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Sofrimento moral em enfermeiros dos departamentos de fiscalização do Brasil

Resumo

Objetivo

Identificar a frequência e a intensidade das causas de sofrimento moral vivenciado por enfermeiros nos departamentos de fiscalização do Brasil.

Métodos

Estudo transversal realizado com 28 profissionais de competência gerencial e 113 profissionais de competência fiscalizatória. A amostra foi intencional e não probabilística. Os dados foram obtidos por meio de questionário e submetidos à análise descritiva e bivariada.

Resultados

Os participantes revelaram causas do sofrimento moral em dois momentos: Primeiro associado ao processo de fiscalização lento por parte das instituições fiscalizadas e Corens; e insuficiência de recursos humanos. Segundo associado aos problemas éticos; condições de trabalho; e qualidade da assistência de enfermagem.

Conclusão

Refletir sobre as causas do sofrimento moral neste cenário é reconhecer a necessidade de algumas mudanças que devem acontecer na base que sustenta os preceitos éticos e condutas morais da profissão, para assim fortalecer a categoria.

Regulação e fiscalização em saúde; Ética em Enfermagem; Ética; Dano moral

Abstract

Objective

To identify the frequency and intensity of the causes of moral suffering experienced by nurses in inspection departments in Brazil.

Methods

Cross-sectional study with 28 professionals of managerial competence and 113 professionals of inspection competence. The sample was intentional and non-probabilistic. Data were collected through a questionnaire and submitted to descriptive and bivariate analysis.

Results

Participants revealed the causes of moral suffering in two stages: firstly, associated with the slow inspection process by the inspected institutions and Corens, and insufficient human resources. Secondly, associated with ethical problems; work conditions; and quality of nursing care.

Conclusion

To reflect on the causes of moral suffering in this scenario is to recognize the need for changes that should take place on the basis that sustains the profession’s ethical precepts and moral conducts, so as to strengthen the category.

Health care coordination and monitoring; Ethics, nursing; Ethics; Moral damage

Introdução

O sofrimento moral (SM) se manifesta a partir da sensibilidade do profissional a questões morais, em virtude de situações conflitantes. Surge quando o sujeito é colocado frente a questões que lhe exigem posicionamento contrário aos valores pessoais e/ou profissionais e esta decisão não produz os efeitos esperados.(11. Ramos FR, Barlem EL, Brito MJ, Vargas MA, Schneider DG, Brehmer LC. Conceptual framework for the study of moral distress in nurses. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(2):e4460015.)

O fenômeno passou a ganhar relevância no cenário da enfermagem em consequência de ser considerado um dos principais problemas na profissão, uma vez que afeta os trabalhadores em inúmeras situações do seu dia-a-dia. O SM foi associado às respostas psicológicas (medo, ansiedade, insegurança entre outros); e ao ambiente de trabalho (situações específicas como comunicação ineficaz, baixa autonomia, recursos humanos insuficientes, entre outros).(22. Corley MC. Nurse moral distress: a proposed theory and research agenda. Nurs Ethics. 2002; 9(6):636-50.)

Em estudo com trabalhadores de enfermagem de três instituições hospitalares do Sul do Brasil, foi evidenciado que os enfermeiros apresentaram a maior percepção de SM, seguido dos auxiliares e técnicos. Os enfermeiros também apresentaram intensidade mais elevada de SM diante da falta de competência na equipe de trabalho, desrespeito à autonomia do paciente e condições de trabalho insuficientes, enquanto a obstinação terapêutica causou maior intensidade de SM entre os auxiliares de Enfermagem. Por fim, reconhece-se que dificuldades encontradas na organização do ambiente de trabalho é uma importante causa de SM.(33. Dalmolin GL, Lunardi VL, Lunardi GL, Barlem EL, Silveira RS. Nurses, nursing technicians and assistants: who experiences more moral distress?. Rev Esc Enferm USP. 2014; 48(3):521-9.)

A literatura na área da saúde tem geralmente descrito este fenômeno no ambiente clínico, revelando as experiências de enfermeiros e profissionais que proporcionam assistência direta ao paciente. Esta limitação, apesar da importância do trabalho clínico, aponta para a necessidade de investigar o SM em outros contextos de atuação.(44. Ganske KM. Moral distress in academia. Online J Issue Nurs. 2010; 15(3): Manuscript 6.)

O SM não se limita somente ao contexto da enfermagem, já sendo destacado como problema no cotidiano dos farmacêuticos, associado a problemas na organização do trabalho, nas relações interprofissionais e com os pacientes; dos médicos, devido a sentimento de impotência diante das atitudes dos colegas, de questões relacionadas à qualidade do cuidado e entraves burocráticos, entre outros; e dos psicólogos, em virtude de relações profissionais conflituosas, demandas interinstitucionais e disputas interdisciplinares. Assim, o ambiente de trabalho em serviços de saúde se mostra uma fonte de SM, o que demonstra a gravidade da situação e reforça a importância de se ampliar a discussão sobre a temática.(55. Crnjanski T, Krajnovic D, Stojkov-Rudinski S, TadiĆ I. Ethical dilemmas and moral distress in pharmacy: A qualitative study. HealthMed. 2012; 6(7):2485-93.

6. Forde R, Aasland OG. Moral distress among Norwegian doctors. J Med Ethics. 2008; 34(7):521-5.
-77. Austin W, Rankel M, Kagan L, Bergum V, Lemermeyer G. To stay or to go, to speak or stay silent, to act or not to act: moral distress as experienced by psychologists. Ethics Behav. 2005; 15(3):197-212.)

Diante deste cenário, evidencia-se o quanto é relevante conhecer as causas do SM dos enfermeiros que trabalham nos departamentos de fiscalização brasileiros, uma vez que não se identificaram, na literatura, estudos sobre esta temática. No tocante ao cotidiano laboral destes enfermeiros, o enfoque tem sido direcionado para os problemas de dimensões éticas e legais, associados às relações interpessoais e aos trâmites que envolvem seu processo de trabalho.(88. Silveira LR, Ramos FR. Os maiores desafios e dificuldades para realizar o trabalho de fiscal do COREN/SC. Enferm Foco. 2014; 5(1/2):33-6.) Assim como questões éticas da prática destes profissionais devem ser objeto de reflexão, as consequências destas para as vivências do trabalhador, incluindo o SM, devem ser criticamente abordadas.

O desafio que se coloca é explorar as causas relacionadas ao SM no cotidiano laboral destes profissionais fundamentadas pelo marco conceitual do distresse moral.(11. Ramos FR, Barlem EL, Brito MJ, Vargas MA, Schneider DG, Brehmer LC. Conceptual framework for the study of moral distress in nurses. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(2):e4460015.) O marco é um processo atualizado às novas necessidades do campo de conhecimento da enfermagem. Consiste em articular variados conceitos ou momentos da experiência moral, como o de incerteza, sensibilidade moral, deliberação moral e competência moral.

Assim, este estudo tem como objetivo identificar a frequência e a intensidade das causas de SM vivenciado por enfermeiros de competência gerencial e fiscalizatória nos departamentos de fiscalização do Brasil. Este é um dos objetivos da tese de doutorado intitulada “A fiscalização do exercício profissional de enfermagem no Brasil: problemas éticos”, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Métodos

Estudo transversal desenvolvido nos Departamentos de Fiscalização dos Conselhos Regionais de Enfermagem brasileiro.

Todos os 26 Estados e um Distrito Federal que compõem a República Federativa do Brasil possuem uma sede de Conselho de Enfermagem, totalizando 27. Cada conselho possui um Departamento de Fiscalização que, ao todo, contam com 52 profissionais de competência gerencial (Enfermeiro que desempenha papel de chefia: gerente) e 329 profissionais de competência fiscalizatória (Enfermeiro que tem como atividade primordial a inspeção: fiscal), que constituíram a população do estudo.

Optou-se por uma amostra intencional e não probabilística, buscando alcançar representatividade de todos os conselhos. Dado o caráter voluntário da participação foi possível obter a colaboração de fiscais de todos os conselhos e de gerentes de 22 conselhos.

Para a coleta de dados, utilizou-se um questionário com perguntas fechadas e uma aberta construído pelas próprias autoras, sendo as perguntas elaboradas a partir de um estudo anterior.(88. Silveira LR, Ramos FR. Os maiores desafios e dificuldades para realizar o trabalho de fiscal do COREN/SC. Enferm Foco. 2014; 5(1/2):33-6.)O instrumento foi validado por professores doutores e mestres em enfermagem, todos familiarizados com a temática estudada. Para assegurar condições de aplicabilidade e confiabilidade, buscou-se garantir a validade de face, de modo a verificar adequação das questões do instrumento de coleta de dados quanto à forma e linguagem em relação ao objetivo.

As questões fechadas abordaram as seguintes variáveis: Impossibilidade de agir frente à falta cometida por um profissional de enfermagem durante o exercício profissional; Falta de competência ou compromisso de membros da equipe de fiscalização; Necessidade de priorizar as instituições a serem inspecionadas pela insuficiência de recursos humanos; Insegurança ou falta de respaldo ao notificar; Processo de fiscalização lento por parte do Coren e instituições fiscalizadas; Processo de fiscalização conflituoso no Coren e instituições fiscalizadas. A pergunta aberta permitiu aos participantes expressarem espontaneamente sobre as causas do SM no seu cotidiano de trabalho.

As questões foram operacionalizadas por meio de uma escala Likert de cinco pontos. Para as questões de frequência utilizou-se 1 para “nunca”, 2 para “raramente”, 3 para “algumas vezes”, 4 para “muitas vezes”, 5 para “sempre”. Na avaliação da intensidade as referências foram as seguintes: 1 para “nenhuma intensidade”, 2 para “pouca intensidade”, 3 para “intenso”, 4 para “muito intenso”, 5 “máxima intensidade”.

O questionário foi o mesmo para ambos os grupos (gerentes e fiscais). Os dados foram coletados no período de novembro 2013 a novembro de 2014. A coleta de dados ocorreu em três etapas:

A primeira etapa da coleta foi presencial e aplicada durante o 6º Seminário Nacional de Fiscalização do Exercício Profissional de Enfermagem, onde ocorreu a divulgação da pesquisa e a distribuição dos instrumentos impressos, retornados para a pesquisadora ao final do evento. O seminário foi escolhido por integrar um grande número de gerentes e fiscais que atuam nos conselhos brasileiros. A etapa seguinte se deu com o envio do questionário por meio de um link eletrônico (Formulários Google™). A estratégia tinha a intenção de captar os participantes que não foram ao seminário e mobilizar os que optaram em não responder naquele momento. Na terceira etapa, para alcançar a representatividade em todas as regiões e dos dois tipos de participantes, recorreu-se a uma estratégia adicional, qual seja, o envio dos questionários por correio.

Os dados foram submetidos a duas análises distintas, utilizando-se o programa Statistical Package for Social Sciences versão 20.0. Chicago: SPSS Inc.; 2011. Constou de estatística descritiva, mediante a utilização de médias e distribuição de frequência, para identificar a intensidade e frequência das causas de SM; e análise bivariada, foi realizada utilizando as tabelas de contingência e teste de associação do qui-quadrado (χ2) ou Prova Exata de Fisher, o que permitiu comparar a experiência dos participantes. O nível de significância estabelecido foi valor de p<0,05. Em cada simulação foram aplicados os testes de normalidade.

O estudo foi registrado na Plataforma Brasil sob o número do Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE): 20169313.1.0000.0121.

Resultados

Utilizando-se de estratégias consecutivas de coleta, a amostra dos participantes abrangeu a seguinte distribuição dos respondentes (% em relação à amostra): região norte (fiscais 10,6% - gerentes 17,9%); região nordeste (fiscais 27,4% - gerentes 32,1%); região centro oeste (fiscais 8,8% - gerentes 14,3%); região sudeste (fiscais 36,3% - gerentes 25%); região sul (fiscais 16,8% - gerentes 10,7%).

Quanto ao perfil, a faixa etária predominante foi de 31 a 40 anos para ambos os cargos (43% e 50% respectivamente para gerentes e fiscais); sexo feminino (89% e 86%). O tempo de atuação no conselho foi maior entre os gerentes (43% entre 6 a 10 anos) em relação aos fiscais (42% entre 1 a 5 anos). A maioria possuía pós-graduação (82% e 80% com especialização e 25% e 15% com mestrado, respectivamente, para gerentes e fiscais).

Frequência e intensidade das situações que causam sofrimento moral

A partir das 8 (oito) situações (variáveis) apresentadas, a análise permitiu identificar a frequência e a importância de cada uma das causas de SM sugeridas, tanto para os profissionais de competência gerencial quanto para os de competência fiscalizatória. No caso dos profissionais de competência gerencial, observou-se que o predomínio do fenômeno está associado ao processo de fiscalização lento por parte das instituições fiscalizadas, o qual obteve como frequência “muitas vezes” (em 66,7% das respostas), sendo mais significativas as intensidades “intenso” (22,2%) e “muito intenso” (33,3%). Também se mostrou destaque para o resultado referente à necessidade de priorizar as instituições a serem inspecionadas pela insuficiência de recursos humanos, com frequências de “muitas vezes” (34,6%) e “sempre” (26,9%), enquanto a intensidade variou entre “intenso” (28,0%), “muito intenso” (20,0%) e “máxima intensidade” (32,0%).

Com menores prevalências e sem representar impactos importantes para o cotidiano destes profissionais constatou-se a insegurança ou falta de respaldo ao notificar, com as respostas “nunca” (25,9%), “raramente” (40,7%), e “algumas vezes” (25,9%), e intensidade entre “nenhuma intensidade” (26,9%) e “pouca intensidade” (38,5%). O processo de fiscalização conflituoso no Coren expressou frequências “nunca” (23,1%), “raramente” (30,8%) e “algumas vezes” (34,6%), com intensidade variando entre “nenhuma intensidade” (22,2%), “pouca intensidade” (40,7%), e “intenso” (22,2%). Finalmente, à falta de competência ou compromisso de membros da equipe de fiscalização, a maioria dos participantes ressaltou as frequências “nunca” (18,5%), “raramente” (40,7%), e “algumas vezes” (25,9%), à qual foram atribuídas às importâncias “pouca intensidade” (34,6%) e “intenso” (30,8%).

Verificou-se nas análises das situações vivenciadas pelos profissionais de competência fiscalizatória que as principais ocorrências na percepção destes profissionais estão relacionadas ao processo de fiscalização lento por parte das instituições fiscalizadas, onde as respostas concentram-se entre “algumas vezes” (24,3%), “muitas vezes” (38,7%) e “sempre” (19,8%), com intensidade entre “intenso” (25,9%), “muito intenso” (25,9%%), e “máxima intensidade” (23,1%). Outras situações importantes envolvem o processo de fiscalização lento por parte do Coren, neste caso as respostas mais frequentes foram “algumas vezes” (33,9%), “muitas vezes” (24,8%) e “sempre” (19,3%), sendo que, na intensidade enfatizaram-se as respostas “intenso” (23,6%), “muito intenso” (23,6%), e “máxima intensidade” (26,4%), e a necessidade de priorizar as instituições a serem inspecionadas pela insuficiência de recursos humanos, com respostas mais frequentes para “algumas vezes” (24,1%), “muitas vezes” (28,7%) e “sempre” (23,1%), e intensidades de “intenso” (22,9%), “muito intenso” (23,8%), e “máxima intensidade” (21,9%).

Entretanto, observaram-se situações que não são relevantes para causar SM como a falta de competência ou compromisso de membros da equipe de fiscalização, com as respostas “nunca” (38,4%) e “raramente” (37,5%), e com importância indo de, “nenhuma intensidade” (39,8%) até “pouca intensidade” (24,1%) e a insegurança ou falta de respaldo ao notificar, com o predomínio das respostas “raramente” (36,6%) e “algumas vezes” (28,6%), com intensidade atribuída em “nenhuma intensidade” (20,2%), “pouca intensidade” (33,9%) e “intenso” (19,3%).

Ao comparar a experiência dos participantes, o resultado da análise do coeficiente de correlação de Pearson revelou significância estatística (dentro dos padrões estabelecidos para este estudo, valor de p<0,05) na variável processo de fiscalização lento por parte das instituições fiscalizadas, associada à frequência (p<0,04); e na variável processo de fiscalização conflituoso nas instituições fiscalizadas associada à frequência (p<0,05) e a intensidade (p<0,02).

Causas do sofrimento moral a partir do cotidiano laboral

Nesta categoria são apresentados os resultados da questão aberta que solicitava ao participante indicar até três causas de SM que achasse conveniente. Foram, assim, consideradas todas as respostas citadas, de modo que estas foram agrupadas em 5 subcategorias, observadas na figura 1.

Figura 1
Subcategorias que expressam as causas do sofrimento moral a partir do cotidiano laboral de profissionais de competência gerencial e fiscalizatória

No que diz respeito às subcategorias relacionadas ao SM, observou-se, na percepção dos gerentes e fiscais, as seguintes causas, apresentadas no quadro 1.

Quadro 1
Causas do Sofrimento Moral vivenciado no cotidiano laboral dos profissionais de competência gerencial e de competência fiscalizatória

Discussão

Os resultados provenientes das situações apresentadas demonstraram coerência entre os dois grupos, visto que, o que lhes causa sofrimento é partilhado entre eles, apenas divergindo discretamente as frequências e intensidades. Embora tenham sido identificadas algumas fontes comuns de SM, nem todos os profissionais irão experimentar sentimentos de angústia ou sofrimento quando confrontados com as situações mencionadas.(99. Epstein EG, Delgado S. Understanding and addressing moral distress. Online J Issues Nurs. 2010; 15(3):Manuscript 1.,1010. Gallagher A. Moral distress and moral courage in everyday nursing practice. Online J Issues Nurs. 2011; 16(2):1-7.)

Cabe destacar que as maiores frequências e intensidades estão associadas às dificuldades no processo de fiscalização e a insuficiência de recursos humanos. Estas são situações problemáticas, das quais emergem conflitos/dilemas morais, acarretam na ansiedade dos profissionais e os impede de desempenhar um trabalho seguro e qualificado, o que lhes vai causando sofrimento.(1111. Dalmolin GL, Lunardi VL, Lunardi Filho WD. O sofrimento moral dos profissionais de enfermagem no exercício da profissão. Rev Enferm UERJ. 2009; 17(1):35-40.)

Nesse caso, detectar o problema ético é imprescindível, para tanto, é importante desenvolver uma sensibilidade ética/moral, ou seja, uma capacidade de percepção diferenciada. Identificada como uma sabedoria prática, esta sensibilidade, consiste em uma análise crítica e reflexiva sobre si mesmo, das formas de agir, de pensar e de ser.(11. Ramos FR, Barlem EL, Brito MJ, Vargas MA, Schneider DG, Brehmer LC. Conceptual framework for the study of moral distress in nurses. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(2):e4460015.,1212. Borhani F, Keshtgar M, Abbaszadeh A. Moral self-concept and moral sensitivity in Iranian nurses. J Med Ethics Hist Med. 2015; 8(4):2-7.)

Algumas discordâncias encontradas nos dados coletados junto aos dois grupos não causam estranheza, já que por se tratar de um estudo em âmbito nacional é passível a diversidade de problemas e situações de trabalho entre as diferentes realidades. Uma análise regionalizada dos dados poderia revelar diferenças interessantes. Observou-se este comportamento dos dados nas análises dos gerentes quanto ao processo de fiscalização conflituoso nas instituições fiscalizadas (envolvendo as frequências “nunca”, “algumas vezes”, e “muitas vezes”); e a impossibilidade de agir frente à falta cometida por um profissional de enfermagem durante o exercício profissional (envolvendo as intensidades “nenhuma intensidade”, “intenso”, e “muito intenso”). Nestes casos, pesquisas mais localizadas poderiam possibilitar reavaliações e/ou correções relevantes.

Ao comparar as frequências e intensidades das oito situações (variáveis) apresentadas para gerentes e fiscais, houve associação com significância estatística para o processo de fiscalização lento e conflituoso por parte das instituições fiscalizadas. Essa percepção pode estar associada às relações interpessoais, aos valores pessoais e profissionais e aos eventos organizacionais, haja vista o complexo cenário da saúde. Nem sempre os conflitos são negativos, se compreendidos e geridos podem repercutir em resultados positivos, considerando os modelos de gestão mais contemporâneos. Nesse caso, habilidades pessoais no processo de negociação e utilização de estratégias adequadas para solucionar ou reduzir os conflitos proporcionarão mudanças nas relações sociais e na organização do trabalho. Porém, se não gerenciados de forma adequada podem traduzir-se em impasses nas negociações com consequências negativas nas práticas de trabalho e no estado de saúde do profissional.(1313. Spagnol CA, Santiago GR, Campos BMO, Badaró MTM, Vieira JS, Silveira APO. Situações de Conflito vivenciadas no contexto hospitalar: uma visão dos técnicos e auxiliares de enfermagem. Rev Esc Enferm USP. 2010; 44(3):803-11.,1414. Akpabio II, John ME, Akpan MI, Akpabio FF, Uyanah DA. Work-related conflict and nurses role performance in a tertiary hospital in South-south Nigeria. J Nurs Educ Pract. 2016; 6(2):107-14.)

Por sua vez, a categoria relativa aos resultados da questão aberta que solicitava ao participante indicar até três causas de SM que achasse conveniente, revelou os problemas éticos como a mais importante das causas entre os grupos participantes. Estes foram caracterizados por atitudes contrárias a ética ou indesejáveis do ponto de vista ético, relacionados à: embates políticos, relações conflituosas e dificuldades vinculada à competência profissional. Estes problemas se referem não somente à intercorrências isoladas, mas revelam problemáticas mais amplas, enraizadas nas instituições e até mesmo no sistema de saúde. Infelizmente, ainda reconhecidos na realidade nacional, destacando-se as precárias condições nas instituições de saúde, a frágil autonomia profissional de enfermeiros, a terceirização de cuidados de enfermagem e a insuficiências dos processos formativos.(1515. Barlem EL, Lunardi VL, Lunardi GL, Barlem JG, Silveira RS, Dalmolin GL. Moral distress in nursing personnel. Rev Lat Am Enfermagem. 2013; 21(Spec):79-87.,1616. Carvalho V. Sobre a Associação Brasileira de enfermagem - 85 anos de história: pontuais avanços e conquistas, contribuições marcantes, e desafios. Rev Bras Enferm. 2012; 65(2): 207-14.)

Em relação aos embates políticos que emergem no contexto de ambos os participantes, observou-se a falta de transparência e a interferência política nos Corens, sendo que, na visão dos fiscais verifica-se ainda a falta de punição para gestores públicos e privados, obstáculos institucionais dos sistemas de saúde e a resistência aos aspectos éticos e legais por parte das instituições de saúde e profissionais de enfermagem.

A consciência da importância dos valores éticos é essencial para o exercício profissional, sustenta ambientes éticos e previne consequências sérias nas ações profissionais e nos resultados da atenção à saúde.(1717. Murray JS. moral courage in healthcare: acting ethically even in the presence of risk. Online J Issues Nurs. 2010; 5(3):Manuscript 2.)A prática da fiscalização profissional busca preservar valores e princípios éticos e quando, até mesmo nas relações deste grupo de agentes são relatadas condutas impróprias, seja por falta de transparência, honestidade ou imprudência, há um grave alerta para o Sistema Cofen/Corens. Não há como justificar a flexibilização dos deveres, quer por instituições, profissionais ou agentes de fiscalização, pela perigosa banalização de práticas antiéticas que são denunciadas em todo o contexto social. Para tanto, é necessária a definição de uma política institucional no âmbito do Sistema, que vá ao encontro de uma nova postura e imagem em construção, tanto no sentido da valorização da profissão como dos próprios instrumentos que os conselhos podem desenvolver para enfrentar as causas destes problemas, começando por primar pela qualificação e condições de trabalho de seus próprios agentes.

Outra fonte de SM foi identificada nas relações profissionais conflituosas, por parte dos gerentes, estando associada à relação autoritária por parte dos conselheiros e à relação conflituosa com os fiscais e os profissionais do setor jurídico. Na percepção dos fiscais, estão associadas à relação autoritária por parte da chefia, e às relações conflituosas com colegas de trabalho, profissionais da enfermagem e conselheiros. Estudos corroboram que ambientes de trabalho permeados por relações conflituosas, condutas abusivas, cobranças, incompreensões e insensibilidades tornam-se ambientes pesados, estressantes, causadores de angústia, aflição e sofrimento, influenciando diretamente o desempenho laboral e o estado de saúde do profissional.(1515. Barlem EL, Lunardi VL, Lunardi GL, Barlem JG, Silveira RS, Dalmolin GL. Moral distress in nursing personnel. Rev Lat Am Enfermagem. 2013; 21(Spec):79-87.,1818. Cahú GR, Costa SF, Costa IC, Batista PS, Batista JB. Situações de assédio moral vivenciadas por enfermeiros no ambiente de trabalho. Acta Paul Enferm. 2014; 27(2):151-6.)

As questões relacionadas à competência profissional foram diretamente associadas à falta de autonomia para ambos os participantes. Essa intensa percepção da falta de autonomia para gerentes e fiscais foi vinculada aos desafios que enfrentam para tomar decisões e a liberdade de agir conforme seus princípios profissionais, como foram identificados em estudos internacionais.(1919. Skar R. The meaning of autonomy in nursing practice. J Clin Nurs. 2010; 19(15-16):2226-34.

20. Weston MJ. Strategies for enhancing autonomy and control over nursing practice. Online J Issues Nurs. 2010; 15(1):Manuscript 2.
-2121. Baykara ZG, Sahinoglu S. An evaluation of nurses professional autonomy in Turkey. Nurs Ethics. 2014; 21(4):447-60.) Contudo, os gerentes destacaram também a falta de domínio técnico pelos colegas de trabalho e o sentimento de desvalorização por parte do Cofen. Os fiscais enfatizaram a impotência da chefia em resolver problemas do cotidiano laboral. De modo geral, quando estas questões não são percebidas e nada se faz no sentido de compreendê-las e resolvê-las pode levar ao SM. Igualmente causador de SM é o caso em que os indivíduos têm clareza da situação, mas tem dificuldades em expressar suas preocupações devido à falta de ambientes organizacionais preocupados com suas experiências profissionais.(2222. Jameton A. A reflection on moral distress in nursing together with a current application of the concept. J Bioeth Inq. 2013; 10(3):297-308.)

A subcategoria condições de trabalho apresenta como fonte de SM situações que influenciam de maneira indireta os gerentes e fiscais. Apesar de não serem responsáveis diretos pelas ações que lhes acarretam SM, reconhecem nas mesmas, questões relevantes no cotidiano laboral, como insatisfação com a carga horária, baixa remuneração, sobrecarga no trabalho, estrutura física inadequada e recursos insuficientes (pessoal e material). Verificou-se, no entanto, que o SM não ocorre somente por obstáculos institucionais, mas envolve aspectos políticos e econômicos. O SM pode repercutir em sentimentos como estresse, esgotamento, exaustão emocional, e até mesmo levar a insatisfação no trabalho. Logo, uma aflição moral toma conta do profissional afetando seu bem estar e consequentemente seu trabalho.(2323. Varcoe C, Pauly B, Webster G, Storch J. Moral distress: tensions as springboards for action. HEC Fórum. 2012; 24(1):51-62.

24. Burston AS, Tuckett AG. Moral distress in nursing: contributing factors, outcomes and interventions. Nurs Ethics. 2013; 20(3):312-24.
-2525. Lamiani G, Borghi L, Argentero P. When healthcare professionals cannot do the right thing: A systematic review of moral distress and its correlates. J Health Psychol. 2015; 20(7):1-17.)

Baseando-se no fato de que o SM é uma experiência do indivíduo, em vez de uma experiência da situação, observou-se que a subcategoria da qualidade da assistência de enfermagem também foi estatisticamente significativa, entretanto, apenas para os fiscais.(99. Epstein EG, Delgado S. Understanding and addressing moral distress. Online J Issues Nurs. 2010; 15(3):Manuscript 1.) Apesar de destacar-se como uma situação que lhe traga SM, angústia e incertezas, identifica-se o resultado como positivo. Os fiscais demonstraram um olhar acurado sobre problemas éticos, o que se relaciona com a experiência de imersão e observação direta das práticas. A sensibilidade moral, já vem sendo reportada em estudos internacionais como um atributo positivo. Assim, julga-se importante apoiar e estimular estratégias que aprimorem está competência para melhorar a sensibilidade dos profissionais para problemas éticos do seu cotidiano laboral.(11. Ramos FR, Barlem EL, Brito MJ, Vargas MA, Schneider DG, Brehmer LC. Conceptual framework for the study of moral distress in nurses. Texto Contexto Enferm. 2016; 25(2):e4460015.,2626. Huang FF, Yang Q, Zhang J, Khoshnood K, Zhang JP. Chinese nurses’ perceived barriers and facilitators of ethical sensitivity. Nurs Ethics. 2015; 22(2):161-281.)

Como limitações o estudo enfrentou a baixa adesão dos participantes e a dificuldade destes se expressarem sobre um tema tão complexo, o que por si só merece ser estudado a posteriori. Sugere-se que este resultado pode estar associado à insegurança, às questões políticas institucionais e, até mesmo, ao sentimento de descrença no retorno que um estudo acadêmico pode trazer à prática profissional, especialmente quando as causa relatadas remetem a problemas que afetam o trabalho da Enfermagem nos mais diversos contextos e não apenas dos participantes do estudo.

Conclusão

Trata-se do primeiro estudo brasileiro com foco diretamente apontado para as questões que causam SM nos enfermeiros de competência gerencial e fiscalizatória dos departamentos de fiscalização. A pesquisa abordou o contexto de enfermeiros que desempenham um papel social relevante para a sociedade e ainda para os profissionais da categoria de enfermagem.

O estudo evidenciou falhas e até problemas éticos, não apenas nos limites impostos pelas instituições, gestores e profissionais da enfermagem, mas nas próprias práticas do conselho. Isso remete à ameaça de banalização dos problemas éticos que exigem rigorosa abordagem e à reflexão sobre as condições reais e necessárias para o desenvolvimento das ações de fiscalização. O foco do estudo não se dirigiu para explorar alternativas e ações de intervenção e aprimoramento do processo de fiscalização que já estão em curso em alguns dos conselhos, que poderão modificar alguns dos resultados encontrados. Daí a importância de estudos subsequentes para acompanhamento das transformações futuras.

Assim, refletir sobre as causas do SM neste cenário é reconhecer a necessidade de uma avaliação dos comportamentos profissionais e da discussão sobre a ética profissional, isto porque, as mudanças devem acontecer na base que sustenta os preceitos éticos e condutas morais da profissão, para assim fortalecer a categoria.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) a bolsa de doutorado fornecida à autora Luciana RS e bolsa de produtividade em pesquisa nível 1A fornecida à autora Flávia RSR.

Referências

  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2016
  • Aceito
    29 Ago 2016
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