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Utilização de software para terapia fonoaudiológica com crianças surdas

RESUMO

Na perspectiva de se trabalhar o aprimoramento da fala de crianças com surdez, a atuação fonoaudiológica busca novas ferramentas condizentes com o cenário tecnológico atual, utilizando-se de aplicativos tecnológicos no auxílio de suas intervenções, pois os jogos digitais, além de estimular a percepção visual, favorecem momentos interativos como etapas do processo de aprendizagem. O presente estudo se propôs a analisar estratégias terapêuticas mediadas pelo uso de software na reabilitação das habilidades vocais e articulatórias de fala de crianças com surdez, usuárias de implante coclear. Tratou-se de pesquisa do tipo estudo de caso com três crianças, realizada por meio do levantamento de prontuário; avaliação da voz e da articulação e análise acústica das produções vocais das vogais [a], [i] e [u] e dos sons oclusivos [p] e [b]; aplicação do jogo digital VoxTraining para aprimoramento de aspectos vocais e de fala, realizada em cinco sessões terapêuticas. Observou-se que todas as crianças tiveram diagnóstico de perda auditiva e início de reabilitação tardios, estavam em fase de aquisição da Língua Brasileira de Sinais como língua materna e apresentavam alterações vocais e articulatórias. Os resultados sugerem que os participantes se interessaram pelo software devido às solicitações de repetição dos jogos e estes contribuíram para melhor entendimento sobre o exercício vocal e articulatório realizado, devido ao estímulo do feedback visual. Conclui-se que o trabalho com crianças surdas utilizando jogos digitais facilitam a terapia e proporcionam melhora na qualidade da voz e da fala.

Palavras-chave:
Implante coclear; Surdez; Terapia da Linguagem; Voz; Software

ABSTRACT

From the perspective of working on the improving the speech of deaf children, the speech therapy action, when seeking new tools beffitting the current technological scenario, can use technological applications to help its interventions with deaf children, because digital games, besides stimulating visual perception, favors interactive moments as phases of the learning process. The present study aimed to analyze therapeutic strategies mediated by the use of software in the rehabilitation of vocal and articulatory speech skills of deaf children using cochlear implants. It is a case study of three deaf children was carried out through the survey of medical records; evaluation of the voice and articulation and acoustic analysis of the vocal productions of the vowels [a], [i], [u], and of the occlusive sounds [p], [b]; and application of the digital game VoxTraining to improve vocal and speech aspects performed in five therapeutic sessions. It was observed that all children were diagnosed with hearing los and early rehabilitation. The children are also in the process of acquiring the Brazilian Sign Language as their mother tongue and presents vocal and articulatory speech alterations. The results suggest that the participants were interested in the software due to the request for repetition of the games by the children, and this fact contributed to a better understanding of the vocal and articulatory exercise to be performed due to the contribution of visual feedback. It was concluded that bilingual work with deaf children using digital games facilitates therapy and improves voice quality and speech.

Keywords:
Cochlear implantation; Deafness; Language Therapy; Voice; Software

INTRODUÇÃO

A perda auditiva em crianças é considerada um dos principais fatores que ocasiona atraso ou desordem na aquisição da linguagem oral. Mesmo não sendo possível, ao certo, prever o impacto dessa perda no desenvolvimento da linguagem oral de uma criança, o tipo e o grau da perda, assim como a idade de início e a duração do problema são fatores que influenciam, sobremaneira, as repercussões no seu desenvolvimento global(11 Oliveira LN, Goulart BN, Chiari BM. Distúrbios de linguagem associados à surdez. Rev Bras Crescimento Desenvolv Hum. 2013;23(1):41-5.).

Atualmente, grande parte das crianças com perda auditiva sensorioneural de grau profundo é encaminhada, inicialmente, para a adaptação de próteses auditivas e, no caso da amplificação não ser suficiente para a aquisição da língua oral, essas crianças são encaminhadas para o implante coclear (IC). Desta forma, o trabalho fonoaudiológico com elas tem como base a estimulação auditiva.

A sofisticação auditivo-linguística que a maior parte das crianças submetidas a colocação do IC alcança, demonstra a velocidade com que se chega ao domínio da linguagem. Entretanto, é oportuno destacar que nos indivíduos com surdez, o impedimento em manter um feedback auditivo adequado, mesmo com a utilização do IC, acarreta o aparecimento de características vocais específicas que excedem as alterações em nível glótico(22 Coelho AC, Brasolotto AG, Bahmad F Jr. Development and validation of the protocol for the evaluation of voice in patients with hearing impairment. Braz J Otorhinolaryngol. 2020;86(6):748-62. http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2019.05.007. PMid:31519483.
http://dx.doi.org/10.1016/j.bjorl.2019.0...
), com o aparecimento de dificuldades na realização combinatória dos sons da fala, como também no desenvolvimento do controle vocal, respiratório e articulatório(33 Delgado-Pinheiro EMC, Bonbonati JC, Santos FR, Fabron EMG. Voz de crianças e adolescentes deficientes auditivos e pares ouvintes: influência da percepção auditiva da fala na produção vocal. CoDAS. 2020;32(4):e20180227.).

Os achados mais encontrados em literatura sobre as características da produção oral de indivíduos com surdez fazem menção às seguintes dificuldades: altos valores de frequência fundamental, portanto, pitch mais agudizado; variabilidade dos parâmetros de ressonância de fala; presença de rugosidade, soprosidade e tensão; instabilidade do controle fonatório, imprescindível para o equilíbrio vocal e alteração das características suprassegmentais, como articulação e inteligibilidade(33 Delgado-Pinheiro EMC, Bonbonati JC, Santos FR, Fabron EMG. Voz de crianças e adolescentes deficientes auditivos e pares ouvintes: influência da percepção auditiva da fala na produção vocal. CoDAS. 2020;32(4):e20180227.).

Em vista das características anteriormente mencionadas, a atuação fonoaudiológica, buscando novas ferramentas condizentes com o cenário tecnológico atual, poderá se utilizar de diversos recursos para o aprimoramento da fala de crianças com surdez. A aplicabilidade de jogos digitais como recurso terapêutico fornece um senso de propósito, pois os jogos incorporam regras e, portanto, comandam o pensamento estratégico ao inserir um sistema de feedback que motiva os usuários a atingirem seus objetivos. Tal mediação auxilia com inúmeras características, como atenção e tomada de decisão(44 Miller AS, Cafazzo JA, Seto E. A game plam: gamification desing principles in mHealth applications for chronic disease management. Health Informatics J. 2016;22(2):184-93. http://dx.doi.org/10.1177/1460458214537511. PMid:24986104.
http://dx.doi.org/10.1177/14604582145375...
).

Sendo assim, o presente estudo teve como objetivo analisar estratégias terapêuticas mediadas pelo uso de software na reabilitação das habilidades vocais e articulatórias de fala de crianças com surdez, usuárias de implante coclear.

APRESENTAÇÃO DOS CASOS CLÍNICOS

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas -Unicamp, sob número de protocolo CAEE 85020418.3.0000.5404. Após o aceite, os pais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e os participantes assinaram um termo de assentimento para a pesquisa, pois possuíam faixa etária superior a 5 anos de idade.

Foram incluídas no estudo três crianças com surdez, usuárias de implante coclear, inseridas nos serviços do Centro de Estudos e Pesquisa em Reabilitação “Prof. Dr. Gabriel Porto” (CEPRE), sem patologia associada à perda auditiva, duas do gênero feminino e uma do gênero masculino. Por se tratar de um estudo de caso, levantou-se análise considerando variáveis como idade de diagnóstico da perda auditiva, etiologia da perda, modo de comunicação com a família, idade de implantação e tempo de terapia fonoaudiológica. Todos os participantes receberam a mesma terapêutica com enfoque tecnológico. Para cada criança foi estabelecido um nome fictício: Renata, Cláudio e Marta.

O CEPRE, aqui referenciado, se pauta na corrente teórica bilíngue e atua na assistência de usuários com surdez em todas as faixas etárias. Para isso, são desenvolvidos programas que visam oferecer suporte psicológico e de serviço social aos pais/cuidadores e potencializar as possibilidades de comunicação da criança por meio da língua oral, com atendimento fonoaudiológico e exposição à Língua Brasileira de Sinais (Libras) com instrutores surdos, além do apoio educacional, com atividades individuais e em grupo.

A avaliação da voz e da fala foi realizada em dois momentos distintos, em todos os participantes da pesquisa. A primeira foi aplicada antes do início do procedimento terapêutico e serviu de base para observação das características de voz e de articulação apresentadas pelas crianças (pré-teste). Já a segunda avaliação, foi executada ao término do procedimento terapêutico e comparada com a avaliação inicial (pós-teste).

As amostras de fala e voz foram gravadas em ambiente tratado acusticamente, captadas por um microfone Shure SM-58 e gravados por meio do software Praat* * Software desenvolvido por Paul Boersma e David Weenink, do Instituto de Ciências Fonéticas de Amsterdam, disponível gratuitamente em www.praat.org. , instalado em um computador Desktop Dell, utilizando a frequência de amostragem em 44,1 kHz. Neste momento, foram feitos registros em vídeo para arquivo clínico e análise para comparação pré e pós-tratamento. Os vídeos foram gravados por intermédio de uma câmera Cannon Power Shot A3100 IS.

Para execução desta etapa, utilizou-se: a) tarefas de repetição de palavras: uso do índice de reconhecimento de palavras dissílabas, foneticamente balanceadas; b) emissão isolada de cada som: emissão das vogais [a], [i] e [u] e sons oclusivos [p] e [b]. Era requisitado que o participante emitisse, no mínimo, duas vezes os sons solicitados pela terapeuta. Sempre que necessário eram fornecidas pistas sinestésicas para a produção mais próxima do som; c) realização do Tempo Máximo de Fonação (TMF): sustentar as vogais [a], [i] e [u] o maior tempo possível. A análise do TMF seguiu critério proposto por estudo anterior (55 Behlau MS, Pontes P. Avaliação e tratamento das disfonias. São Paulo: Lovise; 1995.), sendo esperado que, para as crianças deste estudo, variasse entre seis e sete segundos.

Para análise acústica dos dados da avaliação de voz e de fala, também utilizou-se o software Praat. Na análise acústica das vogais [a], [i] e [u], observaram-se as frequências dos dois primeiros formantes, sendo que a produção das vogais ocorre pela passagem livre do ar, portanto, estão mais sujeitas a modificações acarretadas por condições prosódicas/articulatórias(66 Barbosa PA, Madureira S. Manual de fonética acústica experimental: Aplicações a dados do português. São Paulo: Cortez; 2015.). Os valores de primeiro formante (F1) possuem relação direta com a altura do sistema linguomandibular e os valores do segundo formante (F2) fazem relação ao movimento anteroposterior da língua(66 Barbosa PA, Madureira S. Manual de fonética acústica experimental: Aplicações a dados do português. São Paulo: Cortez; 2015.). Assim, esses parâmetros forneceram importantes informações para o entendimento articulatório da produção. Para cálculo dos formantes da vogal isolada, a análise foi realizada a partir da gravação do TMF de cada vogal, selecionando o seu ponto estável.

Em relação às análises acústicas dos sons plosivos [p] e [b], considerou-se a delimitação de um intervalo de interesse para o estudo do vozeamento, denominado, VOT (Voice Onset Time), que pode ocorrer entre o início do ruído transiente e o início da vogal que o segue – VOT positivo –, ou entre o início do ruído transiente e o final da vogal que o precede – VOT negativo(66 Barbosa PA, Madureira S. Manual de fonética acústica experimental: Aplicações a dados do português. São Paulo: Cortez; 2015.). Tais valores podem trazer explicações quanto ao tempo de início de vibração das pregas vocais e informações da pressão supraglotal e sobre a articulação; esta última pode fornecer indícios sobre a correta produção da vocalização dos sons [p] e [b], bem como seus momentos de troca na fala.

Para análise acústica das vogais, utilizaram-se as seguintes configurações de espectrograma: view range (Hz) de 0 a 4000 Hz com window length (s) de 0,005s. Para as configurações de formantes, utilizou-se o maximum formant (Hz) em 5000 Hz.

As terapias individuais tiveram início em março de 2019, totalizando dez sessões terapêuticas, porém, em apenas cinco delas trabalhou-se com os sons citados anteriormente. Cada sessão fonoaudiológica durava 45 minutos e a aplicação do jogo digital era incluída nos 15 minutos iniciais ou finais.

As intervenções foram realizadas em uma sala terapêutica disponibilizada pela instituição, com fones de ouvido Headphone Headset High Tone e microfone HS302 Newlink para uso do jogo. Em todos os momentos, foram feitos registros em vídeo por meio de uma câmera Cannon Power Shot A3100 IS, para arquivo clínico e análise para comparação pré e pós-tratamento.

A terapêutica com os jogos digitais focou no desenvolvimento do tempo de fonação das vogais [a], [i], [u]; aperfeiçoamento da articulação dos sons oclusivos [p], [b]; desenvolvimento da coordenação fina de respiração e articulação necessárias à fala. Aplicou-se o jogo digital intitulado VoxTraining, formado por um conjunto de onze jogos de exercícios vocais, com o objetivo de estimular, condicionar e treinar os aspectos de voz e fala, aprimorando a produção e controle de diversos parâmetros vocais** ** Informação retirada do local de venda da CTS Informática. Disponível em: https://www.ctsinformatica.com.br/fonoaudiologia/voz/voxtraining-exercicios-vocais. , tais como: a) intensidade vocal: o controle da intensidade foi trabalhado na dimensão forte-fraco e dois jogos foram utilizados: o jogo do avião e o dos balões; b) frequência vocal: o controle da frequência foi trabalhado na dimensão grave-agudo com o jogo da gaivota; c) ritmo e ataque vocal: para o trabalho simultâneo de ritmo e ataque vocal foi utilizado o jogo do atirador; d) tempo máximo de fonação: trabalhou-se com o jogo do astronauta para aumento do TMF.

Os dados encontrados foram informatizados para posterior análise acústica e qualitativa. Esta análise foi descritiva, delineando um perfil do grupo, com objetivo de relacionar o desenvolvimento das habilidades de fala com a utilização do software em questão.

As três crianças participantes do estudo possuíam entre 6 e 7 anos de idade e o diagnóstico de surdez foi concluído entre 1 ano de idade e 1 ano e 6 meses. O tempo decorrido de terapia fonoaudiológica, desde a detecção de tal perda, apresentou variação entre os participantes da pesquisa: a criança Renata participa há um ano e meio por acompanhamento fonoaudiológico, Cláudio há três anos e Marta há dois anos e meio. Em relação ao uso dos dispositivos tecnológicos, duas das crianças utilizavam o aparelho de amplificação sonora individual (AASI) há mais de três anos e tinham entre 3 e 4 anos de idade quando submeteram-se à colocação do IC. Sendo assim, a via auditiva foi estimulada a partir do início das sessões de terapia e não da protetização em si. Ademais, é oportuno salientar que os responsáveis pelas crianças estão em processo de aquisição da Libras e que a comunicação delas com suas famílias é pautada por Libras, gestos e vocalizações.

O resumo dos objetivos e jogos utilizados em cada sessão terapêutica e suas respectivas configurações estão apresentados na Tabela 1.

Tabela 1
Resumo dos objetivos e jogos utilizados em cada sessão terapêutica, e as respectivas configurações utilizadas em cada sessão

As fases que necessitavam configurações por frequência foram as mais difíceis de serem jogadas pelas crianças. O resumo de cada sessão terapêutica de todas as crianças da presente pesquisa, bem como seus respectivos resultados estão demonstrados no Quadro 1.

Quadro 1
Resumo das sessões terapêuticas e seus respectivos resultados

Análises Acústicas

Os dados tabulados da comparação pré-teste e pós-teste dos TMF e dos dois primeiros formantes das emissões isoladas das vogais [a], [i] e [u], em todos os sujeitos analisados, estão expostos na Tabela 2, o quadro dos espaços vocálicos, na Figura 1, utilizando o método de análise estatística JT*** *** Jacobson NS, Truax P. Clinical significance: A statistical approach to defining meaningful change in psychotherapy research. Journal of Consulting and Clinical Psychology. 1991; 59(1):12-19. , e a comparação dos valores de VOT de [p] e [b] de todos participantes, na Tabela 3.

Tabela 2
Comparação pré e pós-teste do Tempo Máximo de Fonação e dos valores dos dois primeiros formantes das emissões das vogais [a], [i] e [u] em todos os participantes da pesquisa
Figura 1
Espaço acústico nas vogais [a], [i] e [u] nos três participantes da pesquisa
Tabela 3
Comparação pré e pós-teste do Voice Onset Time de [p] e [b] em todos os sujeitos analisados (em milissegundos)

DISCUSSÃO

Partindo das características dos participantes da pesquisa, observou-se que tanto a idade de diagnóstico da surdez, quanto a de início de terapia fonoaudiólogica estavam em contradição com o que propõe a literatura, apesar de ser um quadro recorrente em nosso cenário nacional.

As Diretrizes de Atenção da Triagem Auditiva Neonatal do Ministério da Saúde estabelecem que é desejável identificar bebês com perda auditiva antes dos 3 meses de idade(77 Brasil. Diretrizes de atenção da triagem auditiva neonatal. Ministério da Saúde, Brasília; 2012.), dado que somente foi observado em uma das crianças da presente pesquisa, pois as demais foram identificadas com mais de 12 meses de idade, portanto, fora da idade de identificação precoce.

Em relação ao início do trabalho fonoaudiológico com as crianças, apenas uma iniciou com 4 anos de idade. A literatura mostra que o processo de diagnóstico deveria estar completo aos 3 meses e a terapia fonoaudiológica iniciada aos 6 meses de vida(77 Brasil. Diretrizes de atenção da triagem auditiva neonatal. Ministério da Saúde, Brasília; 2012.), o que demonstra um quadro preocupante de atraso em nossa realidade. Estudo que buscou avaliar os prontuários e realizar entrevistas com as mães de 22 crianças com surdez congênita constatou que a idade dessas crianças - quando foram inseridas em um programa de atendimento educacional e/ou terapêutico à população surda - variou com valores mínimos de 2 anos de idade, máxima de 6 anos e média de 3,5 anos(88 Carvalho LS, Cavalheiro LG. Detecção precoce e intervenção em crianças surdas. Arq Int Otorrinolaringol. 2009;13(2):189-94.), valores estes que confirmam os dados da presente pesquisa.

Observa-se que, para os três casos aqui estudados, o início em terapia fonoaudiológica se justifica, ou pelo fato de uma das crianças ter nascido em uma cidade cuja maternidade não oferecia o serviço de triagem auditiva neonatal e, portanto, todo o processo de diagnóstico foi demorado, ou, como no caso das duas crianças que nasceram na cidade de Campinas e fizeram o teste da triagem auditiva neonatal, mas tiveram atraso no diagnóstico por problemas sociais ou/e pela demora na realização do implante coclear. De modo geral, analisa-se uma possível causa em comum entre todos os participantes, ou seja, a existência de uma descontinuidade da rede do cuidado às pessoas surdas e à realidade social que as permeiam. Tal dado é citado em estudo que observou facetas de um serviço de atenção à saúde auditiva de média complexidade, no qual foram constatados diversos problemas, tais como: nem todos os indivíduos possuíam acesso ao serviço; escassez de vagas para atendimento terapêutico e prosseguimento na rede de cuidado; serviço fragmentado e com foco no acometimento auditivo; desigualdades sociais serem pouco consideradas no momento da protetização, as quais interferem na efetividade da atenção prestada, ao se considerar questões como precariedade de moradia e falta de recursos financeiros ou de escolaridade para o entendimento da estimulação da linguagem para a continuidade do tratamento(99 Vianna NG, Cavalcanti ML, Acioli MD. Princípios de universalidade, integralidade e equidade em um serviço de atenção à saúde auditiva. Cien Saude Colet. 2014;19(7):2179-88. http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232014197.09392013. PMid:25014297.
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320141...
).

Constatou-se que a idade do implante coclear das crianças deste estudo variou entre os 3 e os 4 anos, dado que é visto em demais pesquisas. Em uma pesquisa que analisou 60 crianças implantadas, observou-se que um total de 56 indivíduos receberam o implante com idade inferior a 5 anos, idade equivalente - para grande parte do grupo - ao tempo de privação sensorial auditiva(1010 Moret AM, Costa O, Costa OA. Implante coclear: audição e linguagem em crianças deficientes auditivas pré-linguais. Pró-Fono Revista de atualização Científica. 2007;19(3):295-304.).

Em relação ao TMF nas vogais – com exceção da vogal [i] nos participantes Renata e Cláudio – observou-se aumento entre o pré-teste e pós-teste, o que permitiu afirmar que houve manutenção dos novos valores no decorrer do processo terapêutico. Para tal, pode-se sugerir que o procedimento foi eficaz.

Segundo pesquisa que buscou realizar treinamento vocal - por intermédio de jogos computadorizados com surdos na faixa etária de 12 a 17 anos -, os valores de TMF da vogal [a] foram de 7,88 segundos (s) no pré-teste para 13,97 segundos no pós-teste; para a vogal [i], os valores foram de 8,33s e de 12,48s e, para a vogal [u], os valores foram de 9,21s no pré-teste e 11,78s no pós-teste(1111 Lopes DC, Oliveira, IB, Cárnio MS. Avaliação da voz e fala de surdos após a aplicação de um procedimento terapêutico computadorizado. Distúrb Comun. 2008;20(2):183-92.). Como os critérios para a análise do TMF tomam como base os valores calculados de acordo com a idade do indivíduo(55 Behlau MS, Pontes P. Avaliação e tratamento das disfonias. São Paulo: Lovise; 1995.), os valores encontrados no estudo anterior foram semelhantes aos dados da presente pesquisa, na qual todos os indivíduos apresentaram valores de TMF maiores que a própria idade.

Quanto às atividades referentes ao uso do Voice Onset Time (VOT) com as plosivas, de maneira geral, verificou-se evolução na produção de [p] e [b], tanto em nível de sílaba, quanto de palavra. Em relação aos valores propriamente ditos, em um trabalho que buscou analisar valores de VOT das oclusivas do português brasileiro em falantes com audição preservada e em indivíduos com surdez, foram constatados valores médios de [p] de 11ms e de [b] de -77ms para indivíduos sem surdez(1212 Madureira S, Barzaghi L, Mendes B. Voicing contrasts and the deaf: production and perception issues. In: Windsor F, Kelly M, Hewlett N, editores. Investigations in Clinical Phonetics and Linguistics. London: Lawrence Erlbaum; 2002. p. 107-118). No que se refere aos participantes com surdez, observaram-se valores de 13ms para [p], e de 12ms para [b](1212 Madureira S, Barzaghi L, Mendes B. Voicing contrasts and the deaf: production and perception issues. In: Windsor F, Kelly M, Hewlett N, editores. Investigations in Clinical Phonetics and Linguistics. London: Lawrence Erlbaum; 2002. p. 107-118), ou seja, a produção do [b] foi executada como [p].

Considerando tais valores para indivíduos com surdez, analisaram-se, na presente pesquisa, valores similares para [p], que variaram entre 8ms e 16ms no pré-teste; para valores de [p] no pós-teste, houve variação entre 12ms e 19ms, valores estes que demonstraram evolução e que se encontram dentro da normalidade. Em relação aos valores de [b] no pré-teste, observou-se que houve trocas de [b] por [p], porém, nos momentos de produção de [b], houve variação dos valores entre -40ms e -70ms; para valores de [b] no pós-teste, houve variação de -47ms a -125ms.

Para comparações dos valores dos formantes F1 e F2 das vogais, utilizaram-se referenciais teóricos normalizados, apresentados em um estudo sobre análise comparativa das vogais orais do português brasileiro – com enfoque aqui, na fala infantil – no qual se restringiram as diferenças fisiológicas e foram consideradas apenas as diferenças linguísticas entre a produção de crianças e adultos(1313 Brod LE, Seara IC. As vogais orais do português brasileiro na fala infantil e adulta: uma análise comparativa. Rev Linguagem & Ensino. 2013; 16(1):111-30.). De acordo com tais valores analisados pela literatura, seguem as devidas comparações:

No que tange à emissão sustentada da vogal [a], analisou-se que, de maneira geral, todas as crianças observadas demonstraram melhoras nos valores de F1 e F2 no pós-teste; afinal, observam-se modificações da amplitude do triângulo vocálico devido às alterações de [a]. Para a emissão sustentada da vogal [i], analisou-se que as crianças no pré-teste possuíam valores de F1, não obstante aos da normalidade. No entanto, o pós-teste revelou valores mais próximos àqueles propostos pelo estudo aqui embasado(1313 Brod LE, Seara IC. As vogais orais do português brasileiro na fala infantil e adulta: uma análise comparativa. Rev Linguagem & Ensino. 2013; 16(1):111-30.). Em relação aos valores de F2, observou-se melhora em todos os participantes que, apesar de pequenos, demonstraram avanço, inclusive os valores de Marta. Quanto à emissão sustentada da vogal [u], observou-se que as crianças Renata e Cláudio apresentaram valores de F1 próximos aos da normalidade, em seus pós-testes. Em relação aos valores de F2, as crianças apresentaram melhoras em seu pós-teste, em principal o participante Cláudio, que normalizou os valores de F2.

No que diz respeito à tela inicial dos jogos, informações de calibração e ajustes mínimos e máximos são requisitados, a fim de que se tornem personalizados. Segundo estudo(1414 Araújo AM. (2000). Jogos computacionais fonoarticulatórios: conceitos, instruções e aplicações. Belém: Manual, Centro Federal de Educação Tecnológica do Pará, Coordenação de Telecomunicações.), caso a frequência máxima da criança esteja diferente daquela considerada padrão médio do indivíduo ouvinte de mesmo gênero e idade, será necessário configurar valores mínimos e máximos da frequência, que permitirão à criança o controle do objeto. Isso também deve ser aplicado para as fases que exigem ajustes de intensidade. Portanto, são de suma importância os ajustes de frequência, a fim de aproximar a voz do surdo aos valores padrões dos ouvintes, pois assim “[...] teremos conteúdos espectrais suficientes para produção de todos os sons da língua, e uma voz com maior riqueza espectral a qual facilita a inteligibilidade e em consequência a comunicação oral” (1414 Araújo AM. (2000). Jogos computacionais fonoarticulatórios: conceitos, instruções e aplicações. Belém: Manual, Centro Federal de Educação Tecnológica do Pará, Coordenação de Telecomunicações.).

Quanto às configurações para as fases de treino de intensidade, analisou-se que, na etapa dos balões, todas as crianças demonstraram dificuldades para a frequência de 50 dB a 75 dB, faixa que representa valores mais próximos aos de uma fala em intensidade normal. Portanto, ao se considerar o controle alterado sobre o nível de intensidade de fala do indivíduo com surdez, tais valores vinculados ao nível de ruído de fundo possibilitarão configurar uma fase de maneira mais adequada.

Estudo que buscou desenvolver um software para terapia fonoaudiológica de crianças com surdez estabeleceu configurações iniciais semelhantes às analisadas no software VoxTraining, entre eles, o parâmetro denominado de “grava_ruído”, que caracteriza o ruído de fundo do ambiente. Após esse procedimento, o software gerará um valor em decibel (dB) e o nível de ruído de fundo será atualizado e deverá ser utilizado para fixar a intensidade inferior (valor mínimo) da fase; tal valor deverá ser fixado de 5 a 10 dB acima do nível de ruído em fases que trabalham intensidade; para as que trabalham com o parâmetro de frequência, os valores de Fo inferior e superior também deverão ser fixados após tal medição(1414 Araújo AM. (2000). Jogos computacionais fonoarticulatórios: conceitos, instruções e aplicações. Belém: Manual, Centro Federal de Educação Tecnológica do Pará, Coordenação de Telecomunicações.). Como não é fornecido nenhum tipo de manual de configurações ao ser adquirido o VoxTraining, não se sabe, ao certo, qual deve ser o procedimento após medição do ruído externo: levando em consideração o referencial teórico citado anteriormente, o critério de silêncio deveria estar, no mínimo, em 5 decibéis. A fase do atirador, por exemplo, demonstrou maior sensibilidade do microfone para captação de sons, visto que, em alguns momentos, o tiro era disparado sem emissão de fonema/som, fator este que pode estar atrelado a uma configuração inadequada.

Em suma, no começo da terapêutica, faz-se necessário utilizar valores mais abrangentes de F0 inferior e superior (ex. 100 Hz e 700 Hz) e, ao decorrer das sessões, os valores devem variar de 5 a 20 Hz. Ou seja, se o indivíduo possuir valores de F0 acima da meta, deve-se diminuir de 5 a 20 Hz a cada sessão; se os valores estiverem abaixo, deverão ser aumentados dentro dessa faixa(1414 Araújo AM. (2000). Jogos computacionais fonoarticulatórios: conceitos, instruções e aplicações. Belém: Manual, Centro Federal de Educação Tecnológica do Pará, Coordenação de Telecomunicações.).

COMENTÁRIOS FINAIS

Nesta pesquisa, observou-se que todas as crianças apresentaram diagnóstico tardio de surdez, o que, consequentemente, retardou os processos subsequentes de cuidado ao indivíduo, como atraso na colocação do implante coclear e a inserção na Libras após idade crítica de aquisição de linguagem. Portanto, as crianças deste estudo estão em processo simultâneo de aquisição da Libras como língua materna e do português oral como segunda língua, bem como possuem alterações vocais e articulatórias condizentes com suas perdas auditivas e o tempo de privação sensorial.

Os resultados sugerem que os participantes se interessam pelo software, devido à solicitação de repetição dos jogos e estes contribuem para melhor entendimento sobre o exercício vocal e articulatório a ser realizado, devido ao estímulo do feedback visual.

Mesmo considerando o número limitado de sessões e do tempo da terapêutica, os achados mostram que o trabalho com crianças surdas, utilizando jogos digitais, facilita a terapia e proporciona melhora na voz e na fala. Salienta-se, também, que a tecnologia é apenas um recurso de mediação entre o terapeuta, suas metas e o indivíduo ali presente. Portanto, por mais embasado cientificamente que seja o recurso tecnológico, não exclui o papel primordial do fonoaudiólogo.

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio para realização desta pesquisa por meio da bolsa de estudo concedida.

  • *
    Software desenvolvido por Paul Boersma e David Weenink, do Instituto de Ciências Fonéticas de Amsterdam, disponível gratuitamente em www.praat.org.
  • **
    Informação retirada do local de venda da CTS Informática. Disponível em: https://www.ctsinformatica.com.br/fonoaudiologia/voz/voxtraining-exercicios-vocais.
  • ***
    Jacobson NS, Truax P. Clinical significance: A statistical approach to defining meaningful change in psychotherapy research. Journal of Consulting and Clinical Psychology. 1991; 59(1):12-19.
  • Trabalho realizado na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp – Campinas (SP), Brasil.
  • Financiamento: bolsa concedida pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) - Código de Financiamento 001

REFERÊNCIAS

  • 1
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    27 Abr 2020
  • Aceito
    27 Jun 2021
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