Acessibilidade / Reportar erro

Hemiparesia esquerda consecutiva a empeçonhamento: Por Bothrops Jararacussu

Resumos

O A. apresenta uma observação de hemiparesia esquerda, consecutiva a envenenamento por Bothrops Jararacussu. É o segundo caso que publica, com idêntica etiologia; além das suas, há duas outras observações semelhantes, de Octávio de Magalhães. Depois de discorrer sobre as hemiplegias cerebrais infantis - mais comuns - lembra que estas nem sempre se acompanham de espasticidade, podendo apresentar-se, raramente, com hipotonia muscular, ou mesmo de coréia, atetose, ou movimentos córeo-atetóticos que falam em favor de comprometimento extrapiramidal. Assinala, também, que crises epileptiformes - generalizadas ou parciais - podem ocorrer, o mesmo se podendo dizer de distúrbios psíquicos. Traduzir-se-iam, estes, por déficit intelectual marcado, podendo ir desde a debilidade mental até a idiotia; ou então, mesmo quando não há aparente comprometimento da esfera intelectual, por perturbações da afetividade, da vontade e do pragmatismo. Passando em revista as causas mais frequentes das hemiplegias cerebrais infantis, abre lugar, dentre elas, para os empeçonhamentos ofídico e escorpiônico (Magalhães e Guimarães). Estuda, a seguir, a patogenia das hemiplegias no decurso dos referidos empeçonhamentos, alinhando as hipóteses correntes, da preferência de conceituadas autoridades no assunto. Transcreve, finalmente, sua observação clínica, da qual se pode concluir, sem dúvida possível, haver, no caso "que apresenta, estreita e imediata ligação entre o envenenamento ofídico e a hemiparesia em estudo. O observado seria portador, além do mais, de crises epileptiformes generalizadas, aparecidas logo a seguir ao empeçonhamento. Além da fotografia do caso que apresenta, mostra-nos o A. outra, de caso anteriormente publicado, este, porém, de hemiplegia cerebral infantil típica, instalada aos 11 anos, após picada de Bothrops jararaca.


The A. presents one observation of left side hemiparesis following poisoning by Bothrops Jararacussu. This is the second case reported by the A. both having identical etiology. There are two more similar observation's by Octavio de Magalhães. After discussing the infantile cerebral hemiplegia, the A. calls attention to the fact that those hemiplegias do not always present spasticity, sometimes presenting muscular hipotony or even chorea, athetosis or choreo-athetotic movements, which suggest an extrapyramidal involvement The A. then stresses the fact that epileptiform crisis - either generalized or partial - may occur, as well as psychic disruibances. Those disturbances consist either of marked intellectual deficit which can go as far as idiocy, or else of disturbances of afectivity, will and pragmatism, even when no intellectual deficit can be detected. Making a review of the most frequent causes of infantile cerebral hemiplegia the A. places among them the ophidic and scorpionic poisoning (Magalhães and Guimarães). Then the A. proceeds studying the pathogeny of the hemiplegia occurring in the course of those poisonings, referring to the current hipothesis, specially to those which are due to well known authorities on the subject. The A. finally, includes the clinical observation of one case from which we can, no doubt, draw the conclusion that there is a close and immediate relationship between the ophidic poisoning and the hemiparesis reported, the patient presenting in addition generalized epileptiform crisis which have appeared immediately after the poisoning. Not only the photograph of the case reported is included but also another of an already published case of typical cerebral hemiplegia following Bothrops Jararaca poisoning, studied in a child aged eleven.


Do Corpo de Saúde do Exército. Assistente da cadeira de Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina da Universidade do Paraná

RESUMO

O A. apresenta uma observação de hemiparesia esquerda, consecutiva a envenenamento por Bothrops Jararacussu. É o segundo caso que publica, com idêntica etiologia; além das suas, há duas outras observações semelhantes, de Octávio de Magalhães.

Depois de discorrer sobre as hemiplegias cerebrais infantis - mais comuns - lembra que estas nem sempre se acompanham de espasticidade, podendo apresentar-se, raramente, com hipotonia muscular, ou mesmo de coréia, atetose, ou movimentos córeo-atetóticos que falam em favor de comprometimento extrapiramidal.

Assinala, também, que crises epileptiformes - generalizadas ou parciais - podem ocorrer, o mesmo se podendo dizer de distúrbios psíquicos. Traduzir-se-iam, estes, por déficit intelectual marcado, podendo ir desde a debilidade mental até a idiotia; ou então, mesmo quando não há aparente comprometimento da esfera intelectual, por perturbações da afetividade, da vontade e do pragmatismo.

Passando em revista as causas mais frequentes das hemiplegias cerebrais infantis, abre lugar, dentre elas, para os empeçonhamentos ofídico e escorpiônico (Magalhães e Guimarães).

Estuda, a seguir, a patogenia das hemiplegias no decurso dos referidos empeçonhamentos, alinhando as hipóteses correntes, da preferência de conceituadas autoridades no assunto.

Transcreve, finalmente, sua observação clínica, da qual se pode concluir, sem dúvida possível, haver, no caso "que apresenta, estreita e imediata ligação entre o envenenamento ofídico e a hemiparesia em estudo. O observado seria portador, além do mais, de crises epileptiformes generalizadas, aparecidas logo a seguir ao empeçonhamento.

Além da fotografia do caso que apresenta, mostra-nos o A. outra, de caso anteriormente publicado, este, porém, de hemiplegia cerebral infantil típica, instalada aos 11 anos, após picada de Bothrops jararaca.

SUMMARY

The A. presents one observation of left side hemiparesis following poisoning by Bothrops Jararacussu. This is the second case reported by the A. both having identical etiology. There are two more similar observation's by Octavio de Magalhães.

After discussing the infantile cerebral hemiplegia, the A. calls attention to the fact that those hemiplegias do not always present spasticity, sometimes presenting muscular hipotony or even chorea, athetosis or choreo-athetotic movements, which suggest an extrapyramidal involvement The A. then stresses the fact that epileptiform crisis - either generalized or partial - may occur, as well as psychic disruibances. Those disturbances consist either of marked intellectual deficit which can go as far as idiocy, or else of disturbances of afectivity, will and pragmatism, even when no intellectual deficit can be detected.

Making a review of the most frequent causes of infantile cerebral hemiplegia the A. places among them the ophidic and scorpionic poisoning (Magalhães and Guimarães). Then the A. proceeds studying the pathogeny of the hemiplegia occurring in the course of those poisonings, referring to the current hipothesis, specially to those which are due to well known authorities on the subject.

The A. finally, includes the clinical observation of one case from which we can, no doubt, draw the conclusion that there is a close and immediate relationship between the ophidic poisoning and the hemiparesis reported, the patient presenting in addition generalized epileptiform crisis which have appeared immediately after the poisoning.

Not only the photograph of the case reported is included but also another of an already published case of typical cerebral hemiplegia following Bothrops Jararaca poisoning, studied in a child aged eleven.

Que o empeçomhamento ofídico pode dar lugar a hemiplegias orgânicas, testemunham diversos trabalhos, a que mais adiante nos reportaremos. A hemiplegia cerebral infantil - ou, como Gareiso e Escardó11. Gareiso, A. e Escardó, F. - Manual de Neurologia Infantil. Ed. El Ateneo, Buenos Aires, 1942, Págs. 230-32. acham mais correto denominar, hemiplegia espasmódica infantil - seria a mais frequente, casos havendo, entretanto, em que só se observam monoplegias ou, como no que apresentaremos, hemiparesias, acompanhadas ou não de movimentos involuntários (atetose, córeo-atetose, etc), distúrbios sensitivos e perturbações psíquicas.

A hemiplegia é o que mais habitualmente ocorre. Tem uma caraterística particular, qual seja a de acarretar verdadeira parada no desenvolvimento da musculatura de todo o domínio corporal afetado. Os ossos dela participam, mostrando-se diminuídos em espessura e comprimento. Observa-se verdadeira assimetria osteomuscular, igualmente comprovada no tórax e abdome. Lembra Déjerine22. Déjerine, J. - Sémiologie du système nerveux. Masson Cie., Paris. que a parada de desenvolvimento é tanto mais marcada quanto mais cedo for atingida a criança. Se isso ocorrer após a segunda infância (hemiplegia dos adolescentes), é, naturalmente, menos acentuada. A atrofia predomitta no membro superior, sendo uniformemente disposta em todos os grupos musculares. Poder-se-á observar em todos os graus possíveis, desde sua quase ausência até um desenvolvimento extremamente acentuado. No membro inferior é, em geral, menor. Normalmente, atinge os músculos do tronco, contribuindo para a assimetria torácica e abdominal que se observa. De par com os fenômenos tróficos, assinalados nas linhas precedentes, verifica-se atrofia do testículo e da mama do mesmo lado.

A paralisia facial - geralmente antes paresia que paralisia - predomina nos domínios do facial inferior. Às vezes, é preciso procurá-la com cuidado, durante os movimentos da mímica sobretudo, podendo-se então constatar diferença de motilidade entre as duas metades da face. A face é, em geral, assimétrica, o mesmo podendo ocorrer com a correspondente metade do crânio, que então se mostra achatada, ou, mais raramente, deprimida. A atrofia, agindo sobre músculos e ossos, acentua a assimetria. Paralelamente, observam-se atrofia do olho, da orelha e da metade da língua.

A atitude dos enfermos é típica: antebraço fletido sobre o braço, mão sobre o punho; o polegar, em adução, recoberto pelos demais dedos flexionados sobre a palma. O membro inferior, em extensão, mostra o pé em equinovaro mais ou menos pronunciado. Há sempre escoliose, de concavidade voltada para o lado comprometido. Distúrbios vaso-motores aparecem sempre. Traduzem-se por cianose, hipotermia, dificuldade em desaparecer o sinal da pressão exercida sobre o dorso da mão, etc.

Geralmente, observa-se maior ou menor grau de espasticidade ou hipertonia muscular, somada a hiperreflexia tendinosa, hiporrefletividade cutânea, clono do pé e da rótula, sinal de Babinski acompanhado ou não dos seus sucedâneos (reflexo de Gordon, Strümpell, Schaffer, etc). Em alguns casos, entretanto, pode o exame do tono muscular revelar certo grau de hipotonia nos dedos da mão, permitindo, p. ex., colocar em hiperextensão as falanges, falanginhas e falangetas, ou chegar a cobrir a região do ombro com a palma da mão. Demonstraria isso não estar a lesão inteiramente localizada na zona córtico-piramidal, havendo simultâneo comprometimento dos centros tonígenos cerebrais (Gareiso-Escardó). "Em certos casos", escrevia Pierre Marie, já em 1886, "o caráter desta paralisia está longe de ser espástico". Donde a divisão feita por este autor: tipo A (tipo estriado de Babinski) - acompanhado de atetóse ou córeo-atetose, sem atrofia e sem contraturas pronunciadas, isto é, sem lesão do feixe piramidal; tipo B - com evidente contratura, alterações tróficas dos membros e consequente deformação dos mesmos, com toda a conhecida sintomatologia das lesões do feixe piramidal. Devem estes tipos clássicos ser apenas tidos à conta de modelos; nosograficamente, existem outros, intermediários, mais comumente encontrados.

É frequente, na hemiplegia cerebral infantil, a existência de crises cpileptiformes ou de ausências. Aquelas são, habitualmente, unilaterais, começando pelo lado paralisado. Podem existir, para o lado do membro superior principalmente, movimentos involuntários - coréia, atetose, movimentos coreo-atetóticos - o que implica em comprometimento do sistema extrapiramidal. Tais movimentos são tão comuns na hemiplegia infantil, quão raros na dos adultos. Alterações sensitivas são excepcionais e, quando existem, são sumamente leves, radicando-se na periferia dos membros. Aloysio de Castro33. Castro, A. - Tratado de semiótica nervosa. Ed. Briguiet, Rio de Janeiro. escreve que a astereognosia pode ser observada, vez por outra. Explica-a, recordando que o sentido estereognóstico é fruto de especial educação, aperfeiçoada vida em fora; ora, instalando-se a hemiplegia em tenra idade, impede se desenvolva o referido sentido.

Pode haver comprometimento psíquico, traduzido em déficit intelectual mais ou menos marcado. Diga-se de passagem não ser êle proporcional à intensidade da hemiplegia: é bem menor quando, por exemplo, está em jogo uma lesão capsular, e muito mais acentuado quando se trata de lesão cortical extensa ou de porencefalia. Casos há em que a inteligência não é atingida ou é pouco tocada. Neste caso, o indivíduo aprende bem o que se lhe ensina e tem boa memória. Em troca, há comprometimento volitivo e afetivo, com distúrbios do pragmatismo, debilitação do senso moral e perversão do caráter. De modo geral, pode observar-se a oligofrenia, sob qualquer das suas fôrmas - debilidade mental, imbecilidade ou idiotia. No estudo que faz da debilidade mental, acentua Henrique Roxo44. Roxo, H. - Manual de Psiquiatria. Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro. ser ela frequente em consequência à diplegia ou hemiplegia cerebral infantil, fazendo-se então acompanhar, ao dizer de Laignel-Lavastine, da "síndrome de debilidade motora de Dupré, caraterizada por sincinesia, sinal de Babinski, exagero de reflexos, de sazo de movimentos e paratonia ou impossibilidade de fazer o braço mole". Na maioria dos casos, as perturbações da inteligência que acompanham as hemiplegias infantis permanecem estacionárias, raramente apresentando o caráter de uma demência progressiva (Bourneville).

São em grande número as causas da hemiplegia cerebral infantil. Costuma esta ocorrer: 1 - Na vida intra-uterina, consecutiva a arterite infecciosa, parada de desenvolvimento, heredolues ou lesões sofridas pelo feto. Alô Guimarães atribui importante papel a estas causas pré-natais, responsáveis que são por grande número de agenesias e disgenesias cerebrais e seu longo cortejo de consequências; 2 - Por ocasião do nascimento, devido a hemorragia meníngea, nos partos laboriosos; 3 - Após o nascimento; a) por traumatismo direto, nas fraturas cranianas com afundamento, nas feridas penetrantes do crânio por bala ou estilhaço de obus; b) por traumatismo indireto, repercussão à distância dos traumatismos cranianos; a) nos empeçonhamentos ofídico e escorpiônico; d) nas intoxicações alcoólica, arsenical, mercurial, etc; e) nas doenças infecciosas. "Todas as infecções são suscetíveis de se complicarem de hemiplegia" (Déjeriney A causa determinante seria sempre uma encefalite supurada, uma meningite, um processo arterítico ou um êmbolo partido do coração. Foi observado no difteria (Seifert), escarlatina (Rolleston), pneumonia (Bellot), febre tifóide (Osler), coqueluche (Neurath), sarampo, meningites agudas e tuberculosas, etc; f) no decurso dos seguintes estados mórbidos: diabetes, uremia, terçã maligna, icterícias graves e no pleuris com derrame, antes ou após toracocentese (Levy-Valensi).

Qual a patogenia das hemiplegias infantis no empeçonhamento ofidico? O doente que estudaremos, de acordo com nosso ponto de vista e com sua história clínica, deve a hemiplegia que apresenta a envenenamento ofídico, tendo sido fator responsável a peçonha do Bothrops jararacussu. No maior das vezes, quadros como o que dentro em pouco descreveremos, são devidos a empeçonhamento crotálico, dado o grande neurotropismo do veríeno do Crotalus terrificus. Por empeçonhamento botrópico, há apenas, ao que sabemos, um registro anterior a este, registro também feito por nós em 194355. Teixeira, N. L. - Hemiplegia cerebral infantil por empeçonhamento botrópico. Rev. Med. Mil., 3, 1943. . O ofídio causador, foi, neste caso, Bothrops jararaca.

Assinalemos, de passagem, que Eduardo Vaz e Anibal Pereira66. Vaz, E. e Pereira, A. - Hemocoagulação pelo veneno botrópico. Bol. Sanat. S. Lucas (S. Paulo) junho, 1940. em excelente estudo, descreveram o seguinte: "No estudo experimental do veneno botrópico, segunrio a espécie de serpente, ora a ação proteolítica é mais acentuada (B. neuwiedii), ora a hemocoagulante mais destacada (B. atrox), ou intermediária entre Crotalus e Bothrops (B. jararacussu). O grifo é nosso. Poderá isso explicar a hemiplegia em nosso caso atual? Acreditamos que sim. Para Calmette77. Calmette, A. - Les venins, les animaux venimeux et la sérothérapie antivenimeuse. Em vol. XXII, Coleção Sergent, Paris, págs. 76-78. , o veneno ofídico deveria sua toxidez a dois princípios: neurotopina, neurotrópica, e hemorragina, hemolítico e endoteliotóxico. No veneno dos Colubrídios, predomina o primeiro; no dos Viperídios, prevaleceria o segundo.

No primeiro trabalho que sobre o assunto publicamos, procuramos explicar o mecanismo da hemiplegia, atribuindo-a a hemorragias provocadas pela ação da hemorragina sobre o endotélio vascular. Estava isso de acordo com as conhecidas experiências de Vital Brazil88. Vital Brazil - Contribuição ao estudo do ofidismo. Biol. Méd. (Rio de Janeiro), 27: 3, 1938. , levadas a efeito em sagüis, cães e Macacus rhesus, com a injeção de veneno de diversas cobras. Em todos, o achado necróptico era o mesmo: hemorragias arteriais poli viscerais, particularmente cerebrais, sendo frequentes os hematomas subpiais. Para Octávio da Silveira, aqui, a exemplo do que ocorre em outras hemiplegias, o espasmo vascular seria o fator responsável mais comum. Para Eduardo Vaz e Anibal Pereira, já citados, ocorreria a hemiplegia, "em consequência da coagulação intravascular e do embaraço mecânico da circulação". Lembra Déjerine que, "à autópsia, as lesões constatadas são as mesmas que as da hemiplegia do adulto, a saber, focos centrais de hemorragia ou de amolecimento, lesões cortiticais de amolecimento - placas amarelas - consecutivas a uma trombose por endarterite, ou a embolia". Todas estas diferentes maneiras de encarar o assunto não impedem se estabeleça estreita filiação entre o empeçonhamento ofídico e as perturbações motoras logo a seguir observadas.

Duas observações de hemiplegia infantil por envenenamento ofídico foram feitas anteriormente por Octávio de Magalhães99. Magalhães, O. - Hemiplegia orgânica provocada pelo veneno ofídico. Ciência Méd., 3; 302-307, 1925. Magalhães, O. - Hemiplegias orgânicas provocadas pelos venenos ofídico e escorpiônico. Rev. Med. Cir. Brasil, 43: 113-118, págs. 113-118. , ambas de hemiplegia orgânica. Ignoramos qual o ofídio responsável, no primeiro caso; no segundo, foi a cascavel. O mesmo autor, em colobaração com Guimarães1010. Magalhães, O. e Guimarães, R. - Algumas observações sobre picadas de escorpiões. Brasil Méd., 27: 461 (5, julho) 1941. , publicou ainda interessante caso da mesma natureza, consecutivo este, à picada de escorpião.

Passemos agora à nossa observação (n.° 65 de nosso arquivo):

M. G. S. (fig. 1), brasileiro, branco, solteiro, 22 anos, lavrador, internado para verificação de sua aptidão para o serviço militar.


Queixa do doente: "esquecimento" do braço esquerdo e ataques (sic).

Antecedentes familiais sem importância para o caso. Antecedentes pessoais: Nascido a termo, de parto normal. Andou e falou na época normal. Coqueluche aos 4 anos, sem complicações. Varicela e sarampo, aos 21 anos. Nega moléstias venéreas. Não frequentou escolas. Nunca procurou mulheres. É tabagista moderado. Não é etilista.

Histórico: Até os 18 anos, foi rapaz vivo e sadio. Com esta idade, foi, ao colher milho, picado, à altura do terço médio da perna esquerda, por cobra venenosa, morta e identificada como jararacussu. No momento da picada, sentiu forte dor local e "amarelidão" na vista. Ao mesmo tempo que o ferimento sangrava bastante, instalou-se rápido e progressivo edema que tomou toda a perna. Manifestaram-se, logo a seguir, hemorragias gengivais. Conduzido à casa, sentiu-se bruscamente perder os sentidos. Permaneceu em absoluto estado de inconsciência durante 10 dias. Durante outros 50 dias guardou o leito com hemiplegia esquerda. Ao fim destes, levantou-se: andava com grande dificuldade e sua fala era engrolada e incompreensível. A pouco e pouco, recuperou o uso da palavra; a volta de movimentos nos membros superior e inferior só a pouco foi conseguida, com o passar dos anos, e mesmo assim de maneira deficiente. Seu psiquismo sofreu bastante; de esperto e atilado que era, passou a sentir-se entorpecido, difícil de compreensão e tardo de idéias. 15 dias depois de haver-se levantado, passou a apresentar crises epileptiformes típicas, que passaram a se repetir com freqüência, perdurando até a presente data (mau grado ter permanecido por mais de um mês em nosso serviço não pudemos assistir a nenhuma delas).

Exame clínico: Leucodermo. Suas çaraterísticas morfológicas permitem-nos incluí-lo no tipo astênico-displástico do esquema de Kretschmer. Hiponutrido. Assimetria facial. Hipotrofia muscular de todo o dimidio corporal esquerdo, da coxa principalmente. Mensurações: Antebraço (1/3 médio) - Direito: 19 cms.; Esquerdo: 16 cms. Braço (1/3 médio) - Direito: 24 cms.; Esquerdo: 22 cms. Perna (1/3 médio) - Direita: 36 cms.; esquerda: 32 cms. Coxa (1/3 médio) - Direita: 40 cms.; esquerda: 36 cms. Pêlos finos e escassos. Distribuição feminina dos pêlos pubianos. Exame dos aparelhos: Sem distúrbios dignos de nota.

Exame neurológico: Orientação e estática: normais. Ausência do sinal de Romberg. Motilidade ativa voluntária: Paresia facial esquerda, predominando no domínio do facial inferior, revelada pelo apagamento dos sulcos nasogeniano e nasolabial do mesmo lado, repuxamento da comissura labial direita e acentuada pelos movimentos da mímica. Fenda palpebral esquerda mais fechada do que a direita. Paresia do membro superior esquerdo, com leve grau de hipotrofia muscular. Polegar esquerdo em adução. Movimentos de flexão e extensão possíveis no braço, antebraço, mão e quirodáctilos, exceção feita do polegar, que não os executa.

Força dinamométrica - Mão direita: 32; Mão esquerda: 10. Discreta hipotrofia muscular do tronco, o que acarreta assimetria torácica e abdominal. Membro inferior paresiado, apresentando hipotrofia, mais acentuada na coxa. O pé, em extensão, esboça a posição equino-varo. Marcha hemiparética, discreta.

Motilidade ativa involuntária: Ausência de tiques, tremores, coréia, atetóse e movimentos córeo-atetóticos. Motilidade passiva: A hipertonia muscular observada não impede sejam possíveis movimentos passivos dos membros superior e inferior, que se fazem sem dor. Refletividade: Superficial: reflexos plantares normais; ausência do sinal de Babinski; reflexo cremastérico esquerdo, tórpido; os demais reflexos superficiais, normais. Profunda: hiperreflexaa tendinosa; não há clono da rótula e do pé. Especial: isocoria; reflexo pupilar à luz (consensual e direto) normal; ausência do sinal de Argyll-Robertson. Sensibilidade: Hiperestesia táctil, térmica e dolorosa em todo o membro inferior esquerdo e face dorsal do antebraço do mesmo lado. Não há perturbação das sensibilidades subjetiva e especial. Trofismo: Pêlos finos e quebradiços. Pele fina, fria e violácea. Atrofia da orelha, mama e olho esquerdo. Hipotrofia muscular, já assinalada nas linhas precedentes.

Exame psíquico: Apresenta acentuado déficit intelectual. Sua atenção espontânea é deficiente e a provocada sofrível; sua percepção é tarda, seu raciocínio moroso, sua imaginação pobre. Idade mental: 11 anos. Não apresenta distúrbios sensoperceptivos ou da ideação. Memória, razoável. Orientado no meio, lugar e tempo. Anquilose pragmática. Razoável comportamento social e familial. Linguagem falada, escrita e mímica, normais.

Exames complementares: Sangue: Reações sorológicas da sífilis (Kahn e Kline), negativas. Liquor: Exame citológico, reações da albumina, reações coloidais e reações para a sífilis - nada revelaram de anormal.

O quadro sintomatológico acima descrito é, sem dúvida alguma, devido ao empeçonhamento botrópico. Tivesse este ocorrido em mais baixa idade, e não aos 18 anos como aconteceu, e teríamos, não hemiparesia, mas hemiplegia como no caso que, anteriormente, publicamos (figura 2). Assinalemos, de passagem, que casos há em que se não observam todos os sintomas, normalmente existentes em casos dessa natureza. Bastará, então, fazer o paciente caminhar, usar seus membros, rir, falar, etc. - para que se exteriorizem, embora de maneira não ostensiva. Podem ser observadas, nas hemiplegias cerebrais infantis, todas as gamas do processo entefalopático - desde o puramente motor até o associado com manifestações convulsivas e psíquicas. O caso que ora apresentamos deve ser considerado o quarto até hoje registrado na literatura médica nacional, tendo os anteriores de hemiplegia cerebral infantil por empeçonhamento ofídico sido assinalados por Octavio de Magalhães (2 observações) e por nós mesmo (1 observação).

12345678910

  • 1. Gareiso, A. e Escardó, F. - Manual de Neurologia Infantil. Ed. El Ateneo, Buenos Aires, 1942, Págs. 230-32.
  • 2. Déjerine, J. - Sémiologie du système nerveux. Masson Cie., Paris.
  • 3. Castro, A. - Tratado de semiótica nervosa. Ed. Briguiet, Rio de Janeiro.
  • 4. Roxo, H. - Manual de Psiquiatria. Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro.
  • 5. Teixeira, N. L. - Hemiplegia cerebral infantil por empeçonhamento botrópico. Rev. Med. Mil., 3, 1943.
  • 6. Vaz, E. e Pereira, A. - Hemocoagulação pelo veneno botrópico. Bol. Sanat. S. Lucas (S. Paulo) junho, 1940.
  • 7. Calmette, A. - Les venins, les animaux venimeux et la sérothérapie antivenimeuse. Em vol. XXII, Coleção Sergent, Paris, págs. 76-78.
  • 8. Vital Brazil - Contribuição ao estudo do ofidismo. Biol. Méd. (Rio de Janeiro), 27: 3, 1938.
  • 9. Magalhães, O. - Hemiplegia orgânica provocada pelo veneno ofídico. Ciência Méd., 3; 302-307, 1925.
  • Magalhães, O. - Hemiplegias orgânicas provocadas pelos venenos ofídico e escorpiônico. Rev. Med. Cir. Brasil, 43: 113-118, págs. 113-118.
  • 10. Magalhães, O. e Guimarães, R. - Algumas observações sobre picadas de escorpiões. Brasil Méd., 27: 461 (5, julho) 1941.
  • Hemiparesia esquerda consecutiva a empeçonhamento. Por Bothrops Jararacussu

    Napoleão L. Teixeira
  • 1
    . Gareiso, A. e Escardó, F. - Manual de Neurologia Infantil. Ed. El Ateneo, Buenos Aires, 1942, Págs. 230-32.
  • 2
    . Déjerine, J. - Sémiologie du système nerveux. Masson Cie., Paris.
  • 3
    . Castro, A. - Tratado de semiótica nervosa. Ed. Briguiet, Rio de Janeiro.
  • 4
    . Roxo, H. - Manual de Psiquiatria. Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro.
  • 5
    . Teixeira, N. L. - Hemiplegia cerebral infantil por empeçonhamento botrópico. Rev. Med. Mil.,
    3, 1943.
  • 6
    . Vaz, E. e Pereira, A. - Hemocoagulação pelo veneno botrópico. Bol. Sanat. S. Lucas (S. Paulo) junho, 1940.
  • 7
    . Calmette, A. - Les venins, les animaux venimeux et la sérothérapie antivenimeuse. Em vol. XXII, Coleção Sergent, Paris, págs. 76-78.
  • 8
    . Vital Brazil - Contribuição ao estudo do ofidismo. Biol. Méd. (Rio de Janeiro),
    27: 3, 1938.
  • 9
    . Magalhães, O. - Hemiplegia orgânica provocada pelo veneno ofídico. Ciência Méd.,
    3; 302-307, 1925.
    Magalhães, O. - Hemiplegias orgânicas provocadas pelos venenos ofídico e escorpiônico. Rev. Med. Cir. Brasil,
    43: 113-118, págs. 113-118.
  • 10
    . Magalhães, O. e Guimarães, R. - Algumas observações sobre picadas de escorpiões. Brasil Méd.,
    27: 461 (5, julho) 1941.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1944
    Academia Brasileira de Neurologia - ABNEURO R. Vergueiro, 1353 sl.1404 - Ed. Top Towers Offices Torre Norte, 04101-000 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5084-9463 | +55 11 5083-3876 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista.arquivos@abneuro.org