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Assinatura, rasura, poesura: deserrata para Augusto de Campos

Signature, erasure, poeture: deserratum for Augusto de Campos

Resumo

A escolha de uma “língua morta” e a grafia idiossincrática na própria língua materna, sobrescrita à imagem de duas figuras indeterminadas (algo e alguém), tornam o título grego (οὔτις) e o texto em português (NINGUÉM) “ilegíveis” num primeiro momento, propondo o poema como uma espécie de trobar clus, uma obra “escura” ou “fechada” (oclusa), como sugerem as sombras ao fundo. No entanto, o poema é quase translúcido: oútis significa “nada” e “ninguém”, literalmente traduzidos no texto e na fotografia, de forma indicial (Peirce) e constatativa (Austin). Como se explica essa contradição performativa? Em que sentido esse texto estranho será chamado (ou não) de “literatura”? O que esse poema pode nos dizer sobre a poética de Augusto de Campos de um modo geral?

Palavras-chave:
poesia visual; pintura; mímesis; performance; tradução

Abstract

The choice of a “dead language” and the idiosyncratic spelling in one’s own mother tongue, overwritten in the image of two indeterminate figures (something and someone), make the Greek title (οὔτις) and the Portuguese text (NO ONE) “unreadable” in the first instance, proposing the poem as a kind of trobar clus, a “dark” or “closed” (occluded) work, as the shadows in the background suggest. However, the poem is almost translucent: oútis means “nothing” and “nobody”, literally translated in the text and photography, in an indexical (Peirce) and constatative (Austin) form. How is this performative contradiction explained? In what sense will this strange text be called (or not) “literature”? What can this poem tell us about the poetry of Augusto de Campos in general?

Keywords:
visual poetry; painting; mimesis; performance; translation

Resumen

La elección de una “lengua muerta” y la grafía idiosincrática en la propia lengua materna, sobrescrita en la imagen de dos figuras indeterminadas (algo y alguien), hacen que el título griego (οὔτις) y el texto en portugués (NADIE) sean en un primer momento “ilegibles”, proponiendo el poema como una especie de trobar clus, una obra “oscura” o “cerrada”, como sugieren las sombras en el fondo. Sin embargo, el poema es casi translúcido: oútis significa “nada” y “nadie”, traducidos literalmente en el texto y en la fotografía, de forma indicial (Peirce) y constatativa (Austin). ¿Cómo se explica esta contradicción performativa? ¿En qué sentido este extraño texto se llamará (o no) “literatura”? ¿Qué nos puede decir este poema sobre la poética de Augusto de Campos en general?

Palabras-llave:
poesía visual; pintura; mimesis; performance; traducción

Aos 90 anos de Augusto de Campos

Figura 1 -
reprodução do fotopoema οὔτις (1953-2003) de Augusto de Campos.

O nome falso de Ulisses

O título oútis (pronuncia-se “úutis”), dado à peça de abertura do livro Não (2003), de Augusto de Campos,1 1 O presente ensaio consiste na segunda parte da pesquisa de pós-doutorado “Mínima mímesis: a ruptura da lírica na poética de Augusto de Campos”. Constitui um texto autônomo, porém, complementa as ideias desenvolvidas no artigo “Ninguém te lê: um poema anônimo de Augusto de Campos”, publicado no vol.22/2 da revista ALEA (CASTAÑON, 2020). Cada um ressalta redes de conexões distintas dentro da mesma obra. Ambos vêm a público oportunamente em meio às celebrações de homenagem aos 90 anos de Augusto de Campos. Quero registrar minha gratidão aos dois grandes professores, parceiros e amigos que encontrei no PPGLEV/UFRJ, Maluh Guimaraens, pela supervisão generosa, com tantas sugestões precisas e valiosas, e Dau Bastos, fonte de estímulo e entusiasmo inesgotáveis. Sem eles não teria sido possível levar a adiante este projeto. Agradeço igualmente a Augusto de Campos, Luiz Costa Lima e Júlio Castañon pelo diálogo fraterno que me proporcionaram durante a realização do trabalho. supõe, para começo de leitura, que consultemos um dicionário para pôr em ação a “máquina do poema”, a fim de esclarecer (se é esse o primeiro obstáculo) a única pista que o poeta oferece. Mesmo que não tenha Homero na ponta da língua, o leitor encontrará facilmente em um dicionário grego2 2 Para este estudo, consultamos as obras de BAILLY (1952) e MALHADAS et. al. (2006). a referência ao canto 9 da Odisseia, em que o termo é empregado por Ulisses a título de disfarce, para enganar o ciclope Polifemo, na famosa frase “meu nome é Ninguém”. O estratagema garante sua sobrevida, quando ele já era, como se diz, praticamente um homem morto.

No relato homérico o nome-máscara funciona em dois tempos: primeiro, torna anônimo seu portador, no diálogo entre Ulisses e Polifemo, quando o herói é feito prisioneiro na caverna do ciclope, introduzindo um efeito de engano (Od. 9.364-370); em seguida, o pseudônimo é citado, repetido e traduzido, no diálogo dos ciclopes, pela variante mé tis, sinônimo de -tis, “não-alguém”, permitindo a fuga de Ulisses no momento em que sua assinatura aparece inscrita em eco no epíteto mḗtis (astúcia), que completa o efeito de logro (Od. 9.403-411), como explicita o herói: “Ri em meu coração, pois meu nome o enganara, e minha astúcia” (Od. 9.413-414).3 3 Vale lembrar que um dos principais epítetos de Ulisses, repetido à exaustão em toda a Odisseia, é polýmētis, “poliastuto” ou “multiardiloso”, herói de muitas manhas. Sob a máscara de “ninguém”, oútis, não se reencontra o nome de Ulisses, mas seu renome, mḗtis. A manobra é invalidada, contudo, quando a vaidade do herói decide revelar seu “nome próprio” (Od. 9.502-505), cometendo a hýbris pela qual será punido, numa trama de perseguição entre o mar e o nauta que dá início à interminável viagem de retorno. A começar pela condição que lhe será imposta: terá de realizar “outra viagem”, de descida ao inferno, ao reino das sombras, a fim de encontrar “o mel do torna-lar” (Od. 11.100).4 4 Cito a tradução de Trajano Vieira (HOMERO, 2011).

Momento decisivo, pois é no canto 11 que a sombra Tirésias profetiza ao herói a morte que virá do mar salino. O relato grego, como se sabe, nada mais informa. Mas é pelo que não diz, por não revelar como finda a estória de Ulisses, que a sombra cega do profeta infernal põe em marcha (por paradoxo) o terceiro tempo da viagem, só de ida e para além de Homero, dando início a um movimento de recomeço sem fim, que se repete desde a aparição do herói no Inferno de Dante como labareda falante - fonte de luz no reino das sombras -, para narrar sua morte no mesmo gesto que o perpetua como morto-vivo. Morto que continua a falar com voz sepulcral, de dentro do túmulo ou das profundezas do subterrâneo, onde insiste em fazer sombra sendo língua de fogo... fonte inesgotável de citações, em que a voltarão a beber, de tempos em tempos, praticamente todos os grandes poetas da literatura ocidental.

Pode-se dizer, então, que a astúcia de Ulisses consiste em apagar o nome próprio para tornar-se outro, como estratégia de enfrentamento da morte. Eis aqui esboçado o modelo de um drama a ser encenado pelo poeta contemporâneo no enfrentamento da anunciada “morte da arte” e das inúmeras tentativas de matar precocemente a vanguarda, quando o próprio poeta continua vivo e ativo, levando adiante e renovando, após o “movimento concretista”, a atitude de vanguarda. Mas é preciso não esquecer que, mesmo depois de morto, Ulisses continua narrando e tendo suas aventuras narradas, com seu nome e pseudônimo citados, repetidos, “imitados”, de Dante (Inf. 26) a Pound (Canto 74: “I’m noman”), do epigramático “I’m Nobody” de Emily Dickinson à paródica travessia do Ulysses de Joyce e ao Finismundo de Haroldo de Campos.

Então, a primeira e única indicação de leitura que acompanha a obra, dada pelo título, assinala que o nome escrito em português, NINGUÉM, constitui uma tradução do pronome grego, que, por sua vez, contém um inseparável harmônico literário, identificando-o, de saída, ao nome falso de Ulisses, bem como a todas as suas citações possíveis.

Aliás, essa não é a primeira vez que Augusto de Campos traduz uma passagem da Odisseia. Leitor aplicado das duas odisseias, de HomeroHOMERO, -. Odisseia. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2011. e James Joyce, o poeta também inclui na sua “Miniantologia do paideuma poundiano” (anexa à tradução de ABC da literatura, 1970), a título de tradução de Homero, uma passagem do canto 11 da Odisseia que se confunde com o canto 1 da epopeia poudiana, o qual, por sua vez, constitui uma paráfrase da versão latina de Andrea Divus (1538).5 5 A mesma tradução, feita a seis mãos por Haroldo, Augusto e Décio, já havia sido publicada anteriormente na antologia poética de Ezra Pound publicada em 1968, em parceria com Mário Faustino e José Lino Grünewald. Vale lembrar que “os Cantos são o que Odisseu vê, assim como a Waste Land é o que Tirésias vê” (CAMPOS, 1985CAMPOS, Augusto de. (org.) Ezra Pound: poesia. São Paulo: Hucitec, 1985., p. 36), sendo Ulisses uma das famosas personae de Pound. Mas o que vê Ulisses na terra devastada do Hades? Quando a invocação é feita, ele se depara com visão pavorosa de sombras que o deixam “verde de medo”, conforme a frase-moldura que abre e fecha a cena da descida ao inferno, numa estrutura de ring composition: “o medo verde me tomou” (Od. 11.43; 11.633). Exatamente assim a sombra verde aparece, aqui, sob a tradução de oútis - termo que retorna insistentemente, como um baixo contínuo, no 1º dos chamados Cantos Pisanos, que equivale ao canto 74 de Pound.

Poesia, risco e performance

Antes de ler o nome falso de Odisseu, toda a dificuldade se concentra nos pontos verde-claros que formam linhas aparentemente contínuas retardando a identificação de letras de uma palavra escrita em português, semelhantes a caracteres gregos escritos em traços fantasmagóricos. Em vez da epifania, a resistência do legível produz a aparência gráfica de um risco que cobre toda a imagem. Mas não se deve confundir o efeito com um vago “ilusionismo” (trompe-l’œil),6 6 Como supõe equivocamente, noutro contexto, K. D. Jackson, tomando ao pé da letra a expressão “realismo absoluto”, empregada pelo poeta em 1955 (apud SÜSSEKIND; CASTAÑON, 2004, p.12). caso em que a primeira impressão cessaria com o reconhecimento do sentido “real”, a saber, que: “o risco é, na verdade, uma palavra”. Ao contrário, os sentidos sucessivos se acumulam formando um mosaico constelado.

No enunciado aparentemente constatativo “ninguém”, que descreve a ausência literal de sujeito na fotografia, sobrepõem-se simultaneamente: (a) um ato performativo de rasura (na forma visual do risco que cancela o resto de presença do sujeito à sua imagem, à sua “sombra”, negada enquanto metáfora da representação “fotográfica” realista); também (b) um ato performativo de assinatura (na forma de um manuscrito que evoca a presença do sujeito à sua expressão escrita, que a palavra “ninguém” entretanto apaga, que a caligrafia, “bela escrita” em grego, borra numa cacografia ilegível e que a descontinuidade das letras, interrompendo o risco contínuo, autodesnuda como falsificação da assinatura de um outro); por fim, (c) um ato performativo de tradução desse “nome outro”, diferindo de si mesmo, como sendo o grego oútis (que cita o canto 9 da Odisseia, introduzindo a forma da persona no lugar do sujeito rasurado, constituindo a imagem do poeta-Ulisses).7 7 Vale notar que a sobreposição também se produz na leitura em grego: a escrita (grámma) do nome oútis é uma grammḗ, risco, traço, linha; um kakōs gráphein, rasura, apagamento; uma diagraphḗ, um “risco através” da imagem.

Desde logo, a sobreposição da palavra-poema e da forma gráfica do risco nos traços pontilhados em verde-claro produz a metáfora visual “poesia é risco”, que cita o poema homônimo de Augusto de Campos, inscrevendo oútis em uma poética da rasura, do corte, do menos, mas também do risco, do perigo e do fracasso, que remonta a Mallarmé, encapsulada na fórmula-rima (literatura/rasura) do poema “Toute l’âme résumée” (1895), cujo dístico final: “Le sens trop précis rature / Ta vague littérature”,8 8 Na tradução de AC: “Ser mais preciso rasura / Tua vaga literatura” (CAMPOS, A. et al., 1974). pode ser aproximado das palavras do poeta em carta a Eugène Lefébure, de 27 mai. 1867: “je n’ai créé mon Œuvre que par élimination” [“não criei minha Obra senão por eliminação”] (MALLARMÉ, 2004MALLARMÉ, Stéphane. Oeuvres Complètes. vol. I. France: Gallimard, 2004., p. 717).

Com variações em acrílico (1986), holografia (1986), projeção a laser (1991), videopoema (1993), audiopoema (1995) e impressão em papel (1996),9 9 A primeira versão do poema (que hoje conhecemos em acrílico) surgiu como suporte físico da versão holográfica, realizada em parceria com Omar Guedes e Moysés Baumstein tendo arte-final de Julio Plaza. Foi necessário montar quatro placas de serigrafias verticais, preparadas por Omar Guedes a partir do layout criado por Augusto, originalmente feitas em vidro, para ser filmadas com laseres e aplicar o efeito “rainbow” do holopoema. A peça foi apresentada pela primeira vez na Exposição Triluz (1986) e na mostra Idehologia (1987), cf. https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2002/06/99_ARTES-PL%C3%81STICAS.pdf. Tendo gostado do protótipo em vidro, o poeta encomendou depois cópias em acrílico, com letras prateadas, que passaram a integrar suas exposições seguintes. Na segunda versão, como poema-laser, a obra foi projetada na Avenida Paulista em 1991, recebendo uma variação em formato videoclipe, com o audiopoema homônimo sobreposto à filmagem da projeção. A terceira versão, em videopoema, integra o documentário Poetas de campos e espaços (1993), de Cristina Fonseca, cf. https://www.youtube.com/watch?v=VTfOQHILw8g. A quarta versão, acústica, consta no CD Poesia é risco (1995) a que dá título. A quinta versão, impressa, publicada na Revista A Cigarra, ano 14 - n° 29- nov/dez 1996, é última da série, quando o poema concebido fora do suporte-livro chega ao papel. a obra multimídia que dá título ao CD Poesia é risco (1995) compõe-se da sobreposição da frase-tema com um risco modulado de diversas formas: vertical (acrílico, holograma), horizontal (impresso), rasura (laser) e ruído (áudio), como uma espécie de “intradução10 10 Conforme a expressão do autor, a “intradução” se distingue da tradução convencional pelo prefixo negativo, significando uma prática de tradução reduzida (de partes ou poemas mínimos) e visual, que se propõe criadora de um novo poema, por assim dizer, de “autoria” do tradutor-poeta, integrável à sua obra como ready-made, ao lado dos poemas autorais. em série” da metáfora mallarmeana litté RATURE est RATURE, recriando em português a “rima visual” entre as palavras “poesia” e “risco”, no triplo sentido de contenção verbal (riscar), ousadia experimental (arriscar) e estado de alerta ante o perigo iminente das forças que ameaçam a arte na época de sua reprodutibilidade técnica (periclitar).

Figura 2 -
Reprodução de versões da obra “poesia é risco”. Respectivamente: dois ângulos diferentes do poema-escultura em acrílico (1986); poema-holograma (1986); poema impresso na Revista A Cigarra, ano 14, n° 29, nov/dez 1996; sequência de 12 fotogramas do poema-laser (1991), printscreens selecionados a partir do clip-poema incluído no documentário Poetas de campos e espaços (1993), dirigido por Cristina Fonseca para a TV Cultura.

No manu(foto)scrito a laser, escrito com luz (“luminosos ou film-letras”, a que aspirava o prefácio da série Poetamenos, 1953), as palavras “risco” e “poesia” são suturadas por um “é” identificado à rasura. Rabiscado como um garrancho, o verbo de ligação se converte no próprio “ser” das palavras que sutura, sendo ele próprio uma metáfora do poema inteiro. Daí que a sequência final termine com a repetição frenética, alternada, dos dois últimos fotogramas acima, produzindo um efeito de fusão ótica na retina que sobrepõe o “é” à palavra “poesia”, funcionando como rasura da rasura, fundidas num único risco (de modo semelhante, o “G” da palavra NIN[G]UÉM desfigura-se até formar um “S” que rasura por dentro o texto do poema oútis). Não é por acaso, tampouco, que a linha contínua do “é” pode sugerir a tanto a ideia de “estrela” como de “espermatozoide”, remetendo aos ee minúsculos em itálico que fecundam a página do poema-constelação de Mallarmé, Un coup de dés, conforme a interpretação tipográfica proposta dor Pignatari no final de Semiótica e literatura (2004PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. ).

Procedimento similar reaparece no poema “preoposições” (1971-1995), do livro Não, que constitui, como observou bem Júlio Castañon, o “simulacro de um rascunho, de um processo de redação” (2004CASTAÑON, Júlio. “Alguns lances de escrita”. In: SÜSSEKIND, Flora.; CASTAÑON, Júlio. (org.) Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004, p. 75-92., p. 84), composto de uma lista de preposições riscadas, em que a única admitida (não riscada) é, justamente, a que se identifica com o próprio risco: a preposição “contra”. Já no poema-datiloscrito “não” (1990), que dá título ao livro, o risco é substituído pela frase-rasura “ainda não é poesia”, repetida no final de cada quadro. Cada vez que a frase cancela aquilo que “não é poesia” por si mesmo (“meuamordor”, “amarvivermorrer”, “escrever”, “calarfalar”, “rimas”, etc.), o quadrado datiloscrito sofre um corte e perde uma coluna, até reduzir-se finalmente a uma linha, um risco de letras formado com o que sobreviveu ao expurgo. O que sobra, admitido como poema, é uma coluna de letras que, sem chegar a formar uma palavra, guarda um resto de lembrança do que agora se reduz a traço vertical: “oesia”, menos que poesia, poesia com sinal de menos, feita de cortes e subtrações, num gesto que enquadra citações Mallarmé, Drummond e João Cabral dentro de uma moldura evocativa do Quadrado negro (c.1914-15) de Maliêvitch impresso em negativo:

Figura 3 -
“Quadrado negro” de Maliêvitch e última página do poema “não”, de Augusto de Campos.

Nesse sentido, sem deixar de ser uma tradução do nome-máscara de Ulisses, o poema oútis também pode ser lido integrando a série de intraduções de Mallarmé, como modulação da metáfora “poesia é risco”, assumindo sua forma mais radical, concentrada numa única palavra-risco: NINGUÉM. Sendo o “risco” análogo do significante “não”, a palavra-rasura é simultaneamente um “não-poema” e o próprio “não” (risco) metamorfoseado em poema.11 11 Forma-se a seguinte cadeia: a palavra “ninguém” é (como) um “risco” que é (como) um significante da negação, metáfora visual do “não”, contido na própria palavra “nin-guém”, que significa literalmente: “não-alguém” (oú-tis > nec-quem). Lida simultaneamente em caracteres gregos e latinos, pela técnica do hipograma, com as letras finais UEM equivalendo às minúsculas gregas νεμ (= “nem”), a palavra contém uma dupla negação: NIN / NEM; as três iniciais correspondem ao grego νιν, pronome de terceira pessoa, sinônimo de autón; do mesmo que o advérbio de negação oú (não), no título grego, contém, por homonímia, um pronome de terceira pessoa: hoû, “si”, “se”; enquanto tis equivale a “algo”, “alguém”, qualquer um”, “cada um”, mas lido com acento tônico, tís, contém um pronome interrogativo: “quem?”.

Assim como o poema-laser, a versão de “poesia é risco” impressa na Revista A Cigarra (1996) também emprega o tipo manuscrito, a caligrafia e a assinatura, como formas de expressão que o poema cancela com um risco, porém relacionados à forma do verso, receptáculo privilegiado do eu lírico, parodiado na repetição insistente do mesmo “não-verso”. Vimos que oútis opera uma série de deslocamentos semelhantes: em vez de caligrafia, uma cacografia; em vez de assinatura, um nome anônimo; no lugar do manuscrito (original), uma citação (cópia) e uma tradução, todos identificados na forma visual da rasura, enquanto “instrumento de transformação dos textos”, conforme a sugestiva expressão de Pierre-Marc Biasi (apud SÜSSEKIND; CASTAÑON, 2004SÜSSEKIND, Flora.; CASTAÑON, Júlio. (org.) Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004., p.83).

Se a obra multimídia anterior citava Mallarmé, oútis sobrepõe a essa referência a evocação de Ulisses para compor um monograma em que o “desaparecimento elocutório do sujeito” (Crise do verso) não exclui a possibilidade de figuração de outras vozes, senão que se afirma como condição de ficcionalização da voz poética, cujo modelo é dado, entre nós, pelo “autor póstumo” de Brás Cubas, avô do poeta morituro.

Mas não é apenas o nome falso de Ulisses que lemos sobre a imagem. O minipoema remete também a outras ocorrências literárias. Desde logo, à 8ª Ode Pítica de Píndaro, em cujos versos finais o poeta tebano associa o termo oútis à “sombra” (skiás) efêmera do humano:

ἐπάμεροὶ· τί δέ τις; τί δ’ οὔ τις; σκιᾶς ὄναρ ἄνθροπος. Criatura fugaz: o que é alguém? O que é ninguém? Sonho de uma sombra: o homem.

Os conhecidos versos de Píndaro, convertendo oútis em metáfora da condição precária do vivente humano (“o homem é nada”, “criatura efêmera”, “sonho de uma sombra”), já eram evocados em outro poema de Augusto de Campos, “bio” (1993), incluído em Despoesia (1994CAMPOS, Augusto de. Despoesia. São Paulo: Perspectiva, 1994.): “que bio / sou eu / micro ou macro / clown ou clone / sombra / simulacro / a sonhar / insone”. Retomada uma década depois no fotopoema publicado em Não (2003), a citação basta para evocar toda uma tópica da efemeridade, fundadora do gênero lírico,13 13 Sobre as relações do tópos da efemeridade com o nascimento da mélica grega e a formação da lírica latina, cf. respectivamente FRÄNKEL (2004, p.137 e ss.) e ACHCAR (1998, p.57 e ss.). compondo um poema breve da brevidade em que a reflexão sobre a morte e o tempo surge como ponto de contato privilegiado com o passado literário.

Em seguida, não é apenas a palavra “ninguém” que podemos ler nessa imagem. Se a camada verbal do texto manuscrito cita o nome falso de Ulisses e a máxima gnômica de Píndaro, na camada não-verbal do fotoscrito também se pode ler a expressão “fotografia” (photo-gráphein) traduzida em signos visuais: luz/poste de luz (phôs), sombra de um mortal (phṓs), grama-escrita/pintura (grámma, gráphō) e rasura (grammḗ).

Para apreender como as duas camadas e operações de tradução distintas entram em relação será preciso notar uma assimetria entre elas: ao contrário do reconhecimento da palavra “ninguém” como tradução de Homero e Píndaro, marcada no título, não saber que se trata de uma foto é um dado que importa (por sua ausência) na leitura do poema, sendo claramente buscado através da edição digital e da omissão de ficha técnica. Podendo apenas supor a fotografia como uma possibilidade técnica, entre outras que o poeta teria à disposição para produzir a imagem das sombras ao fundo, o leitor fica livre, desde logo, para supor que o poema poderia ser uma pintura. Trata-se, como se vê, de um equívoco estrutural.

Epigrama e skiagrafia

Do mesmo modo que a dimensão visual do manuscrito NINGUÉM desdobra outras camadas de escrita (assinatura, rasura, tradução) e que a foto original de 1953, em preto e branco, contém, inscrita no texto visual, a palavra “fotografia”; a imagem trabalhada em computador em 2003, acrescida do texto sobrescrito e da granulação em pontos verdes, finaliza o poema com um suplemento de duas novas camadas metafóricas em que o poema faz aquilo que, visualmente, diz.

O texto “escrito na grama”, formado de uma palavra só, cobrindo toda a imagem, é literalmente um “sobrescrito” (epígramma), que cita a técnica poética de concisão e brevidade, designando originalmente a “inscrição [...] sobre uma lápide sepulcral do nome do morto” (PAES, 1995PAES, José Paulo. Poemas da Antologia Grega ou Palatina. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 118). Conforme a explicação antropológica de Vernant, o gênero epigrama associa-se historicamente à ereção de um sêma, um túmulo, e à construção de um mnêma, um memorial, destinados a assegurar a memória do morto e celebrar, como o canto épico, sua “glória imperecível” (kléos áphthiton), recordando aos homens porvir, através da exemplaridade, o brilho de seu nome, seu renome e de suas façanhas, os valores coletivos que o indivíduo encarnou em vida (2007VERNANT, Jean-Pierre. L’ individu, la mort, l’ amour. France: Gallimard, 2007., p.70).

Nesse sentido, o epigrama arcaico possui estreita afinidade com a epopeia, que comparece citada no texto de uma palavra só. É possível tomá-lo ainda como precursor do tombeau mallarmeano, no qual a psykhé14 14 Sem correspondência com a ideia cristã de “alma” ou a noção moderna de “sujeito” autocentrado, no vocabulário homérico psykhé pertence à mesma categoria que imagem (eídōlon), sombra (skiás), fumaça (kapnós), visão de sonho (óneiros) e fantasma (phásma). Cf. “Sujeito e pessoa na Grécia antiga”, capítulo 2 da minha tese de doutorado, para a qual o presente ensaio foi projetado inicialmente para servir de peça de abertura (CASTAÑON, 2017, p.50-185). do morto assume por vezes a primeira persona do próprio epitáfio, a exemplo dos epigramas de elogio do “belo morto” de Simônides de Céos, em que ouvimos frequentemente a voz do defunto dirigindo-se aos vivos que passam.

Por outro lado, a técnica grega de condensação e laconismo também se associa ao nascimento da poesia visual em Alexandria, no séc. III a.C., criada como subgênero do epigrama por Teócrito, Dosíadas e Símias de Rodes, cujo célebre “ovo” foi homenageado por Augusto no ato de nascimento oficial da poesia concreta, com a série Ovonovelo (1954-1960). Mais tarde essa tradição será novamente aludida na intradução “Eco de Ausônio” (1977) (CAMPOS, 2011), em que o escritor latino, criador da expressão tekhnopaígnion (jogo de arte) para nomear o epigrama visual alexandrino, assume a persona de poeta de vanguarda contemporâneo do abstracionismo para lançar um desafio aos pintores figurativos: “se puderes, pinta o som”.

Figura 4 -
Reprodução do poema “eco de ausônio” (1977) de Augusto de Campos.

Vemos, portanto, que a palavra “ninguém” identifica-se ao nome e ao gênero do epigrama em pelo menos quatro sentidos, todos “literais” (performativamente lidos “ao pé da letra”): como “sobrescrito” (epi-grámma), poema breve (levado ao limite de uma palavra só), como poema visual (na linha dos tekhnopaígnia, exacerbando o limite entre pintura e poesia) e poema da brevidade (na linha fúnebre do epigrama lapidar, enquanto poema do/sobre o morto na condição de “sombra”, “imagem”, “fumaça”, “visão de sonho”, sinônimos do não ser).

De sua parte, a imagem das sombras na grama, formada de uma só cor pontilhada, é literalmente uma “pintura com sombras” (skiagraphía), que cita a técnica grega da pintura em uma cor, “largamente atestada no final do século V a.C. (e, de fato, frequentemente equiparada ao nascimento da pintura)” (KEULS, 1975KEULS, Eva. “Skiagraphía once again”. American Journal of Archaeology, v.79, n.1, 1975, p. 1-16., p.1), conhecida por ter sido a “descoberta” que permitiu superar a cerâmica e a pintura de vasos como principal expressão pictórica grega. Estabelecendo uma distinção entre pintura (graphikḗ) e desenho, a skiagrafia teria possibilitado uma exploração inédita de aspectos de luz e sombra, visando efeitos de volume e profundidade, que esboçam pela primeira vez na história da pintura grega a noção de perspectiva.

Para caracterizar que a invenção não se confunde com o nascimento da ideia de realismo em pintura, conforme a célebre acusação platônica dirigida contra a skiagrafia, E. H. Gombrich cunhou a expressão “criptograma relacional”. Por ela se explica que, mesmo que quisesse, “o artista não pode[ria] copiar um gramado banhado de sol, mas pode sugeri-lo”, utilizando sistemas de contraste entre figura e fundo, luz e sombra, cheio e vazio, mais luz e menos luz, “sim” e “não” (2007GOMBRICH, Ernst. Arte e ilusão: um estudo da psicologia da representação. São Paulo: Martins Fontes, 2007. , pp.33-37). Sobre o procedimento pictórico, geralmente (erroneamente) confundido com um suposto efeito de chiaroscuro, escreve Eva Keuls (id. ibid.):

a técnica lançava mão de patches [fragmentos, manchas] de cores fortemente contrastadas, que se intensificavam umas às outras quando vistas em close-up, mas misturavam-se num efeito luminoso quando vistas de uma distância apropriada. Em outras palavras, a skiagrafia era uma técnica impressionística, usando divisões de cores brilhantes e contando com o fenômeno da fusão ótica de cores.

Dessa inovação atribuída a Apolodoro, o skiágrapho, e desenvolvida por Zêuxis e Párrasio, não temos nenhum testemunho senão o que sabemos por citação de Platão, Aristóteles e Plínio, o velho. Todos dão a entender que a skiagrafia se caracteriza como uma técnica pontilhista que opera pela mútua intensificação de tons contrastantes e sua fusão ótica na retina, vistos a uma “distância apropriada”, produzindo um mosaico de pontos de diferentes tonalidades da mesma cor. Mas o incremento de verossimilhança destacado pela crítica de Platão, vem acompanhado, bem entendido, da consciência do seu caráter artificial enquanto produto técnico do pseûdos.

De modo que as sombras fictícias de oútis identificam-se ao nome e à técnica da skiagrafia, igualmente, em quatro sentidos, que respondem ponto por ponto à dimensão performativa do poema-epigrama: enquanto “pintura com sombras” (skia-graphía), monocromo pontilhado (levando ao limite da literalidade a imagem “feita com sombras”, em vez de introduzir um efeito ilusionístico), como pintura escrita (“sombra grafada”, objeto de uma leitura visual) e metáfora do morto (skiás, como sinônimo de eídōlon, psykhé etc.).

Assim como o epigrama “ninguém” se distingue dos caligramas greco-latinos (“poemas em forma de...”), em que a dimensão visual do texto integra uma modalidade ornamental de imitatio, as sombras na grama não compõem uma skiagrafia à moda antiga: não há gradação de cor com volume e profundidade. Divergindo da prática de trompe l’œil a que a skiagrafia se associa desde de Platão, oútis tematiza um par de sombras rasurado que cancela a metafórica de cunho platônico. De fato, nada se conforma à expectativa de um realismo “normal”: a palavra manuscrita na grama, ademais legível através das sombras como um sobrescrito luminoso, impede que a representação se conforme às leis da percepção. No lugar desta, afirma-se a imagem poética.

Um paralelo com a semiótica ajudará formular melhor a diferença. Peirce chama “índice” ao signo que mantém uma relação física, causal, com o objeto representado - não por relação de semelhança (motivada) ou de convenção (imotivada), que caracterizam o “ícone” e o “símbolo”, mas por verificação: o índice comprova aquilo que indica ter estado lá. Esse é justamente o caso da sombra, da fotografia,15 15 Pignatari sugere um estatuto duplo do signo fotográfico, como articulação entre um significante visual (hipoícone) e significado factual (índice): “poderíamos dizer que a fotografia é um hipoícone, uma imagem em primeira articulação, e um índice, em segunda articulação” (PIGNATARI, 2004, p. 61, n.17). da assinatura, do manuscrito e do risco, ou seja, todos os signos visuais que compõem oútis - à exceção da grama. Também se classificam como índice certos “símbolos” convencionais (que Peirce chama de índices degenerados), como o sinal de trânsito, o nome próprio e pronomes com função dêitica (id., p.53), como é o caso da palavra “ninguém”, indicativa de uma ausência. No entanto, todos esses signos - sombra, foto, pronome e risco - são deslocados aqui da função de índice e convertidos em ícones (ou hipoícones): imagens, diagramas e metáforas, na medida em que oútis opera uma iconização do índice (sombra, fotografia, rasura) e do símbolo (nome, pronome, palavra), empregando, em todos os níveis, dois sistemas de escrita ou duas “gramáticas” simultâneas: fonético e ideográfico, indicial e icônico, fotográfico e pictórico, caligráfico e poético.

Enquanto a fotografia e o manuscrito - formas de base da composição - operam no registro dos signos que testemunham aquilo que contêm, como cópia e expressão de um referente real reproduzido e da marca intransferível da pessoa, a conversão da fotografia (escrito com luz) em skiagrafia (pintura com sombras) e a metamorfose da assinatura (subscrição) em epigrama (sobrescrito), mediadas pela rasura, cancelam o realismo evocado pela metáfora da sombra enquanto duplo de uma presença que atestaria a verdade da representação.

Despintura e/ou despoesia

Como ocorria com o nome grego da técnica fotográfica (photo-gráphein) em 1953, a camada não-verbal da montagem de 2003 prismatiza os nomes de duas técnicas gregas correspondentes ao gênero pictórico da skiagrafia (skia-graphía) e ao gênero mélico do epigrama (epi-grámma), que assimilam a camada visual (fotográfica) e a camada verbal (caligráfica) respectivamente a uma “pintura” e um “poema”, cujo diálogo remete ao célebre fragmento de Simônides (2013SIMÔNIDES de Ceos, -. Fr. 47 a-b PMG. In: FERREIRA, Luísa Nazaré. Mobilidade poética na Grécia Antiga: uma leitura da obra de Simónides. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013. ), precursor do tópos ut pictura poesis:

Πλὴν ὁ Σιμωνίδης τὴν μὲν ζωγραφίαν ποίησιν σιωπῶσαν προσαγορεύει, τὴν δὲ ποίησιν ζωγραφίαν λαλοῦσαν. ἃς γὰρ οἱ ζωγράφοι πράξεις ὡς γιγνομένας δεικνύουσι, ταύτας οἱ λόγοι γεγενημένας διηγοῦνται καὶ συγγράφουσιν. Mas Simônides chama à pintura poesia silenciosa e à poesia pintura falante. Pois as ações que os pintores representam como se estivessem a acontecer, as palavras narram-nas e descrevem-nas em pormenor depois de terem acontecido.

A poesia de Simônides marca “o momento em que o poeta [...] se reconhece através do seu discurso, cuja especificidade ele descobre por intermédio da pintura e da escultura” (DETIENNE, 2013DETIENNE, Marcel. Mestres da verdade na Grécia arcaica. São Paulo: Martins Fontes, 2013., p.117). O trabalho de Augusto marca, ao contrário, o momento em que o poeta não mais se reconhece através do seu discurso, cuja especificidade põe em questão por intermédio do paralelo entre a despintura e a despoesia modernas, em relação com a técnica e os meios de comunicação de massa.

Desenha-se, assim, um horizonte de referências gregas, situadas ao mesmo tempo no campo da poesia (Homero, Píndaro, Simônides, Símias) e da pintura (Apolodoro, Zêuxis, Párrasio), que encontra paralelo rigoroso no campo da pintura e da poesia de vanguarda. Se a skiagrafia coincide com o nascimento da pintura representativa e o epigrama com o nascimento da poesia visual, numa ponta, na outra, a pintura em uma só cor remete à abolição da figura nas artes plásticas (Maliêvitch) e o poema de uma palavra só à crítica do sujeito (expressão) e da representação (realismo) na poesia visual moderna (Mallarmé).

Poder-se reconhecer aqui, precisamente, o ponto em que o desenvolvimento técnico interfere na história da poesia e da pintura modernas. Como notou Walter Benjamin, o avanço da tipografia, das técnicas de imprensa, a difusão do jornal e o anúncio publicitário (reclame), influindo na forma de fazer poesia, manifestam seus primeiros sinais inequívocos no Lance de dados (1897) de Mallarmé. Numa época em que “a escrita, que tinha encontrado asilo no livro impresso [...] viu-se inexoravelmente lançada à rua, arrastada pelos reclames, submetida à brutal heteronomia do caos econômico”, em que “antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, terá desabado sobre seus olhos um turbilhão tão denso de letras móveis, coloridas”, como “nuvens de letras-gafanhotos” (apud CAMPOS, A. et al., 1974CAMPOS, Augusto de, et al. Mallarmé. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 1974., p.193-4), escreve o analista:

Como se vislumbrando, no âmago da cristalina construção de sua escritura certamente tradicional, a vera imagem do vindouro, Mallarmé no Coup de dés reelaborou pela primeira vez as tensões gráficas do reclame na figuração da escrita (Schriftbild) [...] a escrita, avançando cada vez mais fundo no domínio gráfico de sua nova e excêntrica figuralidade, conquista de súbito os seus adequados valores objetais. Nesta escrita icônica (Bilderschrift), os poetas que, como nos primórdios, antes de mais nada e sobretudo, serão expertos em grafia, somente poderão colaborar se explorarem os domínios onde (sem muita celeuma) se perfaz sua construção: os do diagrama estatístico e técnico (Revisor de livros juramentado, 1926, trad. Haroldo de Campos e Flávio Kothe).

No campo da pintura o fator de consequências mais drásticas que a mudança correlata na escrita poética foi a invenção do daguerreótipo, como observa agudamente o ensaísta: “muito se escreveu, no passado, sobre a questão de saber se a fotografia era ou não uma arte, sem que se colocasse a questão prévia de saber se a invenção da fotografia não havia alterado a própria natureza da arte” (BENJAMIN, 1996BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 165-196., p.176, grifo meu). Décio Pignatari sublinha o caráter crítico do influxo dessa invenção decisiva sobre a tekhnḗ pictórica: “a fotografia é a principal responsável pela crise da figuração que abalou a pintura do século XIX, gerando o impressionismo e o pontilhismo (que conduziriam à abstração) - que lhe replicaram com a cor-luz” (PIGNATARI, 2004PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. , p.98).

Percebe-se que oútis relê tanto a história da poesia e da pintura, como, num nível biopoético, a trajetória do próprio poeta visual, retomando seus pontos de partida. Do lado pictórico, o quadro “verde sobre verde” pode ser lido como uma citação dos monocromos de Maliêvitch (Branco sobre branco, 1918) e Ródtchenko (Negro sobre negro, 1918), ressaltando em particular a evocação dos quadros de vultos sem rosto, pintados “como que de costas para o espectador”, como tradicionais “retratos de família”, compostos por Maliêvitch nos anos 30, após a ascensão do realismo socialista, com que oútis guarda estreita afinidade. Nas palavras de Augusto: “para mim as não-caras falam. Os que sobreviveram foram descaracterizados [...]. Estes o stalinismo não fez questão de matar. Fez ainda pior. Humilhou e despersonalizou. Ou intimidou e calou” (2006CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006., p.76).

Figura 5 -
Reprodução dos quadros “Branco sobre branco” (1918) de Maliêvitch; “Negro sobre negro” (1918) de Ródtchenko; “Camponesa” (1930), “Três figuras femininas” (1930) e “Esportistas” (1930/31) de Maliêvitch.

Em contraste com os monocromos de Maliêvitch e Ródtchenko, oútis parece dar um passo atrás, resgatando a figura em seu estado elementar, como “sombra”, metáfora por excelência da representação como duplo da coisa, conforme a célebre definição platônica: “Chamo imagens (eíkona), em primeiro lugar, às sombras (skiás); em seguida, aos reflexos (phantásmata) nas águas, e àqueles que se formam em todos os corpos compactos, lisos e brilhantes [como espelhos]” (Rep. 509 e-510 a). No entanto, a sombra rasurada performatiza o gesto de recusa à representação de seus precursores no construtivismo russo. Ressignificando o ato, este se converte no ponto de partida de outra forma de representação mimética, que se quer nem referencial (mera assinatura), nem abstrata (pura rasura), mas resgata o caráter produtor de diferença sobre o fundo de semelhança.

Do lado da chamada antipoesia, destaca-se a familiaridade de oútis com a prática mais radical do miniepigrama moderno, desde os célebres poemas de Pound “Numa estação de metrô” (The apparition of these faces in a crowd / Petals on a wet, black bough.) e, sobretudo, o polêmico “Papyrus” (Spring... / Too long... / Gongula...)17 17 Respectivamente traduzidos por AC, como: “A visão destas faces dentre a turba / Pétalas num ramo úmido escuro” e “Domingo.... / Tão longo... / Gôngula...” (in: CAMPOS, 1985). , passando pelo “Mattina”, de Ungaretti, composto de praticamente duas palavras (“M’illumino / D’immenso”), até o poema-minuto de Oswald de Andrade: “amor/humor”. No caso de Ungaretti, em que “o título [...] faz parte integrante da peça e mesmo a propõe à expectativa do leitor”, segundo Haroldo de Campos, o tradutor de Safo e Mallarmé para o italiano “procede a uma súbita e sábia confluência de concisão japonesa e de laconismo mélico [...] para se situar no plano da modernidade criativa” (1977CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977., p. 80-1). Pound já havia assimilado a técnica do hai-cai à “logopeia sintética dos epigramas greco-latinos”, oferecendo em seu “Papyrus” um verdadeiro “hai-cai grego” (CAMPOS et al., 1985CAMPOS, Augusto de. (org.) Ezra Pound: poesia. São Paulo: Hucitec, 1985., p. 25-26), que Augusto traduziu e respondeu com outro minipoema: “pseudopapiros” (1973/1992), incluído em Despoesia (1994CAMPOS, Augusto de. Despoesia. São Paulo: Perspectiva, 1994.), uma brilhante intradução de Safo através da restituição de dois fragmentos inteiramente fictícios em forma de epigramas bilíngues, como um mosaico de diversos fragmentos sáficos dispostos em montagem ideogrâmica.

Diversamente do poema instantâneo de Oswald, que opera uma tradução paródica dentro da mesma língua, oútis estabelece uma relação de tradução entre línguas que realiza performativamente (sob a aparente literalidade de uma tradução “constatativa”) uma ideia de inspiração poundiana, de que “toda tradução criativa é uma espécie de ‘persona’ assumida pelo tradutor”. Como escreve Augusto (1988CAMPOS, Augusto de. Verso, reverso, controverso. São Paulo: Perspectiva, 1988., p.7) no prefácio a Verso, reverso, controverso (1978):

tradução para mim é persona. Quase heterônimo. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor por dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Só aquilo que minto. Ou que minto que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa em sua própria persona.

Concentrada nessa única palavra-máscara: “ninguém”, vêm coincidir, no mesmo gesto de escrita, os atos de tradução, criação e fingimento. A tradução literal de oútis por ninguém se apresenta como um poema inteiro na medida em que a palavra não é tomada em “estado de dicionário” pelo “tradutor” (autor ou leitor), mas desde já como palavra em estado de mímesis, como imagem (eikṓn). Sobredeterminada por citações de Homero, Píndaro, Pound e Mallarmé, que desdobram a leitura em relação a diversos sistemas de referência simultâneos, os “choques” entre as múltiplas referências criam zonas de indeterminação (conforme Iser, “lugares vazios”) a ser suplementadas pela atividade interpretativa do leitor.

Nesse sentido, a estranheza extrema de oútis oferece o análogo verbal do choque que as pinturas de Maliêvitch e Ródtchenko provocam nos hábitos picturais do observador. Tendo como ponto em comum o caráter performativo da mímesis, na poesia como na pintura, o diálogo entre o “mais antigo” e o “mais moderno” contrasta o “nascimento” e a “morte” das ideias de poesia fonética18 18 Com a expressão inusual proponho assinalar, não uma poesia de fonemas (!), mas a concepção fonocêntrica de poesia predominante na tradição ocidental que concebe o texto como representação de uma modalidade de presença e ignora tanto o caráter de imagem gráfica (ao lado da imagem verbal-metafórica) quanto os valores não-verbais da tessitura sonoro-vocal das palavras (restringindo-se ao fonético-linguístico), enquanto potencialidades miméticas passíveis de ser autonomizadas. e pintura representativa, como pano de fundo contra o qual se realiza o poema fotodigital. Citadas no contexto da poesia eletrônica, as formas do poema breve e visual (epigrama, poesia ideogrâmica) e da pintura em uma só cor (skiagrafia, abstração construtivista) abrem o espaço de um questionamento sobre os limites históricos do poema e da representação, cuja raiz assenta na problematização do sujeito no mundo da mercadoria e da técnica industrial.

O ponto de vista do sepulcro

Podemos, certamente, associar a semântica da máscara e do anonimato a um desbravamento épico dos novos meios de comunicação na “fase heroica” do concretismo e inserir esse “poema de uma palavra só” no pano de fundo da poética elaborada pelo autor em mais de cinco décadas, como registro biopoético de uma “impressionante coerência de percurso” (SISCAR, 2006SISCAR, Marcos. “A crise do livro ou a poesia como antecipação”. In: STERZI, Eduardo (org.) Do céu do futuro: cinco ensaios sobre Augusto de Campos. São Paulo: Marco, 2006, p. 115-135., p. 115). Mas também se pode, sem confundir os gêneros, contextualizar a leitura dessa palavra-poema no pano de fundo de toda uma tradição poética, particularmente dentro de certa tradição lírica - assinalada pela conjunção do tópos da efemeridade e do ut pictura poesis relacionados à forma do epigrama fúnebre e visual. Desta conjunção, fúnebre e visual, ressalta uma diferença que singulariza a posição de Augusto dentro do concretismo e atravessa sua obra, antes e depois do movimento.

Como notou um de seus melhores intérpretes, referindo-se à polêmica em torno do poema “pós-tudo” (STERZI, 2006STERZI, Eduardo. (org.) Do céu do futuro: cinco ensaios sobre Augusto de Campos. São Paulo: Marco, 2006., p. 16-17):

uma observação de Roberto Schwarz sobre “pós-tudo” (1984) pode ser estendida a praticamente toda a obra de Augusto de Campos: “o poema aspira ao monumento e à inscrição na pedra”. Mas Schwarz, que só conseguiu ver em Augusto, equivocadamente, uma tola positividade, não percebe que a pedra a que o poema aspira é a lápide. O epitáfio é seu modelo secreto - e às vezes evidente. Augusto confere centralidade e alcance a uma forma poética persistente mas marginal, o epigrama funerário. Com graça intitulou Stelegramas a última seção de Viva vaia, mesclando “estelas” (no duplo sentido de estrela e inscrição tumular) e “telegramas”. Se naqueles poemas o ponto de vista do sepulcro não ficava explícito, mais recentemente ele se tornou ostensivo. Com efeito, “morituro” (1994) foi escrito como um telegrama enviado da tumba.

Figura 6 -
Reprodução dos poemas “póstudo” (1984) e “o pulsar” (1975), publicados, respectivamente, em Despoesia (1994CAMPOS, Augusto de. Despoesia. São Paulo: Perspectiva, 1994.) e Viva vaia (1979), que exemplificam o caráter radicalmente epigramático e lapidar da poética de Augusto de Campos.

No caso de “morituro”, composto como uma saudação ambiguamente próxima da despedida “na tradição do salut mallarmeano”, como nota Siscar (id., p.123-124), sobrepõem-se os três sentidos de: (1) saudar ironicamente os contemporâneos que, segundo Mallarmé, “ne savent pas lire” (jargão retomado em chave satírica no final de Outro, num debochado “exame oftalmológico” proposto aos contemporâneos); (2) saldar uma dívida promissória, na forma gráfica de um “i”, identificando o gesto pelo qual o “céu do futuro” vem colocar os “pingos nos ii” com a própria ação crítica do poema; (3) e salvar do esquecimento (conforme o duplo sentido da palavra salut em francês: saudar/salvar). Destaque-se outra conclusão lapidar de Sterzi: “como João Cabral [...] Augusto de Campos pratica em sua poesia uma imitatio mortis na qual a ‘indesejada das gentes’ não é apenas o assunto ou tema, mas, sim, a razão determinante da forma” (id., p.15).

Figura 7 -
Reprodução do poema “morituro” (1994), de Augusto de Campos, publicado no livro Não (2003).

O melhor exemplo da ostensiva adoção do “ponto de vista do sepulcro”, mais evidente no livro Não, com seu riso que não ri, encontra-se no poema “tour” (1999), em que a morte do poeta é apresentada na visão irônico-fantasmagórica da própria literatura convertida em um vasto cemitério, eternamente aberto para um público de leitores-turistas, recebidos com dizeres festivos:

Figura 8 -
Reprodução do poema “tour” (1999), de Augusto de Campos, publicado no livro Não (2003).

Nas palavras de Siscar, “a inscrição, cujas letras verdes estão como que cobertas de musgo sobre pequenos quadrados escuros, se destaca na obscuridade das catacumbas; apenas a fresta da ironia - ‘que lindo’ - perturba a serenidade dessa visão catastrófica que se apresenta e se identifica com o próprio túmulo da poesia” (id., p.122). Que significa esse rictus senão que a piada, levada a sério, mudaria de feição? Nesse sentido, compreende-se que oútis assume na imagem do poeta-ninguém a forma de uma reflexão sobre a condição do poeta na cena contemporânea, a que corresponde uma ausência do próprio poema (ou sua presença residual como não-poema), excluído da esfera do consumo, como declara “mercado”, de 2002, que encerra cronologicamente o livro Não, composto imediatamente antes de oútis:

Figura 9 -
Reprodução do poema “mercado” (2002), de Augusto de Campos, publicado no livro Não (2003).

Se o assunto subterrâneo da poesia de Augusto “é justamente um estado de coisas em que a poesia e o poeta não conhecem ou reconhecem mais seu lugar no mundo”, como notou SterziSTERZI, Eduardo. “Todos os sons, sem som”. In: SÜSSEKIND, Flora.; CASTAÑON, Júlio. (org.) Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004, pp. 95-115., a proliferação de “metáforas do não-lugar do poeta” (apud SÜSSEKIND; CASTAÑON, 2004SÜSSEKIND, Flora.; CASTAÑON, Júlio. (org.) Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004., p.103-104) tem sua raiz precisamente localizada aqui na perversão capitalista que distribui “democraticamente”, como a própria morte - mas fazendo distinção de eleitos na proporção da ficção externa em que assenta o estado democrático de direito -, as mazelas sociais (“mortalidade infantil”, “injustiça”, “desigualdade”, crise financeira) e os mitos da publicidade (“cdtvcinema”, “o gênio da raça”, “a comunicação de massa”).

Comparando o contexto histórico das pinturas sem rosto de Maliêvitch a seu próprio tempo, dirá Augusto de Campos, em Poesia da recusa (2006CAMPOS, Augusto de. Poesia da recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006., p.76):

Hoje não há decretos nem perseguições. Mas a luta dos poetas continua, em todo o mundo, e outras gerações estão sendo dissipadas, num contexto massificador e imbecilizante, onde os meios de comunicação tendem a nivelar tudo por baixo e a sufocar pelo descrédito ou pelo silêncio as tentativas de fugir ao vulgar e ao codificado.

Do que segue uma questão central para o poeta e leitor de poesia hoje: será a arte capaz de manter uma margem de autonomia ante o critério de alta performance imposto pelo mercado? Como reagir (ou resistir) ao sequestro da arte pelo dispositivo pragmático de controle da sociedade administrada, contrária quer à arte não ornamental, quer à experimentação que não acene com altos lucros?

Se pensar a literatura como performance implica, desde logo, que seus efeitos possam não se cumprir (ou não se cumprir como literatura), o difícil anonimato de oútis, que o expõe a não ser reconhecido pelos leitores sequer como poema, explicita uma escolha e uma tomada de posição - de que é preferível permanecer na sombra a trair a autonomia do poema -, pelo que a via da negatividade adotada pelo poeta arrisca (na melhor das hipóteses, a curto prazo) a redução da esfera de ação do poema, opondo um dique à estetização imposta pelo modo de circulação do texto, a fim de constituir uma reserva (mínima) de mímesis passível de ser reativada noutros contextos - bomba de efeito retardado nos hábitos do leitor.

Referências

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    O presente ensaio consiste na segunda parte da pesquisa de pós-doutorado “Mínima mímesis: a ruptura da lírica na poética de Augusto de Campos”. Constitui um texto autônomo, porém, complementa as ideias desenvolvidas no artigo “Ninguém te lê: um poema anônimo de Augusto de Campos”, publicado no vol.22/2 da revista ALEA (CASTAÑON, 2020CASTAÑON, Thiago. “Ninguém te lê: um poema anônimo de Augusto de Campos”, in: Revista ALEA: Estudos Neolatinos, vol.22, n.2, Rio de Janeiro, Mai-Ago. 2020, p. 224-239 (E-pub: 7.10.20). Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/alea/v22n2/1807-0299-alea-22-02-224.pdf
    https://www.scielo.br/pdf/alea/v22n2/180...
    ). Cada um ressalta redes de conexões distintas dentro da mesma obra. Ambos vêm a público oportunamente em meio às celebrações de homenagem aos 90 anos de Augusto de Campos. Quero registrar minha gratidão aos dois grandes professores, parceiros e amigos que encontrei no PPGLEV/UFRJ, Maluh Guimaraens, pela supervisão generosa, com tantas sugestões precisas e valiosas, e Dau Bastos, fonte de estímulo e entusiasmo inesgotáveis. Sem eles não teria sido possível levar a adiante este projeto. Agradeço igualmente a Augusto de Campos, Luiz Costa Lima e Júlio Castañon pelo diálogo fraterno que me proporcionaram durante a realização do trabalho.
  • 2
    Para este estudo, consultamos as obras de BAILLY (1952BAILLY, Anatole. Dictionnaire Grec-Français. Paris: Hachette, 1952.) e MALHADAS et. al. (2006MALHADAS, Daisi, et al. Dicionário grego-português (5 vols). São Paulo: Ateliê Editorial, 2006.).
  • 3
    Vale lembrar que um dos principais epítetos de Ulisses, repetido à exaustão em toda a OdisseiaHOMERO, -. Odisseia. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2011., é polýmētis, “poliastuto” ou “multiardiloso”, herói de muitas manhas.
  • 4
    Cito a tradução de Trajano Vieira (HOMERO, 2011HOMERO, -. Odisseia. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Ed. 34, 2011.).
  • 5
    A mesma tradução, feita a seis mãos por Haroldo, Augusto e Décio, já havia sido publicada anteriormente na antologia poética de Ezra Pound publicada em 1968, em parceria com Mário Faustino e José Lino Grünewald.
  • 6
    Como supõe equivocamente, noutro contexto, K. D. Jackson, tomando ao pé da letra a expressão “realismo absoluto”, empregada pelo poeta em 1955 (apud SÜSSEKIND; CASTAÑON, 2004SÜSSEKIND, Flora.; CASTAÑON, Júlio. (org.) Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7 Letras: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004., p.12).
  • 7
    Vale notar que a sobreposição também se produz na leitura em grego: a escrita (grámma) do nome oútis é uma grammḗ, risco, traço, linha; um kakōs gráphein, rasura, apagamento; uma diagraphḗ, um “risco através” da imagem.
  • 8
    Na tradução de AC: “Ser mais preciso rasura / Tua vaga literatura” (CAMPOS, A. et al., 1974CAMPOS, Augusto de, et al. Mallarmé. Poemas. São Paulo: Perspectiva, 1974.).
  • 9
    A primeira versão do poema (que hoje conhecemos em acrílico) surgiu como suporte físico da versão holográfica, realizada em parceria com Omar Guedes e Moysés Baumstein tendo arte-final de Julio Plaza. Foi necessário montar quatro placas de serigrafias verticais, preparadas por Omar Guedes a partir do layout criado por Augusto, originalmente feitas em vidro, para ser filmadas com laseres e aplicar o efeito “rainbow” do holopoema. A peça foi apresentada pela primeira vez na Exposição Triluz (1986) e na mostra Idehologia (1987), cf. https://revistapesquisa.fapesp.br/wp-content/uploads/2002/06/99_ARTES-PL%C3%81STICAS.pdf. Tendo gostado do protótipo em vidro, o poeta encomendou depois cópias em acrílico, com letras prateadas, que passaram a integrar suas exposições seguintes. Na segunda versão, como poema-laser, a obra foi projetada na Avenida Paulista em 1991, recebendo uma variação em formato videoclipe, com o audiopoema homônimo sobreposto à filmagem da projeção. A terceira versão, em videopoema, integra o documentário Poetas de campos e espaços (1993), de Cristina Fonseca, cf. https://www.youtube.com/watch?v=VTfOQHILw8g. A quarta versão, acústica, consta no CD Poesia é risco (1995) a que dá título. A quinta versão, impressa, publicada na Revista A Cigarra, ano 14 - n° 29- nov/dez 1996, é última da série, quando o poema concebido fora do suporte-livro chega ao papel.
  • 10
    Conforme a expressão do autor, a “intradução” se distingue da tradução convencional pelo prefixo negativo, significando uma prática de tradução reduzida (de partes ou poemas mínimos) e visual, que se propõe criadora de um novo poema, por assim dizer, de “autoria” do tradutor-poeta, integrável à sua obra como ready-made, ao lado dos poemas autorais.
  • 11
    Forma-se a seguinte cadeia: a palavra “ninguém” é (como) um “risco” que é (como) um significante da negação, metáfora visual do “não”, contido na própria palavra “nin-guém”, que significa literalmente: “não-alguém” (-tis > nec-quem). Lida simultaneamente em caracteres gregos e latinos, pela técnica do hipograma, com as letras finais UEM equivalendo às minúsculas gregas νεμ (= “nem”), a palavra contém uma dupla negação: NIN / NEM; as três iniciais correspondem ao grego νιν, pronome de terceira pessoa, sinônimo de autón; do mesmo que o advérbio de negação (não), no título grego, contém, por homonímia, um pronome de terceira pessoa: hoû, “si”, “se”; enquanto tis equivale a “algo”, “alguém”, qualquer um”, “cada um”, mas lido com acento tônico, tís, contém um pronome interrogativo: “quem?”.
  • 13
    Sobre as relações do tópos da efemeridade com o nascimento da mélica grega e a formação da lírica latina, cf. respectivamente FRÄNKEL (2004FRÄNKEL, Hermann. Poesía y filosofia de la Grécia arcaica. Madrid: A. Machado Libros, 2004., p.137 e ss.) e ACHCAR (1998ACHCAR, Francisco. Lírica e lugar-comum. São Paulo: EdUSP, 1998., p.57 e ss.).
  • 14
    Sem correspondência com a ideia cristã de “alma” ou a noção moderna de “sujeito” autocentrado, no vocabulário homérico psykhé pertence à mesma categoria que imagem (eídōlon), sombra (skiás), fumaça (kapnós), visão de sonho (óneiros) e fantasma (phásma). Cf. “Sujeito e pessoa na Grécia antiga”, capítulo 2 da minha tese de doutorado, para a qual o presente ensaio foi projetado inicialmente para servir de peça de abertura (CASTAÑON, 2017CASTAÑON, Thiago. Poesia: desafio ao pensamento (estudo sobre as categorias de poesia, mímesis e sujeito), Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2017 - Tese (doutorado) - UFRJ / Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), 2017., p.50-185).
  • 15
    Pignatari sugere um estatuto duplo do signo fotográfico, como articulação entre um significante visual (hipoícone) e significado factual (índice): “poderíamos dizer que a fotografia é um hipoícone, uma imagem em primeira articulação, e um índice, em segunda articulação” (PIGNATARI, 2004PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. , p. 61, n.17).
  • 17
    Respectivamente traduzidos por AC, como: “A visão destas faces dentre a turba / Pétalas num ramo úmido escuro” e “Domingo.... / Tão longo... / Gôngula...” (in: CAMPOS, 1985CAMPOS, Augusto de. (org.) Ezra Pound: poesia. São Paulo: Hucitec, 1985.).
  • 18
    Com a expressão inusual proponho assinalar, não uma poesia de fonemas (!), mas a concepção fonocêntrica de poesia predominante na tradição ocidental que concebe o texto como representação de uma modalidade de presença e ignora tanto o caráter de imagem gráfica (ao lado da imagem verbal-metafórica) quanto os valores não-verbais da tessitura sonoro-vocal das palavras (restringindo-se ao fonético-linguístico), enquanto potencialidades miméticas passíveis de ser autonomizadas.
  • 12
    Versos 95-96 na edição de Snell-Maheler (1987SNELL, Bruno; MAEHLER, Herwig (eds.) Pindarus - pars I: Epinicia. Leipzig: Teubner, 1987.). Tradução de Trajano Vieira (PÍNDARO, 1996PÍNDARO, -. “8ª Ode Pítica”. Trad. Trajano Vieira. In: Revista USP, n. 30, 1996.).
  • 16
    Fr. 47 b PMG (testimonia), Plutarco, De gloria Atheniensium 3.346f. Tradução de Luísa Nazaré Ferreira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2020
  • Aceito
    27 Maio 2020
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