNypf2WyD6lY2lwsucCHzB_d8__-4nJK-dxOnUwc35OHppe6RAg Acesso em: 4 fev. 2023.
https://www.resenhando.com/2023/01/entre...
, n.p.).

Já para a Revista da Livraria da Vila diz que tem “(...) trabalhado com relações afetivas de pessoas em geral muito próximas e ao mesmo tempo tão distantes, já que às vezes parece haver um mar entre elas” (Livraria da Vila, 2019LIVRARIA DA VILA. Um amor eterno. In: Blog Livraria da Vila. 2019. Disponível em: https://blog.livrariadavila.com.br/um-amor-eterno/. Acesso em: 3 out. 2023.
https://blog.livrariadavila.com.br/um-am...
, n.p.).

Essa busca gera desafios nos modos de narrar, e o autor dá algumas pistas sobre as escolhas de procedimentos de criação. Trata-se da relação dos princípios direcionadores de seu projeto literário com o modo como a obra é construída.

Nesse contexto, destacamos um procedimento de Carrascoza, que é o de se autoimpor regras ou dispositivos com potencial de multiplicação. É interessante associar esse modo de ação ao conhecido movimento OULIPO (Ouvroir de littérature potencielle [Usina de literatura potencial])3 3 Ver https://www.oulipo.net/ .

Vejamos um e-mail do escritor, enviado à pesquisadora, em janeiro de 2023, no qual essa proliferação é explicada:

São obras que surgiram com um único volume - a Trilogia do adeus nasceu com o Caderno de um ausente. Só depois de dois ou três anos, revendo este livro, veio a ideia de escrever o segundo volume, com a narração da filha, Menina escrevendo com o pai. E este segundo levou ao terceiro, A pele da terra. Foi, portanto, uma criação por contiguidade. Um levou ao outro, graças ao ato de revisitar o primeiro, imergir de novo naquele primeiro espaço ficcional. (Carrascoza, 2023, n.p.).

Em outro momento, fala dos livros gerados por regras:

Utensílios-para-a-dor, que nasceu da ideia de escrever contos com palavras compostas, sempre hifenizadas. E essa ideia resultou também na Trilogia dos sinais, pois, também por contiguidade, escrevi dois outros livros, Corpo do tempo: cicatrizes (o sinal aqui é dois pontos), a ser lançado em fevereiro (2022), e De segunda (mão), com o uso dos parênteses, que espero publicar em 2024 (2023, n.p.).

E termina a mensagem tentando explicar esse modo como sua escritura se desenvolve, em diálogo com Drummond:

Acho que o método é como o ‘palavra-puxa-palavra’ do Drummond. Seria no meu caso ‘personagem-puxa-personagem’, ou ‘sinal gráfico-puxa-sinal-gráfico’, ou mesmo enredo-puxa-enredo, e, como resultado, temos ‘texto-puxa-texto’ (um livro puxa outro livro) (2023, n.p.).

Parece ser um procedimento com potencial permanente de desdobramentos. Ao longo da pesquisa, ao comentar sobre algum arquivo que está mandando de uma obra, já tem muitas outras em processo de escritura e/ou edição e livros publicados recentemente. É seu modo de ação literária.

Acreditamos que essa questão move a dramaturgia de seu processo. Em termos do conceito de rede, seria uma proliferação intensa de novas relações, que é associado pelo escritor ao conceito de rizoma de Deleuze4 4 Segundo Deleuze e Guattari, “[...] o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga (...). Contra os sistemas centrados (e mesmo policentrados), de comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas, o rizoma é um sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados” (1995, p. 14). . Esse infinito estabelecimento de novas possibilidades, parece ser sua forma de sobrevivência como escritor. É interessante associar tal observação ao modo como ele se define, na entrevista para o portal Resenhando, já mencionada, “um escritor em ação”.

As tendências ou propósitos do processo levam à ação poética. Daí Peirce definir o propósito como “desejo operativo” (Peirce, v. 1, §205 [1931-1935PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers. Editado por Charles Hartshorne e Paul Weiss. USA: Harvard Press [1931-1935], v. 1-6.]). O escritor procura a “recompensa material”, usando as palavras de Kandinsky (1990)KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo, Martins Fontes, 1990., que descreve o processo de construção de obras como a busca da recompensa material para o poder inventivo e a sensibilidade do artista.

Faremos, a seguir, a discussão sobre a materialidade dos percursos de Carrascoza que nos leva aos aspectos comunicativos no âmbito de suas buscas.

2 Materialidade das práticas comunicativas

Para discutir os arquivos digitais cedidos pelo escritor (entrevistas, resenhas críticas, manuscritos de livros enviados para editoras) precisamos nos aprofundar em seu processo de criação no âmbito das práticas comunicativas. Passamos para o outro aspecto das tendências vagas e imprecisas dos processos de criação acima mencionadas. Tratemos dessa questão a partir do conceito de criação como rede, que vem sendo por nós elaborado, ao longo do tempo, em diálogo com Colapietro (2014)COLAPIETRO, Vincent Michael. Peirce e a abordagem do self: uma perspectiva semiótica sobre a subjetividade humana. Tradução Newton Milanez. São Paulo: Intermeios, 2014. e Calvino (1990)CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.. Trazemos, agora, Bakhtin (1981BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981. e 1992BAKHTIN, Mikhail. O autor e o herói. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 23-220.), dando mais densidade para tal conceituação.

O processo de criação mostra-se também como uma tendência para outros, na medida em que está inserido em complexas redes culturais: o projeto de cada artista insere-se na linha do tempo da arte, da ciência e da sociedade em geral. O aspecto comunicativo do processo envolve sujeitos como comunidade (Colapietro, 2014COLAPIETRO, Vincent Michael. Peirce e a abordagem do self: uma perspectiva semiótica sobre a subjetividade humana. Tradução Newton Milanez. São Paulo: Intermeios, 2014.), travando uma grande diversidade de diálogos de natureza inter e intrapessoais como com a obra em processo, com futuros receptores, com a crítica e, nesse caso em análise, com os membros das equipes editoriais.

Essa abordagem do sujeito, proposta por Colapietro (2014)COLAPIETRO, Vincent Michael. Peirce e a abordagem do self: uma perspectiva semiótica sobre a subjetividade humana. Tradução Newton Milanez. São Paulo: Intermeios, 2014., parece relevante para se colocar em questão a oposição entre processos em equipe ou coletivos e processos individuais: o sujeito não é uma esfera privada, mas um agente comunicativo. É distinguível, porém não separável de outros, pois sua identidade é constituída pelas relações com outros; a pessoa não é só um possível membro de uma comunidade, porém, como sujeito, tem a própria forma de comunidade. Nesse contexto, não há processo inteiramente individual, como normalmente a criação literária é vista. Ao mesmo tempo, esse conceito de sujeito dá complexidade às redes dos processos que se materializam na relação com outros, formadas por sujeitos em comunidade, com o propósito da construção de um projeto comum, a exemplo da relação do escritor com o editor, como discutiremos aqui. Nesse contexto teórico, não há sujeitos isolados.

Calvino também nos coloca no âmbito de interações, ao explicar que “(...) cada vida é uma enciclopédia, uma biblioteca, um inventário de objetos, uma amostragem de estilos” (1990, p. 138). Ele enfoca, ainda, aquilo podemos considerar espaços de manifestação da subjetividade: “(...) onde tudo pode ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis” (p. 138).

Em entrevista ao portal Vida Simples, Carrascoza explica esses filtros pessoais.

Várias pessoas podem ler o mesmo fato, sentir de maneiras diversas e relatar de modos diferentes. Porque cada um tem a sua maneira de sentir, pode ser mais ou menos afetado por aquele fato. Isso tem a ver com a sensibilidade diante das coisas. Você faz a sua leitura do mundo e, à medida que você lê o mundo, está o escrevendo em si. Depois de ouvir as histórias do meu pai, por exemplo, eu relatava aos amigos da escola de outro jeito (Coneglian, 2020CONEGLIAN, Matheus. Onde a escrita nasce. In: Vida simples. 2020. Disponível em: https://vidasimples.co/vida-emocional/onde-a-escrita-nasce/ . Acesso em: 4 fev. 2023.
https://vidasimples.co/vida-emocional/on...
, n.p.).

Calvino continua, dizendo que quanto mais a obra tende para a multiplicidade, ao invés de “(...) se distanciar daquele unicum que é o self de quem escreve, a sinceridade interior, a descoberta de sua própria verdade, ao contrário, respondo quem somos nós senão uma combinatória de experiências, informações, de leitura, de imaginações?” (1990, p. 138).

De modo semelhante, Bakhtin (1992)BAKHTIN, Mikhail. O autor e o herói. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 23-220. afirma que a atividade estética tem o poder de reunir o mundo disperso.

Calvino traz duas questões bastante importantes para nossa discussão. Por um lado, a multiplicidade de interações não envolve absoluto apagamento do sujeito; ao mesmo tempo, o próprio sujeito é múltiplo. A multiplicidade das interações e do próprio sujeito são também enfatizadas por Colapietro (2014)COLAPIETRO, Vincent Michael. Peirce e a abordagem do self: uma perspectiva semiótica sobre a subjetividade humana. Tradução Newton Milanez. São Paulo: Intermeios, 2014., ao afirmar que o sujeito não é uma esfera privada, mas um agente comunicativo. Como vimos, é distinguível, porém não separável de outros, pois sua identidade é constituída pelas relações com outros; não é só um possível membro de uma comunidade, mas a pessoa como sujeito tem a própria forma de uma comunidade.

Retomamos Bakhtin nessas interações teóricas, a partir de sua já clássica citação do início de seu texto sobre Dostoievski. Diz o autor que ao tomarmos conhecimento da vasta literatura sobre esse escritor, “(...) temos a impressão de tratar-se não de um autor e artista, que escrevia romances e novelas, mas de toda uma série de discursos filosóficos de vários autores e pensadores: Raskólnikov, Míchkin, Stavróguin, Ivan Karamázov, o Grande Inquisidor e outros” (1981, p. 1-2). É essa multiplicidade de vozes - dialogismo - que leva Bakhtin a considerar Dostoievski o criador do romance polifônico.

É interessante observar que o próprio Calvino estabelece a relação da multiplicidade com Bakhtin, ao afirmar que o texto multíplice é aquele que

(...) substitui a unicidade de um eu pensante pela multiplicidade de sujeitos, vozes, olhares sobre o mundo, segundo aquele modelo que Mikhail Bakhtin chamou de dialógico, polifônico ou carnavalesco, rastreando seus antecedentes desde Platão a Rabelais e Dostoiévski. (1990, p. 132).

Sabemos que essas questões já foram discutidas amplamente pelos pesquisadores de Bakhtin, mas, como já mencionado, o novo nessa pesquisa é trazer para os estudos do processo de criação, a partir dos arquivos de criação, essa relação ainda não desenvolvida. Neste caso específico, observarmos que o conceito de sujeito em comunidade de Colapietro ganha densidade a partir do diálogo aqui proposto.

O artigo de Marilia Amorim (2009)AMORIM. Marilia. Memória do objeto - uma transposição bakhtiniana e algumas questões para a educação. São Paulo: Bakhtiniana, v. 1.n. 1, p. 8-22, 1º sem. 2009. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/2993/1927. Acesso em: 4 fev. 2023.
https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
nos pareceu interessante para levar adiante tais reflexões já a partir da conceituação de criação. Diz a autora:

A teoria bakhtiniana da linguagem e da cultura traz consequências importantes para a questão da criação. Criar não é dar livre expressão a um suposto gênio individual ou deixar agir a inspiração. A criação em Bakhtin supõe duplamente a memória coletiva. Do lado do leitor ou ouvinte, face ao objeto criado por mim, porque ele inscreve o que crio em uma cadeia discursiva e assim confere sentido ao objeto. E do lado do próprio criador que cria sempre no diálogo com outros. Para ouvir e fazer ouvir minha voz em um enunciado-objeto é preciso ouvir e fazer ouvir as vozes que nele falam. Não há, de acordo com a perspectiva bakhtiniana, criação sem repetição (Amorim, 2009AMORIM. Marilia. Memória do objeto - uma transposição bakhtiniana e algumas questões para a educação. São Paulo: Bakhtiniana, v. 1.n. 1, p. 8-22, 1º sem. 2009. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/2993/1927. Acesso em: 4 fev. 2023.
https://revistas.pucsp.br/index.php/bakh...
, p. 13).

Podemos observar que Amorim, a partir de Bakhtin, oferece uma visão do criador que nos afasta do gênio isolado e inspirado, como nossas pesquisas também trazem à tona. Volta, nessa citação, o termo tão caro a esse pensador, as vozes, que seriam vistas como a textura do sujeito em comunidade de Colapietro (2014)COLAPIETRO, Vincent Michael. Peirce e a abordagem do self: uma perspectiva semiótica sobre a subjetividade humana. Tradução Newton Milanez. São Paulo: Intermeios, 2014., que cria sempre em diálogo com outros.

Nesta perspectiva, damos forma a um campo semântico para falar das práticas comunicativas, parte integrante de todos os processos de criação: diálogos, vozes, polifonia, sujeito em comunidade e dialogismo. Tal relação com a palavra do outro, via Bakhtin, é trazida no conceito de criação como rede, na medida em que constatamos, a partir do acompanhamento de diversos processos, que interação é um aspecto de grande relevância. Daí trazermos para nossas reflexões especialmente os diálogos de Carrascoza, para nos aproximarmos de suas singularidades.

Nesse contexto, os processos estão sempre no âmbito de interações comunicativas de naturezas diversas. Vejamos as características do processo desse escritor, a partir dos arquivos de criação por ele escolhidos para nossa pesquisa. Ao falarmos em entrevistas, resenhas e versões enviadas para a editora, já estamos em pleno diálogo com outros, ou seja, no âmbito das práticas comunicativas ou dialógicas.

3 Entrevistas

Nas entrevistas, o escritor fala de suas redes culturais, diálogos ou referências e, usando seus termos, ele nos apresenta as interações de sua rede de afetos. Assim ele descreve tais interações na entrevista ao portal Vida Simples.

A literatura é uma espécie de rede de afetos, formada pelas famílias literárias. Se você lê um autor e ele te toca é porque você entra em comunhão com aquele tipo de literatura. Existem outros autores e outros leitores que não entrarão por essa trilha. De certa forma, você está filiado àquele jeito de sentir. É como se você fosse daquela árvore. Isso é uma rede de afetos ou uma família literária da qual fazem parte escritores e leitores (Coneglian, 2020CONEGLIAN, Matheus. Onde a escrita nasce. In: Vida simples. 2020. Disponível em: https://vidasimples.co/vida-emocional/onde-a-escrita-nasce/ . Acesso em: 4 fev. 2023.
https://vidasimples.co/vida-emocional/on...
, n.p.).

Já em entrevista ao site Resenhando, respondendo à clássica pergunta sobre os escritores que o influenciaram, apresenta sua rede de afetos, com algumas observações sobre a característica da obra de alguns deles que o atrai.

Foram muitos. Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto (pela contundência poética), Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Julio Cortázar (pela originalidade literária), Machado de Assis, William Faulkner, José Saramago (pela desenvoltura narrativa) (Miranda, 2023MIRANDA, Helder Moraes. Entrevista João Anzanello Carrascoza: “escrever é alternar luzes e sombras”. In: Resenhando: Portal de Cultura e Entretenimento. 8 jan. 2023. Disponível em: https://www.resenhando.com/2023/01/entrevista-joao-anzanello-carrascoza.html?fbclid=IwAR0B06WkhNypf2WyD6lY2lwsucCHzB_d8__-4nJK-dxOnUwc35OHppe6RAg Acesso em: 4 fev. 2023.
https://www.resenhando.com/2023/01/entre...
, n.p.).

Nas resenhas, por sua vez, aparece a relação com o leitor especializado, o crítico, como é lida ou recebida sua literatura. E, assim, retornamos ao romancista que faz poesia. No site Beco das Palavras é feita uma resenha, sem autoria definida, do livro Elegia do irmão (2019BECO DAS PALAVRAS. Elegia do irmão. In: Beco das palavras. 18 abr. 2019. Disponível em: https://becodaspalavras.com/2019/04/18/elegia-do-irmao/. Acesso em: 4 fev. 2023.
https://becodaspalavras.com/2019/04/18/e...
):

As obras de Carrascoza trazem como tema a ausência, o silêncio e a memória, por meio de situações do cotidiano, como vê-se claramente em Elegia do irmão. Os próprios títulos de suas obras revelam sensibilidade em sua escrita poética: Hotel solidão, Catálogo de perdas, Caderno de um ausente, entre outras (2019, n.p.).

Na Revista Escuta, Fernando Perlatto faz uma leitura mais ampla de sua obra, dando destaque ao lirismo de sua literatura. Sobre Caderno de um ausente (2014), pontua que

(...) é uma coleção impressionante de frases bem escolhidas, palavras bem colocadas. O romance é todo atravessado por uma escrita que explode delicadeza. Em um ritmo muito próprio de narrar, Carrascoza explora e torce a linguagem com ternura, extraindo dela lirismo em alta voltagem. Impressiona a riqueza poética que brota de cada uma de suas páginas. É poesia pura em forma de prosa (2018, n.p.).

Mais adiante, afirma que “(...) a leitura de Aquela água toda permite situar Carrascoza em uma tradição literária muito específica, que aqui chamarei de escritores líricos. Seus livros, de modo geral, e Aquela água toda, em particular, são todos eles atravessados por trechos repletos de poesia” (Perllato, 2018PERLATTO, Fernando. O lirismo da literatura de João Anzanello Carrascoza. Revista Escuta, 12 mar. 2018. Disponível em: https://revistaescuta.wordpress.com/2018/03/12/o-lirismo-da-literatura-de-joao-anzanello-carrascoza/ Acesso em: 4 fev. 2023.
https://revistaescuta.wordpress.com/2018...
, n.p.).

4 Relação com editor

Como mencionamos anteriormente, Carrascoza incorpora a seus arquivos documentos não muito comuns no ambiente literário: o diálogo com o editor e suas sugestões de mudança no texto enviado. Estamos falando da documentação do livro Tramas de meninos (2021CARRASCOZA, João Anzanello. Tramas de meninos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2021.), lançado pela Editora Alfaguara. A criação literária é mostrada no âmbito de trabalho não isolado, podendo gerar alterações. Fica clara sua postura como escritor que incorpora de maneira natural a relação com outros. Podemos levantar a hipótese que vem de seu trabalho como publicitário; no entanto, muitos outros escritores com profissões semelhantes parecem querer não tornar públicos esses diálogos, por razões as mais diversas (que não cabe aqui analisarmos).

Recebemos a primeira versão enviada para a editora, a segunda com sugestões do editor, a terceira e a quarta (o arquivo com o texto preparado para a diagramação).

Vejamos algumas propostas do editor.

Mudança do título de um conto de Ceia para Separação.

Troca de palavra no conto Começo

[...comemorando um gol aos brados enquanto eu o assistia em silêncio]. Substituído por observava

Corte e substituições no conto Presentes

[... suas mães as haviam antecedido na esfera do destino na vida.] Corte com a justificativa que é um pouco rebuscado

[... ela pronta para expelir a nova vida, que também se preparava para sair do cálido conforto uterino]. Substituído por seu ventre.

[... E o filho daquela ao fundo da sala, anos à frente, desorgulhando o sonho da mãe, se perderia em ínvios nos caminhos jamais se tornaria um empresário]. Substituído por contrariando o sonho da mãe jamais se tornaria um vencedor.

Destacamos, ainda, a alteração proposta para o conto final chamado “Últimas”: uma mudança mais significativa, pois revia o tom do livro.

Fim proposto pelo escritor:

[Mas, logo viria a notícia, a última, e não pela voz do filho - que, essa, ele jamais ouviria: o acidente acontecera próximo ao posto Castelo, num trecho sujeito a deslizamento de terra]

Sugestão do editor com a justificativa que deveria terminar com tom mais positivo. As outras histórias relatam perdas duras e a seu ver poderia reverter a expectativa do leitor e salvar o filho, fazendo com que o livro termine com uma boa lembrança para o leitor. Nesse diálogo com o editor surge ainda muita outra questão relacionada ao aspecto comunicativo da criação que é efeito no leitor.

Fim proposto pelo editor:

[... Logo viria a notícia, a última, e não pela voz do filho - mas pela sua própria presença em frente da casa, fechando a porta do carro, cujo som atraiu o pai à janela. Sorriram um para o outro e, então, sem mais nenhum fato a temer, deu-se, só para eles, sob o sol e o silêncio, o agora.]

Todas as sugestões do editor foram acolhidas por Carrascoza. Podemos observar que as propostas geraram a exploração de um novo campo de possibilidades, na construção de um projeto comum, já mencionada. Estamos falando de hipóteses literárias responsáveis pela entrada de ideias novas5 5 A abdução é uma formulação frágil, ou seja, um ato de inferência que adota uma hipótese em estado experimental (Peirce, v. 6, §525 [1931-1935]) a ser testada. É o método de formar uma previsão geral sem nenhuma certeza de que será bem-sucedida, podendo, ao longo do processo de testagem, se provar errada. É um ato de insight arraigado em hipóteses prévias e extremamente falível (Peirce, v. 5, §181 [1931-1935]). . O editor, nesse caso, passou a fazer parte da rede de criação do escritor. Ao discutir os processos de criação, não podemos deixar de refletir sobre o contexto de produção. Nesse caso, estamos falando da relação do escritor com o editor, que envolve também parcerias respaldadas, muitas vezes, por respeito. Escrevemos para ser lidos e, nesse contexto, publicados por determinadas editoras.

5 Diluição de fronteiras: processo invade a obra

Em 2022, Carrascoza publica, também na Editora Alfaguara, o romance Inventário do azul. Como é explicado na orelha do livro, seguindo um procedimento de criação explorado em outras obras, “(...) o personagem do livro é homem sem nome, que por vezes se espelha no autor e por vezes se distancia”. Recurso que dialoga com esse narrador, aqui em terceira pessoa, autoficcional contemporâneo, explicitado já na dedicatória “Ele dedica esse inventário a seus filhos e seus pais velhos e solitários”.

Ainda na orelha, é explicitado o que é narrado: “(...) por meio de lembranças tênues, descrições de pequenos momentos rotineiros e ponderações sobre o que significa crescer e amadurecer, ele recria todo um arco de vida, com seus instantes fugazes de felicidade e a melancolia do que se perdeu”.

Voltamos a seu projeto literário, destacando a busca da narrativa do sensível do cotidiano, permeada de momentos fugazes de felicidade e duras perdas. Não podemos deixar de relacionar o volume com seu livro Catálogo de perdas (2017CARRASCOZA, João Anzanello. Catálogo de perdas. Fotografias de Juliana Monteiro Carrascoza. São Paulo: SESI-SP Editora, 2017.), com Juliana Monteiro Carrascoza, que amplia suas redes, agora com a fotografia.

No contexto de uma criação em permanente proliferação, sempre haverá uma abrangência de vida de um personagem não narrada. O Inventário azul abarca “o amplo arco da vida” do personagem narrador, com suas feridas, cicatrizes, perdas, deslumbramentos, sombras e algumas luzes, permeado por sua imaginação, memórias e esquecimentos que envolvem crescer e amadurecer. Novas frestas da condição humana são exploradas, por meio desse narrador que, por vezes, precisa “(...) desaprender a gostar do espetáculo mágico e sublime da vida” (Carrascoza, 2022, p. 257).

A biografia do autor é acompanhada de uma foto de Carrascoza envolto em sombras azuis. “(...) ele mira dentro de si o trecho da floresta - vanprash! - de onde veio e, como todos nós, para onde um dia voltará”. A explicação do azul do inventário é assim sugerida.

Já nas primeiras páginas do romance, vemos que um outro procedimento literário será usado pelo autor. Trata-se do que chamamos da invasão do processo na obra, sob diferentes formas. Primeiro destacamos a presença literária da editora na obra. Ele começa com a Dedicatória, já discutida. Depois, o título Ponto de partida é seguido por Contrato. “De um lado a Vida, a contratante; do outro lado ele, o contratado”. Voltamos à poeticidade de sua narrativa, agora adicionada de um discurso típico da relação profissional entre escritor e editora, que, com seus parágrafos e cláusulas contratuais, são um amontoado de clichês. “E, no entanto, geram obras inegavelmente ímpares” (p. 9), trazendo para a ficção a discussão dos filtros com as marcas das singularidades de cada autor, aspecto mencionado anteriormente. Ainda nesse contexto da entrada de questões editoriais no romance, o segmento 978 (p. 157) chega aos números iniciais do ISBN de obras literárias.

Há outros aspectos de processos de criação levados para o romance. Inventário do azul se dá em conversas do narrador sobre processos de criação e, mais especificamente, sobre o processo de escritura do livro que estamos lendo. Estamos falando de procedimentos metalinguísticos relativos ao projeto literário, crítica e rasura.

Quanto aos princípios direcionadores do processo, o segmento “Poética” abre com o seguinte comando: “(...) não narrar fatos: descrever quadros de sentimentos” (Carrascoza, 2022, p. 232). O título já nos remete à entrada do relato sobre o processo de construção de obras em geral no romance e, em seguida, voltamos a uma das questões que movem seu projeto literário: a escrita do sentimento, já discutida.

Nesse contexto, há, também, duas referências à leitura de críticos, parte integrante de todos os processos que têm o desejo de serem lidos. Sob o título de “Crítica”, o narrador afirma:

Ela, a crítica, reclamou que se escondia atrás de textos fragmentados e sublinhou a opção dele (equivocada e limitante) por escrever unicamente contos ou romance com capítulos curtos, como se a vida fosse longa e só uma história comprida, com texto espichados, fosse capaz de abrigar a imensidão da existência (Carrascoza, 2022, p. 188).

A mesma questão aparece no segmento chamado “Uma página”:

Os estudiosos, em consenso, afirmam que ele é um corredor de cem metros: percorre bem pequenas distâncias, ou, em outras palavras, escreve apenas histórias breves. Mas a grande literatura é para fundistas, atletas especializados em longas distâncias.

Mesmo em seus romances, afirmam, os capítulos são curtos: os personagens, embora esféricos, são (em parte) eclipsados, pedem alargamentos no tempo-espaço diegético, mas não são atendidos (Carrascoza, 2022, p. 234).

E termina dizendo que “[n]este ponto, aceita seu fracasso, embora não pela régua deles” (p. 234). A relação do narrador com a crítica é, assim, levada para a ficção, destacando possíveis aspectos a partir dos quais a obra que estamos lendo poderia ser avaliada.

Passamos agora para a rasura que é parte integrante de todos os processos de escritura, deixando a natureza experimental dos percursos, na medida em que hipóteses literárias são testadas e os textos gerados são ajustados de acordo com uma grande diversidade de critérios. Por vezes, os estudos literários supervalorizam a rasura, gerando, por exemplo, incansáveis classificações de tipos de rasuras e, ao mesmo tempo, resultados de pesquisa só com comparações, também exaustivas, de diferentes rascunhos, sem entrar ou se aprofundar nas questões que movem os processos estudados. Tem-se a falsa impressão de que só as rasuras são responsáveis pela criação literária.

Em o Inventário azul, Carrascoza estabelece um jogo complexo com a rasura, deixando para o leitor palavras, parágrafos ou segmentos inteiros, com o típico marcador de rasuras, ou seja, o risco. É cortado, mas é mantido e lido, deixando rastros do desejo do corte, em grande quantidade. Sabemos que pode ter passado por um processo de reescrituras para decisão do que seria mantido no romance publicado; no entanto, na exploração da rasura como recurso literário, muitas novas camadas do processo são reveladas por meio desse expediente. Vejamos alguns exemplos.

No segmento “Retrato”, depois do relato da morte do pai - “A mãe, dias depois do sepultamento, vendeu o velho carro (precisavam do dinheiro) e doou ao asilo da cidadezinha as roupas e os calçados” (Carrascoza, 2022, p. 155) -, podemos levantar a hipótese da situação financeira dos personagens, já conhecida pelo leitor, ou da sensação de repetição de algo já dito, como vimos do diálogo de editor com escritor.

Passemos para o segmento “Receita”: “Repetir, repetir, repetir. A mesma lembrança. Até que a fricção das tristezas produza uma centelha de alegria”. (p. 17). Interessante observar no contexto do personagem/narrador do inventário, fortemente marcado de modo mais significativo por dores e cicatrizes, a alegria quase apagada, porque foi rasurada mas mantida.

Vejamos, agora, dois segmentos que foram inteiramente riscados. “Real Uma lembrança, a memória pode reacender ou apagar. Mas não podemos desviver o vivido. O que se tornou real jamais será novamente irreal. É para sempre. (p. 184). Em uma possível leitura, poderíamos dizer que não podemos apagar definitivamente o real, ele insiste também no texto, porque a rasura não impede a leitura.

Outro segmento cortado tem o título de “Cura”. “Da série Informações Simples, Tão simples que não constam no Contrato: a vida é ferida que não tem tratamento. Quando se torna chaga máxima, sobrevém com a morte a cura.” (p. 311). Ao ser rasurada a cura, falamos, de algum modo, da ausência de cura para a morte, duramente enfrentada ao longo de todo o relato do inventário. Estamos trazendo possíveis leituras que podem ser adensadas por muitas outras. Trazendo novas interações, observamos que Carrascoza posta em seu Facebook no dia 29/05/2022 esse segmento rasurado.

Por meio de um olhar mais amplo, é interessante observar a incorporação da rasura, de modo explícito, como procedimento literário no âmbito do projeto de Carrascoza. Quando discutimos a relação das pesquisas de processo de criação com a crítica literária, destacamos que, após o acompanhamento dos percursos, quando as obras são relidas, são ressignificadas. No caso de Inventário azul, com a incorporação da sobreposição de diferentes leituras com essas quase rasuras, entramos mais uma vez na multiplicação característica do projeto desse escritor, pois o próprio romance incorpora em sua materialidade a proliferação de obras e de ressignificações. O projeto literário ganha outras camadas de complexidade, levando essa multiplicação também para o leitor. Chegamos ao fim do acompanhamento da diluição de fronteiras entre processo e obra, assim como foi para a materialidade da história contada em Inventário azul. É importante destacar que tal característica está em diálogo com alguns procedimentos da experimentação contemporânea observada para além dos limites da literatura.

Considerações finais

O artigo propôs uma abordagem pioneira para a obra de Carrascoza a partir de seus arquivos de criação. Sob o ponto de vista da proposta teórica, houve o adensamento do conceito de criação como rede, ao estabelecer diálogo com o sujeito em comunidade, de Colapietro, e a polifonia, de Bakhtin. As vozes bakhtinianas tornam a textura do sujeito em comunidade de Colapietro mais complexa e ampliam as reflexões teóricas sobre processos criativos. Nesse contexto, é interessante observar a ausência de pesquisas que estabeleçam relações com o pensamento de Bakhtin no âmbito dos estudos dos arquivos de criação. Temos aqui um embrião que merece ser ampliado.

Essa visão de criação, por sua vez, está estreitamente relacionada ao modo como Carrascoza se coloca publicamente em relação a seu processo, ou seja, sua postura como escritor. Destacamos, ao longo de nossas reflexões sobre seus arquivos, a imersão nas práticas comunicativas de maneira ampla, em outras palavras, a relação com outros para além dos diálogos ou referências literárias. A interlocução com os editores trouxe para as discussões sobre o processo um outro campo de possibilidades criativas.

O estudo de seus arquivos trouxe, também, à tona um projeto literário “(...) que fosse capaz de abrigar a imensidão da existência” (Carrascoza, 2022, p. 188), como diz o narrador de Inventário do azul, ao falar da possível postura de críticos diante dessa obra que estamos lendo. Essa citação já nos leva ao modo como o escritor rompe as fronteiras entre processo e obra nesse livro, em diálogo com a experimentação contemporânea.

Quanto a seus procedimentos de criação, destacamos o que aqui chamamos de proliferação de sua rede a partir de dispositivos disparadores de multiplicidade, que ganham sua ficcionalização, em Inventário azul, na incorporação da rasura na obra entregue ao público. E voltamos à sensação de que tal procedimento parece ser sua forma de sobrevivência como escritor.

  • 1
    Ver Salles, (2021)SALLES, Cecília Almeida. Processo de criação como práticas geradas por complexas redes em construção. Scriptorium, v. 7, n. 1, p. 1-12, 2021. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/scriptorium/article/view/42169/27292. Acesso em: 4 fev. 2023.
    https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs...
    .
  • 2
    Os estudos que nasceram no ITEM/CNRS (Institut des Textes et Manuscrits Modernes) nos anos de 1960 com o nome de Crítica Genética.
  • 3
  • 4
    Segundo Deleuze e Guattari, “[...] o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga (...). Contra os sistemas centrados (e mesmo policentrados), de comunicação hierárquica e ligações preestabelecidas, o rizoma é um sistema a-centrado não hierárquico e não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato central, unicamente definido por uma circulação de estados” (1995DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. v. 1. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora34, 1995., p. 14).
  • 5
    A abdução é uma formulação frágil, ou seja, um ato de inferência que adota uma hipótese em estado experimental (Peirce, v. 6, §525 [1931-1935PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers. Editado por Charles Hartshorne e Paul Weiss. USA: Harvard Press [1931-1935], v. 1-6.]) a ser testada. É o método de formar uma previsão geral sem nenhuma certeza de que será bem-sucedida, podendo, ao longo do processo de testagem, se provar errada. É um ato de insight arraigado em hipóteses prévias e extremamente falível (Peirce, v. 5, §181 [1931-1935PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers. Editado por Charles Hartshorne e Paul Weiss. USA: Harvard Press [1931-1935], v. 1-6.]).

REFERÊNCIAS

  • AMORIM. Marilia. Memória do objeto - uma transposição bakhtiniana e algumas questões para a educação. São Paulo: Bakhtiniana, v. 1.n. 1, p. 8-22, 1º sem. 2009. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/2993/1927 Acesso em: 4 fev. 2023.
    » https://revistas.pucsp.br/index.php/bakhtiniana/article/view/2993/1927
  • ANDRADE, Mário. O banquete São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1989.
  • BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução, notas e prefácio de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 1981.
  • BAKHTIN, Mikhail. O autor e o herói. In: BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 23-220.
  • BECO DAS PALAVRAS. Elegia do irmão. In: Beco das palavras 18 abr. 2019. Disponível em: https://becodaspalavras.com/2019/04/18/elegia-do-irmao/ Acesso em: 4 fev. 2023.
    » https://becodaspalavras.com/2019/04/18/elegia-do-irmao/
  • CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
  • CARRASCOZA, João Anzanello. Catálogo de perdas. Fotografias de Juliana Monteiro Carrascoza. São Paulo: SESI-SP Editora, 2017.
  • CARRASCOZA, João Anzanello. Tramas de meninos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2021.
  • CARRASCOZA, João Anzanello. Inventário do azul Rio de Janeiro: Alfaguara, 2022a.
  • CARRASCOZA, João A Anzanello (org.). O mimetismo publicitário: product placement, arte e consumo. São Paulo: Pimenta Cultural, 2022b.
  • COLAPIETRO, Vincent Michael. Peirce e a abordagem do self: uma perspectiva semiótica sobre a subjetividade humana. Tradução Newton Milanez. São Paulo: Intermeios, 2014.
  • COLAPIETRO, Vincent Michael. Os locais da criatividade: sujeitos fissurados, práticas entrelaçadas. In: PINHEIRO, Amálio; SALLES, Cecília Almeida. (org.). Jornalismo expandido: práticas, sujeitos e relatos entrelaçados. São Paulo: Intermeios, 2016.
  • CONEGLIAN, Matheus. Onde a escrita nasce. In: Vida simples 2020. Disponível em: https://vidasimples.co/vida-emocional/onde-a-escrita-nasce/ . Acesso em: 4 fev. 2023.
    » https://vidasimples.co/vida-emocional/onde-a-escrita-nasce/
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. v. 1. Tradução Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora34, 1995.
  • KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na arte. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo, Martins Fontes, 1990.
  • LIVRARIA DA VILA. Um amor eterno. In: Blog Livraria da Vila 2019. Disponível em: https://blog.livrariadavila.com.br/um-amor-eterno/ Acesso em: 3 out. 2023.
    » https://blog.livrariadavila.com.br/um-amor-eterno/
  • MIRANDA, Helder Moraes. Entrevista João Anzanello Carrascoza: “escrever é alternar luzes e sombras”. In: Resenhando: Portal de Cultura e Entretenimento. 8 jan. 2023. Disponível em: https://www.resenhando.com/2023/01/entrevista-joao-anzanello-carrascoza.html?fbclid=IwAR0B06WkhNypf2WyD6lY2lwsucCHzB_d8__-4nJK-dxOnUwc35OHppe6RAg Acesso em: 4 fev. 2023.
    » https://www.resenhando.com/2023/01/entrevista-joao-anzanello-carrascoza.html?fbclid=IwAR0B06WkhNypf2WyD6lY2lwsucCHzB_d8__-4nJK-dxOnUwc35OHppe6RAg
  • MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. In: PARENTE, André. (org.). Tramas da rede Porto Alegre: Sulina, 2004.
  • PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers Editado por Charles Hartshorne e Paul Weiss. USA: Harvard Press [1931-1935], v. 1-6.
  • PEIRCE, Charles Sanders. Philosophical Writings New York: Dover Publication Inc., 1955.
  • PEIRCE, Charles Sanders. Collected Papers Editado por Arthur W. Burks. Cambridge: Harvard Press, 1958. v. 7-8.
  • PERLATTO, Fernando. O lirismo da literatura de João Anzanello Carrascoza. Revista Escuta, 12 mar. 2018. Disponível em: https://revistaescuta.wordpress.com/2018/03/12/o-lirismo-da-literatura-de-joao-anzanello-carrascoza/ Acesso em: 4 fev. 2023.
    » https://revistaescuta.wordpress.com/2018/03/12/o-lirismo-da-literatura-de-joao-anzanello-carrascoza/
  • SALLES, Cecília Almeida. Processo de criação como práticas geradas por complexas redes em construção. Scriptorium, v. 7, n. 1, p. 1-12, 2021. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/scriptorium/article/view/42169/27292 Acesso em: 4 fev. 2023.
    » https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/scriptorium/article/view/42169/27292
  • VILA CULTURAL. Um amor eterno [Entrevista com João Anzanello Carrascoza]. In: Auroraeco 14 mar. 2019. Disponível em: https://www.auroraeco.com.br/blog/um-amor-eterno/ Acesso em: 4 fev. 2023.
    » https://www.auroraeco.com.br/blog/um-amor-eterno/

Declaração de disponibilidade de conteúdo

Os conteúdos subjacentes ao texto da pesquisa estão contidos no manuscrito.

  • Pareceres

    Tendo em vista o compromisso assumido por Bakhtiniana. Revista de Estudos do Discurso com a Ciência Aberta, a revista publica somente os pareceres autorizados por todas as partes envolvidas.

Parecer I

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Parecer I

A investigação proposta pelo manuscrito é um tanto singular, uma vez que visa analisar elementos constitutivos do percurso de criação de Carrascoza. Essa abordagem documental quase arqueológica é bem interessante e, de certa forma, se aproxima da perspectiva dialógica de Bakhtin. Em relação ao objeto analisado, lê-se: "Os objetos de pesquisa desta reflexão, a partir do conceito de criação como rede, serão as diferentes versões do livro Tramas de meninos (2021), da editora Alfaguara, geradas pelo diálogo com os editores, por ser a documentação que ofereceu mais dados sobre seu processo de criação. Tal discussão ganhará alguns desdobramentos em diálogo com seu livro Inventário do azul (2022a)". No entanto, as análises se debruçam prioritariamente na composição do romance Inventário do Azul e em falas de Carrascoza em entrevistas. Entendo, assim, que, embora o autor do manuscrito tenha acesso às diferentes versões de Tramas de Meninos, esses documentos foram pouco abordados nos resultados oferecidos. Não considero que isso seja algo para não aprovar a publicação, no entanto é importante rever o tom que Tramas ganha na apresentação da pesquisa. Rever a forma de referenciar as entrevistas online. Refinar a alusão ao conceito de "criação como rede em diálogo com Colapietro (2014), Calvino (1990) e Bakhtin (1981)". Da forma que se apresenta em algumas passagens do texto, parece que os 3 autores dialogaram sobre tal conceito. Gera certa ambiguidade. Sugiro uma pequena revisão linguística relacionada a poucos erros de digitação e ao uso da vírgula. Como dito, sugiro uma nova leitura do manuscrito por parte do autor, ajustando o papel que a obra Tramas de meninos tem na proposta, bem como buscando alguns ajustes linguísticos para a versão final. Ainda, vale refinar a alusão ao conceito de "criação como rede em diálogo com Colapietro (2014), Calvino (1990) e Bakhtin (1981)". Da forma que se apresenta em algumas passagens do texto, parece que os 3 autores dialogaram sobre tal conceito. Gera certa ambiguidade. CORREÇÕES OBRIGATÓRIAS [Revisado]

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    20 Ago 2023

Parecer IV

Sobre o autor do parecer SCIMAGO INSTITUTIONS RANKINGS

Sem dúvidas, o manuscrito foi ajustado conforme o proposto no parecer primeiro.

  • recomendação: aceitar

Histórico

  • Parecer recebido em
    20 Out 2023

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2023
  • Aceito
    01 Nov 2023
LAEL/PUC-SP (Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Rua Monte Alegre, 984 , 05014-901 São Paulo - SP, Tel.: (55 11) 3258-4383 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bakhtinianarevista@gmail.com