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Condicionantes de gênero na produção de demandas de mulheres de meia-idade

Condicionantes de género en la producción de demandas de mujeres de mediana edad

Resumo

Objetivo

Analisar condicionantes de gênero presentes em demandas de saúde de mulheres de meia-idade oriundas do seu cotidiano.

Métodos

Estudo de abordagem qualitativa do tipo Pesquisa Convergente Assistencial. A pesquisa foi realizada com dois grupos de participantes: mulheres de meia-idade e profissionais da saúde. No total, participaram 13 mulheres de meia-idade e 18 profissionais de saúde. A produção do material empírico se deu por meio de oficinas de reflexão e entrevistas nos meses de maio e junho de 2017. A análise dos dados foi realizada por meio da técnica de análise de discurso.

Resultados

Os resultados conformaram duas categorias empíricas em que convergem a posição dos dois grupos de participantes: Atributos de gênero definindo demandas emocionais na meia-idade e o corpo como instrumento do fazer e demandante de cuidado na meia-idade. As experiências de vida relatadas são marcadas por trabalho doméstico e cuidado da família e expressam sobrecargas emocionais e físicas acumuladas ao longo dos anos. Profissionais de saúde revelam escuta sensível às demandas das mulheres, contudo questões estruturais, ligadas à organização da atenção dificultam práticas mais resolutivas.

Conclusão

Os resultados revelaram que o cotidiano de mulheres de meia idade define demandas para o cuidado vinculadas a atributos de gênero, incorporados ao cotidiano de modo naturalizado. Sem responsabilidades compartilhadas no ambiente familiar, há sobrecarga física e emocional que suscitam cuidados. Os serviços de saúde reconhecem, mas há somente ações pontuais para demandas de ordem biológica e nenhuma proposta sistematizada para um trabalho com mulheres que abram caminhos ao empoderamento.

Pessoa de meia-idade; Saúde da mulher; Gênero e saúde; Necessidades e demandas de serviços de saúde; Integralidade em saúde

Resumen

Objetivo

Analizar condicionantes de género presentes en demandas de salud de mujeres de mediana edad originarias de su cotidiano.

Métodos

Estudio de abordaje cualitativo del tipo Investigación Convergente Asistencial. La investigación se realizó con dos grupos de participantes: mujeres de mediana edad y profesionales de la salud. En la totalidad, participaron 13 mujeres de mediana edad y 18 profesionales de salud. La producción del material empírico se realizó a través de talleres de reflexión y encuestas en los meses de mayo y de junio de 2017. El análisis de los datos se realizó por medio de la técnica de análisis de discurso.

Resultados

Los resultados conformaron dos categorías empíricas en las que convergen la posición de los dos grupos de participantes: Atributos de género definiendo demandas emocionales en la mediana edad y el cuerpo como instrumento del quehacer y que demandan cuidado en la mediana edad. Las experiencias de vida relatadas están marcadas por el trabajo doméstico y el cuidado con la familia y expresan sobrecargas emocionales y físicas acumuladas a lo largo de los años. Profesionales de la salud revelan una escucha sensible a las demandas de las mujeres, sin embargo, cuestiones estructurales, relacionadas con la organización de la atención dificultan las prácticas más resolutivas.

Conclusión

Los resultados revelaron que el cotidiano de mujeres de mediana edad definen demandas con el cuidado vinculadas a atributos de género, incorporados al cotidiano de modo naturalizado. Sin responsabilidades compartidas en el ambiente familiar, hay una sobrecarga física y emocional que suscitan cuidados. Los servicios de salud reconocen, pero existen solamente acciones puntuales para demandas de orden biológico y ninguna propuesta sistematizada para un trabajo con mujeres que abran caminos hacia el empoderamiento.

Persona de mediana edad; Salud de la mujer; Género y salud; Necesidades y demandas de servicios de salud; Integralidad en salud

Abstract

Objective

To analyze gender conditions present in middle-aged women’s health demands from their daily lives.

Methods

This is a study with a qualitative approach of the Convergent Care Research type. The survey was conducted with two groups of participants: middle-aged women and health professionals. In total, 13 middle-aged women and 18 health professionals participated. The production of empirical material took place through reflection workshops and interviews in May and June 2017. Data analysis was performed using the discourse analysis technique.

Results

The results formed two empirical categories in which the position of the two groups of participants converge: Gender attributes defining emotional demands in middle age; The body as an instrument of doing and demanding care in middle age. The reported life experiences are marked by housework and family care and express emotional and physical burdens accumulated over the years. Health professionals reveal sensitive listening to women’s demands; however, structural issues related to the organization of care hinder more resolving practices.

Conclusion

The results revealed that the daily life of middle-aged women defines demands for care linked to gender attributes, incorporated into daily life in a naturalized way. Without shared responsibilities in the family environment, there is a physical and emotional burden that prompts care. The health services recognize this, but there are only punctual actions for demands of a biological order and no systematic proposal for working with women that open paths to empowerment.

Middle aged; Women’s health; Gender and health; Health services needs and demand; Integrality in health

Introdução

Em todos os períodos da vida, as mulheres apresentam demandas de saúde que não são universais e nem restritas às dimensões físicas e/ou psíquico-emocionais, inseridas em uma dinâmica social e cultural. Compete às equipe profissionais estar sensível e preparada para reconhecer e responder às demandas de saúde – premissa fundamental para a integralidade do cuidado.

Historicamente, o cuidado à saúde da mulher tem se centrado no período reprodutivo e, só mais recentemente, alguma importância, nos períodos não reprodutivos, sobretudo, às idosas.(11. Vasconcelos MF, Felix J, Gatto GM. Saúde da Mulher: o que é poderia ser diferente? Rev Psicol Política. 2017;17(39):327-39.)Contudo, a atenção à mulheres de meia-idade continua subestimada no Brasil e em outros países do mundo, mesmo no âmbito da atenção primária.(22. Mulhall S, Anstey K. Prevalence and severity of menopausal symptoms in a population-based sample of midlife women. Innov Aging. 2018;2(Suppl 1): 711.,33. Benetti IC, Sales LS, Roberti Junior JP, Deon AP, Wilhelm AF. Climatério, enfrentamento e repercussões no contexto de trabalho: vozes do Extremo Norte do Brasil. Rev Kairós Gerontol. 2019;22(1):123-46.)

A construção sociocultural da mulher aliada à valorização de sua função de reprodutora e cuidadora e engendra, sustenta e, ao mesmo tempo, é reforçada pela produção de espaços socialmente concebidos para mulheres que podem silenciar demandas que visem o protagonismo, o autocuidado e a autonomia da mulher.

A ausência de uma perspectiva multidimensional na abordagem da meia-idade feminina contribuí para homogeneizar experiências, criando sintomas comuns a todas as mulheres, negando sua diversidade e desrespeitando questões culturais e vivenciais, incluindo o viés de gênero.

Gênero consiste em construto sócio-histórico-cultural que favorece o reconhecimento das assimetrias de poder entre homens e mulheres, incluindo, papéis sociais hierarquizados que trazem comprometimento para a vida das mulheres.(44. Figueiredo MG, Diniz GR. Mulheres, casamento e carreira: um olhar sob a perspectiva sistêmica feminista. Nova Perspect Sistêmica. 2018;55(60):100-10.)Tal reconhecimento possibilita evitar o reducionismo das demandas de mulheres de meia-idade às manifestações clínicas relacionadas à transição da etapa reprodutiva para a não reprodutiva, à menopausa e/ou climatério e favorecer a qualidade do cuidado oferecido.

É necessário focalizar o cuidado a partir de uma percepção filosófica que nos permita cuidar de forma congruente e integral o que perpassa planejamento, organização e desenvolvimento do cuidado por meio de interação direta e constante com as mulheres de meia-idade, a fim de mobilizá-las, estimular sua participação e envolvê-la no autocuidado e na promoção de sua saúde.(55. Carmen PM, Hilda CM. Philosophical view of human care in the woman in the climacteric stage. Enfermería (Montevideo). 2019;8(1):22-34.)

Estudo de revisão que investigou fatores que influenciam uma vivência saudável de mulheres de meia-idade imigrantes, classificou-os em três categorias: fatores pessoais, fatores familiares e fatores comunitários e sociais. Os fatores pessoais incluíram renda e emprego, saúde física e psicológica, percepções da menopausa e aculturação. Fatores familiares envolveram apoio do parceiro, relacionamento com os (as) filhos (as) e equilíbrio entre família, trabalho e deveres pessoais. Os fatores comunitários e sociais abrangeram rede social, serviços de saúde, expectativas culturais tradicionais e discriminação nos países anfitriões.(66. Zou P, Waliwitiya T, Luo Y, Sun W, Shao J, Zhang H, Huang Y. Factors influencing healthy menopause among immigrant women: a scoping review. BMC Womens Health. 2021;21(1):189. Review.)

Assim, considerando que condições e experiências de vida da mulher são subsídios importantes para a promoção de um cuidado integral, pesquisa mais ampla, que estudou demandas de saúde na experiência de mulheres de meia-idade, revelou que essas se apresentam em múltiplas dimensões, sendo apresentadas neste artigo aquelas resultantes de condicionantes de gênero na produção de demandas oriundas do seu cotidiano.

Diante do exposto, buscou-se responder à seguinte questão: Que condicionantes de gênero estão presentes na produção de demandas de mulheres de meia-idade oriundas do seu cotidiano?

Para tanto, o presente estudo objetivou analisar condicionantes de gênero presentes em demandas de saúde de mulheres de meia-idade oriundas do seu cotidiano.

Métodos

Estudo de abordagem qualitativa do tipo Pesquisa Convergente Assistencial, que se caracteriza por unir a pesquisa com ações assistenciais que buscam aprimorar e inovar o contexto do cuidado de enfermagem e saúde. Constitui método de pesquisa que permite a construção de conhecimento aliada a sua aplicação para promover mudanças ou inovar práticas de cuidado em diálogo com participantes.(77. Trentini M, Paim L, Silva DM. A convergência de concepções teóricas e práticas de saúde:uma reconquista da Pesquisa Convergente Assistencial. Porto Alegre: Moriá; 2017. 448 p.)

A condução e apresentação da pesquisa seguem os preceitos critérios definidos pelo Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ).

A pesquisa foi realizada em um município localizado na região sudoeste da Bahia. A produção dos dados empíricos ocorreu no âmbito da atenção primária, especificamente, em uma unidade da Estratégia Saúde da Família e no Núcleo de Apoio à Saúde da Família, escolhidos por se constituirem espaço de cuidado à saúde das mulheres. A referida unidade é campo de prática das ação docente de uma das pesquisadoras com discentes de curso de graduação em enfermagem no âmbito do ensino, pesquisa e extensão e se localiza-se em bairro periférico reconhecido pela vulnerabilidade social.

O estudo envolveu dois grupos de participantes: mulheres de meia-idade e profissionais da saúde. Em relação às mulheres, foram critérios de inclusão: estar na faixa etária de 45 a 59 anos, ser usuária da Estratégia de Saúde da Família e como critério de exclusão: estar grávida, considerando que a vivência da gravidez pode engendrar demandas de saúde específicas, relacionadas à gestação. Para profissionais de saúde, os critérios de inclusão foram: ser profissional da Estratégia de Saúde da Família ou do Núcleo de Apoio à Saúde da Família e desenvolver ações de cuidado à saúde de mulheres de 45 a 59 anos há pelo menos 03 meses e como critérios de exclusão: estar em gozo de licença médica. No total, participaram da pesquisa 13 mulheres de meia-idade e 18 profissionais de saúde.

A produção do material empírico se deu por meio de oficinas de reflexão e entrevistas nos meses de maio e junho de 2017.

As oficinas reflexivas são práticas discursivas por meio das quais as participantes produzem sentido sobre fenômenos vivenciados e se posicionam frente aos mesmos.(88. Kroeff RF, Baum C, Maraschin C. Oficinas como estratégia metodológica de pesquisa-intervenção em processos envolvendo videogames. Mnemosine. 2016;26(1):32-43.)No nosso estudo, as oficinas versaram sobre meia-idade feminina e demandas de saúde nesse período. Antes de iniciar a oficina, as/os participantes preencheram um formulário com dados socioeconômicos. Foram realizadas duas oficinas com profissionais de saúde e quatro oficinas com mulheres de meia-idade. O tempo médio de duração das oficinas foi de três horas, com intervalo para realização de lanche.

As falas foram gravadas, transcritas na íntegra e organizadas na forma de narrativa, posteriormente, foram examinadas no intuito de identificar aspectos relevantes direcionados aos objetivos da pesquisa o que gerou uma síntese e possibilitou a selecção de cinco mulheres para entrevista por se identificar necessidade de aprofundar temas de seus relatos. As mulheres selecionadas foram convidadas a participarem da entrevista que foi realizada em data e horário previamente acordados em sala reservada da unidade de saúde.

Sendo assim, as entrevistas privativas foram oportunidade de escuta ativa às necessidades de cuidado evidenciadas pelas mulheres durante as oficinas, além de ter possibilitado aprofundar e complementar informações relacionadas ao objeto de estudo.

A relação simultânea entre pesquisa e cuidado, característica da Pesquisa Convergente Assistencial, foi estabelecida no processo coletivo a partir de troca de conhecimentos e experiências entre participantes por meio de processos interativos e de estímulos provocados durante a produção dos dados, o que se deu ao final, com relatos já gravados para se constituir material empírico.

A adoção de metodologia participativa para produção do material empírico possibilitou mobilizar experiências e saberes das/os participantes da pesquisa tendo em vista a construção e troca de conhecimentos. A entrevista, realizada com as mulheres selecionadas, também se constituiu em espaço profícuo para convergência pesquisa-cuidado, uma vez, que foi desencadeada a partir da identificação de demandas das participantes da pesquisa.

A análise do material empírico foi realizada por meio da técnica de análise de discurso de Fiorin. Para o referido autor, o discurso é uma posição social e os mecanismos ideológicos que o produzem são materializados na linguagem e pode ser estudado por meio de mecanismos sintáxicos e semânticos para a produção do sentido de algo produzido dialogicamente. Considera-se na análise de discurso, o contexto sócio-histórico de sua produção. Ao adotarmos tal técnica de análise seguimos as seguintes etapas: 1) Leitura exaustiva do texto para identificação de elementos semânticos concretos (figuras) e abstratos (temas) que conformam para um mesmo plano de significação; 2) Agrupamento dos dados conforme a convergência dos elementos significativos; 3) Depreensão dos temas centrais e 4) Formação das categorias empíricas.(99. Fiorin JL. Elementos de análise de discurso. 15ª ed. São Paulo: Contexto; 2016. 128 p.)

A pesquisa foi conduzida de acordo com a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil e, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) no ano de 2017, sob parecer de número 2.063.533. Para assegurar o anonimato, as participantes foram identificadas com caracteres alfanuméricos. Para indicar mulheres de meia-idade, utilizou-se a letra P e para designar profissionais, as letras PS, seguidas de algarismos arábicos. As abreviações correspondentes à técnica que possibilitou o registro da fala das mulheres, oficinas (O) e entrevista (E) constam no final de cada fala.

Resultados

As mulheres de meia-idade que participaram da pesquisa se encontravam na faixa etária foi de 45 a 58 anos, cinco eram analfabetas, quatro tinham ensino fundamental completo ou incompleto, três completaram o ensino médio e uma finalizou ensino superior. Dez se autodeclararam pardas, duas negras e uma se autodeclarou branca; sete mulheres estavam casadas ou em união estável, cinco divorciadas ou separadas e uma estava solteira. Dez informaram serem católicas e três informaram serem evangélicas.

Em relação a profissionais, o grupo foi constituído por enfermeira, dentista, fisioterapeuta, educadora física, nutricionista, assistente social, agente comunitária/o de saúde (sete), técnica de enfermagem (duas), auxiliar de farmácia, auxiliar de saúde bucal e recepcionista. Uma das técnicas de enfermagem é graduada em enfermagem, cinco agentes comunitárias estão cursando graduação em serviço social e uma é graduada em pedagogia. Dezessete profissionais eram do sexo feminino e um do sexo masculino. A faixa etária foi de 31 a 57 anos. Nove das profissionais se encontravam na meia- idade (45 a 59 anos). Quanto à raça/cor, quatro pessoas se autodeclararam brancas, seis pardas, seis se autodeclararam pretas, uma se autodeclarou amarela e outra profissional não informou.

As experiências de vida relatadas por mulheres de meia idade que participaram do nosso estudo são marcadas por trabalho doméstico e cuidado da família e expressam sobrecargas emocionais e físicas que se acumularam ao longo dos anos.

Os discursos de profissionais de saúde, que também participaram do estudo, revelam escuta sensível às demandas das mulheres e as articulam com o contexto social em que se inserem, contudo questões estruturais, ligadas à organização da atenção dificultam práticas mais resolutivas.

Os resultados conformaram duas categorias empíricas em que convergem a posição dos dois grupos de participantes: Atributos de gênero definindo demandas emocionais na meia-idade e o corpo como instrumento do fazer e demandante de cuidado na meia-idade.

Atributos de gênero definindo demandas emocionais na meia-idade

A categoria atributos de gênero definindo demandas emocionais na meia-idade é resultante da constatação de que sobrecargas físicas e emocionais cumulativas são marcas do cotidiano dessas mulheres, gerando desgastes e comprometimento do bem-estar e da auto-estima. Essa realidade se traduz nas falas a seguir:

Estou ali tão ocupada e ninguém dá uma atenção. Ninguém dá um carinho. Isso aí já é uma solidão. Você está no meio de sua família, na multidão ali e você está se sentindo sozinha. Você está com tanta coisa para fazer e não dá conta (P8, 45 anos. O).

Outro dia entrou um espinho na minha mão […]. Eu tinha que lavar a louça, eu chorei, eu choraminguei. Eu só tenho Deus. Eu tenho minha mãe na cadeira de roda. Eu que preciso cuidar dela dia de domingo […]. Tive que segurar essa mão no alto porque eu não aguentava de dor […]. Mas sempre eu me sinto assim muito sozinha (P5, 56 anos. O).

Eu queria, assim, que eles [os filhos] olhassem mesmo pra mim […]. Eles estão todos grandes, mas eu que tenho que lutar […]. Se adoece, eu que tenho que cuidar […]. Eu fiz tudo por eles e, hoje, eles não fazem nada por mim, entendeu!? […]. Eu não sou uma mãe ruim. Porque eu fui mãe e pai deles (P7, 50 anos, E).

Profissionais de saúde, por sua vez, afirmaram que as mulheres dedicam seu tempo e preocupação ao trabalho doméstico, ao passo que negligenciam o seu autocuidado:

Nessa idade, muitas mulheres aqui que nós cuidamos […] acham que elas tem que viver muito para os filhos, marido. Muitas trabalham fora, trabalham dentro de casa. São elas que, no caso, são o sustento da família e esquecem de cuidar de si. Elas acham assim que a vida delas não tem sentido, que elas vivem mesmo para filho, para neto, para marido (PS15).

Essas mulheres elas acham que elas não tem mais…, assim que não são importantes, não se cuidam. Acham que elas não tem mais necessidade de se arrumar, de sair. Muitas encerram a vida sexual. Acham que não faz mais parte da vida delas (PS17).

O aspecto da solidão também é retratado por profissionais de saúde, que demonstram um olhar sensível para o contexto em que as usuárias vivenciam suas experiências. Assim, afirmam:

A mulher nessa fase, se sente um pouco sozinha, porque os filhos já casaram. Aí, então ela se sente sozinha nesse momento, às vezes, sem o apoio dos filhos. E também, ela acaba tendo responsabilidade sobre os netos [...]. Ela fica o dia todo ali com os netos (PS16).

Nessa faixa etária de meia-idade, as mulheres precisam muito de ser ouvidas, porque, assim, a família, às vezes, por conta que ela já está nessa fase de cuidar de neto, de ficar em casa para os afazeres domésticos […] não ouve. Entra, sai e não senta um pouquinho para conversar com elas, porque ela tem todas as necessidade de qualquer uma outra mulher e ainda tem uma necessidade mais especial por conta da faixa etária dela (PS17).

Elas adoram vir para a unidade. Muitas vezes, eu passo na casa [...] ou minhas colegas passam, elas falam bem assim “precisava tanto da visita de vocês. “Como que vocês adivinharam que eu precisava da visita hoje?”. Elas desabafam. A gente não escreve nada do que a gente tem que escrever. A gente só ouve, conversa. Muitas vezes, a gente fica a tarde toda com aquela pessoa. Muitas vezes, você sai pra fazer oito visitas e você acaba fazendo três, duas durante o dia. Por quê? Porque elas só querem ser ouvidas, que a gente ouça elas (PS9).

Atentas às demandas das mulheres, profissionais oferecem atividades físicas que as vinculam ao serviço. Reforçam que o contexto de vida em que se inserem é considerado para suas ações na unidade de saúde e para o trabalho com grupos específicos da meia-idade, conforme relatado a seguir:

Pensando nessas mulheres que a gente acompanha dia a dia [...] elas não estão ali apenas para fazer atividade física, mas para a atenção, a escuta que elas necessitam... um olhar diferenciado [...]. Quando chegam aqui no grupo [...] elas têm a necessidade de serem ouvidas, de ter alguém para conversar. “Se não tiver atividade não tem problema, mas nós vamos vir para aqui pra que a gente possa uma conversar com a outra [...]. Elas necessitam de um olhar diferenciado, um acolhimento, uma escuta. Nós da atenção básica trazemos para essas mulheres, além da orientação do dia-a-dia, em grupos, na sala de espera [...] nós, profissionais, a gente acaba escutando, ouvindo as demandas (PS6).

Elas não são ouvidas lá no domicílio com os familiares, mas quando chegam aqui na unidade, aquelas que procuram a unidade, ... a gente precisa, precisa formar um grupo específico (PS17).

Ao narrarem suas experiências no cuidado, profissionais também reforçam a necessidade de ações intersetoriais nas respostas às demandas dessas mulheres, representadas na fala que se segue:

As mulheres estão precisando se distrair, de diversão. A gente trabalha com a população que vive muito com a criminalidade [...]. O poder público que tem que assumir essa responsabilidade. Nós do programa de saúde da família não vamos conseguir isso sozinhos. Não adianta somente a gente formar um grupo. Outra coisa importante para mulheres nessa faixa etária é que a maioria não tem nível de escolaridade. Não sabe ler e escrever [...]. Aqui tinha o Programa Todos pela Alfabetização, [...]. O que é que acontecia? Muitas alegavam problemas de vista. “Ah, não vou porque não consigo ler” (PS1).

Ademais, estar em processo de envelhecimento, para algumas mulheres, remete à finitude e a uma representação de perda de autonomia e da capacidade do fazer por outra pessoa e por si:

Eu peço para Deus para dar forças, para me manter em pé, que eu não quero parar. Quero ficar sempre é ...movimentando minha vida. Eu fico preocupada […] pedindo a Deus para não acontecer. Porque eu vou ficando fraca, velha, envelhecendo. Eu vejo, a cada dia, eu vou ficando mais fraca ainda. Eu não gosto de envelhecer (P13, 52 anos. OF).

Uma das participantes representa o medo da perda de autonomia diante de doença limitante, glaucoma, mais frequente na faixa etária estudada, e a proteção divina é o suporte a cada dia, conforme afirma:

Tem cinco anos que eu descobri que tenho glaucoma avançadíssimo […]. Eu penso tanto nos meus netos […]. O meu medo é isso aí. Eu em casa e perder minhas vistas […]. Ficar pelas mãos dos outros, não é? […]. Eu sou muito independente […]. Se eu perder minha visão de tudo, o que será de mim? Cada dia que eu levanto eu peço a Deus. Deus está me dando a visão (P10, 52 anos. E).

Em convergência com o que relatam as mulheres, a fala de profissionais da saúde reafirma que a construção da identidade de gênero promove em movimento crescente uma mulher sem oportunidade de se perceber. Mostra também que quando o serviço estabelece diálogo e oferece escuta mulheres encontram espaço para expressar suas demandas:

A maioria delas acha que é correto se responsabilizar pelos outros e esquecer delas. […]. Quando você puxa um fiozinho, elas falam isso mesmo: “É verdade! Eu não existo!”; “Eu tenho cuidado da família, se sobrar um tempinho…”; Eu não cuido da minha saúde; Eu cuido dos outros; Eu cuido da saúde do outro. Isso é muito triste (PS8).

As demandas, são oriundas de atributos de gênero incorporados para mulheres e homens, com destaque para a responsabilidade pelas atividades domésticas diante de marido que não se dispõe a dividir responsabilidades, conforme se constata nas falas das usuárias participantes da pesquisa:

Tem hora que você quer ir em um canto e não vai por causa do marido. Você tem que fazer comida pra deixar para o marido, arrumar a casa, fazer as coisas certas […]. Você tem que preocupar com comida para o marido (P1, 49 anos, O).

A gente fica sozinha fazendo as coisa, a gente fica nervosa, fica estressada […]. Porque eu fico nervosa, porque eu estou fazendo aquilo ali e todo mundo só olhando. Eu limpando a casa e o homem para lá e pra cá […]. A pressão sobe. Vai me dando aquele nervoso (P4, 46 anos, OF).

Por outro lado, algumas mulheres são resistentes a colocar-se como pessoas a serem cuidadas e, assim, afirmam:

Eu não gosto de ser cuidada. Eu gosto de eu mesma me cuidar, que ninguém cuida a gente se não for com interesse em alguma coisa. […]. Então, você fazendo suas coisinhas do jeito seu, cada vez você faz um pouquinho é melhor do que ser cuidada pelos outros, eu penso assim. É difícil você ser cuidada pelos outros (P6, 51 anos. OF).

O corpo como instrumento do fazer e demandante de cuidado na meia-idade

Esta categoria revela crenças e valores atribuídos ao envelhecimento. Ao lado do que já está incorporado como demandante de cuidados na rede de saúde, a exemplo da prevenção e controle de doenças, como hipertensão arterial sistêmica, câncer de colo uterino e de mama, as participantes destacam o aparecimento de dores como marca da meia-idade, atribuindo-as ao envelhecimento:

Tirando as dores daqui, dali e dacolá, as coisinhas de saúde, tenho uma vida tranquila hoje (P5, 56 anos. O).

A gente leva um monte de doenças. É só dor, dor na coluna, dor nas pernas, é dor de tudo. Eu estou sentindo umas dores nas costas [...]. Eu sinto muita dor nas pernas, eu tenho esporão nos dois pés (P4, 46 anos. O).

Eu sinto dor da ponta do dedo até o fiapinho do cabelo. Eu sinto muita dor no corpo, dor nos braços, dor nas pernas, dor nas costas, dor na coluna, tem hora que eu estou morta, até nas juntas, nos dedos dói […] dói tudo (P13, 52 anos. O).

Eu, agora mesmo, estou sentindo uma dor na coluna que eu não estou aguentando. Sentindo dor aqui nos dedos, nas juntas, mas isso é coisa da idade mesmo. A idade vai chegando. É coisa da idade, a gente vai ficando velha, vai aparecendo tanta coisa. Eu quando era nova não sentia nada […]. Agora apareceram as dores (P4, 46 anos. O).

Eu sinto dor. Eu estou com uma dor nesse pé aqui. Eu falto morrer, todo dia, que chega queimar, principalmente, que eu trabalho à noite em pé […] estou com “esporão de galo” pelo jeito, eu não consigo pisar o pé no chão (P7, 50 anos. O).

A dor na meia-idade é referida como consequência de um acumulado de sobrecarga física e falta de preparo adequado para realização de trabalhos, ilustrada nos seguintes relatos:

Hoje, eu tenho três hérnia de disco, tenho desgaste de quadril, foi tudo uma sobrecarga que eu não tinha preparação […] quando a gente chega na meia-idade a gente tem as consequências (P8, 45 anos. O).

Eu, quando faço uma faxina, é tanta dor que pra dormir eu tomo um comprimido de uma miligrama de dipirona e passo gel nos pés. Senão a dor incomoda e não me deixa dormir (P5, 56 anos. O).

Dói, não sei se é o cansaço do dia a dia, só sei que dói tudo. Tem dia que eu levanto pela força de Deus. Que na hora que eu ponho os pés no chão que eu fico durinha lá, entrevada. Eu falo: “Senhor, eu preciso de andar, preciso trabalhar, preciso de ajuda” Aí pronto, eu levanto e vou fazer as minhas coisas […]. É “ai” pra levantar, é “ai” pra sentar, mas bola pra frente, com a fé em Deus porque é Deus que nos sustenta […]. (P13, 52 anos. O).

Uma das participantes da pesquisa revela cansaço atribuído a uma rotina cumulativa de sobrecarga de trabalhos:

Eu não sinto dor, só cansaço mesmo, é diferente […]. Eu sinto cansaço. Tem dia que eu sinto dor nas pernas, nas varizes, mas mais de cansaço [...]. Na semana que eu lavo muita roupa e que eu entrego, eu sinto assim cansada (P1, 49 anos. O).

Apesar da dor, as mulheres participantes da pesquisa mantém o ritmo de trabalho numa atitude de sujeição e ao mesmo tempo de resignação, lançam mão de “despreocupar-se” diante de poucas perspectivas de resolubilidade de sua queixa:

Às vezes eu amanheço o dia com dor de cabeça, eu vou preocupar comigo com aquela dor de cabeça […]. Se eu for me preocupar com aquilo vai ser pior para mim. E talvez se eu tirar aquilo da minha cabeça se eu preocupar. Aquilo sara que você nem vê […]. Se eu desligar daquilo, aí pronto, acabou, sarou […]Se você for encabular [preocupar] com você […] você fica doente (P1, 49 anos. O).

A exemplo do que ocorre com as demais usuárias da rede pública de saúde, as mulheres de meia-idade não têm garantia de acesso, nem de resolubilidade diante de suas queixas clínicas. Algumas delas lançam mão de recursos próprios para esse fim, representadas nas falas que se seguem:

Eu estou sentindo umas dores nas costas, vim fazer exame com o médico semana passada, o médico me pediu exame, as meninas disseram que não marcava pelo SUS, tive que pagar, trouxe hoje, mostrei, não deu nada, ele pediu outros de novo (P4, 46 anos, O).

Eu mesmo estou com um eletro do coração acho que já tem uns três meses, tem uns cinco meses já, se você tiver um problema no seu coração, quando você vier fazer (o exame), se você tiver de morrer, você já morreu (P1, 49 anos, O).

Algumas participantes reagem às dores, buscando a atividade física como medida que promove alívio e relatam esse benefício sem uso de terapia medicamentosa:

Eu faço exercício aí alivia a dor um pouco. E remédio eu não tomo de jeito nenhum para dor não porque eu sei que não sara. (P13, 52 anos, O).

Nós estamos fazendo atividade física aqui toda quarta-feira [...]. Melhora a dor, é bom para o corpo [...]. (P5, 56 anos, O).

Faço hidroginástica há mais de três anos, melhorei muito porque eu fiquei cinco meses sem trabalhar, afastada, fiquei mais de um mês de cama travada, o médico disse que eu ia ficar de cadeira de roda e depois de muito empenho, de fisioterapia e hidroginástica, eu estou bem hoje. (P8,45 anos, O).

Em consonância com a realidade verbalizada pelas mulheres, a enfermeira, como parte da equipe da Estratégia de Saúde da Família que participou da pesquisa, valoriza práticas integrativas e complementares para o alívio das dores, ressaltando a importância da acupuntura, ao tempo em que reconhece deficiências do serviço que não incorpora outras possibilidades de cuidado à mulher na meia-idade:

É tão importante a acupuntura [...]. Uma usuária falou “Depois que eu fiz acupuntura, eu deixei de tomar alguns remédios”. Ela melhorou muito as dores. Então assim, na minha opinião, a gente deveria trazer essas terapias alternativas e sair daquele trivial. (PS1).

Profissionais explicitam que a rede de serviços de saúde não dá conta de responder a demandas de mulheres de meia-idade, incluindo-se prevenção e controle de doenças, previstos nos programas ministeriais. Evidenciam falhas estruturais relacionadas à demora em conseguir marcar e realizar exames, dificuldades para o acesso a medicamentos e assistência prejudicada por negligência profissional:

Se precisar de um exame complementar, ela agora fica esquecida. É um ano. Eu até tenho orientado a elas a fazer particular [...]. Mas a maioria não tem condições de fazer [...]. A mulher é muito subestimada nos atendimentos. E principalmente, as mulheres de classe baixa são muito subestimadas. O trivial e veja lá. Muitas pacientes que eu encaminho para a avaliação ginecológica, elas voltam só com a consulta clínica [...]. Então, são esses pequenos detalhes que vão destruindo a assistência (PS1).

Tem receitas que o médico ginecologista passou aquele medicamento e ela não comprou, porque ela não tem condições e, também, porque a unidade não oferece esse medicamento [...]. Então, ela fica sem tratar (PS16).

Nesses discursos, a escuta sensível às demandas das mulheres e o olhar atento à realidade das práticas revelam problemas relacionados a questões estruturais, ligadas à organização da atenção que dificultam oferta de um cuidado integral.

Discussão

Ressalta-se que, embora não se pretenda generalizar, uma vez que se trata de uma pesquisa qualitativa cujo tamanho amostral pode ser considerado um limitante, os resultados apresentados se referem à experiência de mulheres em um contexto específico de vulnerabilidade econômica e social comum a um grande número de mulheres.

O estudo oferece subsídios importantes na direção de um cuidado integral à saúde da mulher de meia-idade, demonstrando a importância de se considerar a dimensão social do processo saúde-doença e de se evitar reduzir as mulheres a um corpo biológico. Isso porque na grande maioria dos estudos sobre saúde de mulheres de meia-idade suas demandas são centralizadas nos aspectos fisiológicos do climatério e menopausa.

No presente estudo, sobrecargas físicas e emocionais acumuladas ao longo da vida apareceram como geradores de desgastes e de comprometimento da saúde das mulheres de meia-idade. Ao longo da vida, mesmo sem trabalho formal, as mulheres realizam quase sempre sozinhas tarefas fundamentais para a estrutura familiar. O esforço empreendido para realizar tarefas do cotidiano no interior dos lares tem implicações negativas na saúde das mulheres e, assim, favorece seu adoecimento.(1010. Antloga CS, Monteiro R, Maia M, Porto M, Maciel M. Trabalho Feminino: Uma Revisão Sistemática da Literatura em Psicodinâmica do Trabalho. Psic Teor Pesq. 2020;36(2):1-8.)

Assim, sob responsabilidade feminina quase que exclusiva, o trabalho doméstico se encontra encoberto e obscurecido nos cotidianos familiares, invisível nas dimensões sociais, culturais e econômicas da sociedade e desvalorizado até mesmo pelas próprias mulheres quando não o percebem como trabalho, mas como uma obrigação feminina.(1111. Teixeira TS, Bifano AC, Lopes MF. Trabalho de casa: reprodução e resistência. Rev Bras Econ Doméstica. 2016;27(1):59-78.)

Fatores como idade, situação conjugal, número de filhos/as, chefia da família e lazer, assim como o elevado volume de trabalho não remunerado, como a dupla jornada e o trabalho de cuidar da família, associados aos componentes emocionais, são considerados como intensificadores de adoecimento psíquico em mulheres.(1212. Costa FA. Mulher, trabalho e família: os impactos do trabalho na subjetividade da mulher e em suas relações familiares. Rev Graduação Psicol PUC Minas. 2018;3(6):434-52.)

Um estudo realizado na China mostrou que a sobrecarga do trabalho doméstico impactou no trabalho formal de homens e mulheres rurais de meia-idade, no que diz respeito a menor quantidade de horas trabalhadas e rendimento da produção, sendo os efeitos mais intensos para as mulheres. Além disso, constatou que cuidados com familiares e netos interferiram diretamente na qualidade de vida, especialmente, para mulheres.(1313. Mao S, Connelly R, Chen X. Stuck in the middle: off-farm employment and caregiving among middle-aged rural Chinese. Feminist Economics. 2018;24(2):100-21.)

Questões psicológicas e sociais pesam de modo significativo na maior prevalência de transtornos depressivos e de ansiedade entre mulheres na fase adulta quando comparadas com homens no mesmo período da vida. O tradicional papel social desempenhado por elas as expõe a um maior nível de estresse e também as torna menos capazes de mudar o seu ambiente gerador de estresse.(1414. Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa. Protocolo da Atenção Básica: saúde das mulheres. Brasilia (DF): Ministério da Saúde; 2016 [citado 2021 Jun 25]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/protocolos_atencao_basica_saude_mulheres.pdf
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)

Estudo realizado no Chile, com mulheres de meia-idade que desempenham muitos papéis, principalmente, como cuidadoras principais da rede familiar mostrou que ser exclusivamente responsável por essas demandas, estava associado à insatisfação com a vida e a não realização de autocuidado.(1515. Fernández Lorca MB, Lay SL. Multiple roles and subjective well-being of middle-aged women who are caregivers of elderly people in Chile. J Women Aging. 2020;32(2):149-67.)Em outra pesquisa envolvendo brasileiros/as e portugueses/as foi constatado que o esforço em manter a satisfação conjugal é fator de sobrecarga emocional para as mulheres.(1616. Aguiar J, Matias M, Fontaine AM. Desemprego, satisfação com a vida e satisfação conjugal em portugueses e brasileiros. Rev Psicol Organizações Trabalho. 2017;17(4):210-17.)

A designação das mulheres à esfera reprodutiva e doméstica e dos homens ao espaço público e produtivo tem como princípios a separação de trabalhos tidos como de homens e mulheres e sua hierarquização. E essa incorporação de papéis sexuais se estabelece a partir da aprendizagem de gênero, ou seja, por meio de um processo de socialização que inscreve em corpos e mentes mecanismos que legitimam essa crença compartilhada, num movimento em que o arbitrário passa a ser tido como fato da natureza.(1717. Bourdieu PA. Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertrand; 2019. 208 p.)

Todavia, os resultados da pesquisa também revelam que a exclusividade da mulher na função de cuidadora da família confere poderes, inclusive na formação de subjetividades, do ponto de vista de gênero lhes agrega valor e, junto a isso, uma representação de infalibilidade.

É por meio do trabalho doméstico que as mulheres tecem redes de poderes no âmbito familiar em suas relações cotidianas no desempenho do papel de educadoras e socializadoras na família, desmistificando a ideia de sua total submissão ao poder masculino.(1111. Teixeira TS, Bifano AC, Lopes MF. Trabalho de casa: reprodução e resistência. Rev Bras Econ Doméstica. 2016;27(1):59-78.)

Assim, na realidade das mulheres de meia-idade participantes deste estudo, há receio de perder a autonomia em relação ao fazer por si e por outra pessoa e temem precisar de apoio, de cuidados e não ter com quem contar. Essa posição reflete o processo de socialização das mulheres de constante disposição ao outro, demonstrando sujeição e resignação frente às responsabilidades que lhes são atribuídas socialmente.

Estudo com mulheres afro-americanas de meia-idade, cuidadoras centrais da casa e de algum familiar em processo de adoecimento, mostrou que essa atribuição aumenta o estresse e a ansiedade e causam declínio na saúde dessas mulheres e, consequentemente, contribui para o processo de adoecimento. Nesse estudo, as mulheres que tiveram apoio profissional com o objetivo de estimular o seu autocuidado se sentiam menos sobrecarregadas.(1818. Hackney ME, McCullough LE, Bay AA, Silverstein HA, Hart AR, Shin RJ, et al. Rationale and Design of a Clinical Trial of Adapted Tango to Improve Negative Health Impacts in Middle Aged African-American Female Caregivers of Persons with Alzheimer’s Disease (ACT Trial). J Alzheimers Dis. 2019;68(2):767-75.)

A assistência à saúde da mulher para além das demandas reprodutivas tem cobrado de profissionais mudanças de práticas e um cuidado mais humanizado e qualificado. Conhecer as condições de saúde feminina, e necessidades psicossociais, tornou-se prioritário para o envelhecimento feminino mais sadio e com mais qualidade de vida, além de favorecer o autocuidado.(1919. Vincensi IF, Gardenal RVC, Câmara JV, Ayres NO, Costa MP. Educação em saúde com mulheres da atenção básica em vivência sexual durante o climatério. Braz J Develop. 2020;6(9):68378-85.)

Mesmo que muitas pessoas saibam da importância de modificar o estilo de vida e promover hábitos saudáveis, muitas vezes, não conseguem se mobilizar para modificar o estilo de vida. Assim, um dos desafios que se impõe a profissionais que trabalham com esse público é estimular e facilitar o acesso a práticas saudáveis para que pessoas de meia-idade possam aderir.(2020. Mari FR, Alves GG, Aerts RG, Sheila C. The aging process and health: what middle-aged people think of the issue. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2016;19(1):35-44.)

A percepção do processo de envelhecimento obtida em pesquisa mostra em seus resultados preocupação de pessoas de meia-idade de envelhecer com autonomia e que as demandas resultantes sejam convertidas em ações direcionadas a modos de vida que promovam envelhecimento sadio e ativo.

Ao se referirem às demandas relacionadas à prevenção e controle de doenças como hipertensão arterial sistêmica, câncer de colo uterino e de mama, confirma-se a incorporação de valores relativos à prevenção e controle de doenças, ao que se soma a busca por cuidado à saúde diante de dores biológicas, sociais e psicoemocionais, demonstrando o quanto a oferta modula a demanda. No entanto, nem mesmo para as questões que se expressam no biológico, a rede de serviços de saúde apresenta resolubilidade, conforme apontam profissionais e mulheres de meia-idade participantes da pesquisa.

A dor na meia-idade aparece nessa pesquisa como uma queixa muito comum e de poucas perspectivas de resolubilidade. Contudo, as mulheres ressaltam que mantêm o ritmo de trabalho doméstico e para o alívio de dores, algumas referem uso de medicamentos, outras somente atividade física e outras lançam mão de “despreocupar-se”.

A experiência da dor se inscreve num campo de significações coletivamente elaborado. Sua expressão é regida por códigos culturais que são apreendidos no meio social desde os primeiros momentos da socialização. Assim, o lugar social ocupado pode influenciar na tolerância à dor, uma vez que existem condições socioculturais diversas que qualificam de diferentes formas a realidade da dor em uma sociedade.(2121. Sanabria Mazo JP, Gers M. Implications of chronic pain on the quality of life of women with fibromyalgia. Psicol Estud. 2018;23(3):81-91.)

Em pesquisa sobre a experiência com a dor, a maior feminilidade ou papéis sociais femininos estavam associados a menores limiares e menor tolerância à dor, assim como maior propensão de comunicar a sensação dolorosa independente do tipo de estímulo, da etnia ou orientação sexual.(2222. Nascimento MG, Kosminsky M, Chi M. Gender role in pain perception and expression: an integrative review. BrJP. 2020;3(1):58-62.)

Nesse sentido, é imprescindível ao cuidado a mulheres de meia-idade, disponibilização por parte da rede de serviço de saúde de atividade física orientada, fisioterapia e terapias complementares, pois, além de impactar positivamente nas queixas de dores físicas, favorece a saúde emocional e a autoestima da mulher.

Conclusão

Os resultados do estudo explicitam demandas de cuidado de mulheres na meia-idade que não se restringem a um corpo biológico, mas ao corpo multidimensional, que tem marcas da história de cada mulher e de desigualdades sociais e de gênero. Em síntese, o cotidiano de mulheres de meia-idade define demandas para o cuidado vinculadas a atributos de gênero, incorporados ao cotidiano de modo naturalizado. Sem responsabilidades compartilhadas no ambiente familiar, há demandas e sobrecargas de ordem física e emocional que suscitam cuidados. Profissionais de saúde reconhecem, mas há somente ações pontuais para demandas de ordem biológica e nenhuma proposta sistematizada para um trabalho com mulheres que abram caminhos ao empoderamento. Considera-se importante novas pesquisas sobre a meia-idade feminina e demandas de saúde sob enfoque de gênero que ampliem o conhecimento em diferentes contextos e favoreçam a implementação de políticas públicas transversalizadas pela integralidade do cuidado.

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) - Bolsa de Doutorado. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Bolsa de Doutorado Sanduíche na Universidad Complutense de Madrid.

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Editado por

Editor Associado (Avaliação pelos pares): Paula Hino (https://orcid.org/0000-0002-1408-196X) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2021
  • Aceito
    29 Set 2021
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