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Resenha de Cassin, B. Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-en-ciel (2018)

Cassin, B. (. 2018. ). Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-en-ciel. .Paris: .Fayard, .

Em 1995 a filóloga e filósofa Barbara Cassin publica seu livro mais ousado, O efeito sofístico. O livro apresentado aqui é uma continuação mais livre deste primeiro estudo muito minucioso e rigoroso. Quando dizer é verdadeiramente fazer. Homero, Górgias e o povo arco-íris (2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard.) é um livro menos acadêmico e técnico e ao invés de desenvolver outros planos de seu trabalho (psicanálise, tradução, avaliação), põe em cena Homero, Górgias e o povo arco-íris. Essas cenas convergem em uma mesma questão: “quando se faz coisas com palavras, o que se torna a verdade?” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.212). Esta resenha pretende fazer ver o modo como este livro responde esta questão. Barbara Cassin parte do inventor do discurso que faz coisas com palavras (Homero), passa pelo discurso que põe às claras o alcance e ilumina a performance discursiva (Górgias), e chega na Comissão de Verdade e de Reconciliação presidida por Desmond Tutu na África do Sul.

O título do livro de Barbara Cassin é uma saudação não só ao livro do filósofo britânico John Austin escrito para uma série de conferências realizadas em 1955 em Harvard ― How to do things with words (Austin, 1962AUSTIN, J. (1962) How to do things with words. Oxford. Oxford Univesity Press.) ―, mas principalmente ao título da versão francesa deste livro: Quand dire, c’est faire (Austin, 1970AUSTIN, J. (1970) Quand dire, c’est faire. Tradução Gilles Lane. Paris. Seuil.). O título da versão brasileira é muito próximo ao da francesa: Quando dizer é fazer (Austin, 1990AUSTIN, J. (1990) Quando dizer é fazer. Tradução Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre. Artes Médicas.). Feita esta referência aos títulos é preciso justificar o “verdadeiramente” que, segundo a própria autora, é um pouco impertinente porque oscila entre o “clichê” e um “à medida da verdade”; esse advérbio caracteriza o verbo “fazer” porque exagera e tem como efeito “produzir um curto-circuito” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.8) entre o performativo inventado por John Austin e o logos pensado e praticado pela sofística. Barbara Cassin aproxima John Austin e a sofística a partir de uma pretensão comum. O sofista encarna, nas palavras de Friedrich Nietzsche, a “pretensão de poder dizer tudo” (Nietzsche, apud. Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.8), já John Austin acredita ter operado uma “revolução em filosofia” que “se alguém quiser considerá-la a maior e mais saudável das revoluções da história da filosofia, não será, se pensarmos bem nisso, um exagero” (Austin, apud. Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.8). Assim, o título do livro de Barbara Cassin revela algo que a filosofia clássica “não soube ou não quis levar em consideração enquanto tal” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.9) e que está em toda parte no livro, a saber, o poder performativo da linguagem ou a terceira dimensão da linguagem. A tradição se limitou a considerar duas dimensões: a ligada ao verdadeiro e ao falso e a ligada à persuasão. A primeira dimensão da linguagem fala de e está do lado do constatativo do discurso ordinário que descreve ou relata um estado de coisas, ela está ligada ao critério de verificabilidade (locutório; verdade). É a dimensão da percepção, da ciência e da filosofia. Eis alguns exemplos de enunciados deste tipo: “o papel é branco”, “dois mais dois são quatro”, “os homens nascem livres e iguais em direitos”. A segunda dimensão linguagem fala a e está do lado da retórica que quer convencer, persuadir, impedir, surpreender, induzir ao erro (perlocutório; persuasão). Um exemplo: “a bela Helena é inocente”. Já a terceira dimensão da linguagem fala por falar. Exemplos: “a sessão está aberta”, “eu me desculpo”. Esta é a dimensão que John Austin chama de performativa, que Novalis chama de logologia e que Lacan delineia como um falar de pura perda (ilocutório; felicidade). É a dimensão que se refere à felicidade, à efetuação, à realização, àquilo que Barbara Cassin chama de “efeito-mundo”.

As fronteiras entre estes três tipos linguagem são porosas e o que une esses três usos é a performance discursiva. Para entender isto é preciso diferenciar performance e performativo e ver o que daí resulta. A performance deve ser entendida através da aproximação do discurso sofístico, do happening, do event e do improviso característico da estética contemporânea. Por isto o discurso sofístico é ao mesmo tempo uma façanha e uma obra-prima. Já o performativo é a dimensão do discurso que faz coisas com palavras, que transforma ou cria o mundo; ele tem um “efeito-mundo”. Para fazer convergir estes dois conceitos é preciso raciocinar em dois tempos: por um lado, Barbara Cassin se baseia na sofística e identifica algo como “a performance antes do performativo” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.14), o que implica pensar a retórica não só na avaliação de seus diversos usos, mas também como uma arte do discurso ligada à terceira dimensão da linguagem. Por outro lado, ela faz entender que a realização da felicidade que está em jogo não procura a felicidade sob a verdade. A verdade, aqui, é apenas um caso particular da felicidade e somente quando o performativo é bem-sucedido a descrição é verdadeira. Isto vai além do simples performativo porque realiza uma “performatividade alargada à performance” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.113).

Barbara Cassin reencontra o conceito inventado por John Austin em épocas diferentes e assim elabora uma genealogia do performativo cuja cena primitiva está em Homero. O enunciado homérico não descreve, mas age, faz ou produz um acontecimento que estrutura o que vem depois, ele se preocupa com a felicidade e para ele o dizer é o único fazer possível. O contexto homérico é pagão: ao mesmo tempo de fala e de permeabilidade e comparação entre o universo, os deuses e os homens. Se Ulisses fala como se fosse um deus, o poder de seu discurso é como se fosse o de um autor quase divino. Na Odisséia (Canto VI) Ulisses está dormindo escondido em um arbusto na terra dos Feaces. Ele foi o único a escapar do naufrágio e da fúria de Poseidon. Nesse meio-tempo Atena incita Nausícaa, filha do rei, a lavar roupas no rio com suas companheiras: elas se alimentam, jogam bola, até que a bola cai em um arbusto perto do lugar em que Ulisses está. Ele acorda, se pergunta se são selvagens ou hospitaleiros, cobre sua nudez, sai como um leão confiante de sua pujança e se detém diante de Nausícaa. “E Ulisses refletiu se haveria de endereçar / súplicas à moça de lindo rosto, agarrando-lhe os joelhos, / ou se deveria antes ficar onde estava e suplicar-lhe como doces / palavras, para que ela lhe desse roupas e indicasse a cidade. / Enquanto pensava foi isto que lhe pareceu mais proveitoso: / suplicar-lhe do lugar onde estava com doces palavras, com medo / de que ao agarrar-lhe os joelhos o coração da jovem se zangasse. / De imediato proferiu um discurso doce, mas proveitoso: ‘Ajoelho-me perante ti, ó soberana’” (Homero, 2003LOURENÇO, F. (trad.) (2003) Homero. Odisséia. Lisboa, Cotovia., p.110). Em seu discurso ele se pergunta se a moça é deusa ou mortal, elogia pai, mãe, irmãos, futuro marido e diz sentir reverência só de olhá-la e compara a alegria de seu coração com a alegria que sentiu um dia ao ver uma palmeira que se erguia no ar perto do altar de Apolo em Delos. No meio do discurso ele diz: “Assim me espanto e me admiro perante ti; mas receio / tocar-te os joelhos, pois é penoso o mal que me sobreveio” (Homero, 2003LOURENÇO, F. (trad.) (2003) Homero. Odisséia. Lisboa, Cotovia., p.111). Ao invés de se ajoelhar e tocar nos joelhos da moça como um suplicante faria, ele diz que ajoelha e que toca em seus joelhos porque tem medo de tocar-lhe os joelhos. Neste episódio trata-se de “falar no lugar de fazer, falar para melhor fazer, falar quando é a única maneira de fazer” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.30). Esse discurso é um ato performativo que substitui o ato real pelo ato de fala.

O livro deixa claro que até os filósofos eram homerófonos, mas isto não é uma característica isolada da filosofia, pois “a cultura grega é por excelência palimpséstica” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.52). Ora, se um texto é sempre um texto escrito sobre outros textos ou costurado por outros textos, o efeito que se pode tirar disto é enorme, a saber, o obscurecimento da “supremacia ontológica constitutiva da verdade” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.59). Com Homero não se vai do ser ao dizer como faz a ontologia, mas do dizer ao ser como faz a logologia. O ponto de partida de Barbara Cassin são as palavras e não aquilo que é pretensamente primeiro e original. Ela parte do segundo e do fabricado e conclui que o ser é um efeito do dizer. As coisas não são vistas como aparições, mas sim como fatos fabricados e ficções. Por isto Homero é tão especial: ele ensina a amar o logos, “ensina a falar com eficácia”, “ensina a produzir um mundo ao falar. O sonho grego” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.68).

A segunda cena primitiva do performativo está na Bíblia: “‘Haja Luz’, e houve luz” (Gênesis 1:3); outro exemplo: “Tomai e comei, isto é meu corpo” (Mateus 26:26). Esse é o performativo do monoteísmo ou das religiões abraâmicas (o cristianismo, o judaísmo, o islamismo). Esse performativo está ligado à encarnação do logos e à sua fala sacramentaria; ele funciona graças à crença em um deus transcendente que confere a quem fala a autoridade necessária para produzir um discurso sacramentário: “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mateus 28:19). A terceira idade é a do performativo da idade moderna ou então o performativo mediado pela sociedade, secularizado, sociologizado. Os exemplos deste performativo ― “a sessão está aberta”, “batizo este barco como” ― revelam o fato de que a pessoa que profere está investida de autoridade jurídica que implica uma posição e uma condição convencionalmente garantidas pela sociedade. Onde estaria o ponto em comum das três idades do performativo? Precisamente na interpretação da enunciação como um ato.

Por aqui se puxa o fio do discurso sofístico e se explicita não só quem performa e o que foi performado, mas também a convenção e a invenção. O paradigma é o Elogio de Helena de Górgias. Vale lembrar que Górgias elogia a mulher tradicionalmente responsabilizada pela guerra de Tróia, além disto, ele faz esse elogio de improviso. O ponto central está nestas duas frases: “O discurso é um grande soberano que com o menor e mais inaparente dos corpos performa os atos mais divinos. De fato, ele tem o poder de colocar fim no medo, de afastar a dor, de produzir a alegria e de aumentar a piedade” (Górgias, apud. Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.79). Com Górgias duas coisas ficam claras: “o primado da felicidade sobre a verdade” e o fato de que o discurso é “capaz de produzir uma Helena inocente” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.80). Como não perceber o alcance e o efeito político deste discurso? Assim, se comunhão de valores é importante, mais importante ainda é a criação de valores novos.

Barbara Cassin lança mão da Comissão de Verdade e de Reconciliação presidida por Desmond Tutu na África do Sul para introduzir o performativo político. Vale lembrar que o regime de segregação racial chamado apartheid durou quarenta e seis anos (1948-1994) e que depois de vinte e oito anos preso Nelson Mandela foi eleito presidente em 1994. Foi isto que tornou possível a nova constituição e o processo de reconciliação. Não se estabeleceu um tribunal presidido por um juiz ou um júri para julgar crimes; não se tratava de instruir processos ou de proferir penas. O que houve foi a formação de uma comissão soberana presidida por um prêmio Nobel da paz; a Comissão ouvia depoimentos e com a ajuda de um Comitê de anistia recomendava anistias; nenhum tribunal internacional poderia colocar em questão suas decisões. Resumindo: foi esse mecanismo ou dispositivo que produziu verdade e reconciliação. Para Barbara Cassin, essa Comissão “é a chave do dispositivo inventado pela África do Sul para evitar o banho de sangue previsível ao fim do apartheid e para dar corpo ao povo arco-íris” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.143). O objetivo da Comissão era aproximar vítima e criminoso em uma situação civil para apurar a verdade dos fatos, para reparar as vítimas e anistiar atos confessados. Apurava-se a violação através de narrativas das vítimas e das confissões dos crimes e assim havia troca da punição pela anistia, ficando a pessoa anistiada obrigada a testemunhar contra as que não confessaram. Depois de dois anos de trabalho foi entregue ao presidente um Relatório que propunha indiciamento criminal de autoridades (um ex-presidente e um bioquímico), de instituições políticas (o partido e organizações), de empresários e empresas. Mais de sete mil criminosos entraram com pedido de anistia, mas pouco mais de 1.100 foram anistiados, e isto, por incompleto ou por falso testemunho.

O livro mostra que essa Comissão pôs em relevo e reivindicou a terceira dimensão da linguagem e que seu objetivo era suprimir a eternidade do ódio com uso político dos crimes cometidos. A questão é saber “como fazer virar um fenômeno em seu contrário pela força da linguagem” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.142). O Relatório, com sua linguagem própria, também formula esta questão: “como assegurar uma transição razoavelmente pacífica da repressão à democracia?” (Relatório, I, 22, apud., Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.146). Este dispositivo não está do lado da justiça punitiva, mas da justiça restaurativa, reparativa, transicional. Barbara Cassin repertoria três condições para “se passar da guerra à reconciliação, portanto para tratar o ódio” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.149-50): uma política da memória, uma política da justiça e uma política da fala. A política da memória deve assumir a perspectiva da construção de um passado comum e de uma comunidade nova, a Nação arco-íris (a sociedade sul-africana depois do apartheid). Assim, a liberdade individual da pessoa que cometeu crime só era concedida em troca da “verdade comunicada, comunizada, posta em comum, apropriada por uma nova comunidade” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.162). A anistia só era concedida quando a verdade se tornava pública, e era nesse momento que a pessoa criminosa colaborava para fundar a nova nação. O que importava era criar “verdade bastante para” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.163) se poder viver junto novamente. A Comissão transforma, então, um mal em um bem e o errado em direito, ela faz passar “do crime ao conhecimento que permite cuidar do passado e construir o futuro: pela simples aplicação do dispositivo legal, há transformação radical de um mal individual em um bem político” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.175). É claro que nesta situação houve mudança geral de sentimento na nação, mas o importante é a transformação de um “estado menos bom em um estado melhor”. Daí a relação da política com a fala: uma vez que se considera o homem um animal político, resta que a Comissão “rehumanisa todos que comparecem ao dar-lhes a palavra” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.177), é isto que promove catarse e terapia. Aqui, a narrativa tem a função de curar. O que se torna a verdade neste nível da análise? Ela se torna “o ingrediente essencial do anticéptico social” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.180). Trata-se de uma doença que se cura com a fala, e por isto foi preciso até mesmo uma espécie de responsabilidade semântica por parte da Comissão. O discurso do apartheid era um “mal remédio” e explorava apenas o lado “veneno do pharmankon”; já a Comissão forneceu um “contra-veneno” (Cassin, 2008, p.184). Não é só isto, afinal, uma vez que se considera a linguagem naquilo que ela tem de equívoco e performático, resta que considerar as palavras pelas palavras termina conduzindo a uma “boa higiene discursiva” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.185) que não deixa escapar o fato de dizer o que se diz e ouvir o que se ouve. A linguagem faz coisas, ela age em quem fala e em quem ouve. Ou como diz o Relatório da Comissão: “A linguagem, discurso e retórica, faz coisas” (Relatório, apud. Cassin, 2018, p.211).

O que é dizer a verdade? Barbara Cassin cita Hannah Arendt: “Quem diz o que é conta sempre uma história, e nesta história, os fatos particulares perdem sua contingência e adquirem uma significação humanamente compreensível” (Arendt, apud. Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.228). Que fique claro que não se trata de considerar uma verdade do ponto de vista da filosofia, mas sim uma verdade do ponto de vista da narrativa e, nesta, a parte de ficção que lhe é constitutiva. Como entender que a aplicação de um dispositivo legal e a transformação de um mal moral em bem político impliquem a verdade? Primeiramente é preciso dizer que este relativismo não estabelece uma diferença entre ser e aparecer, em seguida, que há uma recusa do verdadeiro como instância suprema e que, enfim, mesmo assim não se trata de subjetivismo. Basta ressaltar o “comparativo”, o “melhor”, e frisar a tarefa assumida: operar a transição de um estado menos bom a um estado melhor. Notem que se trata de um “melhor para”, de um “útil para” alguém, cidade, pais, planeta, e isto, para uma determinada circunstância e não em outra. Inicialmente passa-se da bivalência entre o verdadeiro e o falso para o comparativo “mais verdadeiro”, em seguida, disto para um “melhor” e, por fim, um “melhor para”. Por isto a Comissão fez papel de médico para o qual não importa tanto a origem da doença, mas o resultado que visa à saúde. O que se diria do médico que não procura curar, mas tornar seus doentes ainda mais doentes? Seja como for, trata-se de relacionar certa quantidade de verdade com a saúde: “a verdade é produzida pelo processo de fala como um ponto de chegada, provisório e suficiente” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.193). A Comissão não buscava a verdade pela verdade, mas a verdade pela reconciliação. A verdade, aqui, é aquele mínimo fornecido para que possa haver um consenso sobre o passado, e para isto bastava “a eficácia de uma quantidade suficiente de verdade” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.188). Como não se trata da verdade no sentido filosófico, vale deixar no ar o traço das quatro ideias de verdade aqui presentes: a factual, a pessoal e narrativa, a social e a que restaura e cura. A verdade que interessa a Comissão não é a “Verdade verdadeira”, não é a fixação da “verdade histórica”, não é a produção de uma “verdade de tipo científico e epistemológico”. A Comissão “reivindica uma verdade multidimensional, plural, diferenciada” (Cassin, 2018, p.194).

O livro explora três mundos tradicionalmente considerados heterogêneos: a poesia, a retórica e a política. Trata-se de um livro que considera esses mundos na vida do dia a dia. Tudo se passa como se na vida de todas as pessoas a poesia ainda tivesse o poder de encantar e cultivar, a retórica de guiar as interações e a política fornecesse o ambiente de imersão humana na exata proporção do peixe n’água. O livro ainda aborda uma questão importante: uma vez que é possível fazer coisas com palavras, o que impediria alguém fazer qualquer coisa com palavras? Não se trata, evidentemente, de levantar novas tábuas de salvação. Barbara Cassin recusa escolher entre trazer de fora um valor para renovar uma crença ou aceitar a tranquilidade interior da norma universal. Para ela a tarefa é “continuar a pensar ― cada pessoa, uns e outros, todos ―, refletir, escolher, comparar, cruzar, inventar, sonhar, julgar. Julgar, não como uma terceira solução miraculosa, mas com todas as soluções confundidas” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.213). É o juízo de cada pessoa que deve decidir o “melhor para” e como. Barbara Cassin cita uma passagem decisiva de John Austin que deve servir de parâmetro: “como a liberdade, a verdade é o estrito mínimo ou um ideal enganador” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.217). Na poesia, na retórica e na política a verdade não é encarada como na filosofia, ou seja, em seu ideal de exatidão e adequação entre o que é dito e aquilo que é. Para Barbara Cassin, assim como para John Austin, a verdade deve ser “minorada” (Cassin, 2018, p.218). Isto não quer dizer que agora se pode aproveitar e mentir à vontade ou praticar uma falsidade deliberada. Uma coisa é reaprender a amar a ficção e perceber, na medida do possível, que “a ficção é sempre uma mentira que se sabe mentira”, e que isto exige, justamente, “discernimento, cultura e gosto” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.236). Outra coisa completamente diferente é “uma mentira que recusa seu estatuto de mentira e exige crédito”, e, além disto, quer se fazer passar pela verdade de fato. Neste contexto não há como negar o abalo sofrido pelas verdades que dependem da experiência e só são verdadeiras em um contexto determinado. Mas para quem quer saber qual é a recita de Barbara Cassin será preciso levar em consideração aquele pensamento de John Austin: não se pode passar sem a verdade, mas a verdade deve estar presente como o estrito mínimo ou ela será um ideal enganador.

Para Barbara Cassin a sofística é o modelo quando se trata de produzir a ficcionalidade do discurso. É graças a isto que a sofística questiona a naturalidade das coisas: a sofística “recoloca em movimento o que se faz passar como natureza inultrapassável do nosso mundo” (Cassin, 2018CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel. Paris. Fayard., p.237). Como em outros livros, ela defende um relativismo consequente que não desemboca na máxima “do falso segue o que se quiser”. Não, de forma alguma! Esse relativismo é consequente justamente porque desemboca em um “melhor para” e porque apela ao juízo de cada pessoa. É verdade que o cenário é o do fim das grandes narrativas, mas é verdade, também, que as pessoas constatam esse esgotamento todos os dias. É verdade, enfim, que isto não deve desesperar nem causar medo, já que se trata de uma aquisição e mesmo um progresso. Mesmo assim é preciso prestar muita atenção, pois as grandes narrativas são muito resilientes e podem ser reinventadas e postas em prática o tempo todo. É por isto que nesse contexto a atitude apropriada é o “juízo de gosto”, ou seja, o domínio da cultura e da arte. Quem decide o “melhor para” e quem decide como e quando colocá-lo em prática? A resposta a esta pergunta deve ser encontrada na ideia de Protágoras que fecha o livro: “E você, queria ou não, deve suportar ser a medida” (Platão, Teeteto, 167 c, apud. Cassin, 2018, p.247).

Bibliografia

  • AUSTIN, J. (1962) How to do things with words Oxford. Oxford Univesity Press.
  • AUSTIN, J. (1970) Quand dire, c’est faire Tradução Gilles Lane. Paris. Seuil.
  • AUSTIN, J. (1990) Quando dizer é fazer Tradução Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre. Artes Médicas.
  • CASSIN, B. (2018) Quand dire, c’est vraiment faire. Homère, Gorgias et le peuple arc-em-ciel Paris. Fayard.
  • LOURENÇO, F. (trad.) (2003) Homero. Odisséia Lisboa, Cotovia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2022
  • Aceito
    01 Set 2022
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