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“A montanha-russa da insuficiência cardíaca”: a percepção de dignidade pelas equipes de enfermagem

“La montaña rusa de la insuficiencia cardíaca”: la percepción de dignidad por parte de los equipos de enfermería

Resumo

Objetivo

Os principais objetivos deste estudo são: a) descobrir quais são as percepções dos profissionais de enfermagem quanto à dignidade baseado em suas experiências; e b) identificar as questões éticas enfrentadas por enfermeiros ao lidar com pacientes com insuficiência cardíaca avançada.

Métodos

Estudo qualitativo com abordagem indutiva por meio de entrevistas em grupo focal (GF) composto por enfermeiros que prestam assistência diária a pacientes com insuficiência cardíaca e seus familiares. O estudo incluiu 18 enfermeiros portugueses provenientes de dois hospitais e dois centros de atenção primária à saúde. Os participantes foram distribuídos em quatro grupos focais. Realizou-se as entrevistas durante período de aproximadamente quatro meses. Os dados foram analisados por meio de análise de conteúdo qualitativa.

Resultados

Ao enfatizar a importância da dignidade, os participantes a definiram como “ser visto como uma pessoa” e “ser respeitado pela pessoa que é”. A “viagem de montanha-russa da insuficiência cardíaca” é como uma jornada que ajuda a manter a dignidade do paciente dentro das restrições impostas pela doença. A abordagem das necessidades físicas, emocionais e espirituais dos pacientes propicia dignidade enquanto negligenciá-las os ameaçam. Três temas principais expressaram a variedade dos problemas éticos enfrentados pelos profissionais de enfermagem que cuidam de pacientes com insuficiência cardíaca avançada: 1) qualidade de vida versus tempo restante; 2) intervenções curativas versus paliativas; 3) morte rápida e imprevisível versus morte lenta e esperada.

Conclusão

O respeito e a proteção da dignidade são partes essenciais de uma assistência de enfermagem adequada, ética e competente.

Insuficiência cardíaca; Cuidados de Enfermagem; Narrativa pessoal; Grupos focais

Resumen

Objetivo

Los principales objetivos de este estudio son: a) descubrir cuáles son las percepciones de los profesionales de enfermería respecto a la dignidad con base en sus experiencias, y b) identificar las cuestiones éticas enfrentadas por enfermeros al lidiar con pacientes con insuficiencia cardíaca avanzada.

Métodos

Estudio cualitativo con enfoque inductivo por medio de entrevistas en grupo focal (GF) compuesto por enfermeros que prestan asistencia diaria a pacientes con insuficiencia cardíaca y sus familiares. El estudio incluyó 18 enfermeros portugueses provenientes de dos hospitales y dos centros de atención primaria de salud. Los participantes fueron distribuidos en cuatro grupos focales. Las entrevistas se realizaron durante un período de cuatro meses aproximadamente. Los datos fueron analizados por medio del análisis de contenido cualitativo.

Resultados

Al enfatizar la importancia de la dignidad, los participantes la definieron como “ser visto como una persona” y “ser respetado por la persona que es”. El “viaje de la montaña rusa de la insuficiencia cardíaca” es como una jornada que ayuda a mantener la dignidad del paciente dentro de las restricciones impuestas por la enfermedad. El enfoque de las necesidades físicas, emocionales y espirituales de los pacientes proporciona dignidad, mientras que desatenderlas los amenaza. Tres temas principales demostraron la variedad de los problemas éticos enfrentados por los profesionales de enfermería que cuidan pacientes con insuficiencia cardíaca avanzada: 1) calidad de vida vs. tiempo restante; 2) intervenciones curativas vs. paliativas; 3) muerte rápida e imprevisible vs. muerte lenta y esperada.

Conclusión

El respeto y la protección de la dignidad son partes esenciales de una atención de enfermería adecuada, ética y competente.

Insuficiencia cardíaca; Atención de Enfermería; Narrativa personal; Grupos focales

Abstract

Objective

The main aims of this study are to a) uncover the nurse´s perceptions of dignity based on their experiences; and b) identify ethical issues experienced by nurses when confronted with individuals with advanced heart failure.

Methods

This study has a qualitative design with an inductive approach using focus group (FG) interviews with registered nurses who meet patients with HF and their family caregivers on a daily basis. A total of 18 Portuguese registered nurses, from two hospitals and two primary health care centers, were distributed across 4 FG. Interviews occurred over a period of about 4 months. Data were analyzed using qualitative content analysis;

Results

The participants emphasized the importance of dignity as ‘being seen as a person’ and ‘respected for the person one is’. The ´roller coaster ride of heart failure` is like a pilgrimage that serves to maintain the patient’s dignity within the strictures of the sick person’s role. Addressing the physical, emotional and spiritual needs of patients promotes their dignity, while neglecting their needs threatens their dignity. Three main themes captured the range of ethical problems when nurses care for people with advanced heart failure: 1) Quality of life versus length of time left; 2) Curative versus palliative interventions; 3) Unpredictable and quick death versus expected and prolonged death.

Conclusion

Respecting and protecting dignity is an essential piece of good, ethical, and competent nursing care.

Heart failure; Nursing care; Personal narratives; Focus groups

Introdução

A insuficiência cardíaca (IC) é uma “pandemia global” que afeta cerca de “26 milhões de pessoas em todo o mundo” e sua prevalência continua aumentando.11. Savarese G, Lund LH. Global Public Health Burden of Heart Failure. Card Fail Rev. 2017;3(1):7–11.A multimorbidade devido a IC é uma preocupação crescente em idosos que sofrem de diversos tipos de doenças com os mais variados sintomas acompanhados de vulnerabilidade e fragilidade progressivas.22. Benjamin EJ, Blaha MJ, Chiuve SE, Cushman M, Das SR, Deo R, et al.; American Heart Association Statistics Committee and Stroke Statistics Subcommittee. Heart disease and stroke statistics - 2017 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2017;135(10):e146–603. Trata-se de uma doença complexa que coloca uma enorme pressão sobre pacientes, famílias e sistemas de saúde.33. Gardetto NJ. Self-management in heart failure: where have we been and where should we go? J Multidiscip Healthc. 2011;4:39–51.

As atuais mudanças demográficas, marcadas pelo envelhecimento da população, estimam que esta síndrome deverá afetar um grande número de portugueses. Se mantidas as atuais práticas clínicas, “a prevalência de IC em Portugal continental deverá aumentar em 30% até 2035 e 33% até 2060 em comparação com 2011”.44. Fonseca C, Brás D, Araújo I, Ceia F. Heart failure in numbers: estimates for the 21st century in Portugal. Rev Port Cardiol. 2018;37(2):97–104.

A dignidade é a chave para garantir saúde física e mental deste grupo vulnerável.55. Gastmans C. Dignity-enhancing nursing care: a foundational ethical framework. Nurs Ethics. 2013;20(2):142–9.,66. Bagheri H, Yaghmaei F, Ashktorab T, Zayeri F. Test of a Dignity Model in patients with heart failure. Nurs Ethics. 2018;25(4):532–46. Pacientes que sofrem de IC podem perceber que sua dignidade está comprometida quando se sentem negligenciados pela equipe médica e por outros, aumentando, assim, sua vulnerabilidade e causando outras dificuldades.77. Nordgren L, Asp M, Fagerberg I. An exploration of the phenomenon of formal care from the perspective of middle-aged heart failure patients. Eur J Cardiovasc Nurs. 2007;6(2):121–9. Um maior sentimento de dignidade por parte do paciente pode aumentar a confiança e satisfação com o atendimento, melhorar os cuidados de enfermagem, diminuir o tempo de hospitalização e garantir resultados médicos mais positivos.88. Walsh K, Kowanko I. Nurses’ and patients’ perceptions of dignity. Int J Nurs Pract. 2002;8(3):143–51.,99. Lam K. Dignity, respect for dignity, and dignity conserving in palliative care. Hong Kong Soc Palliat Med. 2007;3:30–5.

Para esclarecer e ilustrar a importância da dignidade no envelhecimento, Nordenfelt e Edgar1010. Nordenfelt L, Edgar A. The four notions of dignity. Qual Ageing Older Adults. 2005;6(1):17–21. identificaram quatro conceitos básicos neste âmbito: a) dignidade de mérito (dependendo de sua posição formal e social durante a vida); b) dignidade como estado moral (ligada ao autorrespeito, caráter e virtudes); c) dignidade de identidade (ligada à integridade do corpo e da mente do individuo); e d) dignidade humana (Menschenwürde - pertencente a todos os seres humanos). Os autores também enfatizaram a dignidade de identidade como elemento-chave da dignidade do idoso no contexto da doença e do envelhecimento pelo fato de dessa fase da vida ser inconstante e mais fácil de ser alterada (danificada ou melhorada) durante o atendimento médico, servindo, portanto, como fundamentação para este estudo.1111. Dwyer LL, Nordenfelt L, Ternestedt BM. Three nursing home residents speak about meaning at the end of life. Nurs Ethics. 2008;15(1):97–109.,1212. Zahran Z, Tauber M, Watson HH, Coghlan P, White S, Procter S, et al. Systematic review: what interventions improve dignity for older patients in hospital? J Clin Nurs. 2016;25(3-4):311–21.

A maioria dos estudos nesta área inclui o ponto de vista dos pacientes e familiares e não dos profissionais de saúde. Além disso, poucos estudos1010. Nordenfelt L, Edgar A. The four notions of dignity. Qual Ageing Older Adults. 2005;6(1):17–21.,1616. Nursing and Midwifery Council. The code - Professional standards of practice and behaviour for nurses, midwives and nursing associates. London: NMC; 2015. investigaram o papel da dignidade no contexto da IC com base na perspectiva dos profissionais de enfermagem que tratam de pacientes afetados por essa doença, além disso, nenhum desses foi conduzido em Portugal.

O presente estudo faz parte de projeto de pesquisa mais amplo que tem como objetivo compreender o que significa viver com IC avançada do ponto de vista dos pacientes, enfermeiros e familiares. Desta forma, pretendemos: a) descobrir qual é a percepção dos profissionais de enfermagem em relação à dignidade de acordo com suas experiências; e b) identificar algumas questões éticas enfrentadas pelos enfermeiros ao lidar com pacientes que sofrem de IC avançada. Compreender melhor os fatores que constituem e afetam a dignidade e podem contribuir para um atendimento de enfermagem de qualidade para este grupo específico de pacientes.

Métodos

Estudo de abordagem qualitativa com análise de conteúdo indutiva de dados coletados de entrevistas com grupos focais (GFs). Os participantes de interesse neste estudo são enfermeiros trabalhando tanto em hospitais como em centros de atenção primária à saúde que tiveram contato diário com pacientes com IC e seus familiares. Os critérios de inclusão foram: a) ter pelo menos seis meses de experiência como ER; b) ser capaz de falar e compreender a língua portuguesa; e c) ter interesse em participar do estudo. Foram realizadas entrevistas com quatro GFs entre outubro de 2015 e fevereiro de 2016 envolvendo um total de 18 enfermeiros utilizando-se de uma amostra por conveniência. Os dados sociodemográficos dos participantes estão representados na tabela 1.

Tabela 1
Participantes das entrevistas com GFs organizados por instituição de assistência médica

Cada GF tinha de quatro a seis participantes e as entrevistas foram conduzidas em seus locais de trabalho pelo primeiro autor deste estudo. As perguntas permitiam respostas em aberto com foco em suas experiências com pacientes idosos com IC avançada naquilo que tange à dignidade destes. Buscavam-se respostas para as seguintes questões: 1) qual é o verdadeiro significado de dignidade?; 2) quais são os fatores que melhoram ou reduzem a dignidade durante o atendimento aos indivíduos com IC?; e 3) quais são os tipos de questões éticas enfrentadas pelas enfermeiras no cuidado desses pacientes? As entrevistas com os GFs duraram de uma a duas horas e foram gravadas digitalmente com transcrição dos diálogos.

O material coletado foi inserido no programa de computador QSR NVivo10 para propósitos de gerenciamento de dados.1313. International QS. Computer software. 2012 [Internet]Melbourne, Australia; 2012. [cited 2019 May 2]. Available from http://www.qsrinternational.com/products_nvivo.aspx
http://www.qsrinternational.com/products...
A codificação foi alinhada com os domínios preexistentes sobre dignidade previamente descritos.1414. Jacobson N. A taxonomy of dignity: a grounded theory study. BMC Int Health Hum Rights. 2009;9(1):3. Quando necessário, o conteúdo e os códigos foram tanto compactados quanto encaixados em categorias preexistentes ou distintas até que correlações centrais aparecessem.1515. Patton M. Qualitative research and evaluation methods. 3rd ed. Thousand Oaks (CA): Sage Publications; 2002. Cada padrão foi analisado para suportar as aspas contidas nos dados.

Para o aumento da confiabilidade, toda coleção de dados, análise e apresentação de resultados foi um processo contínuo de discussões dentro do grupo de pesquisa.

Esta pesquisa iniciou-se somente após a autorização do comitê de ética (P29-05/2015). Todos os participantes foram informados da natureza do estudo e formalizaram seu consentimento, sendo assegurado confidencialidade dos dados e anonimato.

Resultados

Em todas as entrevistas com os GFs houve uma comunicação de alto nível entre os profissionais de enfermagem durante o processo de comparação e contraste de opiniões e a construção de um significado sobre o tópico da entrevista. Os resultados são apresentados em três áreas de conteúdo reconhecidas por um estudo a priori: os significados da dignidade no cuidado e assistência; percepção sobre fatores que melhoram ou reduzem a dignidade; e as questões éticas levantadas pelos enfermeiros ao lidar com idosos com IC avançada. Tais áreas de conteúdo abrangem temas e categorias fundamentais com trechos das entrevistas (Quadro 1).

Quadro 1
Temas e categorias na análise de conteúdo qualitativa.

Significados da dignidade no atendimento ao paciente

O principal tema a emergir dos dados, “a montanha-russa da insuficiência cardíaca”, centrado nos valores da equipe de saúde e crenças sobre a necessidade de organizar e controlar a vulnerabilidade humana. “A montanha-russa da insuficiência cardíaca” é como uma jornada que ajuda a manter a dignidade do paciente dentro das restrições impostas pela doença. Ela serve para incentivar a dignidade social e até mesmo o otimismo do paciente, que, certamente, deve ser respeitado e protegido. O tema é apoiado nas duas seguintes categorias:

1) Lembrar de que eles são seres humanos!

Os profissionais de enfermagem definiram o conceito de dignidade do idoso como “ser visto como uma pessoa” e “ser respeitado pela pessoa que é”.

“Dignidade é respeito pela pessoa e é básico a todos os indivíduos” (GF 1).

“Antes de qualquer coisa, nós devemos ser respeitados como seres humanos e depois em nossa profissão” (GF 3).

Os enfermeiros se observam como uma importante fonte de ajuda e descrevem seu trabalho como prestar e receber apoio, o que inclui o respeito pela dignidade de cada um. A dignidade e o autorrespeito são reforçados quando a equipe sente que fez algo bom, mesmo quando isso envolve ações relativamente pequenas, e também quando esse profissional se sente reconhecido e orgulhoso pelo trabalho realizado.

Embora a equipe esteja ciente de que cada pessoa é única e tenha necessidades diferentes, eles relatam de forma mais ou menos clara que a organização foi planejada de forma que pode prejudicar a assistência centrada no paciente, fazendo com que os idosos corram o risco de serem tratados como um grupo homogêneo de necessidades semelhantes.

2) proteger as pessoas que não podem se proteger.

A experiência da dignidade está associada às experiências do paciente como pessoa integrada e autônoma, mais especificamente pelo senso de vulnerabilidade frente a ameaças e perdas. Apesar da vulnerabilidade ser algo presente ao longo das experiências vividas por todos os seres humanos, ela é vista como um atributo existencial da condição da idade avançada e frágil.

Um atendimento individualizado é considerado importante para a promoção da identidade das pessoas idosas em uma fase da vida caracterizada pela perda e solidão. Estar atento às suas diversas necessidades foi um ponto destacado durante as entrevistas.

Os enfermeiros também declararam que “a responsabilidade vai além daquilo que os seres humanos fazem e é algo originalmente ética, o que torna tangível quando um individuo olha para a face do outro” (GF 2). Eles se descrevem como defensores do autocuidado e responsáveis em auxiliar e instruir o paciente e seus familiares a encontrar novas maneiras de como viver da forma mais normal possível.

Percepção sobre fatores que melhoram ou reduzem a dignidade

1) Defesa da dignidade

Os profissionais de enfermagem que participaram dos GFs foram unidos em sua visão das qualidades do atendimento como fatores que promovem a dignidade no cuidado de idosos com IC avançada. Eles utilizaram termos que são sinônimos do conceito de dignidade em si, tais como respeitabilidade, humanidade, empatia, fazer com que as pessoas se sintam valorizadas e permitir escolhas individuais. A dignidade no atendimento é promovida de forma livre de julgamento, respeitando os valores pessoais, apoiando suas decisões e sua autonomia e preservando sua privacidade. Atender às necessidades físicas, emocionais e espirituais dos pacientes promove a dignidade dos doentes cardíacos. A integridade física também é algo muito valorizado pelos participantes. Devem ser tomados os cuidados necessários para mantê-los seguros sem impor aos pacientes quaisquer danos físicos ou mentais. A segurança emocional inclui a garantia da privacidade do paciente levando em conta sua autonomia. Também foi destacado o respeito às obrigações religiosas e à tranquilidade espiritual. Segundo os enfermeiros, suprir tais necessidades está entre os fatores que afetam a dignidade do paciente.

2) Restrições à dignidade

As restrições ambientais estão relacionadas à promoção da dignidade dentro da ala hospitalar em oposição aos lares de apoio, refletindo, talvez, na percepção subjacente do hospital como um local público em contraste com o espaço privado do indivíduo em sua própria casa, onde ocorre grande parte do trabalho da família e dos enfermeiros comunitários. As restrições profissionais dizem respeito às mudanças do papel dos enfermeiros e as práticas consideradas contraproducentes na promoção da dignidade no atendimento.

Os limites de tempo para permanência no hospital são, aparentemente, consequência da falta de pessoal, o que causa uma tensão entre atendimento rápido versus individualizado, uma vez que o tempo dedicado a cada paciente é reduzido.

A baixa proporção profissional de enfermagem por paciente e falta de conhecimento estão geralmente associadas ao atendimento insatisfatório, enquanto enfermeiros sem treinamento e profissionais jovens estão ligados à ausência de um tratamento humanizado, o que é uma potencial ameaça à integridade dos idosos.

Os estereótipos incluem julgamentos, intolerância e o preconceito de idade como uma forma particular de discriminação.

As restrições individuais se concentram em atitudes individuais específicas, incluindo falta de respeito e de comunicação e certas emoções provocadas por carga de trabalho excessiva e exaustão emocional, o que prejudica a dignidade no atendimento.

Questões éticas levantadas pelos enfermeiros

A decisão de interromper um tratamento de suporte a vida foi frequentemente citada como fonte de conflito. Três temas mais abrangentes expressam a variedade de questões éticas enfrentadas pelos profissionais de enfermagem ao lidar com pacientes com IC avançada.

1) Qualidade de vida versus tempo restante - “Um controle de sintomas adequado nos estágios finais da IC é uma das maiores preocupações dos pacientes e seus familiares. Uma comunicação assertiva sobre o impacto do tratamento na qualidade de vida é de particular importância pois a preferência do paciente por qualidade ou tempo de vida pode influenciar na tomada de decisões que dizem respeito ao seu tratamento” GF 2. Contudo, na medida em que o paciente com IC envelhece e nenhuma melhora significativa pode ser obtidos por meio de novos medicamentos e dispositivos, as intervenções que visam somente tratar os sintomas acabam tendo maior relevância no tratamento.

2) Intervenções curativas versus paliativas - Além da medicação, um grande número de abordagens técnicas podem auxiliar o paciente com IC. “Cirurgias de ponte de safena, colocação de stent e angioplastias podem aliviar obstruções contudo, em muitos casos, não podem reverter a IC” GF 3.

A atual geração de pacientes implantados com dispositivos de assistência cardíaca tem sérios riscos de sofrerem complicações tais como acidente vascular cerebral e infecção disseminada. Além disso, procedimentos tecnológicos invasivos são geralmente muito dolorosos e os pacientes para quem são prescritos alguma intervenção desta natureza devem decidir o quão agressivo eles querem que seja o combate à doença. Na prática médica, os “cuidados paliativos” geralmente significam evitar intervenções intensivas e invasivas que prolongam a vida do paciente em detrimento da qualidade de vida. Entretanto, a implantação de dispositivos de assistência cardíaca, que ao mesmo tempo aliviam sintomas e aumentam a sobrevida dos pacientes terminais, podem não se encaixar nesse paradigma.

3) Morte rápida e imprevisível versus morte prolongada e esperada - “Muitos pacientes com IC avançada vão a óbito não em função da disfunção cardíaca congestiva, mas por conta de morte súbita secundária a arritmias que, muitas vezes, poderiam ser evitadas com a aplicação de choques elétricos no momento apropriado” (GF 4). Contudo, a prevenção da morte súbita cardíaca nem sempre é interessante para o paciente. Conforme comentado por um profissional de enfermagem sobre as terapias que visam salvar a vida de pacientes com doença arterial coronariana: “Nós os salvamos de uma morte súbita apenas para impor uma morte prolongada devido a IC progressiva” (GF 1). O mesmo é dito em relação à Cardioversores-Desfibriladores Implantáveis (CDIs). O paciente com IC que pondera sobre ter implantado um CDI está essencialmente fazendo uma escolha entre sofrer morte súbita imprevisível relativamente assintomática ou ter uma piora progressiva dos sintomas que o levará finalmente a óbito. Além disso, existe a questão sobre se desligar o CDI que é eticamente permitido mesmo após o paciente ter dado a ordem de ‘não ressuscitá-lo’. Os esforços para ressuscitar um paciente podem ser infrutíferos se os objetivos subsequentes de cuidado e assistência forem inatingíveis. Em alguns casos, a ressuscitação pode não ser a melhor forma de utilizar os já limitados recursos de saúde.

Discussão

Os profissionais de enfermagem consultados em nosso estudo frequentemente faziam um elo entre a prática de preservar a dignidade também como o de escutar o que os pacientes tinham a dizer, além de inclui-los no processo de tomada de decisões, enfatizando, desta forma, o cuidado centrado no indivíduo. Este estudo destaca a relevância da participação e da proteção à dignidade mesmo em situações de vulnerabilidade.

Os enfermeiros têm convicção de que a dignidade é mantida no relacionamento com as pessoas durante o atendimento por meio de ações em prol da proteção dos pacientes.1616. Nursing and Midwifery Council. The code - Professional standards of practice and behaviour for nurses, midwives and nursing associates. London: NMC; 2015. Nosso estudo corrobora com achados anteriores de Edlung et al.1717. Edlund M, Lindwall L, von Post I, Lindström UÅ. Concept determination of human dignity. Nurs Ethics. 2013;20(8):851–60. que destacaram duas visões diferentes, porém inter-relacionadas, de dignidade. Uma delas descreve como absoluta, constante e relacionada a todos os seres humanos e inclui valores como liberdade e responsabilidade. A outra considera a dignidade como um ideal ético relativo e mutável, com uma perspectiva interna e externa sentida em relação a alguém ou alguma coisa. “A dignidade mutável interna implica que o sentimento de dignidade vivenciado pelo indivíduo tem suas raízes numa fonte de valores influenciada pela cultura e pela sociedade”.1717. Edlund M, Lindwall L, von Post I, Lindström UÅ. Concept determination of human dignity. Nurs Ethics. 2013;20(8):851–60.

Subestimar as pessoas pode ser entendido como uma violação a dignidade pois esses não são tratadas como seres humanos iguais. A autonomia relacional torna possível o relacionamento com indivíduos com IC avançada como seres humanos iguais, apesar de suas fragilidades. Assim como afirma Eriksson,1818. Eriksson K. Theory of Caritative Caring. In: Tomey M, Alligood R, editors. Nursing theorists and their work. St Louis, USA: Mosby; 2006. p. 191–223. estar presente e assumir responsabilidades pelos pacientes é uma demonstração de ética na assistência. As experiências dos profissionais de enfermagem com problemas éticos são frequentemente descritas em termos de responsabilidade externa*. No entanto, eles também demonstram responsabilidade interna** quando estão comprometidos e dispostos a prestar auxílio tanto ao paciente quanto aos seus familiares para lidar com sofrimento e o processo de tomada de decisões.

Dada a irreversível e imprevisível natureza da doença e a alta carga dos sintomas físicos aliados à angústia psicossocial e espiritual, pacientes com IC avançada “são incentivados a deixar documentada sua preferência por intervenções invasivas de suporte a vida, tais como ventilação mecânica e cardioversão, por meio de diretrizes avançadas ou planejamentos antecipados de cuidados”.1919. Malhotra C, Sim D, Jaufeerally F, Finkelstein EA. Associations between understanding of current treatment intent, communication with healthcare providers, preferences for invasive life-sustaining interventions and decisional conflict: results from a survey of patients with advanced heart failure in Singapore. BMJ Open. 2018;8(9):e021688.Estudos sugerem que para permitir que os pacientes com IC avançada tomem decisões sobre as possibilidades de tratamento futuro, tanto eles como os profissionais de saúde devem ser incentivados e treinados para desenvolver uma postura mais proativa para discutir claramente as intenções do paciente em relação ao seu tratamento.

A discussão com pacientes e familiares sobre desistir ou interromper o tratamento bem como sobre a Reanimação Cardiopulmonar (RCP) nos estágios finais da IC, assim como é sugerido pelas diretrizes atuais de IC, é um dos tópicos mais difíceis para os profissionais de enfermagem.1919. Malhotra C, Sim D, Jaufeerally F, Finkelstein EA. Associations between understanding of current treatment intent, communication with healthcare providers, preferences for invasive life-sustaining interventions and decisional conflict: results from a survey of patients with advanced heart failure in Singapore. BMJ Open. 2018;8(9):e021688.,2020. Brännström M, Jaarsma T. Struggling with issues about cardiopulmonary resuscitation (CPR) for end-stage heart failure patients. Scand J Caring Sci. 2015;29(2):379–85. Contudo, é essencial que os enfermeiros iniciem essa discussão no início dos cuidados de fim de vida, e que continuem a discussão durante o tempo de vida restante do paciente. Da mesma forma, as dificuldades morais também devem ser discutidas pela equipe de enfermagem.2020. Brännström M, Jaarsma T. Struggling with issues about cardiopulmonary resuscitation (CPR) for end-stage heart failure patients. Scand J Caring Sci. 2015;29(2):379–85. Estudos futuros podem investigar quais são as questões éticas mais recorrentes que lidam os profissionais de saúde também como desenvolver recomendações para uma comunicação mais assertiva sobre problemas morais, o que visa aumentar o sentimento de segurança profissional e confiança em questões éticas.

As instituições de saúde têm o dever de aprimorar suas interações profissionais para promover um ambiente ético, mais produtivo e que ofereça melhores resultados aos pacientes. Os ambientes organizacionais investigados em nosso estudo — que sofrem com falta de pessoal, restrições de tempo e sobrecarga de trabalho — certamente não ajudam a promover o respeito e a dignidade. Considerando esses fatos, torna-se imprescindível que as equipes de enfermeiros desenvolvam ações para garantir e proteger a dignidade do paciente.2121. Rehnsfeldt A, Lindwall L, Lohne V, Lillestø B, Slettebø Å, Heggestad AK, et al. The meaning of dignity in nursing home care as seen by relatives. Nurs Ethics. 2014;21(5):507–17. Os estudantes de enfermagem devem, durante o curso de graduação, ser ensinados sobre fatores e estratégias que visam atender as expectativas do paciente e sobre a garantia da dignidade desses indivíduos, o que possivelmente resultará em práticas profissionais mais dignas.

As principais limitações deste estudo são relacionadas a amostragem. Foram selecionados participantes de apenas dois centros de atenção primária à saúde e de dois hospitais. Portanto, os achados refletem a situação de uma porção limitada do país (a região central de Portugal). Outra limitação refere-se a concepção de dignidade analisada, sendo baseada exclusivamente em pontos de vista subjetivos dos participantes e não na observação de suas práticas profissionais. É possível que a implementação de outras abordagens de pesquisa revele mais informações sobre o conceito de dignidade nessa população. Como este estudo foi realizado em Portugal, as estratégias de preservação e promoção da dignidade podem ser diferentes para indivíduos provenientes de outras culturas.2222. Høy B, Lillestø B, Slettebø Å, Sæteren B, Heggestad AK, Caspari S, et al. Maintaining dignity in vulnerability: A qualitative study of the residents’ perspective on dignity in nursing homes. Int J Nurs Stud. 2016;60:91–8.

Conclusão

Este estudo revelou uma compreensão mais ampla sobre a percepção da dignidade na vida cotidiana sob a perspectiva dos enfermeiros que prestam assistência a idosos com IC avançada. “Este conhecimento enfatiza o potencial de uma abordagem mais voltada à dignidade na assistência a idosos” e pode auxiliar enfermeiros e outros profissionais de saúde a compreender a garantia da dignidade a partir da perspectiva do paciente.

Agradecimentos

Agradecemos aos enfermeiros participantes que doaram seu tempo para compartilhar suas narrativas.

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    Responsabilidade externa “significa que uma pessoa tem a obrigação moral de cumprir o seu dever de acordo com as leis e as normas éticas”.
  • **
    Responsabilidades internas “podem ser entendidas como uma característica profundamente pessoal (virtude) do indivíduo que o motiva a agir eticamente”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    8 Jul 2019
  • Aceito
    19 Ago 2019
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