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Inscrição e arquivamento em El error, de César Aira

Inscription and archive in El error, by César Aira

Resumo

O artigo propõe uma reflexão crítica acerca do projeto literário do escritor argentino César Aira, enfatizando dois campos correlatos e complementares: o campo da “inscrição” (pensando o modo como a ficção de Aira mobiliza os signos a partir de situações nas quais o significado é sempre instável e ambivalente) e o campo do “arquivamento” (pensando o modo como a ficção de Aira faz uso do arquivo da linguagem e da tradição literária através de uma dinâmica de arquivamento que é sempre, também ela, instável e ambivalente). A hipótese central do artigo sustenta que a categoria do “erro” é determinante para a relação entre inscrição e arquivamento na obra de Aira, postulado desenvolvido a partir da análise de um romance de 1997, intitulado El error.

Palavras-chave:
César Aira; inscrição; arquivo

Abstract

This article proposes a critical reflection on the literary project of the Argentinean writer César Aira, focusing on two related and complementary fields: the field of “inscription” (considering the way in which Aira’s fiction mobilizes signs through situations in which meaning is always unstable and ambivalent) and the field of “archive” (considering the way in which Aira’s fiction makes use of the archive of language and literary tradition through an archival dynamic that is always, also, unstable and ambivalent). The central hypothesis of the article holds that the category of “error” is decisive for the relationship between inscription and archive in Aira’s work, a postulate developed on the basis of the analysis of Aira’s1997 novel El error.

Keywords:
César Aira; inscription; archive

Resumen

El artículo propone una reflexión crítica sobre el proyecto literario del escritor argentino César Aira, enfatizando en dos campos relacionados y complementarios: el campo de la “inscripción” (considerando la forma en que la ficción de Aira moviliza signos de situaciones en las que el significado es siempre inestable y ambivalente) y el campo del “archivo” (pensando en el modo en que la ficción de Aira hace uso del archivo de la lengua y la tradición literaria a través de una dinámica archivística siempre, también, inestable y ambivalente). La hipótesis central del artículo sostiene que la categoría de “error” es determinante para la relación entre inscripción y archivo en la obra de Aira, postulado desarrollado a partir del análisis de una novela de 1997 titulada El error.

Palabras clave:
César Aira; inscripción; archivo

A obra de César Aira mobiliza a dinâmica do arquivamento em, ao menos, dois aspectos: em primeiro lugar, pelo viés da quantidade e variedade de suas publicações (dispersas em várias casas editoriais, das artesanais - Eloísa Cartonera - às multinacionais, como Mondadori); em segundo lugar, pela liberdade imaginativa de suas criações, o que dificulta a categorização e a demarcação de limites de gênero textual, por exemplo. O arquivo, em Aira, diz respeito tanto à proliferação material dos impressos quanto à proliferação abstrata das ficções, duas dimensões instáveis de um mesmo projeto de questionamento daquilo que se convencionou chamar “literatura”. Em Las vueltas de César Aira, Sandra Contreras aponta que essa heterogeneidade de recursos que Aira mobiliza em sua poética, marcada tanto por uma repetição material quanto por uma proliferação fantasiosa de ideias, é sua forma de escapar do “literariamente correto”, daquilo que é “previsível e valorizado de antemão” (CONTRERAS, 2002CONTRERAS, Sandra. Las vueltas de César Aira. Rosário: Beatriz Viterbo Editora, 2002., p. 129).

Reinaldo Laddaga (2005LADDAGA, Reinaldo. Las vueltas de Cesar Aira. University of Pennsylvania Press, Hispanic Review, Vol. 73, N. 3, p. 371-373, Summer, 2005. Disponível em: Disponível em: https://www.jstor.org/stable/30040408 . Acesso em: 02 maio 2021.
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, p. 372), por sua vez, fala do esforço de Aira para “construir um arquivo literário particular”, aproximando “Copi e Edward Lear”, “Raymond Roussel e Osvaldo Lamborghini”. A atividade de Aira como ficcionista é indissociável de sua atividade como ensaísta, crítico literário e tradutor, múltiplas inserções sociais de um artista que visa reconfigurar o arquivo não só argentino, mas também europeu, latino-americano, ou, ainda, o arquivo das vanguardas, dos idiomas e dos gêneros. Como escreve Jorge Wolff (2014WOLFF, Jorge. Auto-grafia: pensador airado. Florianópolis, Revista Landa (Revista do Núcleo Onetti de Estudos Literários Latino-Americanos, Universidade Federal de Santa Catarina), vol. 2, n. 2, p. 217-227, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/176219 . Acesso em: 03 maio 2021.
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, p. 225), “cada relato de sua lavra parece ser uma reiteração da necessidade de inventar e de inventar-se como autor, cuja chave se encontra não na memória mas no esquecimento”. Cada nova obra de Aira reinscreve seu projeto de transfiguração do literário no interior de um arquivo em constante transformação - entendendo aqui a “inscrição” como operação “violenta, forçada, abusiva” de “imposição de um signo a um sentido que não possuía ainda signo próprio na língua” (DERRIDA, 1991DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Tradução Joaquim Torres Costa, Antônio M. Magalhães; revisão técnica Constança Marcondes Cesar. Campinas, SP: Papirus, 1991., p. 296).1 1 Em ensaio sobre a “dificuldade de nomear a produção do presente”, Ieda Magri comenta extensamente o caso de Aira e a dinâmica de “constante transformação” de sua obra, propondo “a literatura como arte contemporânea” como um ponto provisório de repouso: “Nos espetáculos de realidade de Aira não parece haver essa capitulação à potência estéril do existente embora também não haja nada como uma força de renovação social muitas vezes imputada ao romance moderno. Talvez o que haja mesmo nesses espetáculos de realidade seja a voz da estética contemporânea e não mais do mundo moderno” (MAGRI, 2020, p. 531-532). O que se destaca, mais uma vez, é a capacidade que a obra de Aira tem de acessar traços ainda ativos do passado, do arquivo e da tradição sem, necessariamente, investir em um pertencimento irrestrito ou verticalizado (algo que é garantido pela oscilação produtiva entre “materialidade” e “abstração” que indiquei no início de meu texto). Nesse ponto, é possível resgatar também as palavras de Raul Antelo: “Em poucas palavras, contra a hierarquia estruturada do alto modernismo, Aira lança mão, em suas ficções, de uma forma fluida e informe para abordar o contemporâneo” (ANTELO, 2008, p. 15).

Cada livro de César Aira remete a seus temas principais, suas obsessões, oferecendo uma ideia ao mesmo tempo precisa e difusa do todo. Mas, ao mesmo tempo, cada um dos livros é único em sua estranheza e absurdo (começa do zero, reconfigura o arquivo e a tradição), em suas regras próprias, que retiram força do conjunto, ao mesmo tempo em que se afastam dele. Se uma “obra” se constrói, é uma “obra invisível, ilegível, virtual”, flutuando “sobre um corpus magmático de textos, presente em todas as partes e em nenhuma”, como escreve Julio Premat em Héroes sin atributos (2009PREMAT, Julio. Héroes sin atributos: figuras de autor en la literatura argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. , p. 241). Na convivência com a obra de Aira, acumular a leitura de tantos absurdos torna o procedimento familiar, mas nunca esperado: o leitor antecipa e aguarda o golpe (o “disparo”, como ele dirá em Cumpleaños), recebido com susto porque vem mesclado a uma história que é sempre única, atípica, estranha.

Arquivo/arquivamento

Assim como a obra de Aira, o arquivo também é aqui mobilizado em uma dimensão tanto material quanto conceitual, seguindo o Jacques Derrida de Mal de arquivo (originalmente uma conferência de junho de 1994, publicada em livro - Mal de arquivo: uma impressão freudiana - no ano seguinte, pelas Éditions Galilée). Para Derrida, o arquivo como instituição opera a partir de uma chave ambivalente, registrando e cancelando aquilo que o forma, aquilo que lhe dá corpo. Por uma perspectiva psicanalítica, Derrida postula uma “pulsão” do arquivo que trabalha para destruí-lo a partir do interior, uma vez que “não há arquivo sem um lugar de consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade”, pois “o arquivo trabalha sempre a priori contra si mesmo” (DERRIDA, 2001DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo. Uma Impressão Freudiana. Tradução de Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001., p. 22-23). Sempre que se estabelece como fonte de saber e de autoridade, o arquivo abre a brecha incontornável de sua própria limitação, de sua própria incapacidade de dar conta de todos os discursos, enunciados e disciplinas. Quando Aira faz uso da dinâmica do arquivamento (Copi, Borges, Roussel, Lamborghini, Pizarnik, o nome próprio “César Aira”, o surrealismo, as vanguardas e assim por diante), seja em busca de temas, cenas ou elementos dramáticos, comenta indiretamente essa condição ambivalente do arquivo de que fala Derrida (2001DERRIDA, Jacques. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001a., p. 29): “a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em sua relação com o futuro”.

No caso de Aira, a requisição do arquivo é sempre uma manipulação das expectativas diante do tempo, da história e das estratégias de validação (circulação, aprovação, recalcamento) dos artefatos artísticos. A dinâmica do arquivamento - e desarquivamento - em Aira se dá sempre a posteriori, evocando a noção freudiana de Nachträglichkeit, ou seja, como “um processo contínuo de protensão e retenção, uma complexa alternância de futuros antecipados e passados reconstruídos”, como especifica Hal Foster (2014FOSTER, Hal. O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. Tradução de Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2014. , p. 46). É o que faz Aira em El juego de los mundos, por exemplo, novela lançada originalmente em 2000 (pela pequena editora El Broche), fantasia de ficção científica na qual um narrador, “César Aira” do futuro, lê a obra de um “César Aira” do passado e, nela, todo o arquivo de uma literatura que não existe mais: “Houve uma época remota do passado em que a humanidade praticou uma atividade chamada ‘literatura’” (AIRA, 2000AIRA, César. El juego de los mundos. La Plata: El Broche, 2000., p. 23). Ou em Cumpleaños, de 2001, com um narrador que, ao ler uma “novelinha” de H. G. Wells, chega à conclusão de que “os tempos por vir são muito escorregadios, muito traiçoeiros” e que, mesmo conhecendo o futuro e podendo voltar no tempo, “o disparo voltaria a errar o alvo, os equívocos seriam mais grosseiros” e cometeríamos os mesmos erros (AIRA, 2017AIRA, César. Cumpleaños. Buenos Aires: Mondadori, 2017., p. 40).

Em Aira, a dinâmica do arquivamento se dá não apenas de forma teleológica - de forma sucessiva do passado em direção ao futuro -, mas também de forma retrospectiva, ressignificando eventos e experiências do passado. Um percurso análogo é apontado e defendido por Georges Didi-Huberman em ensaio de 1998, “O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl Einstein”, no qual incorpora duas noções decisivas - “anacronismo” e “inatualidade” -, buscando reconfigurar, em fins do século XX, a ideia de “fabricação da história” como efeito da desnaturalização dos métodos de seleção, montagem e interpretação dos artefatos críticos e artísticos. A história, para Carl Einstein, escreve Didi-Huberman, é “uma luta” e “um conflito”, um “modo de não se satisfazer com nenhuma polidez acadêmica” e de “dramatizar sem descanso o pensamento, como faziam seus contemporâneos Georges Bataille ou Walter Benjamin”; ou ainda: “modo de progredir no saber contra todas as autolegitimações a que se presta geralmente a aquisição de uma competência ‘científica’. Modo de não ser jamais o ‘guardião’ da disciplina que exercia com tanta exigência. Modo de abrir (…) um corpo de evidências” (DIDI-HUBERMAN, 2003DIDI-HUBERMAN, Georges. O anacronismo fabrica a história: sobre a inatualidade de Carl Einstein. Tradução de Maria Ozomar Ramos Squeff. In: ZIELINSKY, Mônica (ed). Fronteiras. Arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003. p. 19-53., p. 27).

Ao falar da escrita como um “modo de abrir um corpo de evidências”, Didi-Huberman não está apenas comentando a obra de Carl Einstein (ou mesmo de outros intelectuais seus contemporâneos, como Benjamin, Warburg ou Bataille), mas também reagindo à transformação operada no campo teórico pela obra de Michel Foucault, especialmente a partir de 1969, com a publicação de A arqueologia do saber. Com Foucault, vemos a emergência do arquivo como espaço de experimentação narrativa, e não apenas de custódia e manutenção de documentos. Nessa obra, Foucault (2010FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. , p. 146) fala do arquivo como instância reguladora de “sistemas de enunciados”, enunciados “como acontecimentos” (“tendo suas condições e seu domínio de aparecimento”) e enunciados “como coisas” (“compreendendo sua possibilidade e seu campo de utilização”), divisão complementar tornada possível pela interferência do sujeito que a ele, o arquivo, se dirige (atualizando-o e reconfigurando-o no processo).

A obra de Aira pode ser vista como uma retomada e expansão das ideias de Foucault em A arqueologia do saber, especialmente no trecho em que este postula o arquivo como “lei do que pode ser dito” e “sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares”, mas também como “o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos”, levando a que “se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas” (FOUCAULT, 2010FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. , p. 147). O arquivo acessado por Aira - frequentemente de forma irônica e derrisória - é apresentado como um “sistema” que opera a partir da “lei do que pode ser dito”, a partir daquilo que se torna disponível por via da circulação e da repetição. “O que distingue a arte de verdade do simulacro”, escreve Aira em “Particularidades absolutas”, “é que a arte volta ao início todas as vezes, volta às raízes, ao que lhe faz arte e inventa de novo a sua linguagem” (AIRA, 2001AIRA, César. Particularidades absolutas. Nueve Perros, ano 1, n. 1, p. 31-39, 2001., p. 34).

O uso do arquivo, do documento e da inscrição na ficção de Aira - como tema, cenário e dispositivo de ação e performance - frequentemente se baseia nessa passagem da “massa amorfa” (e da “linearidade sem ruptura”) para o agrupamento de “figuras distintas” e de “relações múltiplas” de que fala Foucault em A arqueologia do saber. Foucault ainda aponta que o arquivo “define um nível particular”, distinto daquele da língua (“que define o sistema de construção das frases possíveis”) e do corpus (“que recolhe passivamente as palavras pronunciadas”): “entre a tradição e o esquecimento”, escreve Foucault (2010FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. , p. 147-148), o arquivo “faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente”. De novo Aira, em “Particularidades absolutas”: “A originalidade é um mérito moderno, sem o qual também se pode viver e escrever. Além disso, a fórmula de organização da experiência, ainda que nova e única, talvez não precise ser inventada, ou, de qualquer modo, talvez não precise ser o produto de uma invenção puramente psicológica” (AIRA, 2001AIRA, César. Particularidades absolutas. Nueve Perros, ano 1, n. 1, p. 31-39, 2001., p. 37). A posição atípica de Aira (reiterada a cada nova publicação) diante e através da literatura contemporânea pode ser interpretada como uma inscrição que, ao fazer uso das regras de uma prática, visa continuamente modificar e problematizar essa mesma prática (El todo que surca la nada, como postula o próprio Aira no título de um conto).

El error

É possível afirmar que um dos principais temas da ficção de César Aira é o erro, o equívoco, o desvio - são inúmeros os nomes trocados, as engenhocas defeituosas, as operações falhas, as coordenadas equivocadas em muitos de seus livros (“A magnitude do erro se fazia patente com uma evidência horrenda”, escreve o narrador de El congreso de literatura quando percebe que clonou os bichos-da-seda que fizeram a gravata de Carlos Fuentes (AIRA, 2012AIRA, César. El congreso de literatura. Buenos Aires: Mondadori, 2012. , p. 102)). O “erro” é a espinha dorsal do projeto de Aira, uma literatura que funciona a partir de “um saber frustrado”, dentro da qual sempre encontramos “uma peripécia incongruente que põe a perder uma história até o momento tão promissora” (PREMAT, 2009PREMAT, Julio. Héroes sin atributos: figuras de autor en la literatura argentina. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2009. , p. 245). Essa insistência pode ser vista como uma estratégia enviesada - oblíqua, dissimulada - de exploração da célebre fórmula de Borges, no final de Pierre Menard, autor do Quixote: “Menard (talvez sem querê-lo) enriqueceu, mediante uma técnica nova, a arte retardada e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas” (BORGES, 1982BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. Porto Alegre: Globo, 1982., p. 38)2 2 Na entrevista que faz com César Aira em 2009, María Moreno o aproxima de Borges da seguinte forma: “Os movimentos físicos de Aira são uma citação de Borges (quando está distraído, quando responde a perguntas). É a mesma voz hesitante, o mesmo olhar evasivo, e isso que Aira não é cego, mas muito pelo contrário: um míope que se aproxima de cada objeto até obter a visão de um naturalista. Ele mantém a influência fora de sua literatura, em seu próprio corpo” (MORENO, 2009). Em ensaio de 2013, intitulado “Aira com Borges”, ao falar de Aira como um artista que postula a “literatura má” como poética e o “erro” como método (p. 192), Sandra Contreras estabelece uma série de paralelos críticos, dos quais destaco: “Não se deve esquecer que a primeira coisa que Aira escreve, em 1970, é uma estilização borgiana - ‘Las ovejas’ termina com uma variação óbvia do nominalismo no melhor estilo de Borges -, nem que a segunda que escreve, em 1972, é Moreira (...). Ou seja: não devemos esquecer que, no oposto de Puig (escrever como se Borges não existisse ou não tivesse existido), na origem da ficção de Aira está, notoriamente, o mundo de Borges - o nominalismo e o Borges de Gutiérrez, o culto e o popular, a filosofia e o punhal -, que a ficção original de Aira passa por aquele ‘rito de iniciação’ do escritor argentino, que passa por Borges no início, na juventude” (CONTRERAS, 2013, p. 193-194). . Como de hábito, Aira expande um recurso prévio de forma hiperbólica, como é o caso aqui com a técnica das “atribuições errôneas”, que ganha uma elaboração aprofundada em El error, romance publicado originalmente em 1997 (datado, ao final, de oito de março de 1996).

O romance começa com uma inscrição ambígua que deve ser decifrada: uma placa posicionada no alto de uma porta na qual está escrita a palavra “ERRO”. O narrador atravessa a porta, que funciona como artefato cênico (os personagens mudam de cenário, acessam outro ambiente e, dessa forma, a ação romanesca pode prosseguir) e metáfora de uma realidade alternativa que se abre e se torna acessível, espécie de laboratório de testes da equivocidade inerente à linguagem e à literatura. Depois da porta, que leva ao território do “erro”, Aira apresenta um complexo comentário sobre a instabilidade de sentido das inscrições e a repercussão dessa instabilidade sobre a dinâmica de arquivamento que torna possível a acessibilidade da literatura e da arte no tempo e no espaço.

El error, que na edição da Mondadori tem 186 páginas (sem indicação de capítulos ou seções), pode ser dividido em cinco partes. Na primeira parte, dois casais se encontram em El Salvador, onde conversam, comem e caminham, até chegar a um pavilhão no qual estão expostas esculturas de um célebre artista que permanece sem nome (ou seja, sem inscrição precisa, sem disponibilidade imediata para arquivamento). Na segunda parte, o narrador abandona a primeira pessoa e passa a contar a história de uma mulher condenada por matar o marido que, na prisão, lê em uma revista um artigo sobre o escultor. Emocionada e inspirada, decide escrever uma carta ao artista, que responde. A troca epistolar faz com que a mulher desenvolva uma consciência mais apurada dos eventos que marcaram sua vida e selaram seu destino.

A terceira parte, mais breve, conta a história da editora La Providencia, especializada em edições baratas de literatura popular (com destaque para a coleção Histórias que Matam), que faz uma robusta doação de livros para abastecer a biblioteca da prisão. A quarta parte, a mais longa, é dedicada a Pepe Dueñas, personagem folclórico de El Salvador que já conhecemos da primeira parte, quando o narrador observa um mural que retrata algumas das façanhas de Pepe. A quinta e última parte narra os eventos que levam ao encontro - e à junção de forças em um projeto comum - de Pepe Dueñas e do artista escultor, fechando, de certa forma, o ciclo do romance.

O encadeamento do romance é operado a partir de uma insistente trama de signos que solicitam decifração (placas, livros, gestos, feições, sotaques, quadros, esculturas, murais, casas na floresta, aviões no céu), inscrições que documentam a realidade de forma equivocada ou ambígua, remetendo os personagens em direção a arquivos igualmente instáveis e lacunares. Já na primeira parte do romance, esse pano de fundo fica claramente definido: tudo começa com o portal com a inscrição “erro”, passando para o pavilhão que contém as obras do artista (o “nome estrangeiro” do artista está “escrito com grandes letras” na entrada, mas não é revelado aos leitores) e finalmente ao mural com as façanhas de Pepe Dueñas, com a figura que se repete da esquerda para a direita, dando não apenas a ilusão do movimento, mas a ilusão da passagem do tempo (o narrador aproxima o trabalho do artista anônimo do mural das ilustrações feitas por Botticelli para a Divina Comédia, nas quais as figuras de Dante e Virgílio se transformam sobre um fundo que não se modifica). Por fim, Óscar, o amigo do narrador que o recebe em El Salvador e serve de guia (ou seja, de Virgílio reinscrito na cena “errada” do romance), trabalha na seção de “Prevenção de Sabotagem” do governo, algo entre o paranoico e o espião.

Algo digno de nota no romance é a insistência de Aira em posicionar, ao longo da narrativa, uma série de micro-histórias independentes que funcionam como comentários à poética do próprio Aira (e ao jogo de inscrição e arquivamento em ação no próprio romance). Logo no início, o narrador vê um quero-quero atravessando a calçada e evoca a “estratégia inteligente para proteger o ninho”, que é feito no solo: “quando notam a aproximação de um estranho se afastam correndo ocultos pelo pasto, saindo depois de certa distância, armando um escândalo, como dizendo ‘defenderei este ninho com minha vida se for necessário’, e se o atacante caía na armadilha, indo naquela direção, bastava alçar voo” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 8). O pássaro encaminha o estranho curioso em direção ao erro, fingindo que o ninho está em um lugar que é, na verdade, vazio - ou, ao menos, desprovido daquilo que o estranho procura (algo análogo àquilo que Aira busca realizar a cada novo livro, um “escândalo” que frequentemente se revela uma “armadilha”, levando o leitor ao “erro”).

São muitos os “erros” mobilizados por Aira ao longo do romance, todos eles servindo, em última instância, como reiteração do “erro” principal e fundador: o deslizamento permanente da linguagem que torna a literatura possível (ao demarcar a impossibilidade de fixação dos significados). Todo erro está ligado a uma inscrição ou conjunto de inscrições dentro de um contexto interpretativo errôneo ou desviado. A editora La Providencia, por exemplo, quando faz a doação de livros para a penitenciária, envia exemplares defeituosos, inúteis para o mercado, com páginas em branco intercaladas de quando em quando por conta de uma falha na impressão. As presidiárias, lendo em ritmo “lentíssimo”, “encontravam um dia, ao virar a página, uma folha em branco; o pouco contato com livros as levava a acreditar que era normal e que assim devia ser” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 90). Pouco antes, ficamos sabendo que a mulher que troca cartas com o escultor havia sido liberada por engano: “sua liberação foi um erro, uma confusão de papéis e nomes, uma negligência”; “o modo mais vigoroso de pedir perdão”, continua Aira (2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 85), “foi assegurar a ela que não haveria mais erros e que passaria o resto de sua vida presa” (a inscrição do nome, assim como foi o caso anteriormente com o artista, também no caso da presidiária é anunciada, mas não revelada - os nomes foram trocados, mas não sabemos quais são).

Outro ponto decisivo para o posicionamento do “erro” como categoria que opera no intervalo entre inscrição e arquivamento está na troca epistolar entre a presidiária e o escultor. O artista, a princípio identificado como um estrangeiro expatriado, tem um “manejo do castelhano” precário, e “vários fatores” contribuíam para isso: “o primeiro era que sua língua materna estava muito distante do castelhano. O segundo, que nos longos anos do périplo que o depositou por fim em El Salvador intervieram vários idiomas, tão dissímeis como o polonês, o lapão, o maia, que se aderiram com restos casuais de vocabulário, ou giros sintáticos, complicando suas intenções de comunicação” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 43). Adiante, porém, o narrador revela que esse erro inicial do artista - sua relação precária com o idioma - foi deliberado: ele “havia nascido em El Salvador e nunca havia saído de suas fronteiras”, reinventando-se como estrangeiro porque “conhecia o supersticioso prestígio de que gozavam a priori os europeus entre os centro-americanos”, chegando a “acreditar ele mesmo na própria fábula”, pagando a falta “com uma longa vida de penoso esforço”, dentro do qual “o mais duro havia sido fingir ignorância da sintaxe e do vocabulário do castelhano, pronunciando seus erros com sotaque estrangeiro” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 176-177).

Os erros do artista com o idioma são erros deliberados, um artifício minuciosamente construído, visando a consolidação de um erro maior e fundamental: garantir que o artista local se transforme em artista internacional aos olhos de seu público. A sustentação dessa estratégia, fundada no erro, afeta diretamente a obra - a energia dispendida na utilização errônea do idioma não é encaminhada para a obra, que se torna, com isso, “uma obra selvagem, incompreensível”, pois ao “não dispor de meios intelectuais para a escultura, a realizou a golpes de puro instinto animal, sem a menor intervenção do pensamento” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 178). Nesse ponto, é possível evocar as ideias do próprio Aira sobre o procedimento na arte, especialmente no ensaio “A nova escritura” (publicado originalmente em 1998 e republicado em 2000, no Boletim do Grupo de Estudos de Teoria Literária de Rosário), no qual aponta a possibilidade do literário se fazer a partir também da “menor intervenção do pensamento”: “Os grandes artistas do século XX não são os que fizeram obra, mas aqueles que inventaram procedimentos para que a obra se fizesse sozinha, ou não se fizesse” (AIRA, 2007AIRA, César. Pequeno manual de procedimentos. Tradução de Eduard Marquardt. Organização de Marco Maschio Chaga. Curitiba: Arte & Letras, 2007. , p. 13).

Também no caso de Pepe Dueñas as atribuições errôneas aparecem como uma estratégia de circulação social: andando pelo interior do país, sempre atento à ocasião de alguma aventura (geralmente um furto), Dueñas gostava de “inventar personalidades fictícias” que davam “amplo campo à sua fantasia; às vezes pensava que era o mais interessante de estar fora da Lei, e que só isso já fazia valer a pena estar fora da Lei”3 3 A evocação da “Lei” por parte de Pepe Dueñas evoca não apenas a citação prévia de Michel Foucault sobre “a lei do que pode ser dito”, mas também a elaboração que faz Jacques Derrida a partir da ideia de “lei do gênero” e da relação entre “gênero” e “gênio” (outro tema explorado intensamente, e de forma ambivalente, por Aira): “Supõe-se que o nome ‘gênio’ nomeie o que jamais cede alguma coisa à generalidade do nomeável. A genialidade do gênio, se ela existe, com efeito nos leva a pensar no que subtrai uma singularidade absoluta à comunidade do comum, à generalidade ou à genericidade do gênero e portanto do partilhável. Pode-se facilmente considerar o gênio generoso, ele não poderia ser geral nem genérico. Pretendeu-se às vezes que ele consiste em formar um gênero por si só. Mas essa é uma outra maneira de dizer que ele excede qualquer tipo de generalidade ou a genericidade de qualquer gênero” (DERRIDA, 2005, p. 5-6). A inscrição de Pepe Dueñas no espaço da comunidade e no arquivo cultural (o mural, a centena de romances sobre ele), tornada instável por uma relação conflituosa com a “Lei”, pode funcionar também como uma sorte de “espelho deformante” da posição que o próprio Aira imagina para si no campo literário contemporâneo. . Dueñas está também atento às mudanças alheias: ao cruzar por um homem na selva, vê “o corte de cabelo, o bigode, os óculos escuros”, “signos que Pepe Dueñas havia aprendido a ler, e diziam ‘polícia’”. Na sequência, Dueñas decide adotar um novo nome - mais uma vez a inscrição da identidade é mobilizada por Aira de forma irônica -, escolhendo, “brincalhão e enigmático”, “Paco Inquilinas” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 124). Adiante, ladrão e polícia se encontram: “assim como Pepe Dueñas havia visto através do disfarce de Chefe de Pessoal a verdadeira personalidade de Vigia, o outro devia ter visto o bandido debaixo do peão errante” (p. 139).

É preciso relembrar que parte da trajetória de Dueñas já foi apresentada na primeira parte do romance, quando o narrador está diante de um mural com representações de umas façanhas do “legendário bandoleiro salvadorenho” - “no contínuo espacial”, escreve Aira (2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 27), “a repetição de sua figura indicava uma sucessão temporal”. O mural é a inscrição de um arquivamento, pois Dueñas passa de figura folclórica ligada à tradição oral para figura representativa da história coletiva oficial tal como observada pelo narrador. O andamento do romance, quando acompanhamos diretamente as aventuras de Dueñas na selva, apresenta a reinscrição desse personagem em uma dimensão mais ampla. O mural retorna transfigurado, transformado agora em um “museu memorial”, um “depósito” de “interior secreto”, um “castelinho” no qual Dueñas guarda sua “coleção de objetos estranhos”, centenas deles, “cada um recordatório de algum episódio de sua vida” (p. 149). Não é disparatado pensar - justamente porque as diferentes partes do romance não estão “logicamente” encadeadas - que o surgimento do “museu-depósito” de Dueñas seja uma elaboração mental do narrador, posicionado diante do mural e exercitando sua capacidade ecfrástica. O arquivo, que Dueñas constrói para si, armazena todas as variantes possíveis de suas façanhas, disponíveis para versões potenciais de sua história que ainda desconhecemos (“tudo é metáfora na microscopia hiper-cinética da minha psiquê, tudo está no lugar de outra coisa”, como Aira escreve em El congreso de literatura (2012, p. 42)).

A ideia de inscrição em Derrida - em Limited Inc., por exemplo - oferece também essa dimensão de algo que se prepara para não acontecer, visando uma potencialidade, já que inscrever não seria senão “produzir uma marca que constituirá uma espécie de máquina, produtora, por sua vez, que meu futuro desaparecimento não impedirá, em princípio de funcionar e de dar, dar-se a ler e a reescrever” (DERRIDA, 1991aDERRIDA, Jacques. Limited Inc. Tradução de Constança Marcondes Cesar. Campinas: Papirus, 1991a., p. 20). Ou ainda no ensaio sobre Freud e a cena da escritura, de 1966, que indica que “os traços não produzem” o espaço “da sua inscrição senão dando-se o período da sua desaparição. Desde a origem, no ‘presente’ da sua primeira impressão, são constituídos pela dupla força de repetição e de desaparição, de legibilidade e de ilegibilidade” (DERRIDA, 2014DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Niza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2014., p. 331). Também na Gramatologia, que visa contemplar “não apenas os gestos físicos da inscrição literal, pictográficas ou ideográfica, mas também a totalidade do que a possibilita” (DERRIDA, 2017DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, 2017., p. 9). Essa “totalidade” que “possibilita” a inscrição (ao demarcar, paradoxalmente, a impossibilidade de fixação de seus significados) é traduzida por Aira na desolação de Pepe Dueñas, na última página do romance, diante dos “labirintos intrincados” dos planos para seu próximo golpe: “Trabalho, trabalho, trabalho! Mas toda sua vida foi assim. Parecia uma condenação. Perguntava-se se terminaria algum dia e se poderia descansar” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 186).

Novos caminhos para o pensamento

Todo esse “trabalho” já está posto, de certa forma, em toda a cultura escrita que se ergueu ao redor de Pepe Dueñas: “Uma centena de romances contava suas aventuras” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 97). Contudo, apesar de marcada e demarcada por um conjunto de inscrições, a trajetória de Pepe Dueñas é errática, imprevisível, sempre excedente com relação ao arquivamento que lhe é imposto: “Podia estar em qualquer lugar; se deslocava todo tempo. Onde estava, não estava, e onde não estava, estava. Conseguia que sempre estivessem a ponto de capturá-lo, o que era o modo mais seguro de nunca ser capturado” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 108). Além disso, é fundamental perceber como parte desse “trabalho” (realizado por Pepe e também realizado a partir dele) envolve a estreita ligação entre Pepe e El Salvador: ele faz parte do folclore e da tradição oral, é qualificado como “Inimigo Público Número Um” e como “lenda popular” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 108, 168).

Nesse ponto, Pepe Dueñas se apresenta como uma inscrição instável no interior de um arquivo nacional que se pretende coeso e organizado. Não é aleatória a escolha de El Salvador como ambiente do romance: Aira faz várias referências à guerra civil, à brutalidade policial e ao estado paranoico de perseguição, “sabotagem” e “terrorismo”, reinscreve a potência da história traumática latino-americana em uma ficção sobre o “erro” das inscrições e dos pertencimentos. O gesto de Aira evoca, expande e complexifica aquele de Derrida, exposto em uma das entrevistas de Posições (de 1971, com Jean-Louis Houdebine e Guy Scarpetta), quando critica e desconstrói o “caráter metafísico do conceito de história”, reiterando seu permanente esforço de usar a história para “reinscrever” sua força dentro de um projeto contraditório, implicando uma nova lógica da “repetição” e do “traço” (DERRIDA, 2001aDERRIDA, Jacques. Posições. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2001a., p. 65). Aira “repete” a história traumática de El Salvador no romance, enfatizando sua carga onírica, absurdista: “o país se debatia em uma sangrenta guerra civil, que fazia de cada um de seus edênicos rincões a ocasião de uma emboscada mortal” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 53).

Como seguir vivendo em uma sociedade brutalizada, violenta e desigual? É possível que um dos “erros” fundamentais da arte e da literatura seja precisamente o de insistir em sua existência, dado o contexto desesperador que nos cerca. “O real precisa ser ficcionalizado para ser pensado”, como já apontou Jacques Rancière (2005RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO Experimental / Editora 34, 2005., p. 58). Em El error, algo dessa capacidade de insistência da literatura se anuncia na história da presidiária em sua troca epistolar com o escultor. A escrita não “muda nada das condições materiais de seu confinamento”, mas o processo de elaboração da própria vida através da linguagem “criou novas perspectivas”: “o trabalho da escritura abriu seu pensamento a novos caminhos” e, dentro da “paralisia” da prisão, “encontrava uma nova mobilidade”, usando a “ingênua espontaneidade da fala popular” (AIRA, 2010AIRA, César. El error. Buenos Aires: Mondadori, 2010. , p. 40). Dentro da prisão (na Prison-House of Language, como diria Fredric Jameson), a mulher que escreve cartas descobre a possibilidade de ser outra (e de ver e viver outro mundo) através da imaginação e da resistência diante das “condições materiais”. Mais uma vez, um breve episódio incrustado na narrativa serve de metáfora do trabalho de Aira como um todo: um esforço artístico para engendrar - de forma enviesada, irônica - uma “nova mobilidade”, “novos caminhos” para o pensamento e a linguagem, visando ativar traços soterrados de experiências e temporalidades que, por enquanto, desconhecemos.

Referências

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  • AIRA, César. El congreso de literatura Buenos Aires: Mondadori, 2012.
  • AIRA, César. El error Buenos Aires: Mondadori, 2010.
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    » https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/176219
  • 1
    Em ensaio sobre a “dificuldade de nomear a produção do presente”, Ieda Magri comenta extensamente o caso de Aira e a dinâmica de “constante transformação” de sua obra, propondo “a literatura como arte contemporânea” como um ponto provisório de repouso: “Nos espetáculos de realidade de Aira não parece haver essa capitulação à potência estéril do existente embora também não haja nada como uma força de renovação social muitas vezes imputada ao romance moderno. Talvez o que haja mesmo nesses espetáculos de realidade seja a voz da estética contemporânea e não mais do mundo moderno” (MAGRI, 2020MAGRI, Ieda. Da dificuldade de nomear a produção do presente: a literatura como arte contemporânea. Matraga - Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, [S.l.], v. 27, n. 51, p. 529-541, out. 2020. ISSN 2446-6905. Acesso em: 03 maio 2021. doi: doi: https://doi.org/10.12957/matraga.2020.48668 .
    https://doi.org/10.12957/matraga.2020.48...
    , p. 531-532). O que se destaca, mais uma vez, é a capacidade que a obra de Aira tem de acessar traços ainda ativos do passado, do arquivo e da tradição sem, necessariamente, investir em um pertencimento irrestrito ou verticalizado (algo que é garantido pela oscilação produtiva entre “materialidade” e “abstração” que indiquei no início de meu texto). Nesse ponto, é possível resgatar também as palavras de Raul Antelo: “Em poucas palavras, contra a hierarquia estruturada do alto modernismo, Aira lança mão, em suas ficções, de uma forma fluida e informe para abordar o contemporâneo” (ANTELO, 2008ANTELO, Raúl. Lindes, limites, limiares. Boletim de pesquisa NELIC, 1.1, 2008, p. 4-27. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/nelic/article/view/1984-784x.2008nesp1p4 . Acesso em: 03 maio 2021.
    https://periodicos.ufsc.br/index.php/nel...
    , p. 15).
  • 2
    Na entrevista que faz com César Aira em 2009, María Moreno o aproxima de Borges da seguinte forma: “Os movimentos físicos de Aira são uma citação de Borges (quando está distraído, quando responde a perguntas). É a mesma voz hesitante, o mesmo olhar evasivo, e isso que Aira não é cego, mas muito pelo contrário: um míope que se aproxima de cada objeto até obter a visão de um naturalista. Ele mantém a influência fora de sua literatura, em seu próprio corpo” (MORENO, 2009MORENO, María. Entrevista com César Aira. Revista BOMB, n. 106, Inverno de 2009. Disponível em: Disponível em: https://bombmagazine.org/articles/c%C3%A9sar-aira-1/ . Acesso em: 07 maio 2021.
    https://bombmagazine.org/articles/c%C3%A...
    ). Em ensaio de 2013, intitulado “Aira com Borges”, ao falar de Aira como um artista que postula a “literatura má” como poética e o “erro” como método (p. 192), Sandra Contreras estabelece uma série de paralelos críticos, dos quais destaco: “Não se deve esquecer que a primeira coisa que Aira escreve, em 1970, é uma estilização borgiana - ‘Las ovejas’ termina com uma variação óbvia do nominalismo no melhor estilo de Borges -, nem que a segunda que escreve, em 1972, é Moreira (...). Ou seja: não devemos esquecer que, no oposto de Puig (escrever como se Borges não existisse ou não tivesse existido), na origem da ficção de Aira está, notoriamente, o mundo de Borges - o nominalismo e o Borges de Gutiérrez, o culto e o popular, a filosofia e o punhal -, que a ficção original de Aira passa por aquele ‘rito de iniciação’ do escritor argentino, que passa por Borges no início, na juventude” (CONTRERAS, 2013CONTRERAS, Sandra. Aira con Borges. Revista La Biblioteca. Biblioteca Nacional Argentina “Mariano Moreno”, n. 13, p. 184-198, 2013. Disponível em Disponível em https://ri.conicet.gov.ar/handle/11336/15306 . Acesso em: 06 maio 2021.
    https://ri.conicet.gov.ar/handle/11336/1...
    , p. 193-194).
  • 3
    A evocação da “Lei” por parte de Pepe Dueñas evoca não apenas a citação prévia de Michel Foucault sobre “a lei do que pode ser dito”, mas também a elaboração que faz Jacques Derrida a partir da ideia de “lei do gênero” e da relação entre “gênero” e “gênio” (outro tema explorado intensamente, e de forma ambivalente, por Aira): “Supõe-se que o nome ‘gênio’ nomeie o que jamais cede alguma coisa à generalidade do nomeável. A genialidade do gênio, se ela existe, com efeito nos leva a pensar no que subtrai uma singularidade absoluta à comunidade do comum, à generalidade ou à genericidade do gênero e portanto do partilhável. Pode-se facilmente considerar o gênio generoso, ele não poderia ser geral nem genérico. Pretendeu-se às vezes que ele consiste em formar um gênero por si só. Mas essa é uma outra maneira de dizer que ele excede qualquer tipo de generalidade ou a genericidade de qualquer gênero” (DERRIDA, 2005DERRIDA, Jacques. Gêneses, genealogias, gêneros e o gênio. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2005., p. 5-6). A inscrição de Pepe Dueñas no espaço da comunidade e no arquivo cultural (o mural, a centena de romances sobre ele), tornada instável por uma relação conflituosa com a “Lei”, pode funcionar também como uma sorte de “espelho deformante” da posição que o próprio Aira imagina para si no campo literário contemporâneo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2021
  • Aceito
    15 Ago 2021
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