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Contra o movimento e o atomismo: uma comparação entre Nāgārjuna, Vasubandhu e Zenão de Eleia

Against movement and atomism: a comparison among Nāgārjuna, Vasubandhu, and Zeno of Elea

Resumo:

Nas primeiras duas seções deste artigo, apresento alguns dos argumentos que os filósofos budistas indianos Nāgārjuna (ca. séculos II-III) e Vasubandhu (ca. séculos IV-V) usam para mostrar a insustentabilidade lógica dos fenômenos, respectivamente, do movimento e da existência de objetos externos/extramentais. A lógica desses argumentos é comparável à lógica que Zenão de Eleia utiliza nos seus paradoxos contra o movimento e a multiplicidade - e, de fato, no interior dos estudos budológicos contemporâneos, essa comparação já foi sugerida. Na terceira seção, entretanto, pretendo mostrar que os objetivos filosóficos mais imediatos desses três pensadores divergem e são inconciliáveis: enquanto Zenão critica o movimento e a multiplicidade para demonstrar a plausibilidade dos atributos da imobilidade e da univocidade do Ser parmenídico, os paradoxos de Nāgārjuna e Vasubandhu devem ser entendidos no âmbito de projetos filosóficos que, em continuidade com o ensinamento budiano do caminho do meio, pretendem ficar equidistantes das categorias do “ser” e do “não-ser”, evitando ambas. Finalmente, na quarta e última seção, defendo a tese de que os objetivos últimos dos Eleatas e aqueles dos dois filósofos budistas voltam a ser parecidos: Parmênides e o Buda, como também seus respectivos epígonos, buscam promover nos seus seguidores uma “revolução epistêmica” que consiste na passagem de uma visão ordinária da realidade a uma compreensão extraordinária ou suprema, coincidente com a realidade em si e, portanto, verdadeira em última análise.

Zenão; Nāgārjuna; Vasubandhu; movimento; atomismo; multiplicidade

Abstract:

In the first two sections of this paper, I present some of the arguments that the Buddhist Indian philosophers Nāgārjuna (second/third century) and Vasubandhu (fourth/fifth century) use to show the logical untenability of the phenomena of motion and of the existence of multiple external/extramental objects. The logic of these arguments seems to be quite comparable - and actually, within contemporary buddhological studies, it was sometimes compared - to the one that Zeno of Elea uses in his paradoxes against motion and multiplicity. However, in the third section, I try to show that the most immediate philosophical purposes of these three thinkers diverge and are irreconcilable. While Zeno criticizes motion and multiplicity in order to show the plausibility of the attributes of motionlessness and uniqueness of Parmenides’ Being, Nāgārjuna and Vasubandhu’s paradoxes should be understood within philosophical projects that, in tune with the Buddha’s teaching of the “middle way”, try to keep themselves equidistant from the categories of “being” and “non-being”, avoiding both. Finally, in the fourth and last section, I defend the thesis that the ultimate purposes of the Eleatics’ view and those of the two Buddhist philosophers are, once again, comparable. Both Parmenides and the Buddha, as well as their respective epigones, try to promote an “epistemic revolution”, in their followers, which consists in the shift from the ordinary vision of reality to an extraordinary or supreme understanding, coincident with reality in itself and, therefore, ultimately true.

Keywords:
Zeno; Nāgārjuna; Vasubandhu; Motion; Atomism; Multiplicity.

Introdução

Em algumas passagens da sua obra, os pensadores budistas Nāgārjuna (ca. séculos II ou III) e Vasubandhu (séculos IV ou V) afirmam que os fenômenos do movimento e da existência de objetos externos são logicamente infundados, equivalendo a fantasmagorias desprovidas de correspondência com estados de coisas existentes em última análise. Para sustentar suas teses, esses autores recorrem a argumentos que, no interior dos estudos budológicos contemporâneos, foram frequentemente comparados àqueles usados por Zenão de Eleia nos seus paradoxos contra o movimento e a multiplicidade.1 1 Não há nenhuma base textual ou contextual que nos permita supor que os dois autores indianos mencionados, posteriores em muitos séculos a Zenão, tenham tido qualquer tipo de contato com a filosofia eleática (tampouco, de forma mais geral, com a filosofia grega). Consequentemente, as coincidências apontadas devem ser consideradas acidentais ou, possivelmente, devidas a um padrão de pensamento antigo comum às tradições filosóficas grega e indiana, do qual os estudos comparativos dessas duas tradições podem oferecer numerosos exemplos. Nas primeiras duas seções deste artigo, me limitarei a oferecer uma descrição dos argumentos dos dois filósofos indianos, apenas sugerindo algumas possíveis coincidências com a posição de Zenão, mas deixando aos especialistas em filosofia eleática o trabalho de avaliar quão efetivas e profundas podem ser essas coincidências.2 2 A comparação entre pensamento eleático e budista, até onde eu sei, sempre foi proposta por iniciativa de especialistas em filosofia indiana, frequentemente formados no âmbito da tradição filosófica ocidental ou, de qualquer forma, suficientemente familiarizados com ela. Em geral, observemos que, no mundo acadêmico da filosofia, os “ocidentalistas” que buscam algum diálogo com tradições outras em relação à nossa são definitivamente poucos. Isso parece questionável, hoje em dia, em um mundo global e multicêntrico como o atual, que nos cobra uma abordagem definitivamente cosmopolita e intercultural da filosofia.

Na terceira e na quarta seções, abordarei aquelas que podem ser consideradas, com base nas fontes disponíveis, as razões filosóficas mais profundas pelas quais esses três filósofos criticam o movimento, a pluralidade e a existência intrínseca de objetos extramentais.

Em um nível analítico mais imediato, observamos que tais razões parecem diferentes: com efeito, enquanto Zenão critica o fenomênico em defesa de uma concepção da realidade em si como puro ser e ausência de não-ser, tanto Nāgārjuna quanto Vasubandhu procuram seguir o caminho do meio proposto pelo Buda, que busca evitar a senda do não-ser bem como a do ser, isto é, tanto as concepções afirmativas e substancialistas da realidade quanto as negativas e niilistas. Apesar desse intuito comum, entretanto, as trajetórias filosóficas desses dois autores budistas conduzem a resultados aparentemente diferentes: enquanto o raciocínio de Nāgārjuna consegue, de fato, evitar tanto a categoria do ser como a do não-ser, a metafísica de Vasubandhu parece mais uma combinação de ser e não-ser.

Finalmente, na última seção, tentarei mostrar que as três posições filosóficas diferentes alcançadas por esses três autores - que podemos brevemente resumir como o caminho eleático do ser, o caminho madhyamaka do nem ser nem não-ser e o caminho yogācāra (“clássico”) do ser e não-ser - são, em última análise, instrumentos para um objetivo final de caráter epistemológico e, possivelmente, soteriológico: a saber, levar seus seguidores de uma experiência epistêmica ordinária e fenomênica a uma visão extraordinária da realidade em si.

1. Nāgārjuna: “Exame do percorrido, do não percorrido e do que está sendo percorrido” (gatāgatagamyamāna-parīkṣā)

O segundo capítulo dos Versos fundamentais do Caminho do Meio (Mūlamadhyamakakārikā, daqui por diante MMK) de Nāgārjuna é dedicado ao exame dos três aspectos nos quais o fenômeno do movimento pode ser analisado: o “ato de se mover” (gati); o “sujeito do movimento”, “a coisa que se move” ou o “móvel” (gantṛ); e o “espaço no qual o movimento ocorre” (gantavya).3 3 Ao longo da discussão nesse capítulo, Nāgārjuna alterna - às vezes por meras razões métricas - essas três palavras com alguns sinônimos: no lugar de gati, por exemplo, por vezes, encontramos gamana (“moto”) ou gantum (“o mover-se”); gantavya, que, de fato, aparece apenas na estrofe final (2.25) do capítulo, nos versos anteriores e no título do capítulo se apresenta na tríplice dimensão de “espaço [já] percorrido” (gata), “espaço [ainda] não percorrido” (agata) e “espaço que está sendo [atualmente] percorrido” (gamyamānam). Todas essas expressões derivam da raiz verbal √gam, “ir”. Submetidos à investigação pela análise lógica nagarjuniana,4 4 A maneira nagarjuniana de argumentar consiste basicamente na redução ad absurdum das teorias dos seus oponentes: utilizando a lógica deles mesmos, Nāgārjuna mostra como sua posição contém “consequências [indesejadas]” (prasaṅga), que, uma vez explicitadas, invalidam as mesmas posições. esses três aspectos revelam-se “vazios”: isto é, desprovidos de “essência” ou “natureza própria” (svabhāva). Gati, gantṛ e gantavya, em outras palavras, não correspondem a nada de real em última instância - são apenas ideias, que surgem e existem em dependência recíproca5 5 A tese de que nossas ideias não derivam de “coisas”, mas surgem e existem em dependência recíproca - conforme a qual, levando em conta alguns exemplos de Nāgārjuna, a ideia de “outro” depende da ideia de “um”, a de “sujeito” depende da de “objeto”, a de “longo” depende da de “curto” e vice-versa - equivale à versão nagarjuniana, bastante peculiar, da doutrina panbudista da “cooriginação dependente” (pratītyasamutpāda). Para mais detalhes sobre essa teoria, cf. Ferraro (2019). e não a partir de “coisas” ou de processos existentes em si. No final da sua investigação, Nāgārjuna afirma que:

Nem um móvel real, nem um irreal, nem um real-irreal efetuam a ação de se mover conforme suas três dimensões. Portanto, nem a ação de se mover, nem o móvel, nem o percurso [o espaço onde o movimento ocorre] são possíveis. (MMK 2.24-25).6 6 sadbhūto gamanaṃ gantā triprakāraṃ na gacchati | nâsadbhūto ’pi gamanaṃ triprakāraṃ sa gacchati || gamanaṃ sadasadbhūtaḥ triprakāraṃ na gacchati | tasmād gatiś ca gantā ca gantavyaṃ ca na vidyate.

Portanto, assim como qualquer categoria ou conceito filosófico que Nāgārjuna analisa ao longo da sua obra, também o movimento - que é especialmente importante, uma vez que representa emblematicamente qualquer tipo de ação -7 7 Como explica Buddhapālita: “Uma vez que a ação de ir é a mais importante (pradhāna) de todas as ações (kriyā) [...], já que o ir revela-se impossível, assim, igualmente, todas as ações se revelam impossíveis” (Buddhapālitavṛtti, trad. Saito, 1984, p. 49). se revela como uma mera “ilusão, um sonho, uma cidade de Gandharvas”.8 8 yathā māyā yathā svapno gandharvanagaraṃ yathā - essa fórmula é utilizada por Nāgārjuna, com algumas variações, em mais de uma ocasião, no final de algumas das suas “investigações críticas”. Uma “cidade de Gandharvas” é uma imagem que corresponde à miragem da fata Morgana.

Entre os vários argumentos que Nāgārjuna apresenta para comprovar sua conclusão, alguns mostram uma clara proximidade formal com os paradoxos de Zenão. O primeiro verso de MMK 2, por exemplo, afirma:

Primeiramente, o [que já foi] percorrido não é [atualmente] percorrido; o [ainda] não percorrido não é [atualmente] percorrido. Independentemente do [já] percorrido e do [ainda] não percorrido, o que está sendo [atualmente] percorrido não é percorrido.9 9 gataṃ na gamyate tāvad agataṃ naiva gamyate | gatāgatavinirmuktaṃ gamyamānaṃ na gamyate.

Nessa estrofe, a tese de Nāgārjuna é, portanto, que o movimento de um “móvel”, em cada instante, não pode ser encontrado nem (1) no espaço percorrido ou atravessado, nem (2) naquele ainda não atravessado, tampouco (3) naquele atualmente atravessado.

Que não há movimento no espaço percorrido (no passado) nem naquele que ainda deve ser percorrido (no futuro) é evidente e não precisa de demonstrações. No entanto, a terceira parte dessa tese deve ser corroborada por algum argumento: com efeito, intuitivamente, diríamos que o movimento de algo ocorre precisamente no espaço que o móvel está percorrendo no momento presente. Contudo, Nāgārjuna exclui essa possibilidade com base em um argumento que ele considera, aparentemente, autoevidente ou implícito. A tarefa de explicitá-lo é deixada a seus comentadores,10 10 Como é o caso de todos os “textos-raiz” - tipicamente herméticos - que estão na base das diferentes tradições indianas de pensamento, também (ou sobretudo) as MMK de Nāgārjuna devem ser lidas com o auxílio da tradição comentarial. Essa tradição, no caso da obra-prima de Nāgārjuna, é especialmente copiosa. Segundo as fontes, ela consistia em oito comentários verbatim. Deles, cinco - escritos entre a época de Nāgārjuna e três ou quatro séculos após sua morte - chegaram até nós, na sua versão tibetana ou chinesa e, no caso das Prasannapadā de Candrakīrti, no sânscrito original. os quais, nesse caso, expressam um ponto de vista praticamente unânime. Com as palavras de Candrakīrti:

de uma determinada extensão espacial, além do [já] atravessado e do que ainda deve ser atravessado, não temos experiência de nenhuma outra terceira dimensão chamada de “espaço atualmente atravessado” (gamyamāna).11 11 na ca gatāgatavyatirekeṇa tṛtīyamaparamadhvajātaṃ paśyāmo gamyamānaṃ nāma(Candrakīrti, Prasannapadā 93.7).

A ideia é que qualquer ponto C, intermediário entre a reta A e B, parte a reta em duas partes A-C e C-B, sem que haja uma terceira dimensão espacial, dotada de alguma extensão, outra em relação a esses dois segmentos.

Esse tipo de lógica, entretanto, apesar da alusão de Candrakīrti à falta de experiência do ponto C, parece conflitar justamente com a evidência empírica das coisas que se movem - como uma flecha ou, no exemplo de Candrakīrti (Prasannapadā 93.9-10), um pé -, que, ao se deslocarem de A a B, no momento T, se encontram ocupando um espaço específico, que não é nem já percorrido nem ainda não percorrido, mas sim, de fato, atualmente ocupado pelo objeto que se move. Esse último, no entanto, observa Candrakīrti, é composto também de uma infinidade de pontos sem extensão, cada qual necessariamente pertence, no momento T, ao espaço “percorrido” ou “ao não percorrido”, e nunca a um suposto lugar “atualmente percorrido”:

[A hipótese de que o gamyamāna seja o espaço coberto pelo pé no momento presente tem que ser descartada,] porque também o pé é um conjunto de pontos infinitésimos (paramāṇu).12 12 A tradução comum de paramāṇu como “átomo” não é apropriada aqui, pois um átomo tem uma certa extensão e é indivisível: “enquanto a ideia de um tamanho atômico do paramāṇu sugere a doutrina de mínimos espaciais, a doutrina de que esse tamanho é não aditivo sugere a concepção de um átomo realmente sem dimensão, isto é, um ponto” (Siderits; O’Brien, 1976, p. 287). O espaço antes do ponto infinitésimo na ponta do dedão está incluído no [ainda] não percorrido;13 13 No sânscrito original do Prasannapadā, temos aqui gate e, na frase sucessiva, agate, ou seja, respectivamente, “[já] percorrido” e “[ainda] não percorrido”. De fato, essa é a tradução “padrão” dessa passagem. No entanto, o sentido lógico dessa tradução é, a meu ver, insatisfatório. Com efeito, se o espaço atrás da ponta do dedão fosse o já percorrido e aquele no fim do calcanhar o ainda não percorrido, teríamos que pensar - como Siderits e O’Brien (1976, p. 290) notam - que o “móvel anda para trás!”. Para evitar essa estranheza, parece apropriado aceitar a suposição de Siderits e O’Brien (1976, p. 290) de que nessa passagem haja um erro do escriba (do manuscrito do qual dispomos), que, respectivamente, tirou e acrescentou um “a” antes dos dois gate. Galloway (1987, p. 84) e Mabbett (1984, p. 410), entretanto, acreditam que o texto de Candrakīrti faça sentido mesmo sem supor um erro de cópia. o espaço atrás do último ponto infinitésimo do calcanhar está incluído no [já] percorrido. Agora, não há pé além dos pontos infinitésimos [dos quais o pé é composto].14 14 caraṇayorapi paramāṇusāṃghātatvāt | aṅgulyagrāvasthitasya paramāṇoryaḥ pūrvo deśaḥ, sa tasya *agate'ntargataḥ | pārṣṇyavasthitasya caramaparamāṇorya uttaro deśaḥ, sa tasya *gate'ntargataḥ | na ca paramāṇuvyatirekeṇa caraṇamasti (Prasannapadā 93.10-12).

Em poucas palavras, se fotografarmos o pé no momento T de um passeio, no qual o calcanhar for colocado no chão no começo de um passo, o inteiro espaço do trajeto pode ser completamente partido em um antes do ponto tocado e em um depois, sem nenhum ponto extenso no qual o movimento ocorre no momento presente. Naturalmente, isso se aplica também ao último ponto tocado pelo dedão no final do passo, outro paramāṇu (“ponto infinitésimo”) do qual o pé é composto.

Evidentemente, estamos aqui diante de uma concepção não atomística (ou “não granular”) do tempo e do espaço; o espaço percorrido, o móvel e o tempo supostamente empregado para completar a distância são feitos de pontos ou momentos de tamanho zero. Consequentemente, não há nenhum lugar nem nenhum momento que possa, de fato, “hospedar” o movimento presente. No entanto, já que o movimento não pode ser encontrado nem no espaço-tempo no qual ele já ocorreu no passado nem naquele onde vai ocorrer no futuro, não resta nenhuma dimensão na qual o movimento pode logicamente acontecer.

Nessa análise de Candrakīrti - a qual, de qualquer forma, segundo alguns estudiosos, pode não refletir exatamente a intenção original de Nāgārjuna -, os autores que comparam os paradoxos madhyamaka com aqueles de Zenão encontram uma coincidência (em particular) com o paradoxo da flecha. Galloway (1987GALLOWAY, B. (1987). Notes on Nāgārjuna and Zeno on Motion. The Journal of the International Association of Buddhist Studies , v. 10, n. 2, p. 80-87., p. 81), por exemplo, a propósito do raciocínio de Candrakīrti, explica:

Considerem uma linha delimitada pelos pontos a e b que contenha um ponto fixo c diferente de a ou b. Um ponto móvel x move-se da esquerda para a direita ao longo da linha. Quando podemos dizer que c está sendo atravessado por x? Quando x está à esquerda de c [...], ou seja, não alcançou c, este último não está sendo atravessado [por x]. Quando x está à direita de c, ou seja, passou por ele, este último não está sendo atravessado [por x]. Finalmente, quando os dois coincidem, ou seja, x = c, decorre apenas um instante de tempo, a saber, um tempo de duração zero, e não pode haver nenhum movimento no espaço durante um tempo de duração zero.

Esse tipo de lógica, aparentemente, é muito próximo daquele da flecha de Zenão, cujo suposto movimento pode, de fato, ser reduzido à soma de infinitos momentos - “o que se move está sempre no agora” -15 15 ἔστι δ’ἀεὶ τὸ φερόμενον ἐν τῶι νῦν (Diels, 1906, frag. 19 A 27 46, p. 131). durante os quais ela ocupa um espaço igual a si mesma; mas ocupar um espaço igual a si mesmo define propriamente aquilo que está parado. Contudo, a soma de infinitos momentos desprovidos de movimento é necessariamente zero, e a única conclusão pode ser que “a flecha em movimento é [na verdade] desprovida de movimento”.16 16 ἀκίνητον τὴν φερομένην ὀιστόν (Diels, 1906, frag. 19 A 27 47, p. 131). O fato de a flecha ter comprimento não é um detalhe relevante: com efeito, como no caso do pé do exemplo de Candrakīrti, “nós podemos falar também apenas de um ponto que se move, pensado como a ponta da flecha ou qualquer ponto fixo ao longo do comprimento da flecha; o ponto ocupará o ponto onde ele está, no trajeto voado, em qualquer instante de tempo” (Galloway, 1987GALLOWAY, B. (1987). Notes on Nāgārjuna and Zeno on Motion. The Journal of the International Association of Buddhist Studies , v. 10, n. 2, p. 80-87., p. 83).

Depois de alguns versos nos quais o capítulo 2 das MMK continua com argumentos contra o movimento de cunho menos “matemático” e mais “gramatical”,17 17 K. Bhattacharya (1985) - em contraste com as evidências mencionadas e com a tendência prevalecente nos estudos dedicados ao Madhyamaka, que concordam em encontrar nos argumentos de Nāgārjuna uma lógica ao menos parcialmente “Zeno-like” - acredita e tenta demonstrar que o inteiro capítulo 2 das MMK é fundamentado em raciocínios de ordem “gramatical” e não “matemática” e que, portanto, “tal capítulo em momento nenhum tem algo a ver com os argumentos zenonianos contra o movimento”. a lógica à la Zenão é retomada nas estrofes 12 e 13. Esses versos replicam, segundo Bhāviveka, a uma objeção como “o movimento existe, pois, do mesmo, há o começo” (Prajñāpradīpa, trad. Ames, 1995AMES, W. L. (1995) Bhāvaviveka’s Prajñāpradīpa: A Translation of Chapters Two: “Examination of the Traversed, the Untraversed, and that which is being Traversed”. Journal of Indian Philosophy, v. 23, n. 3, p. 205-365., p. 581). Em outras palavras, dessa vez fundamentadas no comentário de Buddhapālita, o oponente de Nāgārjuna pode tentar provar a existência do movimento por meio da oposição ao seu contrário, a imobilidade: “quando alguém, a partir de uma condição de repouso, vai, a ação de ir começa, enquanto a ação de ficar parado termina” (Buddhapālitavṛtti, trad. Saito, 1984SAITO, A. (1984). A study of the Buddhapālita-mūlamadhyamaka-vṛtti. Tese (Doutorado em Filosofia) - Australian National University., p. 38). De fato, quem nega a existência do movimento parece ter que endossar - junto com os eleatas - a existência da imobilidade. Esta última, entretanto, só pode ser concebida com base na ideia e na experiência do movimento - logo, conclui esse argumento, o movimento existe.

Contra esse modo de raciocinar, Nāgārjuna replica: “O ‘andar’ não começa no que foi [já] percorrido, nem no que está sendo atualmente percorrido - onde começa o andar?” (MMK 2.12).18 18 gate nârabhyate gantuṃ gantuṃ nârabhyate ’gate | nârabhyate gamyamāne gantum ārabhyate kuha O problema é, aqui, em outras palavras, que nós não somos capazes de identificar o ponto específico no qual o movimento começaria. A estrofe 2.13, com efeito, acrescenta:

Antes do começo do movimento não há algo que está sendo percorrido, nem um espaço [já] percorrido onde o movimento possa começar - e como o movimento [poderia começar] no que [ainda] não foi percorrido?”.19 19 prāg asti gamanārambhād gamyamānaṃ na no gatam | yatrârabhyeta gamanam agate gamanaṃ kutaḥ

Novamente, o argumento de Nāgārjuna é que, devido à divisibilidade infinita do espaço, não há nenhum ponto, em uma distância dada, que poderia “hospedar” o movimento. Em MMK 2.1 fora descartada a possibilidade de um ponto que possa ser atravessado por um móvel; aqui é excluída a hipótese de que haja um ponto no qual o movimento possa começar. A comparação possível, aqui, mais do que com o paradoxo zenoniano da flecha, parece ser com o paradoxo da dicotomia: se, para alcançar o ponto B, um corpo deve antes alcançar o ponto C e, antes de C, D, ao infinito, “antes de cobrir qualquer distância, ele deve primeiramente executar um número infinito de tarefas. Portanto, [o movimento] não pode começar” (Mabbett, 1984MABBETT, I. W. (1984). Nāgārjuna and Zeno on motion. Philosophy East and West , v. 34, n. 4, p. 401-420., p. 404).

2. Vasubandhu: uma crítica do atomismo

Os estudos contemporâneos que comparam os argumentos de Vasubandhu contra a existência de objetos extramentais com os de Zenão contra a multiplicidade são mais raros e menos acurados do que aqueles que comparam os paradoxos de Nāgārjuna e os dos eleatas contra o movimento.20 20 Uma aproximação entre os argumentos antiatomistas de Zenão e aqueles de Vasubandhu foi proposta por Bruhacs (2008, p. 92ss). Um aceno ao antiatomismo zenoniano no interior de um artigo dedicado aos argumentos de Vasubandhu contra a existência de objetos externos pode ser encontrado em Kapstein (1988, p. 36). Entretanto, a semelhança entre a lógica aplicada por Vasubandhu em alguns dos seus “Vinte versos sobre a demonstração de que [tudo] é mera cognição” (Viṃśikā21 21 Com base em uma passagem de Vairocanarakṣita e em três fontes manuscritas, Kanō (2008, p. 345) mostra que, para se referir a essa obra de Vasubandhu, “Viṃśikā” deve ser considerado como um título mais plausível do que “Viṃśatikā”, com o qual (desde a época dos estudos de Levi) a obra é mais frequentemente citada na literatura secundária. vijñaptimātratāsiddhi) e aquela utilizada por Zenão nas passagens citadas por Simplício22 22 Cf. Simplício, In Phys. 139-41. parece bastante evidente. Novamente, evitando entrar nos pormenores do raciocínio de Zenão, me limito a apresentar alguns dos argumentos com os quais o autor budista recusa a existência de objetos externos, deixando aos leitores a tarefa de decidir se e até que ponto essas passagens podem ser comparadas com o ponto de vista zenoniano relatado por Simplício.

No verso 11 das Viṃśikā, em apoio à tese mais própria desse trabalho - a saber, “pela manifestação de objetos [de fato] inexistentes, tudo isso é só mera cognição (vijñapti)”23 23 vijñaptimātram eva idam asad arthāvabhāsanāt (Viṃśikā 1). A versão de vijñapti com “cognition” (cf. Kellner; Taber, 2014, p. 735) parece preferível a “representation”, “manifestation”, “perception”, “appearance” ou “phenomenon”, com as quais essa palavra é mais frequentemente traduzida em inglês na literatura dedicada à escola Yogācāra. -, Vasubandhu afirma: “a coisa24 24 O pronome tad (que aqui traduzi genericamente com “coisa”) no verso se refere ao objeto dos sentidos. A parte em prosa (autocomentarial) que introduz esse verso, com efeito, levantou a questão da razão pela qual, apesar da efetiva inexistência dos objetos externos, o Buda falou sobre os doze “campos sensoriais” (āyatana), a saber, os seis sentidos internos e seus respectivos objetos externos. não é uma, nem o objeto é uma pluralidade composta de átomos, nem, por fim, é uma coleção de átomos, pois a [existência] dos átomos não é comprovada.”25 25 na tad ekaṃ na cānekaṃ viṣayaḥ paramāṇuśaḥ | na ca te saṃhatā yasmāt paramāṇur na sidhyati

Em outras palavras, o verso exclui três pontos de vista possíveis sobre os objetos externos fenomênicos (como uma pessoa ou uma carruagem): (1) a tese de que os objetos da nossa experiência ordinária sejam entes existentes em si, independentes das partes das quais são compostos: uma carruagem, nessa visão metafísica, é uma substância unitária dotada de um status ontológico ulterior e irredutível às partes (atômicas) que a compõem. Esse ponto de vista - que no âmbito da tradição filosófica ocidental pode ser associado à visão aristotélica da realidade externa - é atribuído por Vasubandhu (no seu autocomentário) à escola filosófica bramânica do Nyāya-Vaiśeṣika; (2) a tese de que o objeto fenomênico seja perfeitamente equivalente às partes atômicas singulares que o compõem e, portanto, possa ser totalmente reduzido a elas: a existência de uma carruagem ou de uma pessoa, portanto, é ficcional e ilusória; o que apenas existe são os elementos atômicos, enquanto os corpos que aparecem no plano fenomênico e convencional são inexistentes em última análise. Uma posição que, na história do pensamento ocidental, não pode não lembrar a conclusão democrítica de que, em última análise, existe apenas a realidade dos átomos (e do vazio), ao passo que a realidade fenomênica é apenas convencional, logo, em si, inexistente; (3) a tese de que o objeto externo seja uma “coleção unificada de partes atômicas” (Kapstein, 1988KAPSTEIN, M. (1988). Mereological Considerations in Vasubandhu’s “Proof of Idealism” (Vijñaptimātratāsiddhiḥ). Idealistic Studies, v. 18, n. 1, p. 32-54., p. 37): “os átomos se combinam para formar agregados, e em um agregado os átomos individuais são capazes de fazer coletivamente coisas que não são capazes de fazer individualmente” (Siderits, 2007SIDERITS, M. (2007). Buddhism as a philosophy. Aldershot: Ashgate Publishing., p. 161). Nesse terceiro modo de existência - no qual podemos reconhecer a intuição, por parte de Vasubandhu, da noção contemporânea de sistema complexo ou emergente - o objeto não seria uma mera soma de partes (como no segundo caso), mas algo a mais em relação às mesmas partes, embora não independente delas (como no primeiro caso).

A razão pela qual as primeiras duas possibilidades devem ser descartadas, implícita no verso, se torna explícita no comentário, que explica sucintamente que: “(1) o objeto não é unitário, pois jamais há apreensão de uma coleção de partes que seja outra coisa em relação às [suas] partes”26 26 na tāvad ekaṃ viṣayo bhavaty avayavebhyo ‘nyasyāvayavirūpasya kvacid apy agrahaṇāt e que (2) “não é uma pluralidade, pois não há apreensão de átomos singulares”.27 27 nāpy anekaṃ paramāṇūnāṃ pratyekam agrahaṇāt | nāpi te saṃhatā viṣayībhavanti Em outras palavras, tanto a primeira como a segunda hipótese devem ser descartadas através de um argumento empírico: não há apreensão sensível (agrahaṇa) nem de uma substância independente das partes e dos atributos que lhe inerem, nem dos átomos, que, na segunda hipótese, de semblante democrítico, constituiriam a verdade por trás da opinião. A terceira hipótese escrutinada - que o objeto externo não é uma mera soma de átomos, mas um epifenômeno ou uma entidade emergente (um byproduct) que surge ou emerge daquela soma - é abruptamente descartada pela afirmação de que “a [existência] dos átomos não é provada”.28 28 paramāṇur na sidhyati

Os argumentos a favor dessa conclusão, finalmente, nos reconduzem a um tipo de lógica comparável à de Zenão. O verso 12 afirma:

Se [um átomo] se juntasse simultaneamente a seis [outros átomos], de [cada] átomo [deveria haver] seis partes. [Por outro lado,] se seis átomos ocupassem simultaneamente o mesmo lugar, sua massa seria igual àquela de um átomo [singular].29 29 ṣaṭkena yugapad yogāt paramāṇoḥ ṣaḍaṃśatā |ṣaṇṇāṃ samānadeśatvāt piṇḍaḥ syādaṇumātrakaḥ ||

Esse verso leva em conta duas hipóteses: (1) os átomos (de um suposto aglomerado de átomos) têm uma certa extensão espacial, logo cada átomo ocupa um espaço diferente daquele de qualquer outro átomo; (2) eles são meros pontos inextensos.

No primeiro caso, um cluster - por exemplo - de sete átomos consistiria em um átomo central cercado por outros seis átomos. O átomo no meio do aglomerado deveria tocar, com suas partes, uma parte de cada um dos seis outros átomos dos quais fica cercado: o átomo, nesse caso, deveria ter (pelo menos) seis partes, cada qual em contato com uma das partes dos átomos ao redor. Um átomo, entretanto, por definição, não deveria ser divisível em partes. Se fosse, essas partes seriam numericamente infinitas: cada porção singular do átomo seria, com efeito, separada das outras porções por outras partes, ad infinitum. De fato, “entre dois pontos, não importa quão próximos, há uma quantidade infinita de pontos distintos” (Siderits, 2007SIDERITS, M. (2007). Buddhism as a philosophy. Aldershot: Ashgate Publishing., p. 163).

Se, por outro lado, os seis átomos de um cluster não tivessem partes e fossem, por consequência, sem extensão, esses seriam necessariamente inerentes a um mesmo ponto inextenso do espaço e, se juntando, nunca dariam lugar a uma massa maior do que aquela de um ponto infinitésimo. Nas palavras de Siderits (2007SIDERITS, M. (2007). Buddhism as a philosophy. Aldershot: Ashgate Publishing., p. 162): “Se um átomo não tem tamanho - se for um mero ponto geométrico, algo sem comprimento, largura ou altura -, então, juntando outros átomos a um átomo central para formar um agregado, não resultaria em nada maior do que nosso átomo original”.

O verso 14 - após um décimo terceiro verso no qual a lógica zenoniana é menos evidente30 30 O verso 14 reza: “Se não houver contato de um átomo [com outros átomos], no caso de uma coleção desses [átomos], haveria [contato] de quê? Ademais, se não tivessem partes, não poderia ser comprovado que o contato entre elas não acontece” (paramāṇor asaṃyogāt tatsaṃghāte 'sti kasya saḥ | na cānavayavatvena tatsaṃyogo na sidhyati). Essa estrofe replica à suposição (de um oponente realista-atomista) de que os átomos seriam, de fato, pontos inextensos, mas, apesar disso, conseguiriam formar agregados mínimos - que nós chamaríamos de moléculas - sem tocar um ao outro (evitando, dessa forma, o problema de uma multiplicação infinita das suas partes) e mantendo uma certa distância entre si (evitando, assim, o problema de uma infinita agregação do mesmo ponto inextenso). A réplica de Vasubandhu - no verso e na vṛtti (“comentário”) relativa - a essa hipótese é que, para formar corpos, mesmo que os átomos que formam as moléculas mencionadas não se toquem reciprocamente, as mesmas moléculas têm que tocar uma à outra. Ora, as moléculas são feitas de átomos: logo, se elas se tocam entre si, seus átomos têm que ficar em contato, reproduzindo, dessa forma, as dificuldades que o oponente de Vasubandhu buscava evitar. - apresenta o mesmo dilema recorrendo a um tipo de argumentação menos lógica e mais empírica:

Não pode haver unidade daquilo que é divisível em porções de espaço; mas [se o átomo não tivesse extensão] como [poderia haver] sombra e obstrução? [Ademais,] se o corpo fosse equivalente [a átomos sem partes e extensão], aquelas [sombra e obstrução] não lhe pertenceriam.31 31 digbhāgabhedo yasyāsti tasyaikatvaṃ na yujyate | chāyāvṛtī katha anyo na piṇḍaś cen na tasya te

Em outras palavras, se pensamos que os átomos têm extensão, eles deveriam ter partes: mas, nesse caso, não seriam a-tomos, a saber, elementos simples e indivisíveis;32 32 O autocomentário a essa estrofe explica: “se houvesse uma divisão do átomo em porções de espaço, como [suas] partes dianteiras ou traseiras, como haveria singularidade/simplicidade de um tal átomo?” (anyo hi paramāṇoḥ pūrvadigbhāgo yāvad adhodigbhāga iti digbhāgabhede sati kathaṃ tadātmakasya paramāṇor ekatvaṃ yokṣyate). antes disso, eles seriam infinitamente divisíveis (em elementos menores). Mas corpos feitos de infinitos elementos dotados de extensão seriam infinitamente extensos. Por outro lado, se pensamos que os átomos são pontos inextensos, fenômenos como a resistência - à luz ou a outros agentes que tentem passar por um átomo ou um corpo - seriam inexplicáveis. Empiricamente: um corpo exposto à luz solar tem algumas partes obscuras e lança uma sombra. Isso significa que resiste à penetração da luz. Mas, na medida em que esse corpo fosse feito de átomos, também estes últimos deveriam ter as mesmas características: algumas de suas partes seriam iluminadas, enquanto outras não.33 33 Portanto, a hipótese inicial - de que um cluster de átomos adquire características (como, nesse caso, a impenetrabilidade) das quais os átomos singulares careceriam - é aqui descartada com base na ideia zenoniana de que, se um átomo singular tiver um grau zero de penetrabilidade e resistência, sua coleção não poderia dar lugar a corpos impenetráveis e resistentes. Porém, se os átomos fossem - conforme a tese aqui examinada - pontos inextensos, a luz deveria necessariamente passar através deles, iluminando o que fica por trás. Nesse caso, um corpo feito de átomos deveria ser totalmente penetrável pela luz. Mas um corpo penetrável não seria um corpo, pois a impenetrabilidade é uma característica essencial da corporeidade.

Um raciocínio muito parecido é aquele que Simplício atribui a Zenão na sua rejeição da multiplicidade:

Se houver [coisas], é necessário que cada qual tenha um tamanho e uma massa, e que cada sua parte [interna] seja separada das outras partes. A mesma lógica se aplica à parte [interna] que está diante [da parte da qual é separada], pois ela também terá um tamanho e uma parte que estará diante. Mas o que vale em um caso é o mesmo que vale em todos os casos:34 34 Em outras palavras, uma parte A, supostamente atômica, interna a um corpo, para se distinguir de uma outra parte B, deveria ter um elemento C de separação que “se sobressai” e se distingue do seu núcleo (A) e viabiliza a distinção entre A e B. No entanto, segundo conclui o argumento, A e C também devem ter, entre si, um elemento de separação (D), e assim por diante. Esse raciocínio, evidentemente, corresponde perfeitamente àquele implícito no verso 12 da Viṃśikā de Vasubandhu. com efeito, nenhuma das partes dessa [coisa] será a última, nem haverá algo que não tenha algo diante de si.35 35 εἰ δὲ ἔστιν, ἀνάγκη ἕκαστον μέγεθός τι ἔχειν καὶ πάχος καὶ ἀπέχειν αὐτοῦ τὸ ἕτερον ἀπὸ τοῦ ἑτέρου. καὶ περὶ τοῦ προύχοντος ὁ αὐτὸς λόγος. καὶ γὰρ ἐκεῖνο ἕξει μέγεθος καὶ προέξει αὐτοῦ τι. ὅμοιον δὴ τοῦτο ἅπαξ τε εἰπεῖν καὶ ἀεὶ λέγειν· οὐδὲν γὰρ αὐτοῦ τοιοῦτον ἔσχατον ἔσται οὔτε ἕτερον πρὸς ἕτερον οὐκ ἔσται (Simplício, In Phys., 141.2-6).

Por outro lado, segundo Zenão, na paráfrase de Simplício, “não poderia existir uma coisa que não tenha nenhum tamanho, massa ou peso”.36 36 ὅτι οὗ μήτε μέγεθος μήτε πάχος μήτε ὄγκος μηθείς ἐστιν, οὐδ᾽ ἂν εἴη τοῦτο (Simplício, In Phys., 139.10-11). Citando diretamente o eleata:

com efeito, ele [Zenão] fala: se [algo que não existe] se acrescentasse a outra coisa existente, não a tornaria de forma alguma maior; pois, se algo desprovido de tamanho fosse acrescentado, não haveria nada que aumentasse de tamanho. E, portanto, o que se acrescenta não seria nada.37 37 εἰ γὰρ ἄλλωι ὄντι, φησί, προσγένοιτο, οὐδὲν ἂν μεῖζον ποιήσειεν· μεγέθους γὰρ μηδενὸς ὄντος, προσγενομένου δέ, οὐδὲν οἷόν τε εἰς μέγεθος ἐπιδοῦναι. καὶ οὕτως ἂν ἤδη τὸ προσγινόμενον οὐδὲν εἴη (Simplício, In Phys., 139.11-13).

Em suma, “Se houver uma multiplicidade de coisas, elas seriam grandes ou pequenas: grandes até ter um tamanho infinito ou pequenas até não ter tamanho nenhum.”38 38 εἰ πολλά ἐστι, καὶ μεγάλα ἐστὶ καὶ μικρά μεγάλα μὲν ὥστε ἄπειρα τὸ μέγεθος εἶναι, μικρὰ δὲ οὕτως ὥστε μηθὲν ἔχειν μέγεθος (Simplício, In Phys., 139.8-9).

3. Ser, ser e não-ser, nem ser nem não-ser

As primeiras duas seções mostraram que os argumentos contra o movimento e a existência dos átomos usados pelos dois filósofos indianos são parecidos - embora não idênticos - com aqueles usados por Zenão contra o movimento e a multiplicidade. Cabe, então, indagar se essa afinidade formal corresponde a uma proximidade mais geral e substancial dos projetos filosóficos desses dois autores: são comparáveis, de alguma forma, os mais profundos propósitos filosóficos aos quais os paradoxos de Zenão, Nāgārjuna e Vasubandhu são funcionais?

Para responder a essa pergunta, nos perguntamos, em primeiro lugar, o que pode haver mais imediatamente por trás desses argumentos, adiando à próxima seção a questão de quais poderiam ser os objetivos últimos dos filósofos aqui examinados. Agora, no que diz respeito ao lado eleático da nossa comparação, assumimos - sem investigação ulterior - que o ataque de Zenão ao movimento e à multiplicidade visa mostrar a consistência lógica dos atributos do eon parmenídico de ser de uma única natureza (μουνογενές) e desprovido de movimento (ἀτρεμὲς), reduzindo ad absurdum o ponto de vista dos seus oponentes, sejam eles físicos pluralistas, pitagóricos ou meros “mortais” imersos na doxa. Diante desse objetivo, as razões por trás dos pontos de vista de Nāgārjuna e Vasubandhu parecem muito diferentes. Além disso, a meu ver, tampouco é correto pensar que as razões na base da crítica nagarjuniana do movimento sejam as mesmas que justificam os ataques de Vasubandhu à existência de objetos externos.

O propósito de todos os “exames críticos” (parīkṣā) das MMK é, com efeito, o de mostrar a falta de fundamento de qualquer “ponto de vista metafísico” (dṛṣṭi)39 39 Na última estrofe das MMK (27.30), Nāgārjuna presta homenagem ao Buda, definindo-o como aquele que, “movido pela compaixão, mostrou o ensinamento verdadeiro para a eliminação (prahāṇāya) de todas as teorias (sarva-dṛṣṭi)”. por meio da demonstração da inconsistência ontológica - ou “vacuidade” (śunyatā) - de todos os fenômenos e conceitos. A demonstração da vacuidade do movimento, portanto, não deve ser entendida como uma representação da realidade em si em termos de ausência de movimento. De fato, no próprio capítulo 2 das MMK, além da exclusão da existência última do movimento/móvel/espaço atravessado, encontramos também a exclusão da “quietude” ou “imobilidade” (sthāna): “Agora, nem o móvel fica estável, nem o imóvel. Por outro lado, qual terceira entidade, alheia ao móvel e ao imóvel, pode ficar estável?” (MMK 2.15).40 40 gantā na tiṣṭhate tāvad agantā naiva tiṣṭhati | anyo gantur agantuś cá kas tṛtīyo ’tha tiṣṭhati. Os versos sucessivos acrescentam: “Como, de fato, poderá haver um móvel que fica estável, uma vez que um móvel sem movimento é inadmissível?” (MMK 2.16); “[As coisas] não derivam sua imobilidade do que está sendo [atualmente] percorrido, nem do [já] percorrido, nem do [ainda] não percorrido” (MMK 2.17ab).

Dessarte, o movimento não é excluído em prol da ideia de que a realidade última seja desprovida de movimento, mas é excluído na medida em que é uma descrição da realidade que, junto com qualquer outra descrição da realidade, deveria ser descartada. A própria vacuidade - como assevera o crucial MMK 13.8 - não deve de forma alguma ser transformada em um ponto de vista metafísico.41 41 “A vacuidade foi declarada pelos [buddhas] vitoriosos como um meio de extinção (niḥsaraṇam) de todas as teorias metafísicas (sarva-dṛṣṭīnāṃ). Mas aqueles para os quais a vacuidade é uma teoria devem ser considerados incorrigíveis.”

O caráter radicalmente “antimetafísico” da filosofia de Nāgārjuna42 42 Uso a palavra “metafísica” no sentido de “estudo do ser enquanto ser”. Um sentido confirmado por Kant na Antitética da Razão Pura e nos Prolegômenos a toda a metafísica futura, nos quais ele condena como metafísica qualquer tentativa de oferecer descrições do noumenon ou realidade em si. Ainda, van Inwagen (2009, p. 1), recentemente, declarou: “Quando fui introduzido à metafísica, durante a graduação, me foi dada a definição seguinte: a metafísica é o estudo da realidade última (ultimate reality). Essa ainda me parece a melhor definição de metafísica que eu já encontrei”. deve ser entendido e classificado dentro de um aspecto particular do ensinamento original do Buda histórico - aquele que defende que não apenas o não-ser, como também o ser não pode ser considerado como uma abordagem linguístico-conceitual correta da realidade em si. Essa é, portanto, uma diferença teorética relevante em relação à abordagem parmenídica, que acredita que, para falar sobre aletheia, a senda do não-ser deve ser, sim, descartada, mas a do ser deve ser seguida. O caminho do meio nagarjuniano, ao excluir ser e não-ser (e, consequentemente, qualquer metafísica que possa ser construída a partir dessas categorias lógico-conceituais), se configura, portanto, como um caminho filosófico ao menos formalmente inconciliável com aquele dos filósofos de Eleia.

A mesma linha de pensamento de Nāgārjuna, aparentemente, é seguida também por Vasubandhu, que, por ser um filósofo budista e, ademais, um mahayanista, não pode não ver no caminho do meio um ensinamento essencial. Contudo, ele elabora esse ensinamento de modo diferente daquele do fundador do Madhyamaka. Comparada com uma tabula rasa de qualquer metafísica avançada por Nāgārjuna, a filosofia de Vasubandhu parece, com efeito, promover uma descrição da realidade em si. O caminho do meio, nesse caso, consiste na exclusão tanto das posições “substancialistas”, como aquelas das ontologias realistas-pluralistas das escolas budistas pré-Mahāyāna (como a escola Theravāda, a Sarvāstivāda e a Sautrāntika), quanto do ponto de vista madhyamaka, julgado como excessivamente negativo, beirando o (ou até mesmo afundando no) niilismo.43 43 Segundo a doutrina dos “três giros da roda do Dharma” (tridharmacakra) relatada pelo sétimo capítulo do Saṃdhinirmocanasūtra, “O primeiro giro, ao enfatizar os entes (dharmas, agregados etc.) e ‘escondendo’ a vacuidade, pode conduzir alguém a defender um ponto de vista substancialista; o segundo giro, ao enfatizar a negação e ‘escondendo’ as qualidades positivas do Dharma, pode ser erroneamente interpretado como niilismo. O terceiro giro foi um caminho do meio entre esses extremos, que finalmente tornou tudo explícito” (Lusthaus, 2004). “Nem ser nem não-ser”, na sua versão yogācāra, parece, de fato, definir uma metafísica que nem afirma categoricamente, nem nega excessivamente nada.

No que exatamente consiste essa metafísica “do meio” da escola Yogācāra - ou seja, o que essa escola afirma após ter negado a realidade dos objetos extramentais - é objeto, de fato, de amplo debate no interior da budologia contemporânea. Uma tradição exegética bem enraizada é, com efeito, em primeiro lugar, aquela que acredita que a filosofia de Asaṅga e de Vasubandhu deva ser entendida como uma versão indiana de idealismo metafísico:44 44 Leituras “clássicas” da filosofia do Yogācāra como idealismo metafísico são, por exemplo, a de Dasgupta (1933), Stcherbatsky, (1994, p. 12-13) ou May (1971). Exemplos mais recentes desse tipo de interpretação podem ser as leituras de Williams (1989), Garfield (2002) ou Arnold (2008). a crítica da existência de objetos externos mencionada acima seria funcional, segundo essa leitura, à demonstração da existência última da “mera mente” (cittamātra) ou “mera cognição” (vijñaptimātra). Alguns elementos textuais parecem confirmar tal conclusão, começando pelos nomes - Cittamātra, Vijñaptimātra e Vijñānavāda - pelo quais a escola Yogācāra é também conhecida; mas também passagens como o célebre primeiro verso da Viṃśikā, que afirma que os objetos externos não são reais e que tudo é apenas uma fantasmagoria produzida pela mente.45 45 “Já que os objetos fenomênicos não são reais, tudo isso é mera cognição, exatamente como a visão de um [inexistente] emaranhado de cabelos por parte de alguém que sofre de descolamento do vítreo posterior.” Também os outros dois alicerces conceituais que, junto com a ideia de “só mente”, caracterizam a filosofia da escola Yogācāra/Vijñānavāda - a saber, a doutrina da “consciência-repositório” (ālayavijñāna) e a das “três naturezas próprias” (svabhāvatraya) - implicariam, segundo os defensores da interpretação idealístico-metafísica dessa escola, a concepção da realidade como uma dimensão exclusivamente mental ou subjetiva.46 46 Stcherbatsky (1994, p. 13), por exemplo, acredita que a “a ausência de um mundo externo e de qualquer cognição que o apreenda - [e a existência] apenas de uma cognição introspectiva que apreende, por assim dizer, seu próprio si, o universo, o mundo real - foi considerada como [a existência de] uma infinidade de ideias possíveis que ficam dormindo em uma consciência ‘repositório’. A realidade se torna, consequentemente, pensabilidade”. Leituras idealístico-metafísicas da “natureza própria perfeitamente realizada” (pariniṣpanna-svabhāva) podem ser encontradas em Chatterjee (1971, p. 31) ou em Williams (1989, p. 82-85).

A interpretação idealístico-metafísica da filosofia de Vasubandhu, de qualquer forma, não é a única interpretação através da qual o trabalho desse autor é lido. Ulteriores elementos textuais, diferentes dos citados acima, parecem, de fato, sugerir a conclusão de que o autor da Viṃśikā - mas não necessariamente os outros doutores que pertencem a essa linha de pensamento -47 47 Dharmapāla (VI século), por exemplo, é um autor mais tardio dessa escola que concebe a noção de ālayavijñāna como, definitivamente, um nível supremo de realidade, desenvolvendo, dessarte, um tipo de pensamento que pode ser mais propriamente considerado como um idealismo metafísico. defende uma prioridade apenas epistemológica do mental sobre o extramental, bem como a possibilidade de reduzir o segundo ao primeiro; isso não significa, entretanto, que, segundo Vasubandhu, o mental/subjetivo existe em si e em última análise. Com efeito, em última análise, tanto o objetivo/extramental como também o subjetivo/mental devem ser excluídos: “A característica [própria] da vacuidade é a não-existência da dualidade ‘percebido/perceptor’,48 48 A dualidade grāhya/grāhaka, literalmente, “apanhado/apanhador” (grasped/grasper), corresponde à dicotomia entre “objeto percebido” e “sujeito perceptor”. e a existência da mesma não-existência. (Madhyāntavibhāga-bhāṣya ad I.14ab).”49 49 dvayagrāhyagrāhakasyābhāvaḥ / tasya cābhāvasya bhāvaḥ śūnyat[ā]yā lakṣaṇam

Em outras palavras, seria possível atribuir a Vasubandhu um idealismo meramente epistemológico - conforme o qual o objeto externo seria, de fato, apenas uma criação da mente -, mas não um idealismo metafísico, conforme o qual a mente corresponderia à realidade suprema. Para definir esta última, de fato, na filosofia de Vasubandhu, o termo mais apropriado seria “vacuidade”. A vacuidade, entretanto, nesse caso, não é, como era para Nāgārjuna, uma negação e uma exclusão de qualquer teoria sobre a realidade, e sim, antes disso, uma negação do dualismo sujeito/objeto. Além disso, a mesma vacuidade, no Yogācāra “clássico”, deve ser entendida, de fato, como uma descrição da realidade em si. O verso do Madhyāntavibhāga de Maitreya que se segue àquele cujo comentário de Vasubandhu citei no final do parágrafo precedente afirma que a vacuidade é sinônimo de “sicceidade” (suchness, tathatā), “limite da realidade” (bhūtakoṭi), “não causada” (animitta), “realidade suprema” (paramārthatā) e “natureza das coisas” (dharmadhātu).50 50 Madhyāntavibhāga-kārikāḥ I.15.

Portanto, enquanto na filosofia de Nāgārjuna a vacuidade era apenas um meio para excluir qualquer ponto de vista metafísico, segundo Vasubandhu o ser vazio (da dicotomia sujeito/objeto) é, sim, um ponto de vista metafísico, na medida em que é uma representação conceitual de como as coisas estão em última análise. Contudo, também esta última posição, vasubandhiana, pretende equivaler a um “caminho do meio”, equidistante do ser e do não-ser: a passagem citada acima fala, com efeito, sobre a “não-existência da dualidade” e a “existência da mesma inexistência”. Essa equidistância, de qualquer forma, não é exatamente, como era segundo Nāgārjuna, uma exclusão cabal tanto do ser como do não-ser. Ao invés disso, o Yogācāra propõe um caminho do meio que, de alguma maneira, conjuga ser e não-ser: a existência em si da mente (conforme a interpretação idealístico-metafísica da filosofia dessa escola) ou a existência em última análise da vacuidade da dicotomia sujeito/objeto (conforme a interpretação idealístico-epistemológica) são concebidas juntamente com, no caso da primeira interpretação, o não-ser dos objetos externos ou, no caso da segunda, o não-ser da dualidade sujeito-objeto.51 51 Por exemplo, na segunda estrofe do Madhyāntavibhāga-kārikā - em contradição manifesta com a concepção nagarjuniana da vacuidade que encontramos exemplarmente no célebre verso 24.18 das MMK -, encontramos: “cada coisa não é vazia nem não vazia, pela existência [da ilusão], pela não-existência [da dualidade] e pela existência [da vacuidade] - é esse é o caminho do meio”.

Em resumo, podemos concluir que a relação entre nossos três filósofos e as categorias conceituais do ser e do não-ser pode ser representada como se segue: Zenão, igualmente a seu mestre Parmênides, fundamenta seus paradoxos em uma metafísica do ser que exclui categoricamente a categoria do não-ser. Nāgārjuna e Vasubandhu, por seu lado, são críticos com relação a essas duas categorias lógico-conceituais: com efeito, o ensinamento budiano do caminho do meio requer que ambos sejam excluídos. Essa exclusão, em Nāgārjuna, acaba sendo efetiva: o autor das MMK interpreta o caminho do meio como uma exclusão radical de qualquer metafísica, seja ela afirmativa ou negativa: nem ser nem não-ser, segundo esse filósofo, significa não qualificar a realidade de nenhum modo e mostrar como todas as tentativas de qualificá-la são logicamente insustentáveis; Vasubandhu, por outro lado, por pertencer a uma tradição52 52 Lembremos que esse filósofo poliédrico, possivelmente, em momentos diversos da sua carreira, escreveu obras - uma vez que a hipótese de Frauwallner (1951) dos dois autores chamados de “Vasubandhu” é hoje em dia considerada sem fundamento - que expõem filosofias diferentes da yogācāra: O Abhidharmakośa, soma do pensamento sarvāstivāda, e o Abhidharmakośa-bhaṣya, epítome da filosofia sautrāntika. que considera a filosofia de Nāgārjuna demasiadamente radical, beirando o niilismo, encontra uma síntese entre ser e não-ser que, ao excluir ambos, acaba, paradoxalmente, incluindo os dois: uma realidade última (mente ou vacuidade que seja) que “nem é nem não é” acaba se tornando uma realidade que, ao mesmo tempo, “é e não é”.

4. “Visão das coisas como elas são” (yathābhūtadarśana) e “bem redonda verdade” (eúkuklos alétheia)

As diferenças identificadas até aqui entre os três filósofos abordados são com certeza significativas, como também, possivelmente, emblemáticas das abordagens filosóficas que podemos chamar, respectivamente, de “grega clássica” e “budista indiana” (posto que seja correto utilizar categorias tão amplas). Na seção anterior, de qualquer forma, apresentei essas diferenças como relativas aos objetivos aos quais as críticas de Zenão, Nāgārjuna e Vasubandhu (ao movimento, à multiplicidade e aos objetos externos) são mais imediatamente funcionais. Agora, se nós passamos a investigar os propósitos últimos da atividade teorética desses autores, a proximidade e a comparabilidade dos seus projetos filosóficos voltam a ser plausíveis.

Primeiramente, no que diz respeito a Nāgārjuna e Vasubandhu, observemos que, no interior do budismo, a investigação racional e a especulação filosófica sempre têm (ou, pelo menos, devem ter), por indicação explícita do seu fundador, um propósito soteriológico. Tendo em mente a doutrina das Quatro Nobres Verdades - moldura, pano de fundo e ponto de fuga de qualquer raciocínio do Buda, e, consequentemente, da tradição filosófica que surge e se apresenta como uma exegese dos seus ensinamentos -, a filosofia deve ser considerada como parte integrante do primeiro aspecto do Caminho Óctuplo (o conjunto de práticas e posturas que o praticante budista deve seguir para vencer o sofrimento intrínseco à própria condição existencial), a “correta visão” (samyag-dṛṣṭi ou, em pāli, sammā-ditthi). A filosofia, portanto, em conjunção com outros aspectos do caminho apontado pelo Buda, é necessariamente funcional àquele que pode ser considerado como o objetivo final de qualquer teoria ou prática budista: o fim do sofrimento que caracteriza intrinsecamente - como declara a Primeira Nobre Verdade - a existência humana e a obtenção do nirvāṇa. Com relação a esse objetivo, as doutrinas e todos os ensinamentos do Buda e dos seus epígonos têm que ser vistos como uma balsa, que deve ser usada para atravessar o rio do sofrimento, mas que deve ser abandonada em seguida, após alcançar a margem do nirvāṇa.53 53 Cf. Mahātaṇhāsaṅkhaya-sutta, Majjhimanikāya I.4.396-414.

Isso significa que tanto o raciocínio radicalmente antimetafísico de Nāgārjuna quanto o metafísico de Vasubandhu querem e devem ser - independentemente das suas diferenças e da sua respectiva eficácia - meios que conduzem os adeptos budistas à mesma experiência do nirvāṇa. Este último, além das suas implicações psico-existenciais (como, primeiramente, o fato de equivaler ao “fim do sofrimento”), tem também uma característica epistemológica crucial: no nível cognitivo, com efeito, o nirvāṇa equivale à “visão das coisas como elas [realmente] são” (yathābhūtadarśana). Todos os pontos de vista filosóficos que encontramos no interior da tradição budista, às vezes muito diferentes entre si, compartilham a mesma finalidade: contribuir para a eclosão dessa visão. A diferença entre Nāgārjuna e Vasubandhu é que, enquanto o primeiro acredita que o yathābhūtadarśana seja produzido pelo abandono de toda e cada teoria sobre a realidade em si, Vasubandhu assume que a representação da realidade em termos de vacuidade ou ausência da dualidade sujeito/objeto - ou, conforme a interpretação idealística do Yogācāra, em termos de pura e absoluta subjetividade - é uma experiência intelectual mais eficaz para alcançar o mesmo objetivo epistêmico.

Se passarmos à questão da “finalidade última” da atividade filosófica de Zenão, podemos pensar que ela seja a mesma que incita Parmênides a escrever seu poema. A saber, aquela finalidade que, no proêmio, a deusa aponta explicitamente: “É necessário que você apreenda tanto o imóvel coração da bem redonda verdade quanto a opinião dos mortais”.54 54 χρεὼ δέ σε πάντα πυθέσθαι ἠμὲν Ἀληθείης εὐκυκλέος ἀτρεμὲς ἦτορ, ἠδὲ βροτῶν δόξας (Diels, 1906, frag. 18 B 1.28-30, p. 115).

Aqui também, portanto, parece que a razão principal por trás da atividade filosóficas dos eleatas era a de promover e produzir uma “revolução cognitiva”, a saber, a passagem de uma visão ordinária, defeituosa da realidade a uma visão suprema, supostamente verdadeira. O fato de esta última ser sucessivamente descrita em termos - de “ser” puro, “ingerado”, “unívoco”, “sem movimento” etc. - diferentes daqueles utilizados por Nāgārjuna (que, de fato, não utiliza termo algum) ou por Vasubandhu (que descreve a realidade suprema como a existente inexistência da dicotomia sujeito/objeto) não impede que a abordagem básica da reflexão dos eleatas possa ser comparada àquela dos dois filósofos budistas: também nesse caso, temos a ideia do possível conseguimento de uma verdade mais profunda daquela que aparece à pessoa ordinária.

Não é o caso, aqui, de nos aventurarmos numa investigação sobre se e até que ponto as experiências da realidade em si que Parmênides, o Buda e seus seguidores supostamente alcançaram e têm em mente possam ser comparáveis e, eventualmente, correspondentes. Mas é fato que, no caso dos três filósofos em exame, é possível encontrar o expediente epistemológico das “duas verdades”,55 55 A oposição entre “verdade ordinária” ou “convencional” (saṃvṛti-satya) e “verdade suprema” ou “última” (paramārtha-satya), que está explícita ou implicitamente presente em qualquer nível da história do pensamento budista, pode ser utilmente comparada à dicotomia parmenídica entre doxa e aletheia. no interior do qual seus pensamentos podem ser resumidos em última análise. Em uma perspectiva da história do pensamento - como aquela invocada na nota 2 desta contribuição - menos regional e mais global, parece possível considerar a abordagem dos nossos três filósofos como parte de um único paradigma filosófico56 56 De qualquer forma, alguns momentos da história do pensamento ocidental moderno também podem caber na moldura da “dupla verdade”. Pensemos, por exemplo, em Spinoza, Fichte ou Schopenhauer. que fala da possibilidade de um deslocamento de uma compreensão ordinária, imperfeita da realidade em si à sua fruição direta, dentro uma experiência cognitiva extraordinária e verdadeira em última análise.57 57 Gostaria de agradecer a professora Miriam Campolina Diniz Peixoto pela ajuda na tradução das passagens zenonianas citadas nas notas 15 e 16.

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  • VASUBANDHU. Viṃśikā (Vasubandhu)(1925). In: LÉVI, Sylvain. Vijñaptimātratāsiddhiḥ: Deux traités de Vasubandhu: Viṃśatikā (La Vingtaine) accompagnée d'une explication en prose et Triṃśikā (La trentaine) avec le commentaire de Sthiramati. Paris: Librairie Ancienne Honoré Champion.
  • 1
    Não há nenhuma base textual ou contextual que nos permita supor que os dois autores indianos mencionados, posteriores em muitos séculos a Zenão, tenham tido qualquer tipo de contato com a filosofia eleática (tampouco, de forma mais geral, com a filosofia grega). Consequentemente, as coincidências apontadas devem ser consideradas acidentais ou, possivelmente, devidas a um padrão de pensamento antigo comum às tradições filosóficas grega e indiana, do qual os estudos comparativos dessas duas tradições podem oferecer numerosos exemplos.
  • 2
    A comparação entre pensamento eleático e budista, até onde eu sei, sempre foi proposta por iniciativa de especialistas em filosofia indiana, frequentemente formados no âmbito da tradição filosófica ocidental ou, de qualquer forma, suficientemente familiarizados com ela. Em geral, observemos que, no mundo acadêmico da filosofia, os “ocidentalistas” que buscam algum diálogo com tradições outras em relação à nossa são definitivamente poucos. Isso parece questionável, hoje em dia, em um mundo global e multicêntrico como o atual, que nos cobra uma abordagem definitivamente cosmopolita e intercultural da filosofia.
  • 3
    Ao longo da discussão nesse capítulo, Nāgārjuna alterna - às vezes por meras razões métricas - essas três palavras com alguns sinônimos: no lugar de gati, por exemplo, por vezes, encontramos gamana (“moto”) ou gantum (“o mover-se”); gantavya, que, de fato, aparece apenas na estrofe final (2.25) do capítulo, nos versos anteriores e no título do capítulo se apresenta na tríplice dimensão de “espaço [já] percorrido” (gata), “espaço [ainda] não percorrido” (agata) e “espaço que está sendo [atualmente] percorrido” (gamyamānam). Todas essas expressões derivam da raiz verbal √gam, “ir”.
  • 4
    A maneira nagarjuniana de argumentar consiste basicamente na redução ad absurdum das teorias dos seus oponentes: utilizando a lógica deles mesmos, Nāgārjuna mostra como sua posição contém “consequências [indesejadas]” (prasaṅga), que, uma vez explicitadas, invalidam as mesmas posições.
  • 5
    A tese de que nossas ideias não derivam de “coisas”, mas surgem e existem em dependência recíproca - conforme a qual, levando em conta alguns exemplos de Nāgārjuna, a ideia de “outro” depende da ideia de “um”, a de “sujeito” depende da de “objeto”, a de “longo” depende da de “curto” e vice-versa - equivale à versão nagarjuniana, bastante peculiar, da doutrina panbudista da “cooriginação dependente” (pratītyasamutpāda). Para mais detalhes sobre essa teoria, cf. Ferraro (2019FERRARO, G. (2019). Two Boats Fastened Together: Nāgārjuna’s Solution to the Question of the Origin of Ideas. Philosophy East and West, v. 69, n. 1, p. 108-129.).
  • 6
    sadbhūto gamanaṃ gantā triprakāraṃ na gacchati | nâsadbhūto ’pi gamanaṃ triprakāraṃ sa gacchati || gamanaṃ sadasadbhūtaḥ triprakāraṃ na gacchati | tasmād gatiś ca gantā ca gantavyaṃ ca na vidyate.
  • 7
    Como explica Buddhapālita: “Uma vez que a ação de ir é a mais importante (pradhāna) de todas as ações (kriyā) [...], já que o ir revela-se impossível, assim, igualmente, todas as ações se revelam impossíveis” (Buddhapālitavṛtti, trad. Saito, 1984SAITO, A. (1984). A study of the Buddhapālita-mūlamadhyamaka-vṛtti. Tese (Doutorado em Filosofia) - Australian National University., p. 49).
  • 8
    yathā māyā yathā svapno gandharvanagaraṃ yathā - essa fórmula é utilizada por Nāgārjuna, com algumas variações, em mais de uma ocasião, no final de algumas das suas “investigações críticas”. Uma “cidade de Gandharvas” é uma imagem que corresponde à miragem da fata Morgana.
  • 9
    gataṃ na gamyate tāvad agataṃ naiva gamyate | gatāgatavinirmuktaṃ gamyamānaṃ na gamyate.
  • 10
    Como é o caso de todos os “textos-raiz” - tipicamente herméticos - que estão na base das diferentes tradições indianas de pensamento, também (ou sobretudo) as MMK de Nāgārjuna devem ser lidas com o auxílio da tradição comentarial. Essa tradição, no caso da obra-prima de Nāgārjuna, é especialmente copiosa. Segundo as fontes, ela consistia em oito comentários verbatim. Deles, cinco - escritos entre a época de Nāgārjuna e três ou quatro séculos após sua morte - chegaram até nós, na sua versão tibetana ou chinesa e, no caso das Prasannapadā de Candrakīrti, no sânscrito original.
  • 11
    na ca gatāgatavyatirekeṇa tṛtīyamaparamadhvajātaṃ paśyāmo gamyamānaṃ nāma(Candrakīrti, Prasannapadā 93.7).
  • 12
    A tradução comum de paramāṇu como “átomo” não é apropriada aqui, pois um átomo tem uma certa extensão e é indivisível: “enquanto a ideia de um tamanho atômico do paramāṇu sugere a doutrina de mínimos espaciais, a doutrina de que esse tamanho é não aditivo sugere a concepção de um átomo realmente sem dimensão, isto é, um ponto” (Siderits; O’Brien, 1976SIDERITS, M.; O’BRIEN, J. D. (1976). Zeno and Nāgārjuna on Motion. Philosophy East and West , v. 26, n. 3, p. 281-299., p. 287).
  • 13
    No sânscrito original do Prasannapadā, temos aqui gate e, na frase sucessiva, agate, ou seja, respectivamente, “[já] percorrido” e “[ainda] não percorrido”. De fato, essa é a tradução “padrão” dessa passagem. No entanto, o sentido lógico dessa tradução é, a meu ver, insatisfatório. Com efeito, se o espaço atrás da ponta do dedão fosse o já percorrido e aquele no fim do calcanhar o ainda não percorrido, teríamos que pensar - como Siderits e O’Brien (1976SIDERITS, M.; O’BRIEN, J. D. (1976). Zeno and Nāgārjuna on Motion. Philosophy East and West , v. 26, n. 3, p. 281-299., p. 290) notam - que o “móvel anda para trás!”. Para evitar essa estranheza, parece apropriado aceitar a suposição de Siderits e O’Brien (1976, p. 290) de que nessa passagem haja um erro do escriba (do manuscrito do qual dispomos), que, respectivamente, tirou e acrescentou um “a” antes dos dois gate. Galloway (1987GALLOWAY, B. (1987). Notes on Nāgārjuna and Zeno on Motion. The Journal of the International Association of Buddhist Studies , v. 10, n. 2, p. 80-87., p. 84) e Mabbett (1984MABBETT, I. W. (1984). Nāgārjuna and Zeno on motion. Philosophy East and West , v. 34, n. 4, p. 401-420., p. 410), entretanto, acreditam que o texto de Candrakīrti faça sentido mesmo sem supor um erro de cópia.
  • 14
    caraṇayorapi paramāṇusāṃghātatvāt | aṅgulyagrāvasthitasya paramāṇoryaḥ pūrvo deśaḥ, sa tasya *agate'ntargataḥ | pārṣṇyavasthitasya caramaparamāṇorya uttaro deśaḥ, sa tasya *gate'ntargataḥ | na ca paramāṇuvyatirekeṇa caraṇamasti (Prasannapadā 93.10-12).
  • 15
    ἔστι δ’ἀεὶ τὸ φερόμενον ἐν τῶι νῦν (Diels, 1906DIELS, Hermann (1906). Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin: Weidmannsche Buchhandlung., frag. 19 A 27 46, p. 131).
  • 16
    ἀκίνητον τὴν φερομένην ὀιστόν (Diels, 1906DIELS, Hermann (1906). Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin: Weidmannsche Buchhandlung., frag. 19 A 27 47, p. 131).
  • 17
    K. Bhattacharya (1985BHATTACHARYA, K. (1985). Nāgārjuna’s Arguments against Motion. The Journal of the International Association of Buddhist Studies, v. 8, n. 1, p. 7-15. ) - em contraste com as evidências mencionadas e com a tendência prevalecente nos estudos dedicados ao Madhyamaka, que concordam em encontrar nos argumentos de Nāgārjuna uma lógica ao menos parcialmente “Zeno-like” - acredita e tenta demonstrar que o inteiro capítulo 2 das MMK é fundamentado em raciocínios de ordem “gramatical” e não “matemática” e que, portanto, “tal capítulo em momento nenhum tem algo a ver com os argumentos zenonianos contra o movimento”.
  • 18
    gate nârabhyate gantuṃ gantuṃ nârabhyate ’gate | nârabhyate gamyamāne gantum ārabhyate kuha
  • 19
    prāg asti gamanārambhād gamyamānaṃ na no gatam | yatrârabhyeta gamanam agate gamanaṃ kutaḥ
  • 20
    Uma aproximação entre os argumentos antiatomistas de Zenão e aqueles de Vasubandhu foi proposta por Bruhacs (2008BRUHACS, L. (2008).Vasubandhu’s Argument Against Atomism in the Twenty Verses. Tese (Doutorado em Filosofia) - Johann Wolfgang Goethe Universität Institut für Philosophie, Frankfurt am Main., p. 92ss). Um aceno ao antiatomismo zenoniano no interior de um artigo dedicado aos argumentos de Vasubandhu contra a existência de objetos externos pode ser encontrado em Kapstein (1988KAPSTEIN, M. (1988). Mereological Considerations in Vasubandhu’s “Proof of Idealism” (Vijñaptimātratāsiddhiḥ). Idealistic Studies, v. 18, n. 1, p. 32-54., p. 36).
  • 21
    Com base em uma passagem de Vairocanarakṣita e em três fontes manuscritas, Kanō (2008KANŌ, K. (2008). Two Short Glosses on Yogācāra Texts by Vairocanarakṣita: Viṃśikāṭīkāvivṛti and *Dharmadharmatāvibhāgavivṛti”. In: ISAACSON, H.; SFERRA, F. (Eds.). Manuscripta Buddhica, 1. Roma: Istituto Italiano per l’Africa e l’Oriente, p. 343-380., p. 345) mostra que, para se referir a essa obra de Vasubandhu, “Viṃśikā” deve ser considerado como um título mais plausível do que “Viṃśatikā”, com o qual (desde a época dos estudos de Levi) a obra é mais frequentemente citada na literatura secundária.
  • 22
    Cf. Simplício, In Phys. 139-41.
  • 23
    vijñaptimātram eva idam asad arthāvabhāsanāt (Viṃśikā 1). A versão de vijñapti com “cognition” (cf. Kellner; Taber, 2014KELLNER, B.; TABER, J. (2014). Studies in Yogācāra-Vijnānavāda idealism I: The interpretation of Vasubandhu’s Viṃśikā. Asiatische Studien/Études Asiatiques, v. 68, n. 3, p. 709-756., p. 735) parece preferível a “representation”, “manifestation”, “perception”, “appearance” ou “phenomenon”, com as quais essa palavra é mais frequentemente traduzida em inglês na literatura dedicada à escola Yogācāra.
  • 24
    O pronome tad (que aqui traduzi genericamente com “coisa”) no verso se refere ao objeto dos sentidos. A parte em prosa (autocomentarial) que introduz esse verso, com efeito, levantou a questão da razão pela qual, apesar da efetiva inexistência dos objetos externos, o Buda falou sobre os doze “campos sensoriais” (āyatana), a saber, os seis sentidos internos e seus respectivos objetos externos.
  • 25
    na tad ekaṃ na cānekaṃ viṣayaḥ paramāṇuśaḥ | na ca te saṃhatā yasmāt paramāṇur na sidhyati
  • 26
    na tāvad ekaṃ viṣayo bhavaty avayavebhyo ‘nyasyāvayavirūpasya kvacid apy agrahaṇāt
  • 27
    nāpy anekaṃ paramāṇūnāṃ pratyekam agrahaṇāt | nāpi te saṃhatā viṣayībhavanti
  • 28
    paramāṇur na sidhyati
  • 29
    ṣaṭkena yugapad yogāt paramāṇoḥ ṣaḍaṃśatā |ṣaṇṇāṃ samānadeśatvāt piṇḍaḥ syādaṇumātrakaḥ ||
  • 30
    O verso 14 reza: “Se não houver contato de um átomo [com outros átomos], no caso de uma coleção desses [átomos], haveria [contato] de quê? Ademais, se não tivessem partes, não poderia ser comprovado que o contato entre elas não acontece” (paramāṇor asaṃyogāt tatsaṃghāte 'sti kasya saḥ | na cānavayavatvena tatsaṃyogo na sidhyati). Essa estrofe replica à suposição (de um oponente realista-atomista) de que os átomos seriam, de fato, pontos inextensos, mas, apesar disso, conseguiriam formar agregados mínimos - que nós chamaríamos de moléculas - sem tocar um ao outro (evitando, dessa forma, o problema de uma multiplicação infinita das suas partes) e mantendo uma certa distância entre si (evitando, assim, o problema de uma infinita agregação do mesmo ponto inextenso). A réplica de Vasubandhu - no verso e na vṛtti (“comentário”) relativa - a essa hipótese é que, para formar corpos, mesmo que os átomos que formam as moléculas mencionadas não se toquem reciprocamente, as mesmas moléculas têm que tocar uma à outra. Ora, as moléculas são feitas de átomos: logo, se elas se tocam entre si, seus átomos têm que ficar em contato, reproduzindo, dessa forma, as dificuldades que o oponente de Vasubandhu buscava evitar.
  • 31
    digbhāgabhedo yasyāsti tasyaikatvaṃ na yujyate | chāyāvṛtī katha anyo na piṇḍaś cen na tasya te
  • 32
    O autocomentário a essa estrofe explica: “se houvesse uma divisão do átomo em porções de espaço, como [suas] partes dianteiras ou traseiras, como haveria singularidade/simplicidade de um tal átomo?” (anyo hi paramāṇoḥ pūrvadigbhāgo yāvad adhodigbhāga iti digbhāgabhede sati kathaṃ tadātmakasya paramāṇor ekatvaṃ yokṣyate).
  • 33
    Portanto, a hipótese inicial - de que um cluster de átomos adquire características (como, nesse caso, a impenetrabilidade) das quais os átomos singulares careceriam - é aqui descartada com base na ideia zenoniana de que, se um átomo singular tiver um grau zero de penetrabilidade e resistência, sua coleção não poderia dar lugar a corpos impenetráveis e resistentes.
  • 34
    Em outras palavras, uma parte A, supostamente atômica, interna a um corpo, para se distinguir de uma outra parte B, deveria ter um elemento C de separação que “se sobressai” e se distingue do seu núcleo (A) e viabiliza a distinção entre A e B. No entanto, segundo conclui o argumento, A e C também devem ter, entre si, um elemento de separação (D), e assim por diante. Esse raciocínio, evidentemente, corresponde perfeitamente àquele implícito no verso 12 da Viṃśikā de Vasubandhu.
  • 35
    εἰ δὲ ἔστιν, ἀνάγκη ἕκαστον μέγεθός τι ἔχειν καὶ πάχος καὶ ἀπέχειν αὐτοῦ τὸ ἕτερον ἀπὸ τοῦ ἑτέρου. καὶ περὶ τοῦ προύχοντος ὁ αὐτὸς λόγος. καὶ γὰρ ἐκεῖνο ἕξει μέγεθος καὶ προέξει αὐτοῦ τι. ὅμοιον δὴ τοῦτο ἅπαξ τε εἰπεῖν καὶ ἀεὶ λέγειν· οὐδὲν γὰρ αὐτοῦ τοιοῦτον ἔσχατον ἔσται οὔτε ἕτερον πρὸς ἕτερον οὐκ ἔσται (Simplício, In Phys., 141.2-6).
  • 36
    ὅτι οὗ μήτε μέγεθος μήτε πάχος μήτε ὄγκος μηθείς ἐστιν, οὐδ᾽ ἂν εἴη τοῦτο (Simplício, In Phys., 139.10-11).
  • 37
    εἰ γὰρ ἄλλωι ὄντι, φησί, προσγένοιτο, οὐδὲν ἂν μεῖζον ποιήσειεν· μεγέθους γὰρ μηδενὸς ὄντος, προσγενομένου δέ, οὐδὲν οἷόν τε εἰς μέγεθος ἐπιδοῦναι. καὶ οὕτως ἂν ἤδη τὸ προσγινόμενον οὐδὲν εἴη (Simplício, In Phys., 139.11-13).
  • 38
    εἰ πολλά ἐστι, καὶ μεγάλα ἐστὶ καὶ μικρά μεγάλα μὲν ὥστε ἄπειρα τὸ μέγεθος εἶναι, μικρὰ δὲ οὕτως ὥστε μηθὲν ἔχειν μέγεθος (Simplício, In Phys., 139.8-9).
  • 39
    Na última estrofe das MMK (27.30), Nāgārjuna presta homenagem ao Buda, definindo-o como aquele que, “movido pela compaixão, mostrou o ensinamento verdadeiro para a eliminação (prahāṇāya) de todas as teorias (sarva-dṛṣṭi)”.
  • 40
    gantā na tiṣṭhate tāvad agantā naiva tiṣṭhati | anyo gantur agantuś cá kas tṛtīyo ’tha tiṣṭhati. Os versos sucessivos acrescentam: “Como, de fato, poderá haver um móvel que fica estável, uma vez que um móvel sem movimento é inadmissível?” (MMK 2.16); “[As coisas] não derivam sua imobilidade do que está sendo [atualmente] percorrido, nem do [já] percorrido, nem do [ainda] não percorrido” (MMK 2.17ab).
  • 41
    “A vacuidade foi declarada pelos [buddhas] vitoriosos como um meio de extinção (niḥsaraṇam) de todas as teorias metafísicas (sarva-dṛṣṭīnāṃ). Mas aqueles para os quais a vacuidade é uma teoria devem ser considerados incorrigíveis.”
  • 42
    Uso a palavra “metafísica” no sentido de “estudo do ser enquanto ser”. Um sentido confirmado por Kant na Antitética da Razão Pura e nos Prolegômenos a toda a metafísica futura, nos quais ele condena como metafísica qualquer tentativa de oferecer descrições do noumenon ou realidade em si. Ainda, van Inwagen (2009, p. 1), recentemente, declarou: “Quando fui introduzido à metafísica, durante a graduação, me foi dada a definição seguinte: a metafísica é o estudo da realidade última (ultimate reality). Essa ainda me parece a melhor definição de metafísica que eu já encontrei”.
  • 43
    Segundo a doutrina dos “três giros da roda do Dharma” (tridharmacakra) relatada pelo sétimo capítulo do Saṃdhinirmocanasūtra, “O primeiro giro, ao enfatizar os entes (dharmas, agregados etc.) e ‘escondendo’ a vacuidade, pode conduzir alguém a defender um ponto de vista substancialista; o segundo giro, ao enfatizar a negação e ‘escondendo’ as qualidades positivas do Dharma, pode ser erroneamente interpretado como niilismo. O terceiro giro foi um caminho do meio entre esses extremos, que finalmente tornou tudo explícito” (Lusthaus, 2004LUSTHAUS, D. (2004). What is and isn’t Yogācāra. Yogacara Buddhism Research Association Online Articles. Disponível em: http://www.acmuller.net/yogacara/articles/intro-uni.html. Acesso em: jul. 2019.
    http://www.acmuller.net/yogacara/article...
    ).
  • 44
    Leituras “clássicas” da filosofia do Yogācāra como idealismo metafísico são, por exemplo, a de Dasgupta (1933DASGUPTA, S. (1933). Indian Idealism. London: Cambridge University Press.), Stcherbatsky, (1994STCHERBATSKY, Th. (1994). Buddhist Logic. Delhi: Motilal Banarsidass. (1ª ed. 1930-32)., p. 12-13) ou May (1971MAY, J. (1971). La Philosophie Bouddhique Idéaliste. Asiatische Studien, v. 25, p. 265-323.). Exemplos mais recentes desse tipo de interpretação podem ser as leituras de Williams (1989WILLIAMS, P. (1989). Mahāyāna Buddhism: The Doctrinal Foundations. London: Routledge.), Garfield (2002GARFIELD, J. L. (2002). Empty Words. New York; Oxford: Oxford University Press.) ou Arnold (2008ARNOLD, D. (2008). Buddhist Idealism, Epistemic and Otherwise: Thoughts on the Alternating Perspectives of Dharmakīrti. Sophia, v. 47, p. 3-28.).
  • 45
    “Já que os objetos fenomênicos não são reais, tudo isso é mera cognição, exatamente como a visão de um [inexistente] emaranhado de cabelos por parte de alguém que sofre de descolamento do vítreo posterior.”
  • 46
    Stcherbatsky (1994STCHERBATSKY, Th. (1994). Buddhist Logic. Delhi: Motilal Banarsidass. (1ª ed. 1930-32)., p. 13), por exemplo, acredita que a “a ausência de um mundo externo e de qualquer cognição que o apreenda - [e a existência] apenas de uma cognição introspectiva que apreende, por assim dizer, seu próprio si, o universo, o mundo real - foi considerada como [a existência de] uma infinidade de ideias possíveis que ficam dormindo em uma consciência ‘repositório’. A realidade se torna, consequentemente, pensabilidade”. Leituras idealístico-metafísicas da “natureza própria perfeitamente realizada” (pariniṣpanna-svabhāva) podem ser encontradas em Chatterjee (1971CHATTERJEE, A. K. (1971). Readings on Yogācāra Buddhism. Varanasi: Banaras Hindu University., p. 31) ou em Williams (1989WILLIAMS, P. (1989). Mahāyāna Buddhism: The Doctrinal Foundations. London: Routledge., p. 82-85).
  • 47
    Dharmapāla (VI século), por exemplo, é um autor mais tardio dessa escola que concebe a noção de ālayavijñāna como, definitivamente, um nível supremo de realidade, desenvolvendo, dessarte, um tipo de pensamento que pode ser mais propriamente considerado como um idealismo metafísico.
  • 48
    A dualidade grāhya/grāhaka, literalmente, “apanhado/apanhador” (grasped/grasper), corresponde à dicotomia entre “objeto percebido” e “sujeito perceptor”.
  • 49
    dvayagrāhyagrāhakasyābhāvaḥ / tasya cābhāvasya bhāvaḥ śūnyat[ā]yā lakṣaṇam
  • 50
    Madhyāntavibhāga-kārikāḥ I.15.
  • 51
    Por exemplo, na segunda estrofe do Madhyāntavibhāga-kārikā - em contradição manifesta com a concepção nagarjuniana da vacuidade que encontramos exemplarmente no célebre verso 24.18 das MMK -, encontramos: “cada coisa não é vazia nem não vazia, pela existência [da ilusão], pela não-existência [da dualidade] e pela existência [da vacuidade] - é esse é o caminho do meio”.
  • 52
    Lembremos que esse filósofo poliédrico, possivelmente, em momentos diversos da sua carreira, escreveu obras - uma vez que a hipótese de Frauwallner (1951FRAUWALLNER, E. (1951). On the Date of the Buddhist Master of the Law Vasubandhu. Roma: Istituto per il Medio ed Estremo Oriente.) dos dois autores chamados de “Vasubandhu” é hoje em dia considerada sem fundamento - que expõem filosofias diferentes da yogācāra: O Abhidharmakośa, soma do pensamento sarvāstivāda, e o Abhidharmakośa-bhaṣya, epítome da filosofia sautrāntika.
  • 53
    Cf. Mahātaṇhāsaṅkhaya-sutta, Majjhimanikāya I.4.396-414.
  • 54
    χρεὼ δέ σε πάντα πυθέσθαι ἠμὲν Ἀληθείης εὐκυκλέος ἀτρεμὲς ἦτορ, ἠδὲ βροτῶν δόξας (Diels, 1906DIELS, Hermann (1906). Die Fragmente der Vorsokratiker. Berlin: Weidmannsche Buchhandlung., frag. 18 B 1.28-30, p. 115).
  • 55
    A oposição entre “verdade ordinária” ou “convencional” (saṃvṛti-satya) e “verdade suprema” ou “última” (paramārtha-satya), que está explícita ou implicitamente presente em qualquer nível da história do pensamento budista, pode ser utilmente comparada à dicotomia parmenídica entre doxa e aletheia.
  • 56
    De qualquer forma, alguns momentos da história do pensamento ocidental moderno também podem caber na moldura da “dupla verdade”. Pensemos, por exemplo, em Spinoza, Fichte ou Schopenhauer.
  • 57
    Gostaria de agradecer a professora Miriam Campolina Diniz Peixoto pela ajuda na tradução das passagens zenonianas citadas nas notas 15 e 16.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Dez 2021
  • Aceito
    18 Mar 2022
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