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A RESTITUIÇÃO PELO ILÍCITO LUCRATIVO EM FACE DO DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE DECRESCIMENTO

Resumo

Este trabalho visa abordar o enriquecimento ilícito e lucrativo versus o decrescimento, tema de extrema importância na atualidade, já que busca alternativas à consagração do princípio constitucional da dignidade humana da pessoa, de modo que todos possam ter acesso aos mesmos direitos fundamentais. É necessária uma mudança de pensamento e atuação, abordando-se o decrescimento como um dever anexo ao dever fundamental de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Nesses termos, a continuidade dos níveis de produção sem a readaptação aos limites estabelecidos pelas autoridades competentes em matéria ambiental se traduz em ato ilícito. Os lucros daí advindos, portanto, constituem enriquecimento sem causa e devem ser destinados aos afetados diretos quando identificados e à sociedade, que suportaram a violação do seu direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Utilizou-se de ampla pesquisa bibliográfica interdisciplinar, passando desde o Direito Constitucional até o Direito Ambiental e Penal.

Palavras-chave:
enriquecimento; mudança; readequação

Abstract

This paper aims to scrutinize unjust enrichment from the perspective of degrowth, a topic of profound importance today as it presents alternatives to uphold the constitutional principle of human dignity, ensuring equitable access to fundamental rights for all. It advocates for a paradigm shift in mindset and action, positioning degrowth as an integral duty linked to the fundamental obligation of protecting an ecologically balanced environment. In this context, maintaining production levels without adhering to the environmental limits set by relevant authorities is illegal. Profits derived from such acts thus constitute unjust enrichment and should be reallocated to those directly impacted, when identifiable, and to society at large, which endures the violation of its collective right to an ecologically balanced environment. The study utilizes an extensive interdisciplinary bibliographic approach, spanning from constitutional law through environmental and criminal law.

Keywords:
change; enrichment; readjustment

Resumen

Este trabajo pretende abordar el enriquecimiento ilícito y lucrativo frente al decrecimiento, un tema de extrema importante en la actualidad por buscar alternativas a la consagración del principio constitucional de la dignidad humana, para que todos puedan acceder a los mismos derechos fundamentales. Es necesario un cambio de pensamiento y de acción, planteando el decrecimiento como un deber fundamental de proteger el ambiente ecológicamente equilibrado. En esos términos, mantener los niveles de producción sin reajustarse a los límites fijados por las autoridades ambientales competentes es un acto ilícito. Los beneficios resultantes, por tanto, constituyen un enriquecimiento injusto y deben asignarse a los directamente afectados cuando sean identificados y a la sociedad, que ha soportado el peso de la violación de su derecho difuso a un ambiente ecológicamente equilibrado. Se ha recurrido a una amplia investigación bibliográfica interdisciplinar, que abarca desde el Derecho constitucional hasta el Derecho ambiental y penal.

Palabras clave:
enriquecimiento; cambio; readaptación

Introdução

Diante das novas imposições da comunidade internacional por adequações nos níveis de produção e consumo em face das mudanças climáticas e da necessidade de promoção do equilíbrio ambiental, volta-se à busca por mecanismos jurídicos e políticos que façam frente a essas inquietações e que, sobretudo, adaptem nosso padrão de vida aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).

Nesse cenário, o exercício da atividade econômica se sujeita à necessidade de preservação dos recursos naturais (art. 170, da CF). No entanto, alguns setores da economia orientam suas atividades exclusivamente em direção aos seus interesses econômicos, e esse modo de operar tem sido respaldado por algumas correntes de pensamento que chegaram à academia e que hoje tornam necessária a desconstrução de falsos consensos.

A doutrina especializada aponta que a economia é um lugar neutro no qual, ao invés de focar o que “deveria ser”, mantém-se naquilo que “é” e, portanto, despido de valores, desprovido no centro do projeto econômico, em um movimento iniciado durante o século XX, especialmente a partir da influência do pensamento liderado por Milton Friedman e pela Escola de Chicago. Assim, economia como ciência do comportamento humano, referenciada à relação entre fins e meios escassos, tem sido abordada em modo unidirecional para um único comportamento resumido no ser humano econômico racional.

No entanto, o desenvolvimento tecnológico e o crescimento econômico do século XX foram sucedidos pela crescente percepção dos impactos ambientais das diversas atividades produtivas. Nesse contexto, os novos anseios ambientalistas e os alertas sobre a necessidade de proteção ao meio ambiente passaram a ser concebidos como entraves àquilo que se convencionou chamar de desenvolvimento.

Além disso, a própria neutralização da economia acarretou a captura de termos e anseios dos ambientalistas. Assim, o mantra “crescimento sustentável” virou lugar comum na boca dos tecnólogos, muitos deles até mesmo ligados às grandes empresas e a governos desejosos do incremento do PIB, e que, por fim, não se mobilizam efetivamente em ações para a melhoria do meio ambiente, ao contrário, preocupam-se mais com a manutenção do crescimento da produção.

Esse cenário permitiu que algumas atividades empresariais fossem intensificadas, bastando que viabilizassem a remuneração de investidores e o incremento do PIB, em uma nociva simbiose entre os interesses do mercado e de governos. Assim, a despeito de inúmeras consequências nocivas ao meio ambiente, as atividades econômicas são sacralizadas, bastando que incrementem o PIB e gerem lucros aos investidores.

Diante desse cenário, buscando a melhoria das atuais condições ambientais do planeta, os 193 países que fazem parte das Nações Unidas firmaram os ODS da ONU, pauta esta que faz parte da Agenda 2030. Entre esses objetivos estão o combate às alterações climáticas, a proteção e a recuperação dos ecossistemas, o combate à desertificação e a promoção de consumo e produção sustentáveis.

Diante desses objetivos é necessário que o Brasil repense o modo de operação das atividades econômicas, a fim de enquadrá-las no modelo já alinhado pelo constituinte, especialmente no que se refere à proteção ao meio ambiente e ao tratamento não parasitário dos recursos naturais. É preciso que a atividade produtiva preencha os requisitos exigidos pela Constituição e não seja desenvolvida por meio do abuso de direito.

Não existe um “direito adquirido à degradação ambiental”, ainda que as atividades causadoras de impactos possam gerar incremento do PIB, aumento das exportações ou mesmo a criação de empregos. É equivocado o pensamento de que há determinado grau de poluição aceitável, como se a degradação do planeta fosse um ônus que fatalmente deva ser suportado em nome de um “bem maior”, isto é, o desenvolvimento econômico de alguns setores.

Se um resultado superavitário fosse o suficiente para permitir o desenvolvimento de um negócio, seria possível alocar nessa categoria certas atividades como a produção de psicotrópicos e o comércio de drogas, atividades que – a despeito da flagrante ilicitude – também movimentam a economia e necessitam de mão de obra.

Essa inusitada comparação permite demonstrar que algumas atividades – por sua aceitação social – não são perceptivelmente ilícitas, como o tráfico de drogas, por exemplo, a ponto de despertar o choque para quem analisa o fato social, mas nem por isso deixam de acarretar impactos tão ou mais negativos do que o consumo de drogas.

Os impactos ambientais causam repercussão intergeracional, comprometendo não apenas a qualidade de vida atual, mas também a produtividade dos solos e a eficácia regenerativa dos recursos naturais, a capacidade da terra de continuar gerando frutos, a qualidade da água e do ar e a viabilidade de vida saudável às populações vindouras.

Assim, a presente pesquisa busca investigar a ilicitude progressiva de certas atividades econômicas no atual momento histórico, as quais, a despeito de sua licitude original, transformaram-se em inconstitucionais, atraindo o dever de decrescimento em face dos seus provedores. É o que ocorre, por exemplo, com a pecuária de larga escala nos estados do Sudeste e Região Amazônica e com a monocultura do eucalipto em regiões do estado do Espírito Santo.

Perante as consequências dessas atividades no meio ambiente e dos atuais conhecimentos científicos correlatos, não é mais possível considerá-las lícitas, quiçá constitucionais, por ofensa incontornável ao direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Assim, este artigo analisa a juridicidade de medidas que desincentivem as atividades poluidoras diante do atual cenário em que a mera tutela reparatória da responsabilidade civil ou a atuação meramente repressiva do Poder Judiciário e do Ministério Público, a partir do ideário do Estado-Corporação 1 1 O Estado-Corporação não é orientado pelos interesses dos cidadãos, que vão às urnas eleger seus mandatários, mas dos conglomerados que detêm o poder econômico e, agora, exercem o poder político de fato. Entre esses interesses estão a desregulamentação ambiental, o loteamento político e o esvaziamento finalístico dos órgãos ambientais, a liberação de atividades poluidoras, autorização para uso de novos agrotóxicos, ausência de fiscalização do desmatamento etc. , mostram-se pouco efetivas para a melhoria das condições ambientais.

Para tanto, a pesquisa realizada para este estudo foi conduzida por meio de consulta bibliográfica de obras e artigos científicos sobre a matéria, bem como dados divulgados por institutos de pesquisa como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e análise da legislação brasileira pertinente, em método dedutivo. Desse modo, partindo-se da premissa de que a atividade e o desenvolvimento econômico não têm sido focados e ganham força sem causar prejuízos ao meio ambiente, e que isso leva a danos potencialmente irreparáveis sem que os causadores sejam devidamente responsabilizados e reparem adequadamente o estrago, este estudo, por meio do processo de análise dos elementos mencionados, examinou: as novas imposições da comunidade internacional relacionadas à adequação nos níveis de produção e consumo em face das mudanças climáticas, na promoção da proteção ao meio ambiente; os possíveis mecanismos jurídicos e políticos que equilibrem o exercício da atividade econômica e a necessidade de preservação dos recursos naturais, com adaptação aos meios de garantir o desenvolvimento sustentável; as possíveis formas de reparação do dano causado, suficiente tanto para inibir condutas violadoras dos princípios sobre direito ambiental quanto para punir as ações e garantir que o dano seja efetivamente reparado no âmbito da responsabilidade civil, sob o ponto de vista da tutela restituitória em face do descumprimento do dever de decrescimento e enriquecimento ilícito do empresário.

Nesse contexto, a postura direcionada pelo âmbito da responsabilidade civil tradicional reforça o comportamento transgressor fundado pela ideia de “custo-benefício” das atividades danosas ao meio ambiente. Paga-se o preço (a multa, as astreintes, ou outros tipos de sanções) para continuar poluindo, à medida que continue sendo mais vantajoso poluir, ou seja, à medida que as sanções sejam menos vultosas (e até mesmo mais improváveis) que as vantagens competitivas e os lucros que se conseguem obter com as atividades poluidoras. Isso quando as investigações e punições efetivamente ocorrem, o que se torna cada vez mais raro diante da captura do Estado-Corporação pelos interesses dos conglomerados econômicos.

Nesse cenário, a mutação dos valores sociais promovida pelo desenvolvimento científico e intelectual também traz complexidade ao quadro, de modo que atividades anteriormente concebidas como lícitas não podem mais ser assim tratadas, mediante novos paradigmas ecológicos. Pelo contrário, a defesa da dignidade ontológica ou intrínseca – com a superação da concepção relacional de dignidade humana – fortalece a fundamentação para a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, pois afasta a noção de instrumentalização da vida. Além da relevância para a ética privada, a dignidade humana é valor que viabiliza a convivência social harmônica e a geração de bem-estar coletivo, sem que essa noção diminua a importância que se tem reservado aos valores biocêntricos.

À medida que o mundo passa por uma releitura sobre os limites da utilização dos recursos naturais, atividades que esvaziam biomas, deterioram a qualidade do ar e emitem quantidades consideráveis de gases do efeito estufa (GEE) não podem ser toleradas da mesma maneira que no passado, e o meio ambiente ecologicamente equilibrado hoje se consolida como direito fundamental. Perante esse novo estado de coisas, surge a necessidade de decrescimento em relação a essas atividades econômicas, tema que provoca a repulsa dos grandes poluidores ambientais, que têm a seu lado o poder econômico, a mídia e, atualmente no Brasil, o próprio Estado-Corporação.

O grande desafio seria justamente a mudança por parte não somente das pessoas, mas também dos dirigentes, logo, o principal objetivo é buscar alternativas a essa problemática enfrentada, um meio termo, visando a uma melhoria de vida para a população e a continuidade da exploração dos meios disponíveis, porém de forma consciente. Velhas práticas e políticas sendo “renovadas” fazem parte do jogo democrático, mas, nesse contexto, enquanto os agentes econômicos estão em mora com a agenda ambiental, vislumbra-se uma nova concepção de responsabilização pelo ilícito lucrativo encontrada no direito comparado e que timidamente ingressa no cenário jurídico brasileiro. Essa responsabilização, concebida em verdade como “pretensão restituitória”, conduz a proteção ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado a um novo patamar, por meio da efetivação do dever de decrescimento em relação às atividades parasitárias altamente nocivas, sendo sua adoção pelo direito brasileiro uma alternativa para evitar o colapso ambiental em níveis local e global.

1 O direito ao meio ambiente equilibrado e os desafios da pesquisa no Direito

A preocupação do ordenamento jurídico brasileiro com o meio ambiente é fato recente. Até a década de 1980, nem sequer havia uma legislação que tratasse o tema de maneira assertiva, reduzindo-se o tratamento da matéria ambiental aos seus aspectos civis e patrimoniais, como os relativos ao direito à vizinhança, por exemplo. Apenas em 1981, com o advento da Lei n. 6.981/81 é que se iniciou a sistematização jurídica dos anseios sobre a proteção ambiental, sendo instituída a Política Nacional do Meio Ambiente (Brasil, 1981BRASIL. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1981. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
). Isso se deu após o aumento dos debates no plano internacional, especialmente após a Conferência de Estocolmo de 1972.

De acordo com Brasil ( 1981BRASIL. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1981. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
), o meio ambiente é juridicamente concebido como o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas (art. 3º). Assim, o Direito é instado a trazer para os seus domínios outras áreas do conhecimento humano, como a física, a química e a biologia, desafiando o pesquisador que busca se aprofundar nas questões relativas ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e aos desastres ambientais. Segundo Moreira ( 2008MOREIRA, N. C. Constitucionalismo dirigente no Brasil: em busca das promessas descumpridas. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, n. 3, p. 87-128, 26 jun. 2008. Disponível em: https://sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/54/51 . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://sisbib.emnuvens.com.br/direitose...
, p. 96), “a releitura de velhas práticas é inerente à própria democracia e sua contínua reinvenção, por meio da reinstituição permanente do social e político e da criação contínua de direitos e deveres”.

Além disso, o meio ambiente é composto não apenas pelo meio ambiente natural, mas, ainda, pelo meio ambiente artificial, o meio ambiente cultural e o meio ambiente do trabalho, estes últimos impactados pelas formas como o primeiro é conduzido e gerido pelo ser humano. Além disso, o caráter transfronteiriço (princípio da ubiquidade) que marca os incidentes ambientais torna ainda mais complexo e preocupante o tratamento do tema.

O pesquisador do direito ambiental precisa transitar por diversas áreas do conhecimento, tratando dos problemas jurídicos a partir de conceitos e dados alicerçados em outras disciplinas, ressaltando-se o caráter interdisciplinar das pesquisas. Dessa forma, o desafio também compreende a coleta de dados em fontes confiáveis e isentas de interesses ou manipulações que possam comprometer o direcionamento dos trabalhos. Compreende-se este como o grande desafio.

2 A poluição e o poluidor para o Direito brasileiro

Com relação a desastres ambientais e atividades poluidoras, é importante delimitar o conceito de poluidor, ou seja, o sujeito ativo das condutas que causam a degradação ambiental. Segundo o art. 3º, IV, da Lei n. 6.938/81, o poluidor é a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental (Brasil, 1981BRASIL. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1981. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6938.htm . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
).

O direito brasileiro concebe, ainda, como “poluição” a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que, direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos (art. 3º, III, da Lei n. 6.938/81).

Assim, a poluição é resultado da atividade do ser humano e não dos fluxos ecológicos naturais. Poluidor e poluição, portanto, são conceitos baseados na postura do homem perante o planeta, resultado de processos racionais decisórios e de deliberação consciente.

No Brasil dois graves fenômenos que degradam o meio ambiente são a emissão de gases do efeito estufa e a desertificação de solos, causados especialmente pelas atividades empresariais da pecuária e da monocultura do eucalipto. Além do impacto ambiental e do descumprimento das obrigações do País no plano internacional, essas atividades causam graves problemas sociais, uma vez que dificultam o desenvolvimento da agricultura familiar. Os agricultores familiares e os camponeses, por sua vez, são afetados pelo esvaziamento dos recursos naturais e pela submissão das suas práticas às técnicas impostas por grandes empresas e laboratórios, únicos capazes de fazer frente à produção em ambientes degradados pelo esvaziamento dos recursos naturais e da fertilidade do solo. A aquisição de insumos, adubos, agrotóxicos e sementes transgênicas muitas vezes acaba sendo a única opção para quem precisa ver a lavoura florescer.

Esse círculo vicioso de esvaziamento da fertilidade e dos recursos naturais, que requer a utilização de um número cada vez maior de insumos agrícolas, somado à ausência de políticas públicas para a proteção ambiental, faz da pecuária industrial e de exportação e da monocultura do eucalipto atividades transformadas em condutas ilícitas. Isso se mostra ainda mais claro diante dos indicadores divulgados por oportunidade da assinatura do Protocolo de Kyoto e do Acordo de Paris em relação ao aquecimento global e diante dos ODS estabelecidos pela ONU. Para além dos indicadores e objetivos estabelecidos no plano internacional, não se pode conceber ações ou omissões humanas que esvaziam o meio ambiente como juridicamente aceitáveis, sobretudo quando se estabelece o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental de todos.

Um dos princípios proclamados pela “Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” (Rio-92) consigna que, “a fim de atingir o desenvolvimento sustentável, a proteção do ambiente deverá constituir parte integrante do processo de desenvolvimento e não poderá se considerar em forma isolada” (United Nations, 1993UN – UNITED NATIONS. Report of the United Nations Conference on Environment and Development: Rio de Janeiro, 3-14 June 1992. v. I. Resolutions Adopted by the Conference. United Nations, New York, 1993. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N92/836/55/PDF/N9283655.pdf?OpenElement . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDO...
, p. 4, tradução livre). Nesse sentido milita o chamado “princípio da consideração da variável ambiental no processo decisório de políticas de desenvolvimento”, para o qual seria descabida a justificação da manutenção de certas atividades produtivas com base exclusivamente no incremento da economia, das exportações e na valorização de commodities, por exemplo, sem levar em consideração as consequências dessa atividade para o planeta e para os objetivos mundiais relativos à sustentabilidade.

3 A incompatibilidade do produtivismo com a sustentabilidade ambiental

A “Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” proclama em seus princípios que “o direito ao desenvolvimento deve exercer-se de forma tal que responda equitativamente às necessidades de desenvolvimento e ambientais das gerações presentes e futuras” (United Nations, 1993UN – UNITED NATIONS. Report of the United Nations Conference on Environment and Development: Rio de Janeiro, 3-14 June 1992. v. I. Resolutions Adopted by the Conference. United Nations, New York, 1993. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N92/836/55/PDF/N9283655.pdf?OpenElement . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDO...
, p. 3, tradução livre).

Muito se fala em responsabilização por danos ambientais, porém nada se discute acerca da erradicação ou mitigação significativa de atividades que, a despeito da larga rentabilidade, degrada a vida humana e o planeta, como é o caso emblemático da criação de gado bovino e da monocultura do eucalipto em algumas regiões do País. Nesse aspecto, os discursos fundados nos dogmas da liberdade econômica e do incremento do PIB têm acarretado um vicioso e falacioso círculo que atravanca o desenvolvimento jurídico da proteção ambiental.

O entrave para o enfrentamento da questão paira já no campo do discurso e das chamadas “falácias do consenso” (Freitas, 2019FREITAS, J. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2019., p. 156). Ao invés de se cogitar a cessação de algumas atividades, as soluções são reduzidas às tentativas de minimizar os danos causados. Por vezes surgem notícias sobre pesquisas acerca de tecnologias supostamente capazes de minimizar as consequências ambientais da pecuária e do eucalipto, mas, de maneira obsequiosa aos agentes econômicos, nada de robusto acontece, seja por inviabilidade técnica, seja pelos altos custos que acarretam ao produtor.

Esse cenário é consolidado não apenas pela ação dos agentes econômicos privados, mas especialmente pelo discurso dos governantes, que sacralizam o PIB e constroem a falácia de que “quanto maior a produção, maior será o desenvolvimento social”. Já se defendeu, inclusive, que “um crescimento econômico exponencial seria capaz de ajudar a desfazer os danos ambientais provocados nos primeiros anos do crescimento” (Raworth, 2019RAWORTH, K. Economia Donut. Rio de Janeiro: Zahar, 2019., p. 225).

Em estudo sobre as projeções do agronegócio no Brasil, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) indicou que entre os objetivos daquela pesquisa estava a “indicação de direções do desenvolvimento para os principais produtos do agronegócio” e “estruturar visões de futuro do agronegócio no contexto mundial para que o País continue crescendo e conquistando novos mercados” (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Projeções do Agronegócio: Brasil 2017/18 a 2027/28. Projeções de longo prazo. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Brasília, Secretaria de Política Agrícola, MAPA/ACE, 2018. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/politica-agricola/todas-publicacoes-de-politica-agricola/projecoes-do-agronegocio/banner_site-03-03-1.png/@@download/file . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://www.gov.br/agricultura/pt-br/ass...
, p. 6).

Verifica-se no estudo do MAPA que o pressuposto das pesquisas realizadas sobre o agronegócio é a “necessidade de expansão de mercado” sem ressalvas: não se encontra naquele material nenhum contraponto relativo à preservação ambiental e à sustentabilidade – justamente em um relatório sobre atividades que mais poluem e causam danos ao meio ambiente no País. O primordial, segundo o estudo, é a expansão do mercado. Eis o cenário apontado pelo órgão (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Projeções do Agronegócio: Brasil 2017/18 a 2027/28. Projeções de longo prazo. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Brasília, Secretaria de Política Agrícola, MAPA/ACE, 2018. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/politica-agricola/todas-publicacoes-de-politica-agricola/projecoes-do-agronegocio/banner_site-03-03-1.png/@@download/file . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://www.gov.br/agricultura/pt-br/ass...
, p. 7):

O ano de 2017 foi excepcional para a agricultura brasileira. O País teve uma produção recorde de grãos alcançando 237,6 milhões de toneladas para uma área plantada de 61,0 milhões de hectares. Outro resultado positivo foi o crescimento do PIB agropecuário de 13,0% no ano, enquanto o PIB da economia foi de 1,0%. Este ano não deve repetir os resultados de 2017, mas as informações divulgadas pelo IBGE mostram que o PIB acumulado nos últimos 4 trimestres deste ano cresceu 1,3% enquanto a agropecuária teve aumento de 6,1%, Indústria 0,6% e Serviços, 1,0% (trimestres acumulados iniciando em abril de 2017 até março de 2018). A safra de grãos 2017/18, divulgada em julho pela CONAB, 228,5 milhões de toneladas, e IBGE, 227,9 milhões de toneladas está pouco abaixo da obtida em 2017, 237,7 milhões de toneladas, segundo a CONAB e 240,6 milhões conforme o IBGE.

Quanto ao ano de 2022, verifica-se em pesquisa do IPEA um discurso otimista sobre as conclusões de que o agronegócio segue prosperando (Kreter; Pastre; Servo, 2022KRETER, A. C.; PASTRE, R.; SERVO, F. Comércio exterior do agronegócio: fevereiro de 2022. Carta de Conjuntura, n. 54, nota de conjuntura 30. Brasília, DF: IPEA, mar. 2022. Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/conjuntura/220323_cc_54_nota_30_comex_agro.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia...
, p. 1):

O agronegócio brasileiro fechou fevereiro de 2022 com superávit na balança comercial de US$ 9,3 bilhões, crescimento de 78,8% frente a fevereiro de 2021 e de 20,8% frente a janeiro de 2022 (tabela 1). O valor das exportações do setor correspondeu a 45,9% do total exportado pelo Brasil neste mês, ou US$ 10,5 bilhões (gráfico 1), enquanto as importações representaram apenas 6,6%, ou US$ 1,2 bilhão (gráfico 2), aumento de 64,5% e 2,0%, respectivamente, frente ao mesmo mês do ano anterior. O resultado do agronegócio contribuiu de forma positiva e decisiva para a balança comercial total, que considera os produtos de todos os setores, encerrando fevereiro com superávit de US$ 4,0 bilhões.

Verifica-se que o discurso oficial do Estado promove a criação de uma falsa ideia de que o crescimento da produção e das exportações refletirá também em melhorias para a qualidade de vida e para o desenvolvimento social. Trata-se da criação de uma “falácia do consenso”, expressão trazida por Freitas ( 2019FREITAS, J. Sustentabilidade: direito ao futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2019., p. 156), de acordo com o qual busca-se dar suporte a decisões irracionais por meio da criação artificial de um “falso consenso”.

Ainda segundo o estudo do IPEA, verifica-se a comemoração do governo em relação a alta dos preços: “a balança comercial de fevereiro reforça a tendência de alta em valor nas exportações do agronegócio observada já em janeiro de 2022. A maior parte das commodities agropecuárias vem apresentando recuperação nos preços” (Kreter; Pastre; Servo, 2022KRETER, A. C.; PASTRE, R.; SERVO, F. Comércio exterior do agronegócio: fevereiro de 2022. Carta de Conjuntura, n. 54, nota de conjuntura 30. Brasília, DF: IPEA, mar. 2022. Disponível em: https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/conjuntura/220323_cc_54_nota_30_comex_agro.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://portalantigo.ipea.gov.br/agencia...
, p. 5).

É patente que o tamanho do PIB e o volume das exportações não têm sido proporcionais à distribuição de renda no País. Pelo contrário, nos últimos anos, verificou-se o aumento da concentração de renda e o retorno do Brasil ao Mapa da Fome. Em 2021, eram 19 milhões de pessoas passando fome e, em 2022, esse número passou para 33 milhões, mesmo período em que a produtividade do agronegócio nunca esteve tão próspera, revelando um cenário em que poucos se beneficiam e muitos arcam com os ônus – degradação ambiental e aumento do preço dos alimentos que se transformam em commodities. 2 2 Como os danos são transfronteiriços, não apenas a população brasileira, mas todo o globo sofre com os ataques ao meio ambiente. Além disso, são danos intergeracionais, de modo que mesmo as populações vindouras sofrerão os impactos do que se pratica hoje, condenando, portanto, o chamado “direito ao futuro”.

Nesse cenário verifica-se que algumas atividades, como a pecuária empresarial, não se justificarão nem mesmo sob o viés do combate à fome, já que a agropecuária brasileira tem servido mais aos interesses do mercado financeiro ( commodities) 3 3 As empresas pecuaristas brasileiras têm acentuada conexão com o mercado internacional, mantêm escritórios no exterior e departamentos especializados na gestão de commodities , o que reafirma cada vez mais a superação do argumento de que a pecuária se presta ao combate à fome e aos interesses nacionais (Moitinho, 2022 ). do que para levar comida à mesa ou melhorar as condições sociais do povo (Daher, 2019DAHER, R. Continuamos e continuaremos sendo o Brasil das Commodities. Carta Capital, 14 ago. 2019. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/continuamos-e-continuaremos-sendo-o-brasil-commodities/ . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://www.cartacapital.com.br/opiniao/...
). Segundo Raworth ( 2019RAWORTH, K. Economia Donut. Rio de Janeiro: Zahar, 2019., p. 44-45), a economia passou a se tornar um lugar neutro, “uma zona despida de valores, livre de reinvindicações normativas daquilo que deveria ser e emergindo, por fim, como ciência ‘positiva’ focalizada em simplesmente descrever aquilo que é” e na economia foi criado “um vácuo de objetivos e valores, deixando um ninho desguarnecido 4 4 Segundo Raworth ( 2019 , p. 42), “os cucos são pássaros astutos. Em vez de criar os próprios filhotes, eles sub-repticiamente põem seus ovos nos ninhos desguarnecidos de outros pássaros. Os desavisados pais adotivos chocam devidamente o ovo do intruso junto com os seus. Mas o filhote de cuco nasce mais cedo, chuta os outros ovos e filhotes para fora do ninho, depois emite rápidos chamamentos de forma a imitar um ninho cheio de crias esfomeadas. Essa tática de conquista dá certo: os pais adotivos alimentam diligentemente o avantajado inquilino à medida que ele vai se tornando absurdamente grande, extrapolando os limites do pequeno ninho que ocupou. Trata-se de uma poderosa advertência para outros pássaros: deixe o seu ninho desguarnecido e ele poderá muito bem ser sequestrado. Trata-se também de uma advertência para a economia: perca de vista seus objetivos e alguma outra coisa pode muito bem tomar sub-repticiamente o seu lugar”. no cerne do projeto econômico” (Raworth, 2019RAWORTH, K. Economia Donut. Rio de Janeiro: Zahar, 2019., p. 45).

De modo geral, os países têm se esquivado da implementação de mudanças efetivas na produção e no consumo, e de maneira peculiar os países em desenvolvimento, diante da equivocada ideia de que a questão ambiental é um luxo a que as nações periféricas não podem se ater. Os países têm lidado com a questão ambiental com uma lógica unidirecional de mercado, conduzindo-a sob o prisma das “externalidades negativas” a serem administradas com instrumentos próprios de mercado, como cotas e impostos, a exemplo dos créditos de carbono (Raworth, 2019RAWORTH, K. Economia Donut. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.). O discurso que circunda a temática do direito ao meio ambiente equilibrado está, assim, fortemente desvirtuado, uma vez que se olha primeiro para o impacto no mercado, depois para o que se pode fazer em termos ambientais e sociais. Tudo isso sob o falacioso discurso de que “a produtividade vai acarretar benefícios a todos”.

4 Decrescimento econômico – uma imposição dos novos tempos

A noção de desenvolvimento sustentável surgiu na segunda metade do século XX, especialmente durante a Conferência de Estocolmo de 1972, sem que se tenha logrado êxito para aquilo que se propunha, como a melhoria efetiva na vida e na saúde do cidadão e na qualidade do meio ambiente. O conceito foi desvirtuado e utilizado para envernizar pseudopolíticas públicas ambientais, sobretudo diante da negligência dos estados.

Paralelamente, o conceito de decrescimento econômico, utilizado pela primeira vez pelo francês André Gorz, em 1972, foi uma resposta ao relatório “Limites do Crescimento”, utilizando como base a teoria de Georgescu-Roegen ( 1971GEORGESCU-ROEGEN, N. The Entropy Law and the Economic Process. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1971.), que criticava os dogmas da economia clássica e a busca pelo incessante crescimento. Gorz ( 1972GORZ, A. Technical Intelligence and the Capitalist Division of Labor. Telos Summer, Candor, n. 12, p. 27-41, 1972.) apontava o crescimento zero (ou decrescimento) como medida necessária ao estado atual de degradação ambiental do planeta (Georgescu-Roegen, 1971GEORGESCU-ROEGEN, N. The Entropy Law and the Economic Process. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1971.).

O intelectual foi marginalizado pelos cientistas à época, uma vez que suas ideias rompiam com o sistema vigente, já que não tratavam apenas os sintomas, mas visavam arrefecer as consequências que os níveis de produção acarretavam. De acordo com Cesar ( 2019CESAR, C. E. F. S. As inovações sociais e o decrescimento: uma análise integrativa. 2019, 107 fl. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2019. Disponível em: http://www.realp.unb.br/jspui/bitstream/10482/37067/1/2019_Cec%c3%adliaEstelaFerreiradaSilvaCesar.pdf . Acesso em: 17 dez. 2023.
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), suas ideias não se contentavam em aceitar os níveis de desenvolvimento econômico como pressupostos para quaisquer outras ações.

Esquecido por um tempo, especialmente durante as crises econômicas das décadas de 1970 e 1980, o conceito de decrescimento foi retomado nos anos 2000, na França, “como movimento social e sob a forma de protesto que busca cidades livres de carros, refeições ao ar livre, cooperativas para a produção de alimentos e era contra a propaganda” (Cesar, 2019CESAR, C. E. F. S. As inovações sociais e o decrescimento: uma análise integrativa. 2019, 107 fl. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2019. Disponível em: http://www.realp.unb.br/jspui/bitstream/10482/37067/1/2019_Cec%c3%adliaEstelaFerreiradaSilvaCesar.pdf . Acesso em: 17 dez. 2023.
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, p. 35). Além da França,

o movimento decrescimento foi adotado por ativistas na Itália ( decrescita , termo em italiano), em 2004, e na Espanha ( decrecimiento , termo em espanhol), em 2006. O decrescimento foi oficialmente incorporado como tema de pesquisa internacional na Conferência Degrowth realizada em Paris no ano de 2008. Seu conceito originou-se do entendimento de que as atitudes da sociedade em busca do crescimento são, na verdade, totalmente incompatíveis com o meio ambiente (Cesar, 2019CESAR, C. E. F. S. As inovações sociais e o decrescimento: uma análise integrativa. 2019, 107 fl. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2019. Disponível em: http://www.realp.unb.br/jspui/bitstream/10482/37067/1/2019_Cec%c3%adliaEstelaFerreiradaSilvaCesar.pdf . Acesso em: 17 dez. 2023.
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, p. 35).

Nessas idas e vindas, foi com as contribuições do filósofo francês Serge Latouche que o decrescimento econômico ganhou notoriedade e ultrapassou as barreiras do ambiente acadêmico, tornando-se um movimento político. O movimento se apresenta como um potencial meio para garantir o progresso social equânime e equilibrado e o estabelecimento da cidadania, a começar pela terminologia empregada (decrescimento) que, por si só, não permite a sua captura pelo sistema capitalista dominante (como ocorreu com o desenvolvimento sustentável), pois está ligado à ideia de combate ao desenvolvimento econômico em sua totalidade (Dourado; Grande, 2020DOURADO, N. P.; GRADE, M. Decrescimento e bem viver: paradigmas para o mundo pós-pandemia? Revbea, São Paulo, v. 15, n. 4, p. 380-401, 2020.).

Apesar de sua captura pelo sistema, o termo “sustentabilidade”, empregado isoladamente e divorciado do termo “desenvolvimento”, é relevante aos objetivos do decrescimento econômico, já que sustentabilidade e decrescimento se sucedem e se complementam. A sustentabilidade está ligada à ideia de preservação do ecossistema e de promoção de uma vida equilibrada, de modo a garantir às futuras gerações as mesmas possibilidades de fruição de que as gerações atuais dispõem.

Considera-se o decrescimento um movimento posterior e complementar à sustentabilidade, pelo qual a sociedade deve promover uma virada estrutural de paradigmas no estilo de vida, na produção e no consumo, de modo a descolonizar o imaginário quanto ao significado de desenvolvimento e de qualidade de vida (Hulse, 2017HULSE, L. O decrescimento como saída da crise. Revista Humus, São Luís, v. 7, n. 19, p. 185-196, 2017.). Segundo Cesar ( 2019CESAR, C. E. F. S. As inovações sociais e o decrescimento: uma análise integrativa. 2019, 107 fl. Tese (Doutorado em Administração) – Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2019. Disponível em: http://www.realp.unb.br/jspui/bitstream/10482/37067/1/2019_Cec%c3%adliaEstelaFerreiradaSilvaCesar.pdf . Acesso em: 17 dez. 2023.
http://www.realp.unb.br/jspui/bitstream/...
, p. 12), o decrescimento

é uma crítica ao crescimento como um objetivo social, ou seja, a crítica a um sistema socioeconômico baseado em uma lógica de crescimento indefinido. Propõe-se um conjunto de mudanças institucionais e estruturais capaz de garantir bem-estar social com o uso de menos materiais e energia. Propõe-se também que a descentralização, o aprofundamento das instituições democráticas e a repolitização da economia sejam seus principais objetivos, ao lado da redução do consumo e da produção.

Amado ( 2016AMADO, F. Direito ambiental esquematizado. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016., p. 68), por sua vez, aduz que:

O decrescimento é um slogan político que tem como objeto romper com o produtivismo. Tem como meta, sobretudo, insistir no abandono do crescimento econômico pelo crescimento. Sob o decrescimento se agrupam aqueles que têm realizado uma crítica radical ao desenvolvimento e que querem desenhar os contornos de um projeto alternativo para uma política de pós-desenvolvimento. É uma proposição necessária para reabrir o espaço da invenção e da criatividade bloqueada pelo totalitarismo economicista, desenvolvimentista e progressista. Para os adeptos do decrescimento, o desenvolvimento econômico longe de ser o remédio para os problemas sociais e ecológicos é a origem deles e por isso deve ser analisado e denunciado como tal.

Assim, se a sustentabilidade é uma tentativa de aproximar o sistema capitalista dos objetivos ambientalistas, o decrescimento é um movimento que visa refundar o próprio sistema, remodelar a noção de produção e o significado de consumo. Se a sustentabilidade busca realinhar o sistema, o decrescimento busca revolucioná-lo. Assim, insta verificar se a adoção do modelo de decrescimento econômico encontra respaldo no ordenamento jurídico ou se afrontaria as normas constitucionais, como aquela que estabelece os valores da livre iniciativa como fundamento da República.

Embora não tenha sido adotada expressamente no texto constitucional, a noção de decrescimento econômico se apresenta como uma decorrência do dever fundamental de proteção ao meio ambiente, diante do cenário e das mutações sociais que a sociedade enfrenta, o que fica mais claro quando são analisados os ODS da ONU ligados à preservação ambiental.

A fundamentalidade do decrescimento econômico dialoga com a noção de dignidade humana, direito à vida e ao meio ambiente equilibrado, de maneira que, se houver busca pela proteção destes, haverá necessariamente que se pensar em decrescimento econômico. Não é possível efetivar os direitos fundamentais consentâneos aos ODS da ONU sem a implementação do decrescimento em áreas econômicas específicas.

O decrescimento, que visa refundar o pensamento tradicional dominante, reinterpretando o sentido de desenvolvimento, estabelece em seu conteúdo a necessidade de paralisação ou de redução de certas práticas produtivas, como a indústria da pecuária, além de induzir a adoção de novas práticas e de tecnologias orientadas pela valorização da produção local e pela heterogeneidade das técnicas, das culturas e das novas demandas do consumo consciente. Segundo Latouche ( 2006LATOUCHE, S. O decrescimento como condição de uma sociedade convivial. Cadernos IHU, São Leopoldo, v. 4, n. 56, 2006., p. 5):

A sociedade de crescimento, por sua vez, também não é desejável por pelo menos três razões: ela causa um aumento das desigualdades e das injustiças, cria um bem-estar muito ilusório, não proporciona nem mesmo para os “abastados” uma sociedade convivial e sim uma antissociedade doente por causa de sua riqueza.

O decrescimento econômico é um modelo referencial, pois se contrapõe especificamente à redução do padrão desenvolvimentista tradicional, ou seja, diz respeito ao decrescimento em relação a uma situação específica posta, e não a um decrescimento genérico e irrestrito de todas as técnicas e atividades produtivas. Por outro lado, ele não resulta categoricamente na atrofia da ciência e da tecnologia, vez que também induz a implementação de novas práticas e a criação de novos nichos de produção e de consumo, especialmente diante de um contexto social no qual o cidadão busca cada vez mais uma alimentação saudável e vem exigindo um controle maior sobre a origem e a cadeia produtiva daquilo que consome.

Assim, o decrescimento tem aptidão para o incremento do trabalho e do emprego, bem como para a modernização e a ampliação de novas técnicas produtivas aos pequenos produtores e camponeses. A própria indústria alimentícia, de posse de todo o conhecimento técnico, científico e mercadológico de que dispõe, já está ciente de que o modelo dominante atual não é compatível com as novas exigências e perspectivas globais, especialmente em relação ao meio ambiente. A indústria da carne já está se adiantando em pesquisas para a produção de produtos veganos e de carne cultivada, produzida a partir da captação de células de animais e sem o abate, cultivadas fora do organismo do animal em ambiente apto ao seu desenvolvimento (Proteína…, 2022PROTEÍNA cultivada: tendência alimentar do futuro. ISTOÉ, 31 dez. 2022. Disponível em: https://istoe.com.br/proteina-cultivada-tendencia-alimentar-do-futuro/ . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://istoe.com.br/proteina-cultivada-...
).

Nesse aspecto, a agropecuária representa uma das principais ameaças ao planeta e à saúde humana, o que torna o setor ainda mais vulnerável e apto a sofrer uma ruptura em seu padrão atual. A produção agropecuária cresceu exponencialmente no Brasil; em 2016, já havia mais cabeças de gado que habitantes no País, que bateu a marca do segundo maior produtor do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Além da importância na questão da saúde humana, o decrescimento nessa área se mostra necessário devido ao alto grau de poluição ambiental que o processo produtivo acarreta. Isso ocorre porque é necessário o desmatamento de extensas áreas tanto para a pastagem quanto para o cultivo de grãos utilizados na alimentação dos animais, implicando, ainda, a utilização de água doce e a desertificação dos solos. Ademais, os dejetos dos animais são responsáveis por uma das maiores taxas de emissão de gases do efeito estufa.

Diante dos impactos ambientais e das distorções no mercado oriundas da pecuária, da monocultura do eucalipto e da produção de commodities, é importante a ruptura desse modelo para a adoção de um modelo de decrescimento econômico, concebido a partir do dever fundamental de proteção ao meio ambiente, e cujo cumprimento é pressuposto para atingir os ODS da ONU, especialmente os relativos à proteção do meio ambiente e à saúde.

Dessa forma, é essencial buscar soluções para a reorganização da produção e da mão de obra após a implementação do decrescimento. Para dar conta da reorientação do sistema de produção agroalimentar, de modo a compatibilizá-la com a proteção ambiental sem promover o desabastecimento interno e suprir as reais necessidades da população, é fundamental que o País reorganize seu modelo de produção por meio do papel dos pequenos agricultores, da agricultura familiar e com a formação de cooperativa de trabalhadores.

Pode-se apontar a organização de produção sustentável de alimentos por meio de incentivos à agricultura familiar e à formação de cooperativas de trabalhadores, como no caso de sucesso da produção de arroz orgânico pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), em assentamentos como os de Eldorado do Sul-RS, tornando-se o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. O caso é um paradigma devido à união de dois fatores essenciais à produção e ao consumo sustentáveis: 1) associação de pequenos agricultores; e 2) manejo e práticas da agricultura sustentável e da agroecologia, inclusive com produção de conhecimento técnico (Martins, 2019MARTINS, A. F. G. A produção ecológica de arroz e a reforma agrária popular. São Paulo: Expressão Popular, 2019.).

Além disso, a produção pelos povos tradicionais e povos originários também deve ser promovida, em consonância com os compromissos do Brasil no plano internacional. Segundo estabelecido na Rio-92, os princípios 22 e 23 se coadunam a esse intento (United Nations, 1993UN – UNITED NATIONS. Report of the United Nations Conference on Environment and Development: Rio de Janeiro, 3-14 June 1992. v. I. Resolutions Adopted by the Conference. United Nations, New York, 1993. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/N92/836/55/PDF/N9283655.pdf?OpenElement . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDO...
, p. 7, tradução livre):

Princípio 22: As populações indígenas e suas comunidades, bem como outras comunidades locais, desempenham um papel fundamental na classificação do meio ambiente e no desenvolvimento, devido a seus conhecimentos e práticas tradicionais.

Princípio 23: Devem proteger-se o meio ambiente e os recursos naturais dos povos submetidos a opressão, dominação e ocupação.

5 O decrescimento como dever anexo ao dever fundamental de proteção do meio ambiente

A instrumentalização dos direitos fundamentais e dos direitos humanos pressupõe a existência de deveres – sejam explícitos, sejam implícitos – e disso não se pode fugir. Outrossim, o que se deve examinar teoricamente é quais são esses deveres e quem são os seus sujeitos – se é o Estado ou o particular (Paust, 1992PAUST, J. J. The other side of right: private duties under human rights law. Harvard Human Rights Journal, Cambridge, v. 5, 1992.).

Nesse contexto, é certo que apenas ações governamentais não seriam suficientes para a efetiva garantia dos direitos fundamentais e, assim, os deveres não condizem simplesmente a uma mera restrição de direitos, mas fazem parte da necessária relação de complementariedade com as ações estatais, a fim de garantir a efetiva proteção dos direitos fundamentais. E como limite, tem-se que essa relação de complementariedade deverá ser sempre pautada por uma relação de proporcionalidade (Colnago; Pedra, 2015COLNAGO, C. O. S.; PEDRA, A. S. The digital environment, its architecture, and the right of reply: the duties of internet service providers under the Brazilian Constitution. In: STURMA, P.; BAEZ, N. L. X, et al. (ed.). International and internal mechanisms of fundamental rights effectiveness. Praga: RWW, 2015. p. 237-250.).

Para melhor compreensão sobre a fundamentalidade do dever de proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e do decrescimento, é preciso tomar como ponto de partida o conceito de dever fundamental elaborado coletivamente pelo Grupo de Pesquisa “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais”, do Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Faculdade de Direito de Vitória (Fabriz; Gonçalves, 2013FABRIZ, D. C.; GONÇALVES, L. C. S. Dever fundamental: a construção de um conceito. Joaçaba: Unoesc, 2013., p. 92):

Dever fundamental é uma categoria jurídico-constitucional, fundada na solidariedade, que impõe condutas proporcionais àqueles submetidos a uma determinada ordem democrática, passíveis ou não de sanção, com a finalidade de promoção de direitos fundamentais.

A partir desse conceito, pode-se assentar que os deveres fundamentais estão ligados ao exercício de direitos de grandeza constitucional, especialmente a promoção de direitos fundamentais. Nesse sentido, vale esclarecer que, apesar de a Constituição da República prever expressamente deveres fundamentais, tal previsão não é numerus clausus, pois em seu texto há deveres implícitos, cuja norma é extraída mediante um esforço interpretativo 5 5 De acordo com Sarlet (2009 apud Siqueira, 2010 , p. 220): “Em que pese uma análise do texto constitucional vigente na busca por deveres a fim de formar uma lista, desde logo ficou demonstrada a dificuldade de tal empreitada, em virtude da existência de deveres implícitos, que, embora haja certo consenso sobre sua existência, há dissenso sobre quais seriam eles”. . Além disso, os tratados internacionais também são fontes de deveres fundamentais – ou melhor, deveres humanos (Pedra, 2020PEDRA, A. S. Deveres humanos fundamentais estabelecidos em tratados internacionais firmados pelo Brasil. In: CYRINO, R.; NEVES, R. S. (coord.). Temas de Direito Constitucional. v. 1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p. 151-172.).

Nesse contexto, o dever fundamental de proteção ao meio ambiente traz como decorrência lógica e indissociável a necessidade de interdição de determinadas práticas que violam essa proteção, tais quais as atividades acima mencionadas. Tornam ainda mais contundentes esses deveres os compromissos assumidos pelo país no plano internacional, especialmente perante a ONU.

Outro aspecto que merece esclarecimento é o fundamento da solidariedade, que pode ser sintetizado na seguinte compreensão, conforme Duque e Pedra ( 2023DUQUE, B. L.; PEDRA, A. S. Os deveres fundamentais e a solidariedade nas relações privadas. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 147-61, jul./dez. 2013. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/345/335 . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://revistaeletronicardfd.unibrasil....
, p. 152):

A solidariedade é, na verdade, o outro lado de uma mesma moeda no jogo dos direitos e deveres, uma vez que ratifica a incidência de direitos fundamentais abrangidos pela norma constitucional, podendo ser compreendida a partir de uma relação de reciprocidade: se existem direitos, em contrapartida, existe o dever de prestar solidariedade.

Logo, na abordagem dos deveres fundamentais, o fundamento da solidariedade é tido como um compromisso pactuado entre o indivíduo vinculado ao cumprimento de determinado dever para com toda a sociedade, com o fito de promover e preservar a coesão social, como ponderou Hirsch ( 2020HIRSCH, F. P. A. O Dever Fundamental de Fraternidade e a Pandemia. In: BAHIA, S. J. C. (org.). Direitos e deveres fundamentais em tempos de Coronavírus. São Paulo: Iasp, 2020. p. 82-104., p. 85):

Deve-se esclarecer a distinção entre direitos fundamentais e deveres fundamentais. Enquanto os primeiros, como já dito, são as normas que tutelam pretensão dos indivíduos para o fim de compensar sua proteção quando ocorrem abusos por parte do Estado ou de outros particulares, os deveres fundamentais são imperativos de conduta que impõem a cada indivíduo obrigações de fazer, não fazer e tolerar com o objetivo de permitir a melhor coesão social possível.

Hoje a necessidade dessa coesão ultrapassa o âmbito interno para atingir o plano internacional. Ainda quanto à finalidade de coesão social dos deveres fundamentais, Siqueira ( 2010SIQUEIRA, J. P. F. H. Deveres fundamentais e a Constituição Brasileira. Revista FIDES, Natal, v. 1, n. 2, p. 214-225, ago./dez. 2010. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/47619838_DEVERES_FUNDAMENTAIS_E_A_CONSTITUICAO_BRASILEIRA . Acesso em: 20 dez. 2023.
https://www.researchgate.net/publication...
, p. 223) menciona:

Trata-se, portanto, de categoria jurídica que estabelece a cada indivíduo, à sociedade e ao Estado a necessidade de observância da ordem jurídica legitimamente estabelecida e de proporcionar a formação e a manutenção de uma base material que satisfaça as necessidades básicas das instituições públicas e efetiva os bens de primordial importância, para que haja o correto exercício dos direitos fundamentais.

Fixadas tais premissas, não há dúvidas de que a viabilização dos direitos fundamentais depende da observância de deveres por parte dos indivíduos e do próprio Estado e de que a evolução da sociedade e dos conhecimentos adquiridos tornam necessária a revisão da maneira como os sujeitos interagem entre si. De acordo com Pedra ( 2013PEDRA, A. S. A importância dos deveres humanos na efetivação dos direitos. In: ALEXY, R. et al. (org.). Níveis de efetivação dos direitos fundamentais civis e sociais: um diálogo Brasil e Alemanha. Joaçaba: Unoeste, 2013. p. 281-301., p. 291), “o jurista, como qualquer cientista, deve estar preparado para colocar em causa o sistema até então elaborado, para alargá-lo ou modificá-lo com base em uma melhor consideração”.

Não será possível alcançar o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o “direito ao futuro” para as gerações vindouras se as práticas dos agentes econômicos seguirem dissociados das preocupações ambientais, sobretudo dos ODS. Importa, assim, que os deveres desses agentes sejam evidenciados e as práticas predatórias cessadas, suspendendo-se a visão reduzida que a análise econômica pode oferecer à prevenção de danos e desastres ambientais.

Nesse contexto, o conceito de mutação constitucional nos conduz a uma constante revisão acerca dos fatos e do direito. Se, no passado, uma atividade realizada em escala local e sem maiores impactos ambientais hoje é exercida em escala global, para atender demandas internacionais e sem o respeito aos limites que a preservação ambiental requer, impõe-se uma revisão sobre essas práticas com base em conhecimentos científicos amplos, de vários ramos do saber, e não apenas com base na planilha de cálculos dos investidores.

Como a comunidade internacional já percebeu, o meio ambiente não espera. Segundo Pedra ( 2021PEDRA, A. S. A Constituição Viva: poder constituinte permanente e cláusulas pétreas na democracia participativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021., p. 178), “a mutação constitucional é importante para o equilíbrio entre a dinâmica e a estabilidade, por significar ao mesmo tempo uma transformação substancial e uma permanência formal”. Ainda de acordo com Pedra ( 2021PEDRA, A. S. A Constituição Viva: poder constituinte permanente e cláusulas pétreas na democracia participativa. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021., p. 179):

A necessidade de interpretar o texto está relacionada a três fatores principais. O primeiro é sua indeterminação, que pode ser involuntária ou intencional, que faz o texto portador de muitos significados. O segundo fator impõe-se devido à natureza da própria significação. Uma Constituição é aprovada por um grande número de pessoas, sendo que nem todas elas a compreenderam da mesma maneira, e não se pode dizer que determinada intenção de um constituinte é mais importante que outra. O terceiro fator relaciona-se à evolução dos conceitos políticos e sociais.

Se no passado a proteção do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado podia ser promovida com determinadas práticas, atualmente, com demanda e produção econômica imensuráveis, necessita-se de uma repactuação nas maneiras de pensar e agir economicamente.

Com isso assentado e prosseguindo no tema central desta pesquisa, pode-se afirmar que a concretização do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado depende hoje objetivamente de um “não fazer” do mercado, consubstanciado na diminuição e reelaboração do modo como são exercidas certas atividades econômicas, especialmente as mencionadas acima.

Conclui-se, assim, pela existência de um dever anexo de decrescimento dessas atividades que ainda são aceitas socialmente (por motivos econômicos) apesar de terem se tornado ilícitas. Esse decrescimento poderá ser levado a efeito com duas frentes de atuação: a) a primeira, logicamente, diminuindo-se o excedente de produção, o qual é voltado à exportação e transformado em commodities; e b) o segundo é o direcionamento dessas atividades para agrupamentos sociais cooperativos, ou seja, sociedades cooperativas de trabalhadores, em que o caráter empresarial é mitigado pela presença das características que são próprias dessas entidades.

6 A insuficiência da tutela civil ressarcitória em matéria ambiental – uma proposta de readequação: a indenização restituitória pelo ilícito lucrativo ( disgorgement)

Atualmente o direito brasileiro determina a responsabilização objetiva por dano ambiental, com base na teoria do risco integral, para as atividades de risco à saúde e ao meio ambiente. Segundo Wedy (2018):

O poluidor responde mesmo em caso de dano involuntário, e não se exige previsibilidade ou má-fé de sua parte, pois é suficiente um enfoque causal material. O empreendedor aceita as consequências de sua atividade de risco. Essa conclusão decorre notadamente dos princípios da prevenção, da precaução, do poluidor-pagador, do desenvolvimento sustentável e da equidade intergeracional. O sujeito, contudo, não responde se o dano não existir ou se não guardar qualquer relação de causalidade com sua atividade. A existência de uma atividade que possa gerar risco para a saúde e o meio ambiente é suficiente para a configuração da responsabilidade, independentemente da licitude de seu exercício. A existência de licenciamento ambiental válido ou o desempenho de uma atividade legítima não exime o causador de degradação ambiental do dever de reparação. A antijuridicidade é satisfeita com a verificação do risco.

Apesar dos avanços no tratamento da matéria da responsabilização civil (e penal) ambiental, o jurista brasileiro está arraigado aos clássicos conceitos afeitos à responsabilidade civil, que pressupõem a determinação do dano, uma ação ou omissão e um nexo causal, a respaldarem a tutela reparatória. De maneira geral, para além dos danos materiais ou morais causados, os Tribunais não têm cogitado acerca da privação nos lucros auferidos a partir da identificação das consequências ambientais em relação a atividades altamente degradantes que hoje se converteram em ilícitas.

Contudo, a noção de enriquecimento sem causa apresenta especial aderência às situações nas quais a atividade produtiva degrada o meio ambiente em detrimento dos titulares desse direito difuso, como se pretende demonstrar. Primeiro, é importante tecer algumas considerações sobre o tratamento do enriquecimento sem causa no direito brasileiro.

Um hectare de terra que passa por uma queimada, que é tratado com insumos agrícolas ou que recebe a plantação de eucalipto é fruto da decisão humana e desencadeia consequências imediatas e intergeracionais que lhes são inerentes e conhecidas pelo homem médio. Nesse contexto, o poluidor está intervindo na esfera jurídica de terceiros, agravado ainda pelo caráter transfronteiriço desses danos. A partir do momento que intervém na esfera jurídica alheia e retira lucro dessa intervenção, nasce a chamada pretensão restituitória ( disgorgement).

O dever de decrescimento se dá em um contexto no qual os lucros estão sendo privatizados e os prejuízos socializados. Se tratarmos o assunto apenas como um ilícito – a ensejar as limitadas consequências da responsabilidade civil, que se esgotam no pagamento de danos materiais ou morais – isso seria insuficiente tanto jurídica quanto faticamente, a fim de evitar novos episódios de esvaziamento dos recursos naturais e degradação ambiental.

Juridicamente porque nem sempre se está diante de um ilícito, já que há condutas e consequências indesejáveis ao ordenamento jurídico que não se enquadram no conceito de ilícito, em seu sentido usual. A matéria aqui tratada é um desses casos. Faticamente porque o crescimento desenfreado tem trazido consequências irreversíveis, irreparáveis, mostrando-se impossíveis de ressarcimento em mesma medida do prejuízo causado, de modo que, caso não seja observado o dever de decrescimento, a responsabilização civil será apenas mais um fator a ser contabilizado como “custo” e por ser insuficiente e precária sua identificação, não raras vezes, ao invés de dissuadir determinadas condutas, as incentivará por serem contabilizadas como lucrativas.

A partir dessas considerações é que se expõe a ideia de que a matéria deve ser tratada sob o prisma da restituição por ganhos indevidos, que é um ramo decorrente do regime previsto nos arts. 884 e 886 do Código Civil, que preveem o enriquecimento sem causa como gerador de obrigação de restituição do que foi enriquecido indevidamente. Trata-se de uma cláusula geral aplicável a um sem-número de exemplos e executável mediante ação in rem verso.

Rosenvald ( 2021ROSENVALD, N. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: disgorgement e a indenização restitutória. São Paulo: Juspodivm, 2021.), em estudo próprio do tema, adota com base na divisão alemã sobre o tema dois gêneros do enriquecimento sem causa: o enriquecimento decorrente de um comportamento do enriquecido e o enriquecimento dependente do comportamento do empobrecido, em que o primeiro é derivado de fato injusto, ao passo que o segundo se subdivide em enriquecimento por prestação do empobrecido, enriquecimento imposto e enriquecimento decorrente de prestação por terceiro.

A doutrina brasileira, a partir do art. 884 do Código Civil, que prevê o enriquecimento “à custa de outrem”, trata também de duas categorias. Entretanto, para a finalidade deste trabalho, interessa a que se enquadra em casos de intervenção não autorizada no uso ou gozo dos direitos de outrem gerando enriquecimento para o interventor.

Assim como em inúmeros outros casos, a ideia de ressarcimento de dano e a nebulosidade entre o lícito e o ilícito trazem respostas jurídicas de caráter repressivo pouco efetivas para o que o ordenamento tutela, que é a preservação ambiental e um desenvolvimento de atividades econômicas compatíveis com a capacidade do meio ambiente de se sustentar.

Dessa forma, a ideia de tutela restitutória, embasada na ideia do enriquecimento sem causa e já aplicável no direito estrangeiro, impõe-se ao tratamento do tema. Rosenvald ( 2021ROSENVALD, N. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: disgorgement e a indenização restitutória. São Paulo: Juspodivm, 2021., p. 335) explica que:

A tutela restitutória se dirige em face de um benefício ilícito: se a atividade propiciou lucros, a medida da restituição será a expropriação dos ganhos conexos à conduta antijurídica ( disgorgement); porém a simples economia de despesas por parte do infrator já desencadeia a restituição do “preço do consentimento” pelo montante que razoavelmente seria devido pela obtenção de uma autorização para acesso ao direito alheio.

Isso ocorre porque, para que seja respeitado o dever de decrescimento, será necessário recorrer à ideia de responsabilidade sem dano. Não significa que a conduta não tenha causado danos, apenas não será necessária à sua mensuração, que por sua vez será a do lucro obtido por meio de um ato ilícito.

Com a adoção dessa postura, duas vantagens são diretamente identificadas: a morosidade para a aferição do dano e a utilização de sucedâneos processuais não serão empecilhos para a efetiva restituição do lucro ilícito, como diferentemente ocorreria com uma eventual necessidade de verificação da exata medida da responsabilização civil; e a conduta danosa – ainda que não mensurada em sua exata dimensão – não será premiada com mera reparação civil, que muitas vezes “recompensa” o ilícito de maneira irrisória.

Segundo Rosenvald ( 2021ROSENVALD, N. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: disgorgement e a indenização restitutória. São Paulo: Juspodivm, 2021.), o dano não é elemento necessário da responsabilidade civil, mas sim sua função compensatória. No plano da eficácia, o dano é apenas uma das consequências de um ato ilícito (art. 186 do CC), que permite uma pretensão reparatória, a fim de recompor o status quo em presença do ilícito. Contudo, um ato ilícito tem inúmeras possíveis eficácias, como invalidade, caducidade, inibição e punição. Portanto, Rosenvald ( 2021ROSENVALD, N. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: disgorgement e a indenização restitutória. São Paulo: Juspodivm, 2021., p. 335) conclui:

Nessa esfera multiplicada de corolários de um ato ilícito, ainda no plano extracontratual, surge a possibilidade de que comportamentos antijurídicos sejam sancionados mediante o resgate de lucros impróprios ou a restituição de benefícios indevidos, como aqueles obtidos pelo ofensor com economia de despesas decorrentes do uso não consentido de bens alheios. Nestas hipóteses, ao invés de lidarmos com a função compensatória da responsabilidade civil, investimos em sua função restitutória.

O direito material também requer tutelas que impeçam a geração de benefícios pelo ilícito. Além das reconhecidas pretensões contra a probabilidade do ilícito (inibitória) e contra o ilícito praticado (remoção do ilícito), afirma-se a tutela contra os benefícios ilícitos, sejam eles ganhos efetivos ou contenção de despesas.

A ideia que aqui se expõe é que atividades em desconformidade com o dever de decrescimento, além de serem tratadas como ilícitas, sejam ilegalidades que não se resolvam apenas com uma sanção e uma indenização pelos prejuízos causados. O que se busca com a ideia da tutela restitutória é que todo e qualquer lucro auferido com a atividade seja expropriado em prol da coletividade – em face do prejuízo incalculável e intergeracional. Com isso, o objetivo é eliminar qualquer possibilidade de se obter lucro advindo de descumprimento de dever fundamental.

O leading case do enriquecimento por intromissão, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), pode ajudar a elucidar a questão de restituição de lucros ilícitos. Trata-se do Recurso Especial n. 1.698.701-RJ sobre o caso em que uma farmácia de manipulação usou a imagem de Giovanna Antonelli, famosa atriz brasileira, para vender um produto, sem qualquer contrato ou autorização, de modo a alavancar as vendas sugerindo que um composto “detox” traria resultados de perda de peso e emagrecimento.

Em primeiro grau, a empresa foi condenada a danos morais de R$ 30.000, além de 5% do resultado das vendas do produto, correspondente ao lucro de intervenção. Em sede recursal, o que se discutiu foi que a Justiça de primeiro grau, ao arbitrar percentual de vendas, independente de apuração do enriquecimento patrimonial obtido, estaria restringindo o alcance do art. 884 do Código Civil.

O relator, ao reconhecer o ineditismo da questão do lucro da intervenção, trouxe a dificuldade de enquadrá-lo em algum instituto do direito civil, de modo que recorreu ao instituto residual do enriquecimento sem causa para mudar a questão.

Para o relator, o princípio da reparação integral e o disposto no art. 944 do Código Civil, que prevê que a indenização se mede pela extensão do dano, não era apropriado ao caso, pois, assim como inúmeras outras hipóteses, a vantagem patrimonial auferida superará o prejuízo sofrido pelo titular do direito.

No leading case em voga, também se definiu que a transferência patrimonial e a dicotomia empobrecimento e enriquecimento não é necessária no caso do enriquecimento sem causa por intervenção. Assim constatou o relator: “para configuração do enriquecimento sem causa por intervenção, não se faz imprescindível a existência de deslocamento patrimonial, com o empobrecimento do titular do direito violado, bastando a demonstração de que houve enriquecimento do interventor” (STJ, 2018STJ – SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial n. 1.698.701 – RJ (2017/0155688-5). Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Documento: 1758470 – Inteiro Teor do Acórdão – Site certificado. DJe: 08/10/2018. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4659808/mod_resource/content/0/lucro%20da%20interven%C3%A7%C3%A3o%20-%20ac%C3%B3rd%C3%A3o.pdf . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
, p. 1), o que se coaduna com o Enunciado 35 do Conselho de Justiça Federal (CJF) que prevê: “A expressão ‘se enriquecer a custa de outrem’ do art. 886 do novo Código Civil não significa necessariamente que deverá haver empobrecimento” (Conselho de Justiça Federal, 2012CJF – CONSELHO DE JUSTIÇA FEDERAL. Jornadas de Direito Civil, I, III e V: enunciados aprovados. Brasília, DF: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadas-cej/EnunciadosAprovados-Jornadas-1345.pdf . Acesso em: 20 dez. 2023.
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, p. 20; Brasil, 2002BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2002. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm#:\~:text=LEI%20N%C2%BA%2010.406%2C%20DE%2010%20DE%20JANEIRO%20DE%202002&text=Institui%20o%20C%C3%B3digo%20Civil.&text=Art.,e%20deveres%20na%20ordem%20civil . Acesso em: 18 dez. 2023.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/le...
).

Dessa forma, cria-se uma situação em que o enriquecimento sem justificativa se torna equivalente aos lucros obtidos de forma ilegal. O relator enfrentou ainda a questão da quantificação dos lucros a serem considerados, e nessa esfera entendeu que o “preço razoável de uso” não é um gain-based damages (isto é, o que o titular do direito ganharia em uma regular contratação). Assunto também já enfrentado pelo Ministro Vitor Nunes Leal no STF (Recurso Extraordinário n. 56.904/SP, 1966), ao afirmar que a consequência do ato vedado não pode ser a mesma do ato permitido.

Para o relator, as regras do enriquecimento sem causa devem ser observadas com vistas à restituição do lucro patrimonial ao seu verdadeiro titular, uma vez que o art. 884 do Código Civil determina a restituição do que foi auferido indevidamente, de modo que a intenção do legislador foi a de devolução do “lucro patrimonial”, que no caso concreto foi considerado o incremento de vendas do produto.

Além disso, é plenamente cabível esse raciocínio quando se trata de dano ambiental, uma vez que a tutela restitutória reforça o efeito dissuasório da responsabilidade civil à medida que internaliza as externalidades negativas, proporcionando sanções para a exploração não consentidas e não permitidas por titulares de direitos.

A possibilidade de supressão dos ganhos obtidos em decorrência da prática de um comportamento antijurídico é uma forma de desestimular a atuação nociva ao meio ambiente e se funda na teoria do enriquecimento sem causa, a qual permite a privação dos ganhos sem causa jurídica tutelada pelo direito.

Considerações finais

O dever fundamental de preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado tem um dever anexo – ou lateral – que é o dever de decrescimento, que deve ser estabelecido em face de atividades que apresentam duas características básicas: 1) não são imprescindíveis à sobrevivência humana; e 2) causam danos irreversíveis ao meio ambiente e o esvaziamento dos recursos naturais.

A pecuária empresarial e a monocultura do eucalipto são atividades que somam essas duas características, sendo extremamente nocivas ao meio ambiente e ao ser humano, podendo-se mencionar a emissão de gases do efeito estufa, o desmatamento, o desperdício de água doce e a desertificação dos solos como algumas de suas consequências, todas elas em colisão com os ODS da ONU da Agenda 2030.

Nesses termos, a continuidade dos níveis de produção sem a readaptação aos limites estabelecidos pelas autoridades competentes em matéria ambiental se traduz em ato ilícito. Os lucros daí advindos, portanto, constituem enriquecimento sem causa e devem ser destinados aos afetados diretos (quando identificados) e à sociedade, que suportaram a violação do seu direito difuso ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Assim, nasce a tutela restituitória (ação in rem verso) em face do descumprimento do dever de decrescimento pelo empresário que empreende às custas do alheio. Nesse sentido, ainda, caberá ao Estado organizar o exercício das atividades produtivas poluidoras, especialmente a pecuária e a monocultura de eucalipto, à medida que um percentual de sua produção ainda seja necessário para atender à demanda de consumo, o que poderá ocorrer direcionando-se essas atividades à pecuária familiar e às cooperativas de produtores, por meio de programas públicos de organização e incentivo[^6].

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  • 1
    O Estado-Corporação não é orientado pelos interesses dos cidadãos, que vão às urnas eleger seus mandatários, mas dos conglomerados que detêm o poder econômico e, agora, exercem o poder político de fato. Entre esses interesses estão a desregulamentação ambiental, o loteamento político e o esvaziamento finalístico dos órgãos ambientais, a liberação de atividades poluidoras, autorização para uso de novos agrotóxicos, ausência de fiscalização do desmatamento etc.
  • 2
    Como os danos são transfronteiriços, não apenas a população brasileira, mas todo o globo sofre com os ataques ao meio ambiente. Além disso, são danos intergeracionais, de modo que mesmo as populações vindouras sofrerão os impactos do que se pratica hoje, condenando, portanto, o chamado “direito ao futuro”.
  • 3
    As empresas pecuaristas brasileiras têm acentuada conexão com o mercado internacional, mantêm escritórios no exterior e departamentos especializados na gestão de commodities , o que reafirma cada vez mais a superação do argumento de que a pecuária se presta ao combate à fome e aos interesses nacionais (Moitinho, 2022MOITINHO, F. Reaquecimento do mercado de carne bovina pode vir a partir do 1º trimestre de 2023, diz presidente da Friboi. Giro Do Boi, 14 dez. 2022. Disponível em: https://girodoboi.canalrural.com.br/pecuaria/reaquecimento-do-mercado-de-carne-bovina-pode-vir-a-partir-do-1o-trimestre-de-2023-diz-presidente-da-friboi/ . Acesso em: 20 dez. 2023.
    https://girodoboi.canalrural.com.br/pecu...
    ).
  • 4
    Segundo Raworth ( 2019RAWORTH, K. Economia Donut. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. , p. 42), “os cucos são pássaros astutos. Em vez de criar os próprios filhotes, eles sub-repticiamente põem seus ovos nos ninhos desguarnecidos de outros pássaros. Os desavisados pais adotivos chocam devidamente o ovo do intruso junto com os seus. Mas o filhote de cuco nasce mais cedo, chuta os outros ovos e filhotes para fora do ninho, depois emite rápidos chamamentos de forma a imitar um ninho cheio de crias esfomeadas. Essa tática de conquista dá certo: os pais adotivos alimentam diligentemente o avantajado inquilino à medida que ele vai se tornando absurdamente grande, extrapolando os limites do pequeno ninho que ocupou. Trata-se de uma poderosa advertência para outros pássaros: deixe o seu ninho desguarnecido e ele poderá muito bem ser sequestrado. Trata-se também de uma advertência para a economia: perca de vista seus objetivos e alguma outra coisa pode muito bem tomar sub-repticiamente o seu lugar”.
  • 5
    De acordo com Sarlet (2009 apud Siqueira, 2010SIQUEIRA, J. P. F. H. Deveres fundamentais e a Constituição Brasileira. Revista FIDES, Natal, v. 1, n. 2, p. 214-225, ago./dez. 2010. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/47619838_DEVERES_FUNDAMENTAIS_E_A_CONSTITUICAO_BRASILEIRA . Acesso em: 20 dez. 2023.
    https://www.researchgate.net/publication...
    , p. 220): “Em que pese uma análise do texto constitucional vigente na busca por deveres a fim de formar uma lista, desde logo ficou demonstrada a dificuldade de tal empreitada, em virtude da existência de deveres implícitos, que, embora haja certo consenso sobre sua existência, há dissenso sobre quais seriam eles”.
  • Como citar este artigo (ABNT):
    PEREIRA, L. G.; PEDRA, A. S. A restituição pelo ilícito lucrativo em face do descumprimento do dever de decrescimento. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 21, e212488, 2024. Disponível em: http://www.domhelder.edu.br/revista/index.php/veredas/article/view/2488. Acesso em: dia mês. ano.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2022
  • Aceito
    21 Dez 2023
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