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A INEXISTÊNCIA DO OUTRO E OS SINTOMAS CONTEMPORÂNEOS DA CRIANÇA1 1 O presente artigo é resultado da pesquisa de Pós-Doutoramento realizada no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2019-2021), sob supervisão da professora Dra. Angélica Bastos.

The nonexistence of the Other and the contemporany symptoms of children

RESUMO:

O objetivo deste artigo é discutir as mudanças apresentadas na sintomatologia das crianças no mundo contemporâneo, sintomatologia esta marcada pelas manifestações no corpo e pela primazia do gozo. Partindo da tese da inexistência do Outro, busca-se extrair suas consequências teóricas e clínicas para as manifestações do sofrimento na criança. Discutem-se a presença do gozo do Um separado do Outro e seu modo de manifestação nos sintomas das crianças. Evidencia-se a importância, no tratamento da criança, da constituição de um Outro que permita extrair o falasser de seu gozo solitário.

Palavras-chave:
sintoma da criança; inexistência do Outro; gozo

Abstract:

This article aims to discuss the changes presented in children’s symptomatology in the contemporary world. These symptoms are marked by manifestations in the body and the primacy of jouissance. Based on the thesis of the nonexistence of the Other, we seek to extract its theoretical and clinical consequences for the manifestations of suffering in children. The work discusses the presence of jouissance of the One separated from the Other and how it manifests in children’s symptoms. It highlights the importance of the constitution of an Other that allows extracting the parlêtre from their solitary jouissance for the treatment of children.

Keywords:
symptons of children; nonexistence of the Other; jouissance

INTRODUÇÃO

A prática de supervisão de estágio clínico, realizado em uma clínica escola de alunos do último ano do curso de Psicologia, permitiu constatar uma modificação na sintomatologia das crianças que chegavam para tratamento. Se, antes, na maioria dos casos, era possível detectar com maior clareza algum sintoma a ser tratado - impasses com o saber, inibições, fobias, agressividade etc. (COUTO, 2012COUTO, M. P. O fracasso escolar e a família: o que a clínica ensina? Belo Horizonte: Scriptum, 2012.) -, atualmente encontramos queixas mais difusas. Deparamo-nos com um grande número de crianças que apresentam uma série de perturbações no corpo, tais como agitação, sensações de estranheza, alterações na imagem, escarificações etc., bem como apresentam perturbações no laço social - condutas violentas e dificuldades de inserção nos grupos sociais.

Além disso, anteriormente, era notável como o sintoma se constituía em uma resposta articulada ao Outro, tanto familiar como escolar, indicando sua estrutura simbólica passível de interpretação e de decifração. Em contrapartida, hoje, observa-se que as desorganizações no corpo e as perturbações no laço social são acompanhadas pelo rechaço ao saber e ao Outro e por uma desorientação, tanto das crianças que chegam para o tratamento quanto dos pais e educadores que fazem o encaminhamento.

Trata-se de uma clínica que coloca, em primeiro plano, o corpo e suas perturbações, as condutas, constituindo-se mais como uma clínica dos impasses com o gozo do que com o desejo e com o recalcado. Uma clínica que exibe elementos de uma desorganização subjetiva, pulsional, e de um rechaço ao Outro que oferece limitações para o trabalho de elaboração simbólica. Como material clínico, deparamo-nos com ausência de narrativas, parcos recursos simbólicos e pouco ou nenhum elemento da trama edípica, o que leva os profissionais a lançarem mão, durante os atendimentos, de recursos tecnológicos contemporâneos, como smartphones, tablets, iPhone, vídeos do YouTube etc., ou seja, a utilizarem primeiramente objetos que se conectam ao campo das imagens para que, a partir daí, essas imagens possam se articular ao campo da palavra.

A condução do tratamento também se torna outro ponto de impasse, já que, na ausência de endereçamento e apelo ao Outro, a suposição de saber e a aposta no inconsciente também são raras, tanto por parte da própria criança como dos pais e daqueles que fazem o encaminhamento. Submetidos ao discurso científico, todos buscam na clínica mais um diagnóstico - ancorado nos manuais psicopatológicos - que nomeie o sofrimento da criança e valide as práticas de cunho médico-cientificista do que um tratamento que os coloque em posição de enigma.

Como entender essa mudança na sintomatologia apresentada pelas crianças? Como ler essas manifestações sintomáticas que se localizam principalmente no corpo e como criar as condições de tratamento desses sintomas pela palavra?

Nossa hipótese é a de que a prevalência de perturbações corporais na clínica com crianças responde à inexistência do Outro no mundo contemporâneo e à presença de um gozo em excesso, opaco, autístico e sem sentido que irrompe no corpo, perturbando-o. Assim, o tratamento visará mais dar lugar às soluções e invenções desses pequenos seres falantes diante desse gozo perturbador do que produzir sentido para o seu sofrimento.

Do Outro ao Um

A tese da inexistência do Outro foi discutida por Jacques-Alain Miller e Éric Laurent no seminário El Otro que no existe y sus comités de ética (1996MILLER, J.-A.; LAURENT, Éric. El Outro que no existe y sus comités de ética(1996). Buenos Aires: Paidós , 2005./2005). A ideia da inexistência do Outro surge precisamente na época dos referidos comitês, marcados pelo dissenso e pelo ceticismo quanto ao verdadeiro, quanto ao bom, quanto ao belo e quanto ao valor exato do dito, das palavras e das coisas. Miller e Laurent (1996MILLER, J.-A.; LAURENT, Éric. El Outro que no existe y sus comités de ética(1996). Buenos Aires: Paidós , 2005./2005) também nomeiam esse momento “a época dos desenganados e da errância”, produzida pela pluralização do Nome do Pai. Trata-se, assim, de uma época em que imperam a ausência de segurança na tradição e a perda dos ideais e da confiança nos significantes mestres reguladores do gozo, promovendo, como efeito, a desmaterialização ou a vacilação dos semblantes e a consequente prevalência do Real.

Em seu primeiro ensino, Lacan apresenta o Outro como um campo simbólico, responsável pela inserção do sujeito na linguagem; campo no qual se decidem a intenção de significação e o sentido das palavras. O lugar do Outro (A) constitui-se como um ponto de basta da significação e, portanto, como lugar de determinação do sujeito do qual pode ser formulada a questão de sua existência. O Outro é o Outro da fala, é o campo no qual o sujeito “se reconhece e se faz reconhecer” (LACAN, 1955-1956/1988LACAN, J.. As psicoses (1955-1956). Rio de Janeiro: Zahar, 1988. (O seminário, 3), p. 193).

Em O seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1957-58/1999), Lacan, por meio da análise do fenômeno do chiste, evidenciará como o Outro funciona como um terceiro que autentica o sentido e a presença de um sujeito desejante. Esse circuito cria, ao mesmo tempo, a mensagem e o Outro que a ratifica. A mensagem encontra o Outro, não como uma pessoa, mas como um lugar do significante, como sede do código e da Lei.

Nesse momento de seu ensino, Lacan postula a existência de um Outro do Outro, ou seja, a existência de um significante especial que funda a existência da Lei. Trata-se do significante do Nome do Pai, que ordena a linguagem e instaura uma ordem simbólica. Esse significante nodal é responsável pelos pontos de fixação entre os significantes e o significado, permitindo uma amarração que assegura a realidade do sujeito, além de indicar o caminho a ser seguido (MALEVAL, 2002MALEVAL, J.-C. La forclusión del Nombre del Padre: el concepto y su clínica. Buenos Aires: Paidós, 2002.).

Com efeito, o que autoriza o texto da lei se basta por estar, ele mesmo, no nível do significante. Trata-se do que chamo de Nome-do-Pai, isto é, o pai simbólico. Esse é um termo que subsiste no nível do significante, que, no Outro como sede da lei, representa o Outro. É o significante que dá esteio à lei, que promulga a lei. Esse é o Outro no Outro. (LACAN, 1957-1958/1999LACAN, J.. As formações do inconsciente (1957-1958). Rio de Janeiro: Zahar, 1999. (O seminário, 5), p. 152).

Para Miller (2012MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana online, ano 3, n. 7, 2012. Disponível em:Disponível em:http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf . Acesso em:16 mar. 2021.
http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_...
), a consequência desse primeiro ensino de Lacan é manter o gozo velado. Ao priorizar o aspecto simbólico, Lacan evidencia que a satisfação advém da produção de uma cadeia significante e do sentido homologado pelo Outro, que funcionaria como um garantidor da significação.

Não há Outro do Outro

A fórmula “Não há Outro do Outro” foi lançada por Lacan na lição de 8 de abril de 1959, durante a realização de seu sexto seminário - publicado como O seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação (1958-1959/2016). Lacan afirma que o grande Outro é o lugar da verdade ao qual o sujeito se endereça com a pergunta “O que você quer?”.

Será também nesse mesmo seminário que Lacan desenvolverá sua fórmula do S(A/ barrado) para indicar que ao Outro falta um significante que possa responder ao sujeito sobre seu ser e sua essência de verdade. Não há, no Outro, nenhum significante que possa responder sobre o ser do sujeito. Para Lacan, esse “é, por assim dizer, o grande segredo da psicanálise. O grande segredo é: não há Outro do Outro” (LACAN, 1958-1959/2016LACAN, J.. O desejo e sua interpretação (1958-1959). Rio de Janeiro: Zahar , 2016. (O seminário, 6), p. 322). Lacan retomará essa discussão em O seminário, livro 16: de um Outro ao outro (1968-1969/2008LACAN, J.. De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Zahar , 2008. (O seminário, 16)), na lição de 27 de novembro de 1968, intitulada “A topologia do Outro”, e apresentará a gênese da noção de inexistência do Outro.

Em O seminário, livro 6, Lacan demonstrará a inconsistência do Outro a partir da lógica dos conjuntos. Nesse seminário, Lacan inscreve a relação da inconsistência do Outro por meio do objeto a. Esse pequeno a impõe uma estrutura topológica ao Outro, que, ao evidenciar um furo, apresenta bordas que atraem, condensam e capturam o gozo. O gozo informe encontra sua forma nesse objeto a denominado por Lacan de objeto mais-de-gozar. Lacan tenta domesticar o fundo informe do gozo por meio do objeto. Ele é, portanto, uma forma avaliável do gozo, ou seja, um trabalho de logificação desse gozo (MILLER, 2007MILLER, J.-A. Uma leitura do Seminário: de um Outro ao outro. Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 49, p. 12-47, 2007.).

Assim sendo, Miller (2007MILLER, J.-A. Uma leitura do Seminário: de um Outro ao outro. Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 48, p. 9-42, 2007.) propõe resumir esse seminário por meio de um matema que indica que a consistência da fantasia encobre a inconsistência do Outro. O objeto a apreensível na fantasia serve de encobrimento para a falha no Outro.

Desse modo, o matema do S(A/) apresenta duas versões que se articulam entre si. Primeiramente, remete-nos à incompletude do Outro, ao revelar a falta de um significante que o completaria. Em um segundo momento, ganha também a face da inconsistência do Outro mediante o furo produzido pelo objeto a.

Nesse momento de seu ensino, Lacan dará lugar ao gozo, mas como mais de gozar, ou seja, atendo-se muito bem aos seus limites. Ele estabelece uma relação originária do significante com o gozo. O significante tanto introduz uma perda de gozo quanto produz um suplemento de gozo (MILLER, 2012MILLER, J.-A. Os seis paradigmas do gozo. Opção Lacaniana online, ano 3, n. 7, 2012. Disponível em:Disponível em:http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_7/Os_seis_paradigmas_do_gozo.pdf . Acesso em:16 mar. 2021.
http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_...
, p. 32).

A INEXISTÊNCIA DO OUTRO E A CONSISTÊNCIA DO GOZO

No início dos anos 1970, Lacan fará uma inversão que incidirá sobre todo seu ensino. Apesar de, por muito tempo, a psicanálise ter enfatizado a exploração do Outro como tesouro do significante e lugar da verdade, Lacan proporá, de O seminário, livro 20: mais ainda (1972-1973/1985) em diante, pensar o tratamento psicanalítico a partir dessa báscula decisiva que é a substância gozante.

Nesse momento, um outro regime do gozo torna-se perceptível no ensino de Lacan. Não se trata mais do “mais de gozar”, mas de um gozo absoluto, e o objeto a não será suficiente para alcançá-lo. Lacan define o gozo como uma espécie de fundo informe que pode inclusive transbordar e faz dele um ponto no infinito que nenhuma manobra métrica permite alcançar e domesticar. Trata-se de um gozo impossível de ser negativado pela operação da castração.

Gozar supõe um corpo afetado e perturbado por tal gozo. É por esse motivo que, em seu último ensino, Lacan opera um retorno e uma ênfase ao corpo. Há gozo enquanto propriedade de um corpo vivo e que fala. “Propriedade do corpo vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza” (LACAN, 1972-1973/1985LACAN, J.. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar , 1985. (O seminário, 20), p. 35). Ele é o produto do encontro do corpo com o significante. Esse encontro, esse acontecimento, mortifica o corpo, mas também marca esse corpo com um vestígio inesquecível.

A primazia do gozo no ensino de Lacan produzirá efeitos de reformulação em vários conceitos. Destacaremos dois desses conceitos que consideramos essenciais para o entendimento da referida mudança na sintomatologia das crianças: as noções de linguagem e de sujeito.

A própria linguagem enquanto uma estrutura simbólica, ordenada pelas leis do significante, passa a ser considerada como derivada e não mais originária. A linguagem seria, portanto, derivada de alíngua,2 2 No original, lalangue. Neologismo francês cunhado por Jacques Lacan (1972) e traduzido para o português como alíngua. O conceito de alíngua responde à necessidade de abordar manifestações que não se inscrevem no âmbito social da língua, que ignoram a comunicação e que não visam ao outro. Ela é constituída de detritos que ressoam da língua falada pelo Outro (BASTOS: FREIRE, 2006). língua primeira, dita materna. Com ela, Lacan indica a aliança originária entre o gozo e a palavra.

Com a noção de alíngua, Lacan se distancia de sua primeira concepção de linguagem como tesouro de significante. Para ele, a linguagem, enquanto uma estrutura, longe de ser primária, ou seja, já dada, corresponde a uma elucubração de saber feita a partir de alíngua. Esta corresponde a algo que escapa a qualquer sistema e organização; trata-se de uma língua disjunta da estrutura de linguagem e que se apresenta antes de seu ordenamento gramatical. Alíngua é o conceito que indica que o significante serve para o gozo. É com os vestígios deixados por alíngua que o sujeito poderá se arranjar em sua existência - por meio de um saber fazer com ela. Esses vestígios de alíngua serão encontrados nos sintomas.

A linguagem, sem dúvida, é feita de alíngua. É uma elucubração de saber sobre alíngua. Mas o inconsciente é um saber, um saber-fazer com alíngua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa de muito o de que podemos dar conta a título de linguagem. (LACAN, 1972-1973/1985LACAN, J.. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar , 1985. (O seminário, 20), p. 190).

Outra importante reformulação de Lacan em seu ensino, estabelecida a partir da primazia do gozo, concerne ao próprio conceito de sujeito. Lacan redefinirá seu conceito de sujeito - este não será mais representado pela ideia segundo a qual um sujeito é um significante para outro significante -, introduzirá, na origem do sujeito, o gozo e formulará o conceito de falasser (MILLER, 2007MILLER, J.-A. Uma leitura do Seminário: de um Outro ao outro. Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 49, p. 12-47, 2007.).

A designação “falasser” é um neologismo lançado em O seminário, livro 23: o sinthoma (LACAN, 1975-1976/2007LACAN, J.. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar , 2007. (O seminário, 23), p. 14) com o objetivo de substituir a palavra freudiana inconsciente. O termo indica que o sujeito possui um corpo afetado pelos efeitos do significante e que, nesse sentido, ele não é puro efeito da lógica. O falasser denota a existência de um ser pelo fato de que esse ser fala e tem um corpo (MILLER, 2016MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. Scilicet: O corpo falante. Sobre o inconsciente no século XXI. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016.).

A principal consequência do conceito de falasser é esclarecer que o sujeito surge não da relação com o significante, como definido no primeiro ensino de Lacan, mas da relação indizível com o gozo. Há, desse modo, dois tempos distintos da produção de um sujeito: o da relação com o gozo e o da relação com o Outro (MILLER, 2008MILLER, J.-A. Uma leitura do Seminário: de um Outro ao outro. Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 51, p. 9-41, 2008.).

Da mesma forma que não há sujeito prévio, não há um Outro que existe a priori. O Outro se produz somente como uma elucubração, uma produção, a posteriori, do sujeito como efeito de alíngua (FREIRE, 2017FREIRE, A. B. O lugar da criança (entre a mãe e a mulher) ou “lalíngua, não por acaso, dita materna”. Opção Lacaniana online nova série, ano 8, n. 23, 2017. Disponível em:Disponível em:http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_23/O_lugar_da_crianca.pdf . Acesso em:16 mar. 2021.
http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/num...
). O Outro não é nem prévio e nem absoluto e, por isso, não há “Outro do Outro”. O prévio e o absoluto estão localizados do lado do gozo.

Enfim, não há Outro, mas há gozo. Toda essa reformulação indicará o reino do gozo, do gozo Uno. Trata-se do Um totalmente só, separado do Outro. Desse modo, o gozo provém do Um e não estabelece relação com o Outro. Diz Lacan: “[...] o que implica esse dizer, que venho enunciar, de que o gozo não convém - non decet - à relação sexual. Por causa de ele falar, o tal gozo, ela, a relação sexual não há” (1972-1973/1985LACAN, J.. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar , 1985. (O seminário, 20), p. 83).

Assim, no início do ensino de Lacan, a relação com o Outro era originária. Na perspectiva do gozo, a relação com o Outro aparece como problemática e secundária, derivada de uma operação sobre o gozo. O que estará no centro do discurso analítico é o Um-sozinho.

Sem dúvida, Lacan começou por ordenar a experiência analítica pelo campo do Outro, mas para demonstrar em seguida que, definitivamente, esse Outro não existe [...]. O que existe é o Um-sozinho.

O Um-sozinho, uma análise começa por aí: quando alguém não tem nenhum outro recurso senão confessar-se exilado, deslocado, indisposto, em desequilíbrio no cerne do discurso do Outro. E é para buscar na análise um “outro” Outro, um Outro que alguém tem o prazer de inventar à sua medida, um Outro suposto saber o que atormenta o Um-sozinho. Mas sabemos que esse Outro está destinado a dissipar-se, esvanecer-se até que permaneça o Um-sozinho. (MILLER, 2013MILLER, J.-A. Falar com seu corpo. Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 66, p. 11-17, 2013., p. 14).

Como esse Um do gozo repercute no corpo, especialmente no corpo da criança?

O CORPO DA CRIANÇA: AFETADO POR ALÍNGUA

“Falo com meu corpo, e isto, sem saber” (LACAN, 1972-1973/1985LACAN, J.. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar , 1985. (O seminário, 20), p. 161). Três anos após introduzir essa fórmula em seu O seminário, livro 20: mais, ainda (LACAN 1972-1973/1985), Lacan a retoma, em junho de 1975, em sua conferência “Joyce, o Sintoma”: “[...] é preciso sustentar que o homem tem um corpo, isto é, que fala com seu corpo, ou, em outras palavras, que é falasser por natureza” (LACAN, 1975/2003cLACAN, J.. Joyce, o Sintoma (1975). In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 2003c, p. 560-566., p. 562). O poder de ser afetado é uma propriedade essencial do corpo humano. É essa paixão, essa palpitação da carne, essa substância gozante que nos dá uma ideia do que é um ser vivo marcado, afetado pelas paixões desconhecidas.

No último ensino de Lacan, deparamo-nos com o mistério do corpo falante e com uma mudança de seu registro. O corpo é abordado em sua vertente de gozo, ou seja, em sua vertente real. Para se manter unido, necessita estar amarrado aos registros imaginário e simbólico. A maneira pela qual se dá essa união entre o corpo, a substância gozante e a fala torna-se um mistério para Lacan (1972-1973/1985LACAN, J.. Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar , 1985. (O seminário, 20)).

Nessa perspectiva, o corpo se revela como caixa de ressonância que depende da materialidade sonora do significante. A linguagem é como um pequeno parasita que habita o corpo, uma espécie de órgão especial que faz ressonância. Assim, não existe fala sem um corpo que a emita ou, mais precisamente, que a produza. Trata-se de um corpo instrumento, encarnação da fala. Nas palavras de Miller:

A fala é algo do significante que é alojado no corpo vivo e que, aliás, o deixa cansado. Concordo que ouvir é cansativo. É cansativo porque também se tem a fala que entra no corpo pelos ouvidos. Existe a fala como matéria fônica, que deve ser produzida através de movimentos no corpo. (MILLER, 1999MILLER, J.-A. Elementos de biologia lacaniana. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise - MG , 1999., p. 31).

Ele acrescenta logo em seguida:

Certamente existem palavras que se introduzem nos corpos e que neles permanecem, enquanto outras se dissipam. É isso que, no mínimo, a experiência analítica demonstra: houve falas determinantes cujos efeitos marcaram profundamente o funcionamento do corpo. É necessário, certamente, nos darmos conta disso de forma mais precisa. (MILLER, 1999MILLER, J.-A. Elementos de biologia lacaniana. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise - MG , 1999., p. 57).

Encontramos essa maior precisão na abordagem da maneira como a fala impacta o corpo na discussão realizada por Laurent em O avesso da biopolítica (2016LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2016.). Pensando sobre as elaborações de Lacan em seu último ensino - o trauma se dá no corpo por meio da incidência de uma língua anterior à linguagem, a alíngua -, Laurent localiza três tempos da operação de inscrição do gozo no corpo. Primeiramente, temos a emergência de gozo, que faz traumatismo; impacto de gozo que se escreve como sintoma na superfície do corpo escavado pelos significantes. Em um segundo tempo, o choque produzido no corpo transforma-se em um dizer por meio de um equívoco, portanto, sem o saber. Por fim, temos o tempo do saber, que só pode ser deduzido a posteriori partindo dos equívocos da fala.

O corpo é, assim, o lugar onde se experimentam os afetos e as paixões, muitas vezes desconhecidos. Denominar o corpo de “falante” significa dizer que ele não cessa de fazer irrupção por meio das significações pessoais da língua primeira que atravessa o falasser (LAURENT, 2016LAURENT, É. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa , 2016.).

Como dissemos anteriormente, essa língua primeira, alíngua, consiste nos detritos da fala do Outro, experimentados como gozo, que se depositam no corpo da criança. Ela é isso que se deposita e que, por vezes, não é subjetivado e nem transformado em enunciação; que não pode ser apropriado pelo sujeito; é aquilo que o torna prisioneiro fazendo de seu corpo um objeto de gozo. Alíngua produz efeitos de afeto sobre o corpo que exigem do sujeito invenções, um saber fazer com isso (BASTOS; FREIRE, 2006BASTOS, A.; FREIRE, A. B. Sobre o conceito de alíngua: elementos para a psicanálise aplicada ao autismo e às psicoses. In: BASTOS, A. (org). Psicanalisar hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006, p. 107-122.).

Alíngua é, portanto, feita de restos, resíduos e pedaços de significantes vindos de fora que afetam o sujeito, marcando seu corpo. Trata-se de algo que sinaliza a presença do real que se encarna em efeitos corporais, como acontecimentos de corpo (FREIRE, 2017FREIRE, A. B. O lugar da criança (entre a mãe e a mulher) ou “lalíngua, não por acaso, dita materna”. Opção Lacaniana online nova série, ano 8, n. 23, 2017. Disponível em:Disponível em:http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_23/O_lugar_da_crianca.pdf . Acesso em:16 mar. 2021.
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).

Nesse sentido, há um corpo afetado pela linguagem que não fala, mas que constitui signos de gozo que se repetem. Esses signos evocam a presença muda, no corpo, de um gozo que ultrapassa o registro fálico. Para Pascale Fari (2013FARI, Pascale. O corpo afetado. Carta de São Paulo online, n. 4, 2013. Disponível em: Disponível em: https://ebp.org.br/sp/wp-content/uploads/2016/11/ano-III-004.pdf . Acesso em: 16 mar. 2021.
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), nosso corpo foi moldado e atingido pelo encontro com a língua que falou de nós. Esse encontro torna-se imemorial e mítico, produzindo o traumatismo constitutivo da subjetividade. Trata-se de fixações de gozo no corpo, “pedações” de real que escapam à articulação significante e à mortificação simbólica. Quando falamos, atualizamos esse traumatismo primeiro e, por isso, cada tomada de palavra é uma tentativa de acomodar e exorcizar os efeitos de alíngua sobre o corpo.

Assim, se, para Lacan (1975-1976/2007LACAN, J.. O sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar , 2007. (O seminário, 23)), o sintoma é condicionado por alíngua, na criança, encontramos seus efeitos que se encarnam, a partir dos ditos da mãe, nos sintomas no corpo, constituindo-se como marcas de gozo.

A PRESENÇA DE ALÍNGUA E DO UM DO GOZO NOS SINTOMAS DA CRIANÇA

Em sua conferência El uno del goce en la infancia: de Freud a Lacan, Fabian Fajnwaks (2020FAJNWAKS, F. El uno del goce en la infancia: de Freud a Lacan. Seminario Campo Freudiano Sevilla Cádiz. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0zmdyxKgPS0 . Acesso em:16 mar. 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=0zmdyxKg...
) esclarece como o Um do gozo incide na criança e em seus sintomas. Para o autor, pode-se isolar dois Uns na infância e diferenciá-los dentro da teoria psicanalítica: o Um do gozo pulsional e o “Há Um”.

O Um do gozo pulsional se refere ao circuito fechado, solipsista, da pulsão, que se satisfaz em torno das zonas erógenas. Freud apresenta esse circuito da pulsão em sua obra Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1989FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). Rio de Janeiro: Imago, 1989, p. 117-230. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7)). A pulsão é parcial e autoerótica, mas, em seu percurso, se dirige ao Outro, retorna e volta a fechar-se sobre si mesma. Essa atividade autoerótica é despertada nesse percurso de dirigir-se ao Outro. Há, desse modo, um paradoxo nesse autoerotismo, já que ele é autoerótico, mas também é produzido pela intervenção do Outro. Portanto, esse Um do gozo pulsional e autoerótico se apresenta na infância como Um localizado no interior da relação com o Outro.

Por outro lado, o segundo Um presente na infância, o “Há Um”, não se superpõe e não corresponde a esse Um pulsional. Lacan deduz esse Um a partir da extensão do gozo feminino ao conjunto da experiência do ser falante - o que Miller discute em seu último curso, “O ser e o Um”, na lição do dia 2 de março de 2011MILLER, J.-A. O ser e o Um. Inédito. 2011.. Nesse seminário, Miller (2011MILLER, J.-A. O ser e o Um. Inédito. 2011.) fará do gozo feminino um paradigma para o gozo, acentuando seu caráter ilimitado, que excede à significação fálica, subtraído da lógica e da maquinaria edípica. Trata-se de um gozo reduzido ao acontecimento de corpo, não simbolizável, indizível, que tem afinidades com o infinito. Um gozo opaco, sem dialética, que não pode ser negativado por meio das operações da linguagem. Um gozo radicalmente singular que é experimentado no corpo e que dispensa o Outro. Enfim, trata-se de uma instância do gozo do Um, fora do sentido, produtora de uma satisfação autística e do gozo solitário do “Há Um”.

De que maneira esse gozo se expressa nos sintomas das crianças?

Em Nota sobre a criança (1969/2003b), Lacan apresenta as duas vertentes dos sintomas nas crianças as quais permitem ordenar duas direções clínicas distintas. De um lado, estão os sintomas que respondem à verdade do par parental e que, portanto, se situam no registro do Outro, surgem como resposta ao seu desejo ou à sua demanda. Trata-se de sintomas que revelam o retorno do recalcado e se apresentam, por exemplo, sob as formas de fobias, inibições da aprendizagem, dificuldades de linguagem. Indicam uma tentativa de responder, de modo metafórico, ao enigma do desejo ou aos embaraços diante da demanda do Outro. Nessas patologias que implicam a relação com o Outro, encontramos um curto-circuito com ele (o Outro) como um modo de defesa ao Um pulsional (FAJNWAKS, 2020FAJNWAKS, F. El uno del goce en la infancia: de Freud a Lacan. Seminario Campo Freudiano Sevilla Cádiz. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0zmdyxKgPS0 . Acesso em:16 mar. 2021.
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).

De outro lado, encontramos os sintomas que não obedecem a essa estrutura e situam-se como uma resposta encarnada naquilo do Outro que não pôde ser depurado pela linguagem. Trata-se de sintomas que decorrem da subjetividade da mãe sem relação com a verdade do par parental. Nessa perspectiva, a criança encarna o objeto da fantasia materna, ou seja, encarna o que desse Outro não pôde ser simbolizado: o gozo. Segundo Lacan, isso ocorre quando:

[...] a distância entre a identificação com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo da mãe, quando não tem mediação (aquela que é normalmente assegurada pela função do pai) deixa a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela se torna objeto da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade desse objeto. (LACAN, 1969/2003bLACAN, J. Nota sobre a criança (1969). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar , 2003b, p. 369-370., p. 369).

Nessa situação, de acordo com Lacan (1969/2003b), com seu sintoma, a criança satura a falta da mãe, ficando na posição de um objeto dejeto ou entrando em uma relação imaginária com ela. Os sintomas têm menor alcance no que diz respeito às nossas intervenções como analistas. A criança funcionaria como o objeto pequeno a da mãe, encarnando ou dando corpo àquilo que do Outro não pode ser metaforizado.

De acordo com Fajnwaks (2020FAJNWAKS, F. El uno del goce en la infancia: de Freud a Lacan. Seminario Campo Freudiano Sevilla Cádiz. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0zmdyxKgPS0 . Acesso em:16 mar. 2021.
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), é exatamente nessa posição - de criança situada como objeto do fantasma da mãe - que poderemos dar conta da presença do Um do gozo na psicanálise com crianças.

Em Alocução sobre as psicoses da criança (1967/2003aLACAN, J.. Alocução sobre as psicoses da criança (1967). In: LACAN, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003a, p. 359-371.),3 3 Alocução pronunciada em Bonneuil, instituição criada por Maud Mannoni. Lacan, fazendo referência a Winnicott e a seu objeto transicional, discute como o ponto importante a ser investigado não é tanto que o objeto transicional preserve a autonomia da criança em relação à mãe, mas que a criança mesma sirva ou não como objeto transicional da mãe. O importante, assim, é que a criança não encarne esse objeto transicional para a mãe, ou seja, que ela não encarne o objeto do qual a mãe não possa separar-se ou desprender-se, obturando assim sua falta e fixando-a como objeto de gozo.

Para Laurent (1999LAURENT, É. Hay un fin de análisis para los ninõs. Buenos Aires: Coleccion Diva, 1999.), no ensino de Lacan, o estatuto da criança se desloca do falo ao objeto a. Nos dois textos lacanianos dedicados à criança - Nota sobre a criança e Alocução sobre as psicoses da criança -, destacam-se as consequências da introdução da teoria do objeto pequeno a, a qual nos permite evidenciar que nem tudo é simbólico na experiência do jovem falante. Para o autor, à medida que Lacan avança em sua conceituação do objeto pequeno a como objeto condensador de gozo, esse lugar do Outro como tesouro dos significantes se reduz progressivamente até se tornar um lugar de localização do gozo.

Ainda de acordo com Fajnwaks (2020FAJNWAKS, F. El uno del goce en la infancia: de Freud a Lacan. Seminario Campo Freudiano Sevilla Cádiz. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0zmdyxKgPS0 . Acesso em:16 mar. 2021.
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), pode-se encontrar certa dificuldade em situar esse Um do gozo na infância, porque o jovem ser falante se encontra tomado pelo Outro na operação de alienação e separação. A operação de separação, ao extrair um objeto do campo do Outro, permite que o gozo possa se localizar nesse objeto, protegendo a criança e seu corpo de se constituírem como objeto que condensa o gozo do Outro. A consequência dessa operação de extração do gozo, na qual intervém a castração do lado da separação, é a saída da relação alienante com o Outro. A estruturação do fantasma em torno desse objeto marca definitivamente a relação do sujeito com os demais objetos do mundo.

O primeiro ensino de Lacan já havia indicado como a sexualidade feminina seria uma preliminar no tratamento da criança e no entendimento dos seus sintomas. Lacan afirma, assim, que se torna determinante, para cada sujeito, a relação da mulher, que se encontra, como sua mãe, com sua própria falta (MILLER, 1995MILLER, J.-A. A lógica na direção da cura. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise - MG, 1995.). Entretanto, no segundo ensino lacaniano, temos a referência não mais à falta da mãe, mas a seu gozo. Assim, quando o sujeito tem acesso ou está exposto ao gozo da mãe, mais precisamente ao gozo da mulher presente na mãe, ele se depara com o Um do gozo do lado do Outro materno. Trata-se do gozo em excesso, que excede ao simbólico, que não se deixa reduzir pelo falo e se localizar em um objeto mais de gozar. Os efeitos da captura da criança nesse gozo são devastadores e perturbadores para seu corpo.

Esses efeitos tornam-se evidentes nos casos das crianças psicóticas e autistas, capturadas nesse gozo solitário e sem possibilidade de metaforização. Elas precisam arranjar-se com o gozo não negativado que retorna no real sem o auxílio do funcionamento fantasmático e sem o auxílio de um discurso estabelecido.

Silvia Tendlarz (2015TENDLARZ, S. E. Clínica del autismo y de las psicosis en la infancia. Buenos Aires: Colección Diva, 2015.) descreve uma série de perturbações no corpo da criança psicótica. Segundo a autora, as crianças podem começar, por exemplo, tendo sensações corporais ou um sentimento de alteração ou de estranheza antes da construção de um delírio. Fragmentações corporais e vacilações imaginárias estão presentes, produzindo efeitos sobre o corpo, passagens ao ato auto ou heteroagressivas.

Esse sofrimento que advém do corpo na criança psicótica é corroborado por Barroso (2014BARROSO, S. F. As psicoses na infância: o corpo sem a ajuda de um discurso estabelecido. Belo Horizonte: Scriptum, 2014.). Para a autora, haveria uma predominância dos distúrbios corporais na psicose infantil, revelando os excessos no corpo. Porém, esses distúrbios que envolvem o corpo - tais como as descoordenações motoras, as agitações, o mau funcionamento dos órgãos de nutrição e excreção -, quando não são articulados ao campo da linguagem, são reduzidos, pelo discurso médico, a déficits cognitivos e/ou a deficiências.

No caso das crianças autistas, Laurent (2014LAURENT, É. A batalha do autismo: da clínica à política. Rio de Janeiro: Zahar , 2014.) descreve como o gozo a mais retorna sobre o corpo, indicando sua falta de negativação, efeito do fenômeno foraclusivo. A ideia de uma borda de gozo remete ao fato de que um sujeito que não tem envoltório corporal, que não construiu um corpo, produz uma neobarreira corporal dentro da qual ou sob a qual se encerra e se defende da presença invasiva do Outro.

Ao demarcar o mecanismo próprio do autismo, mais radical que aquele da psicose, denominado a “foraclusão do furo”, Laurent (2014LAURENT, É. A batalha do autismo: da clínica à política. Rio de Janeiro: Zahar , 2014.) indica como as crianças autistas estão imersas no real, no qual não falta nada, nada pode ser extraído. Esse mecanismo tem o efeito subjetivo de tornar o mundo inviável por causa de um excesso de gozo que invade o corpo.

Quanto ao campo da linguagem, é possível também evidenciar a presença desse Um do gozo e suas perturbações. Não faltam literalidades, desarranjos gramaticais, neologismos e a proliferação de acentos estranhos. Deparamo-nos com as ecolalias, os significantes que retornam sem associar-se a nenhum S2, a nenhum outro significante, para então produzir um efeito de significado e significação. Produz-se um enxame de S, lugar da pura iteração do S1 sozinho que não remete a nenhum sentido, que se repete e itera a cada vez sem dialética, presente tanto nas crianças autistas como nas psicóticas. Esse Um sozinho não tem Outro (MALEVAL, 2017MALEVAL, J.-C. O autista e a sua voz. São Paulo: Blucher, 2017.).

Na Conferência de Genebra sobre o sintoma, Lacan se refere aos autistas como “verbosos” (1975/1998LACAN, J.. Conferência de Genebra sobre o sintoma (1975). Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 23, 1998, p. 6-16., p. 12), afirmando que eles, os autistas, escutam a si mesmos. São verbosos ao sofrerem de um excesso de verbo, esclarecem Bastos e Freire (2006BASTOS, A.; FREIRE, A. B. Sobre o conceito de alíngua: elementos para a psicanálise aplicada ao autismo e às psicoses. In: BASTOS, A. (org). Psicanalisar hoje. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2006, p. 107-122.). O verbo é, para as crianças autistas, excessivo, predominantemente gozo e, por isso, não demarca um lugar simbólico no Outro.

No entanto, não é somente na criança autista e psicótica que verificamos a presença desse Um sozinho que não permite articular o ser falante ao Outro, condenando-o a um gozo solitário. Fajnwaks (2020FAJNWAKS, F. El uno del goce en la infancia: de Freud a Lacan. Seminario Campo Freudiano Sevilla Cádiz. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=0zmdyxKgPS0 . Acesso em:16 mar. 2021.
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) também localiza a presença desse Um em alguns casos diagnosticados como hiperatividade. Nessas situações, encontramos a agitação angustiada da criança ali onde justamente não se produziu uma extração do objeto pela intervenção da operação de castração. Desse modo, a criança se encontra envolta no gozo da mãe, tomada de maneira direta pelo fantasma materno sem a mediação que o significante permite. A dificuldade consiste em encontrar uma palavra ou algum significante que opere uma extração de gozo presente no corpo da criança e que permita acalmar essa agitação.

Outros sintomas também nos permitem deduzir a presença desse gozo solitário nas crianças. As adições em relação a objetos eletrônicos como videogames, tablets, smartphones, muito frequentes na clínica contemporânea, evidenciam a presença desse gozo mudo, que só tem relação com o S1 e não com o S2 e que, portanto, não tem dialética e não faz cadeia. As crianças permanecem imersas em suas telas, satisfazendo-se de forma autística com seus objetos, dispensando o Outro.

A CLÍNICA CONTEMPORÂNEA COM CRIANÇAS: DO UM AO OUTRO

A presença desse gozo mudo impõe uma dificuldade para a condução do tratamento e para as intervenções clínicas. Ao nos depararmos com o ser falante que se mantém isolado na solidão de seu gozo autístico, deparamo-nos também com a ausência de suposição de saber e, consequentemente, com a ausência de endereçamento ao Outro. Defrontamo-nos, então, com a consistência do Um sozinho sem o Outro.

Para Miller e Laurent (1996MILLER, J.-A.; LAURENT, Éric. El Outro que no existe y sus comités de ética(1996). Buenos Aires: Paidós , 2005./2005), nosso modo contemporâneo de gozar está conformado pelo estatuto autístico do gozo. Nesses casos, forçar o sintoma em seu estatuto “autístico” a se reconhecer como significado do Outro, ou seja, como articulado ao campo do Outro, torna-se um problema, uma operação difícil de ser realizada.

Diante disso, como produzir a suposição de saber e as condições para o tratamento analítico?

Maurício Tarrab (2005TARRAB, M. Produzir novos sintomas. Correio, Belo Horizonte, n. 52, p. 36-44, 2005.) propõe a produção de sintomas não ao modo freudiano, mas sintomas que possam cifrar o gozo opaco. Para isso, a intervenção do analista precisa ir além da interpretação, apontando para o gozo. A aposta analítica é fazer com que se traduza em termos de saber o que se realiza como gozo. Ao permitir que o gozo opaco e solitário do Um possa cifrar-se no inconsciente, abre-se a via de alguma possibilidade de decifração. Fazer existir o inconsciente por meio da transferência e da suposição de saber permitirá cifrar o gozo e tecer uma nova inscrição. Nessa perspectiva, o autor sugere que se opere uma reconstrução do Outro a fim de produzir o efeito sujeito, extraindo algo desse Outro barrado para que o sujeito possa advir. Nessa clínica, a intervenção do analista utiliza menos sentido e interpretação e mais “presença do analista”, sinalizada por meio do interesse pelo que o analisante fala, pelo que não fala, pelo pouco que fala, para extrair esse ser do campo do gozo. Busca-se algum significante que sirva de orientador e valoriza-se o saber que o próprio sujeito traz. Valoriza-se sua língua a fim de que se possa passar do reino do Um ao campo do Outro.

Se não há Outro do Outro, ou seja, o Outro inexiste, o que as crianças podem inventar nesse lugar?

De acordo com Miller, no texto A invenção psicótica (2003MILLER, J.-A A invenção psicótica. Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 36, p. 6-16, 2003.), a invenção é sempre proveniente dos impasses da relação com a alíngua, ou seja, o modo como o sujeito se arranja com esse significante que não se encadeia, que constitui um choque em si mesmo. Para Miller, pode-se abordar as invenções em duas vertentes: as invenções advindas daqueles que se servem do discurso estabelecido, do pai e do simbólico e tratam o gozo tipicamente pelo Nome do Pai e, consequentemente, pela significação fálica; e as invenções advindas daqueles que não contam com o discurso estabelecido, fazendo equivaler as invenções à operação de uma bricolagem.

Porém, independentemente da estrutura (psicose ou neurose), a clínica com crianças nos ensina que a invenção, mínima que seja, do campo do Outro, por meio da extração do gozo em excesso, permite que elas tenham um pouco mais de mobilidade e menos petrificação em uma determinada posição. Sendo assim, diante da inexistência do Outro, é necessário inventar um Outro que possibilite retirar o ser falante da solidão de seu gozo.

O Outro, não sendo prévio, é um lugar produzido por meio do apagamento do Um original. De acordo com Miller (2011MILLER, J.-A. O ser e o Um. Inédito. 2011.), a fórmula de Lacan indica que o Outro é “Um em menos”, ou seja, é somente com o apagamento do Um que se torna possível a constituição do lugar do Outro e a produção da cadeia significante. Sendo assim, na análise, busca-se restituir o dois, acrescentando ao Um sozinho o S2 que lhe permitirá, ao produzir a cadeia, fazer sentido e, posteriormente, se deparar com aquilo que não muda, insiste e itera (MILLER, 2011MILLER, J.-A. O ser e o Um. Inédito. 2011.).

Em nossa clínica com crianças, podemos nos perguntar como, na posição de analista, reconhecer e ser parceiro nessa invenção de cada um.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    O presente artigo é resultado da pesquisa de Pós-Doutoramento realizada no Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (2019-2021), sob supervisão da professora Dra. Angélica Bastos.
  • 2
    No original, lalangue. Neologismo francês cunhado por Jacques Lacan (1972) e traduzido para o português como alíngua. O conceito de alíngua responde à necessidade de abordar manifestações que não se inscrevem no âmbito social da língua, que ignoram a comunicação e que não visam ao outro. Ela é constituída de detritos que ressoam da língua falada pelo Outro (BASTOS: FREIRE, 2006).
  • 3
    Alocução pronunciada em Bonneuil, instituição criada por Maud Mannoni.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2021
  • Aceito
    27 Set 2022
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Psicologia UFRJ, Campus Praia Vermelha, Av. Pasteur, 250 - Pavilhão Nilton Campos - Urca, 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
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