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A esquerda militante: entre o engajamento pastoral e os revides locais

The militant left: between pastoral engagement and local reprisal

La gauche militante: entre l'engagement pastoral et les contre-reactions locales

Resumos

O presente artigo procura analisar as ambigüidades do militantismo de esquerda e suas possibilidades de superação. Para tal propósito lançou-se um olhar sobre a procedência da prática militante moderna, sobre o debate marxista a respeito do militante revolucionário e também sobre os militantes dos chamados "novos movimentos sociais". A experiência militante mais recente combinada com uma certa recusa de intelectuais em se fazer "vanguarda" serviu de âncora para a crítica às práticas militantes pastorais e seu efeito totalizador.

militante de esquerda; participação política; militante total; militante singular


This article aims to analyse the ambiguities of leftist militancy and the possibilities of overcoming them. In order to do that, it looks over the sources of modern militant practices, the Marxist debate about the revolutionary militancy and also the practices of militants of the so-called "new social movements". The most recent militant experience, combined with the refusal by intellectuals of assuming the role of "vanguard", has served as an anchor for the critique of pastoral militant practices and their all encompassing effect.

leftist militancy; political participation; militant; "total militancy"


Cet article vise à analyser les ambiguïtés du militantisme de gauche et leurs possibilités desupération. À ce propos on a envisagé de vérifier l'origine de la pratique militante moderne, le débat marxiste en ce qui concerne le militant révolutionnaire et finalement les militants des "nouvaux mouvements sociaux". L'expérience militante la plus récente associé au refus de la part des intellectuels du titre d'avant-garde a servi d'appui à la critique faite aux pratiques militantes pastorales et à son effet totalisateur.

militante de gauche; participation politique; militante total; militante singulière


ARTIGOS

A esquerda militante: entre o engajamento pastoral e os revides locais

The militant left: between pastoral engagement and local reprisal

La gauche militante: entre l'engagement pastoral et les contre-reactions locales

Nelson Rosário de Souza

Universidade Federal do Paraná

RESUMO

O presente artigo procura analisar as ambigüidades do militantismo de esquerda e suas possibilidades de superação. Para tal propósito lançou-se um olhar sobre a procedência da prática militante moderna, sobre o debate marxista a respeito do militante revolucionário e também sobre os militantes dos chamados "novos movimentos sociais". A experiência militante mais recente combinada com uma certa recusa de intelectuais em se fazer "vanguarda" serviu de âncora para a crítica às práticas militantes pastorais e seu efeito totalizador.

Palavras-chave: militante de esquerda; participação política; militante total; militante singular.

ABSTRACT

This article aims to analyse the ambiguities of leftist militancy and the possibilities of overcoming them. In order to do that, it looks over the sources of modern militant practices, the Marxist debate about the revolutionary militancy and also the practices of militants of the so-called "new social movements". The most recent militant experience, combined with the refusal by intellectuals of assuming the role of "vanguard", has served as an anchor for the critique of pastoral militant practices and their all encompassing effect.

Key words: leftist militancy; political participation; militant; "total militancy".

RÉSUMÉ

Cet article vise à analyser les ambiguïtés du militantisme de gauche et leurs possibilités desupération. À ce propos on a envisagé de vérifier l'origine de la pratique militante moderne, le débat marxiste en ce qui concerne le militant révolutionnaire et finalement les militants des "nouvaux mouvements sociaux". L'expérience militante la plus récente associé au refus de la part des intellectuels du titre d'avant-garde a servi d'appui à la critique faite aux pratiques militantes pastorales et à son effet totalisateur.

Mots-cles: militante de gauche; participation politique; militante total; militante singulière.

"O total é pavoroso"

Michel Foucault

I. INTRODUÇÃO

Os embaraços enfrentados pelas organizações operárias de esquerda e as peculiaridades dos "novos movimentos sociais" são temas que têm estimulado a reflexão dos intelectuais das ciências humanas. O problema de fundo que impulsiona estes trabalhos diz respeito às potencialidades das lutas políticas e sociais na atualidade. A maior parte dos estudos sobre este objeto analisa principalmente os constrangimentos que, a partir de fora, fazem declinar a participação da sociedade nas instituições políticas tradicionais ou a levam, ao contrário do esperado, para caminhos totalitários.

Desde logo é bom lembrar que a "participação política" é um tema que traz consigo uma certa carga dramática. A crescente aproximação entre os personagens do militante e do intelectual parece ter criado uma tensão entre estes dois agentes. Ainda que esta ligação energética não tenha sido inaugurada na modernidade1 1 É pouco recomendável o emprego do termo "modernidade" dada a sua ambigüidade. Insistiremos, entretanto, no seu uso, não para polemizar e sim para caracterizar este período que, por pura convenção, teria iniciado em 1789 e cujos princípios estariam em crise desde a segunda guerra. Modernidade significa a construção da idéia de razão como essência do homem e a penetração desta racionalidade nas diferentes instâncias sociais: econômica, política, cultural, religiosa etc. É o momento de valorização da história como processo temporal rumo à emancipação do homem e promessa de reencontro do homem consigo mesmo a partir do avanço da razão. Ao não realizar plenamente princípios como os de liberdade e igualdade, a modernidade revela-se tensa e contraditória. Flagrar e investigar estas contradições em diferentes momentos é tarefa da reflexão crítica. O presente artigo pretende analisar alguns aspectos da militância política de esquerda no contexto das contradições modernas. intensificou-se a tal ponto neste período que se pode falar, em alguns casos, da fusão entre o militante e o intelectual. O encontro destes sujeitos à sombra da crítica ao saber desinteressado trouxe implicações múltiplas tanto para o jogo da política quanto para o labor científico. A partir desta experiência, é importante que se diga, o intelectual que pensa a ação política fala, de certo modo, de si próprio, empenha-se, em grande parte, num acerto pessoal de contas.

Durante muito tempo o homem de letras, nitidamente o de esquerda, sentiu-se responsável pelos caminhos da história, viu-se pressionado pelo sentimento de culpa e pelas cobranças que, ou nasciam da sua própria alma, capturada pelo ambiente acadêmico engajado, ou lhe chegavam de fora via partido, sindicato ou outra agremiação militante. A crítica marxista à divisão entre trabalho manual e intelectual e a conseqüente denúncia da relação promíscua entre ciência e ideologia apresentaram, de saída, o antídoto ao saber reacionário velado, qual seja, o engajamento revolucionário explícito. A academia de um modo geral aceitou e consumiu o remédio em larga escala e com poucas reservas. Por um longo período o intelectual de esquerda viu-se impelido à prática política institucional, ainda que este engajamento tenha variado de grau conforme o momento e a sociedade.

Hoje o intelectual crítico, o pensador de esquerda, de um modo geral não tem e nem busca uma identificação com o partido ou o sindicato. É comum um certo mal-estar acadêmico, mesmo no campo da esquerda, diante das práticas organizativas vividas dentro das agremiações políticas tradicionais. Sempre é possível relacionar estas mudanças às transformações gerais da sociedade. Sem dúvida os caminhos percorridos pela social-democracia européia no pós-guerra e o advento do Estado de Bem-Estar Social são fatos de grande capacidade explicativa sobre as metamorfoses na prática política contemporânea e que merecem estudos mais aprofundados.

Parece igualmente importante, entretanto, investigar os mecanismos internos e horizontais do militantismo moderno. Com este procedimento evita-se creditar exclusivamente a fatores externos às tradicionais organizações de esquerda as causas da sua degenerescência. As armadilhas ideológicas preparadas ao longo das lutas políticas, a centralização e verticalização do poder nas organizações operárias, assim como o recente avanço neoliberal, não esgotam as explicações sobre os limites da ação política de tipo partidária e sindical e o seu atual caráter defensivo.

O presente artigo pretende apontar os principais mecanismos e características da ação política com espírito transformador, típica da modernidade. O objetivo é entender a procedência do "militantismo" contestador e as potencialidades das instituições que o cercam. Este percurso irá subsidiar a análise da tensão que marca a relação entre o intelectual e o militante e fundamentará a crítica à militância de esquerda2 2 É preciso acrescentar que percorrerei este caminho sob a luz de investigações anteriores que realizei sobre a igreja católica progressista no Brasil. Muito embora não pretenda abordar com profundidade este tema no presente artigo é legítimo afirmar que a reflexão produzida aqui ajuda a entender a força política dos católicos progressistas e faz emergir inquietantes dúvidas sobre as potencialidades "libertadoras", ou mesmo de resistência, dos movimentos sociais ligados à igreja católica progressista no Brasil. Para uma análise mais detalhada sobre os militantes católicos progressistas ver meus trabalhos anteriores (cf. SOUZA, 1993 e 1994). . Com um breve olhar sobre a procedência do militantismo será possível verificar o débito religioso das práticas militantes modernas. As polêmicas sobre o militante de esquerda, animadas por pensadores modernos, também ajudam a caracterizar os dilemas da ação política organizada e, em alguns casos, ratificam o forte entrelaçamento entre a prática política de esquerda e a ação militante de fisionomia religiosa. A título de conclusão buscaremos, a partir do contra-exemplo da igreja católica progressista e à luz de teorias recentes sobre os movimentos sociais contemporâneos e suas formas alternativas de engajamento, pistas para a superação dos dilemas que envolvem o militantismo de esquerda.

II. A PROCEDÊNCIA DO MILITANTISMO MODERNO

Uma análise prévia e rápida sobre os significados e a origem da palavra "militante" nos revela alguns sentidos interessantes e possibilita estabelecer relações que não devem ser desprezadas. O militante pode ser definido como aquele que defende ativamente uma causa e entra em combate para ver vitoriosas as idéias do grupo a que pertence. Na sua origem o termo militante deriva do latim militare, verbo que começa a ser empregado na linguagem teológica a partir da Idade Média. Neste momento o adjetivo "militante" qualifica a igreja. É interessante sublinhar este uso inicialmente religioso da palavra militante.

Já nesse sentido primitivo o termo vincula-se à idéia de combate contra os inimigos pelo triunfo de uma causa única, pela conquista da salvação final num (outro) mundo totalmente novo. Essa salvação exige a entrega total da pessoa à longa caminhada que submete e dá sentido a todas as demais esferas da vida3 3 Estes primeiros engajamentos produziram, via de regra, um desinteresse pelos aspectos terrenos da vida. Não se deve ignorar, entretanto, que o engajamento religioso trazia consigo desde cedo um enorme potencial de mobilização bélica de "soldados da fé". .

No século XVII o termo militante passa a ser utilizado para definir o soldado de milícia que guerreia para alcançar o objetivo final preestabelecido. Pode-se dizer a título especulativo que o "exército" investiu na prática militante religiosa, organizando-a no sentido moderno do termo "militar", treinando o soldado para ser um combatente disciplinado, ciente do seu dever, voluntarioso, persistente, tenaz, e formando-o para ter um comportamento de obediência e respeito à hierarquia, para estar totalmente entregue à organização e subordinado a um objetivo final. Atentemos para o fato de que "militar" designa também a atividade intelectual de planejar a estratégia adequada para atingir o alvo, ou seja, para obter o sucesso na luta.

Recuando um pouco mais na história uma experiência se faz significativa neste campo que combina militância, religião e poder. O "pastorado" é um tema que já estava presente nas sociedades orientais antigas e que posteriormente foi retomado pelos hebreus para finalmente sofrer um grande investimento e readaptação pelo cristianismo ao longo da Idade Média (cf. FOUCAULT, 1988 e 1990). Ao emergir, o "pastorado" consistia em identificar a divindade religiosa, ou mesmo a autoridade política, com um pastor que reúne e conduz com cuidado o seu rebanho à terra prometida. O interessante desta temática é que ela inaugura uma relação de poder que vai além do coletivo disforme e penetra nas individualidades antes dispersas. Numa espécie de complementação ao poder central que desce verticalmente e atinge seu alvo de forma repressiva o pastorado desencadeia, pela primeira vez na história, uma série de relações de poder horizontais e positivas, ou seja, produtivas.

É relevante esmiuçar as características do pastorado generalizadas acima. O pastor deve perscrutar cada um dos indivíduos que compõem o seu rebanho. Neste caso, forma-se uma relação de dependência estrita entre o pastor e o seu rebanho na caminhada para a salvação. Como guia ele deve atender as necessidades do rebanho sob sua responsabilidade de forma constante, individualizada e até que a caminhada chegue ao seu final. O líder religioso, ou político-religioso, traz dentro de si uma dívida, uma certa culpa que o faz velar por aqueles que estão "adormecidos". O êxito desta devoção altruísta e total depende também da capacidade intelectual daquele que conduz seus seguidores. O pastor deve saber sobre o seu rebanho como um todo e individualmente e ainda deve conhecer os caminhos que os levarão à terra prometida.

O cristianismo medieval investiu no tema do pastorado e transformou-o numa tecnologia de poder cuja importância foi reforçada na sociedade moderna (cf. FOUCAULT, 1990). A instituição católica incrementou o pastorado tanto pela introdução de novas técnicas, como a prestação de contas, quanto pela lapidação de antigos procedimentos pastorais, como o exame de consciência, a direção de consciência, a obediência e a confissão ao outro.

A experiência do pastorado cristão combina certas técnicas e procedimentos de poder e saber propiciando o advento de uma mobilização com vistas a alcançar um fim religioso único e total. A busca permanente da salvação pelo pastor e seu rebanho eleva-se como causa única que filtra e dá significado às outras dimensões da vida. Ao longo da Idade Média as instituições do cristianismo investiram nesta dimensão totalizante do pastorado propiciando o aperfeiçoamento de técnicas de recrutamento de fiéis e controle da sua ação. A luta pela causa exige do pastor, primeiro esboço do futuro militante político, a incorporação e o desenvolvimento de certas características como: o altruísmo radical, a perseverança, a responsabilidade, a consciência, enfim, o conhecimento de si e do outro. O pastor sente-se responsável porque incorpora uma dose de culpa pela dispersão e sofrimento do rebanho.

É importante frisar que o efeito do pastorado desenvolvido pelo cristianismo da Idade Média é diferente daquele que encontraremos nos desdobramentos posteriores das técnicas e práticas pastorais, dentro e fora da igreja. Na Idade Média o conjunto de procedimentos pastorais estão fortemente ligados a uma mortificação (cf. FOUCAULT, 1990). O fiel procede uma negação ou desvalorização do mundo presente e de si próprio em nome da busca da terra prometida. A morte neste mundo proporcionaria a vida num outro mundo4 4 Ao contrário do que possa parecer a intenção deste artigo não é demonstrar uma eterna repetição da história ou identificar personagens tão díspares quanto o "pastor" cristão da Idade Média e o moderno militante do partido operário. O objetivo aqui é o de perceber como certas técnicas e práticas surgiram associadas a determinadas questões e processos, e como foram readaptadas e reinvestidas ao longo da história em função de novos problemas e diferentes estratégias de poder. Deste modo talvez seja possível perceber como e porque certas ferramentas e procedimentos típicos das organizações políticas modernas acabam por reproduzir práticas de dominação ao invés de instaurar as promessas de rupturas emancipatórias e libertadoras. Neste sentido, as análises de Foucault parecem fornecer uma chave útil à elucidação dos dilemas que marcam o militantismo moderno. .

Só por volta do século XIX é que a palavra "militante" ultrapassa o sentido propriamente religioso e emerge no vocabulário político passando a ser utilizada para nomear aquele que milita numa organização partidária ou sindical, aquele que abraça as tarefas políticas (materiais e intelectuais) necessárias para a conquista do Estado e/ou para a transformação total da sociedade. Parece pertinente perguntar, desde já, se neste seu sentido moderno o termo "militante" indicaria uma ruptura radical com a experiência religiosa e militar ou, em grande medida, representaria um reaproveitamento de certas técnicas e saberes religiosos e militares agora no campo de batalha político5 5 Dentro dos limites deste trabalho privilegiou-se a análise da conexão político-religiosa, não iremos explorar aqui as possíveis relações político-militares. .

III. O MILITANTE CALVINISTA

Não deixa de ser curioso o fato de uma das primeiras manifestações da moderna militância ter ocorrido a partir de uma motivação religiosa que introduziu transformações essenciais na maneira de os cidadãos verem e fazerem política6 6 É sabido que indivíduos com desejo de mudar ou negar o mundo à sua volta sempre existiram, em qualquer época, em qualquer lugar. Mas militantes tal como aqui entendemos, atuando numa organização racional, estes são típicos da modernidade e emergem com a ascensão da burguesia, na sua luta revolucionária. A rigor também seria possível identificar como militante aquele sujeito empenhado numa luta individual para realização de interesses pessoais. Contudo, as ações militantes coletivas patrocinadas por uma instituição, ou que rapidamente sofreram o seu investimento, e que têm a propriedade, ou a pretensão, de negar o mundo existente pela via revolucionária foram as que imprimiram a sua marca na história e é sobre elas que recairá nosso interesse. Não ignoramos que organizações conservadoras, reacionárias, enfim, de direita, também são capazes de mobilizar militantes. Nosso olhar se voltará, entretanto, para o militante forjado nas instituições revolucionárias, cujo princípio maior era a libertação dos oprimidos e a emancipação do homem, pois o desafio é tentar explicar como este militante, paradoxalmente, acabou, em muitos casos, por reproduzir práticas de dominação e procedimentos totalizantes. . Tratase da combinação político-religiosa presente na Reforma protestante, mais especificamente no calvinismo (cf. WALZER, 1987).

O saint calvinista emerge da combinação entre protestantismo e política. A organização partidária, a atividade política metódica, com o emprego de meios e métodos racionais, caracterizada pelo radicalismo ideológico e pela vontade de transformação social, são fenômenos que não surgem antes do século XVI. A idéia de homens escolhidos para uma tarefa política, empenhados num trabalho contínuo de ação e reflexão, disciplinados e conscientes é um traço marcante que os saints imprimem à sociedade. A luta para construir uma "república cristã" exigiu uma organização disciplinada, formadora dos saints. Pela primeira vez ocorreu um deslocamento da ação política do nível individual para o coletivo. Os conceitos de "consciência" e "trabalho" foram combinados e introduzidos na atividade política.

O fator inédito do calvinismo é o encorajamento à participação através de um discurso que apresenta como um dever do cristão, mesmo leigo, a ação política. No caso do investimento católico no pastorado, analisado acima, desenvolveu-se certas técnicas e procedimentos de poder que permitiram um controle fabuloso sobre os indivíduos e suas energias. A novidade no calvinismo está na indução dos fiéis à militância nas instituições políticas nascentes e que tinham por objetivo levar certos grupos a ocupar posições de poder político no Estado e na sociedade. O calvinismo emprega pela primeira vez meios e métodos racionais, como: a impressão de jornais, a confecção de normas e regulamentos de conduta, a ocupação de cargos estratégicos na sociedade; tudo para atingir um fim político-religioso. O calvinismo é uma religião eminentemente social. Diferente do pastorado católico, o calvinismo valoriza a ação neste mundo, e isto vale não só para a dimensão econômica mas também para o espaço político. Ocorre, portanto, um distanciamento da mortificação própria do catolicismo da Idade Média. As técnicas pastorais anteriormente forjadas no processo de desvalorização do mundo reaparecem num contexto de mobilização e participação nas coisas terrenas.

A preocupação dos seguidores de Calvino com o reino da terra e com a transformação deste reino levou-os a elaboração de uma doutrina da disciplina e da obediência, necessárias para organizar a ação coletiva que realizaria este projeto terrestre. Pois para Calvino a sociedade, que é repressão e dominação, funciona como remédio ao pecado. O homem não deve sonhar com a reconciliação com Deus, mas apenas aliviar o seu sofrimento e a sua angústia através da obediência às regras da sociedade política e às autoridades estabelecidas. Contudo, como a repressão não é suficiente para neutralizar os ímpetos negativos da natureza humana pecadora, seria necessário um suplemento de controle pela disciplina. Segundo Calvino, assim como a repressão proporciona a paz social, a disciplina política contribui para a paz da alma, e ambas aliviam a angústia do pecado. Mas a obediência deve ser consentida, voluntária, não basta a aceitação passiva da repressão, o cristão deve também desejá-la. Como salienta Walzer: "Calvino tem consciência aguda do aumento gigantesco de controle social que se obteria se se conseguisse que os homens experimentassem o desejo deste controle e o consentissem em seu coração" (WALZER, 1987, p. 64).

Para os calvinistas a obediência às leis demonstra que os homens receberam a graça oferecida por Deus, e os caracteriza como escolhidos, como construtores da nova sociedade. Esta contradição entre aceitar o estabelecido e edificar o novo é resolvida a partir da máxima de Calvino, tirada do Novo Testamento, que diz: "Obediência a Deus e não aos homens". Aqui está um álibi para a ação radical: obedecer a Deus pode significar lutar para a construção da república cristã; a revolta, tanto quanto a imposição da ordem, pode representar a vontade de Deus. A legitimidade da ação empreendida só pode ser verificada posteriormente, posto que a vitória na resistência, na luta desencadeada, é que vai ratificar para o saint a condição de escolhido de Deus. Tanto quanto o êxito nos negócios.

É interessante notar como as idéias e práticas de obediência e disciplina estão presentes desde cedo na organização de grupos que militam pela transformação da sociedade. Deve-se sublinhar ainda que a combinação político-religiosa abre uma porta importante para a criação ou desenvolvimento de técnicas de incitação e controle de indivíduos engajados coletivamente. O conjunto de saberes que atenuam as angústias geradas por um divino imponderável está associado aos procedimentos de mobilização e atividade militante, mas não como momentos separados e hierarquizados e sim como elementos de uma mesma engrenagem político-religiosa.

A título especulativo pode-se imaginar ainda que, em determinados contextos, o calvinismo teve alguma influência na produção de um corpo acadêmico moderno, produtor de um saber interessado, desde logo comprometido, seja com a evolução, o progresso, o industrialismo, enfim o homem. Este viés da modernidade, crítico ao saber erudito, individual e decorativo, certamente forneceu um gancho importante para o recrutamento do intelectual pela causa revolucionária. O pastorado e sua longa experiência em vincular conhecimento e mobilização coletiva, é de se supor, também deu a sua colaboração7 7 O legado do pastorado à modernidade, é importante explicar, foi um estoque de técnicas e práticas de mobilização e controle coletivos porém com eficácia que desce até os indivíduos e seus corpos. Nas lutas e enfrentamentos modernos o baú do pastorado foi aberto muitas vezes. nesta virada da modernidade.

IV. O MILITANTE DE ESQUERDA

A ação militante calvinista, associada ao espírito revolucionário burguês, declina com a chegada da burguesia ao poder. A partir deste momento a burguesia promoverá uma redefinição conservadora dos seus interesses, sua ação política, via de regra, se reduzirá a um ativismo meramente eleitoral e temporário. A medida que avança o processo histórico de construção da ordem social burguesa a nova classe dominante tende a enquadrar na esfera privada os problemas relacionados aos grupos menos favorecidos economicamente.

Estas transformações históricas acabaram semeando um novo solo onde se desenvolveram experiências inéditas de organização do movimento coletivo revolucionário. Significa dizer que paulatinamente a ação radical de pretensões revolucionárias passa a freqüentar quase exclusivamente o universo operário8 8 Dados os limites deste artigo não faremos aqui uma digressão sobre a história da organização operária. Convém apenas registrar que a transferência da prática militante para as instituições socialistas se faz paralelamente ao afastamento da burguesia da ação revolucionária substituída pela atividade de ordenar a nova sociedade, agora capitalista. . As agremiações socialistas começam a se constituir em espaço de intensa participação popular, fomentadoras de práticas e técnicas de arregimentação e formação do militante, suas potencialidades e suas ações efetivas proporcionaram ricos debates.

O embate clássico entre Lênin e Rosa Luxemburgo a respeito da organização revolucionária permite que se reconheça a importância conferida à formação do militante e a diversidade de concepções quanto ao seu papel na luta política.

Lênin, que estava envolvido no processo revolucionário russo na passagem do século, parte da suposição de que a massa de trabalhadores, que age quase que espontaneamente na luta cotidiana contra os patrões pela melhoria das suas condições econômicas, não tem possibilidade de criar uma teoria revolucionária. Esta só poderia ser fruto da atividade de um grupo de intelectuais. A conscientização da classe operária, etapa necessária para a superação do economicismo e do espontaneismo, deveria ser feita de fora desta luta voluntarista, pelos membros de uma organização centralizadora caracterizada pela disciplina e motivada pela teoria revolucionária. Segundo Lênin, os componentes deste grupo deveriam ser profissionais da revolução, militantes especializados e com dedicação total. Uma vanguarda consciente e homogênea asseguraria um movimento revolucionário sólido, estável e contínuo; sua ação de conscientização e também de recrutamento de novos revolucionários junto à massa impediria que esta fosse manipulada de forma demagógica. Para ele, a centralização das tarefas não cercearia a participação da massa, pelo contrário, a facilitaria e a reforçaria. Enfim, ele sugere o cuidado de não se confundir as agremiações voltadas para o grande público, como os sindicatos, os círculos operários, etc., com a organização revolucionária. Todas são necessárias e se complementam, mas esta última é composta por homens que consagram todo o seu tempo à ação revolucionária e "[...] estes homens devem ser forjados com paciência e tenacidade até se converterem em revolucionários profissionais" (LÊNIN, 1979, p. 44). Reforçando a idéia segundo a qual não se pode confundir qualquer atividade contestadora com a ação revolucionária, ele acrescenta: "Nossa tarefa não consiste em advogar que o revolucionário seja rebaixado ao nível de artesão, mas elevar o artesão ao nível de revolucionário" (LÊNIN, 1979, p. 45). A luta espontânea da massa operária não torna supérflua a organização de revolucionários, pois aquele movimento, segundo Lênin, só se caracterizaria como "luta de classes" quando na sua direção estivesse a vanguarda do proletariado, ou seja, a sólida organização dos revolucionários9 9 Neste momento o intenso diálogo da intelectualidade de esquerda a propósito do militante envolveria outros nomes, como o de Kautsky. Mais uma vez este artigo privilegiará aspectos considerados essenciais para cumprir seus objetivos. Vale o registro, entretanto, de que a separação mais forte entre saber revolucionário e movimento operário foi formulada por Kautsky, antes mesmo de Lênin (cf. KAUTSKY, 1975). Neste sentido é preciso assinalar que a reflexão de Lênin configura-se, em alguns momentos, até mesmo como uma relativização da divisão entre vanguarda e massa operária presente em Kautsky. .

Lênin está preocupado com a formação do militante especializado, o revolucionário profissional, disciplinado, que associando conhecimento e ação se distingue da massa, participa de uma organização rigidamente regulada e tem uma missão histórica a desempenhar. Parece importante sublinhar esta idéia de militante como guia, como membro de uma vanguarda política e intelectual, um sujeito escolhido e treinado para, de forma disciplinada, contribuir para a realização de um (e somente um) objetivo histórico e final. É difícil não perceber que esta concepção, ao preservar o caráter pastoral do militante, tutor e guia, mantém abertos os canais de profusão e reprodução de práticas e técnicas de poder que perpassam o militante na sua formação disciplinada e marcam a relação deste com o alvo final da sua ação: a massa operária.

É bom lembrar que as reflexões de Lênin foram atualizadas por Guevara no contexto da Revolução Cubana. Nas palavras do comandante revolucionário as orientações de Lênin ganham um novo desdobramento e se revestem da paixão e também da brutalidade da luta cubana. Guevara alerta para a importância da vanguarda que se sacrifica em troca apenas do reconhecimento dos companheiros, e nesse trabalho silencioso assume o papel de condutora do processo e serve de espelho para a sociedade. Esse militante que está à frente do partido não vê o trabalho como sacrifício, porque possui um interesse novo, desempenha esta atividade como um dever, não uma obrigação imposta, um dever internamente consciente. Assim, acrescenta Guevara, as atividades enfadonhas ganham novo significado, transformam-se "em coisas importantes e substanciais, em algo que ele não pode deixar de fazer sem sentir-se mal: aquilo que é chamado de sacrifício. E então, para um revolucionário, o fato de não estar fazendo sacrifício é o verdadeiro sacrifício. Quer dizer que as categorias e os conceitos mudam" (GUEVARA, 1981a, p. 171). E muda também, como pode-se perceber, o próprio homem transformado em militante10 10 Difícil aqui não comparar, sob certos aspectos, o militante descrito por Guevara, com o saint calvinista que experimentaria uma disciplina consentida. Mas a intenção, como já frisei, não é construir identidades entre atores tão díspares. O importante é perceber como mecanismos semelhantes de recrutamento, mobilização e disciplina operavam em contextos e organizações tão distintas. Este fato sugere uma sucessão de reinvestimentos e adaptações de determinadas técnicas e procedimentos muito úteis e eficientes na captação e redirecionamento de energias para o campo político ou político-religioso. . Um homem cuja consciência e prática fazem crescer sua responsabilidade. O saber que envolve o militante impele-o para os trilhos da luta permanente e da dedicação total e sem trégua à organização.

Tanto Lênin quanto Guevara consideram que o partido de vanguarda, com a ação exemplar de seus militantes, pode catalisar o processo de desenvolvimento histórico de uma sociedade. Isto seria possível através da consciência e do trabalho. A vanguarda deve despertar a massa, mobilizá-la, impulsionar o movimento, gerar o entusiasmo para a luta. A tarefa fundamental seria a educação "revolucionária" para que a ação heróica se reproduza de forma total no dia-a-dia dos trabalhadores.

A efetivação do socialismo exigiria, segundo Guevara, uma transformação na consciência. E para isto ele aproveita as técnicas de formação e educação que o capitalismo aplica sobre os indivíduos no processo de convencimento e incorporação dos mesmos à sociedade. A diferença, segundo ele, é que no socialismo esta educação é verdadeira. Ou seja, o mecanismo disciplinador não é ignorado, mas seus efeitos perversos estariam anulados pelo novo alvo, a revolução libertadora. A operação de engajamento se daria paulatinamente, alguns homens se conscientizariam e pressionariam os demais para assumirem a nova sociedade. A vanguarda, ideologicamente mais avançada que a massa, pois conhecedora da "verdade", deveria estimulá-la e mesmo pressioná-la rumo ao destino único e final. "Enquanto nos primeiros se dá uma mudança qualitativa que lhes permite se sacrificar [...], os segundos apenas seguem e devem ser submetidos a estímulos e pressões de certa intensidade; é a ditadura do proletariado que se exerce não somente sobre a classe derrotada, mas também individualmente sobre a classe vencedora [...]". O êxito total exige a "existência de instituições revolucionárias [...] que permitam a seleção natural daqueles destinados a caminhar na vanguarda e que concedam o prêmio aos que cumprem e o castigo aos que atentem contra a sociedade em construção" (GUEVARA, 1981b, p. 182). Observe-se com atenção o valor dado à instituição no seu papel de selecionar e formar o militante que servirá de exemplo moral e instrumento político-pedagógico na construção da nova sociedade. O que se percebe nas palavras de Guevara não são apenas chamadas à consciência revolucionária, ou a conclamação para um esforço de convencimento intelectual. Aparece ali, com toda força, a descrição de atitudes, técnicas e procedimentos capazes de arregimentar e mobilizar a vanguarda e seus seguidores. Dito de outro modo, certos procedimentos semelhantes às práticas pastorais emergem e perpassam o militante revolucionário celebrado por Guevara.

Elegendo como objetivo a formação dos militantes revolucionários, Guevara chega a descrevêlos de forma entusiasta como homens que são gerados por "grandes sentimentos de amor [...] possuidores de uma tarefa magnífica mas também angustiante". Vivem o drama de "[...] unir um espírito apaixonado a uma mente fria [...]". E prosseguindo a sua caracterização dos dirigentes da luta revolucionária, diz que eles "[...] têm filhos que em seus primeiros balbucios não aprendem a chamar o pai; mulheres que devem ser parte do sacrifício geral de sua vida para levar a revolução ao seu destino; o marco dos amigos corresponde estritamente ao marco dos companheiros da revolução. Não há vida fora dela" (GUEVARA, 1981b, p. 188-189, sem grifos no original). A dedicação pela causa, o sacrifício em nome da nova sociedade, a responsabilidade, o altruísmo radical são as marcas deste militante que Guevara acredita ser produto e agente da revolução.

Atentemos mais uma vez para um ponto bastante importante. Guevara não apela para uma simples conscientização dos militantes. A seu modo ele percebe que o engajamento e a mobilização dos agentes não se consegue apenas com um processo de convencimento. Dito de outro modo, o saber não é anterior à prática. As verdades sobre a militância estão jogando no mesmo patamar das ações militantes, teoria e prática funcionam articuladas. Os saberes sobre a caminhada, as idéias sobre os inimigos, as explicações sobre o mundo são produzidas incessantemente nos e pelos rituais e práticas militantes que estas mesmas verdades ajudam a reproduzir. Procedimentos do tipo esquecimento (renúncia) de si, exposição ao outro, responsabilização e treinamento do corpo, entre outros, constituem circuitos de verdade e poder sobre os sujeitos que ali são formados militantes. A engrenagem militante movida alternadamente por ações de teoria e ações de prática11 11 Empresto esta imagem da conversa entre Deleuze e Foucault sobre o caráter material do saber articulado aos procedimentos de poder disciplinar (cf. FOUCAULT e DELEUZE, 1988, p.70). produz a sujeição, ou, o militante enquanto sujeito sujeitado.

A complexidade das forças que envolvem o militante foi percebida por Rosa Luxemburgo na sua crítica à forma leninista de pensar o processo e a organização revolucionária. Segundo ela, a centralização nunca poderia significar a submissão cega da massa, ou do próprio militante a um comitê dirigente. Não deveria existir mais do que um autocentralismo nas organizações operárias, caso contrário, o risco seria o aparecimento de uma autocracia partidária. A centralização não deveria ser tomada como um instrumento prédado, cuja função seria controlar as massas; ao contrário, a educação política dos trabalhadores forjada na luta, seria condição prévia de um "centralismo". É possível perceber aqui um certo incômodo por parte desta pensadora com a formação de um sujeito militante cujas supostas qualidades o autorizariam a apresentar-se como guia de um grupo rumo à libertação.

Rosa Luxemburgo discorda, portanto, da possibilidade de aproveitamento da disciplina capitalista, incorporada pelo proletário, para a formação do sujeito revolucionário. A disciplina da fábrica, da burocracia, enfim, do Estado burguês centralizado, que é inculcada pela educação capitalista, estaria alicerçada na paralisia do pensamento e da vontade do trabalhador, seria reprodução automática de um corpo mecanizado. A seu modo, esta pensadora percebe o risco subjacente à instituição partidária enquanto espaço de recrutamento, mobilização, enfim, controle das energias do corpo militante.

Preocupada em vislumbrar um percurso e uma organização que não construa armadilhas capazes de domesticar as energias dos revolucionários, Rosa Luxemburgo chega a pensar numa disciplina diferente, uma disciplina que significasse a "coordenação espontânea dos atos políticos conscientes de uma coletividade". E ela completa: "[...] O que pode haver de comum entre a docilidade bem guiada de uma classe oprimida e a rebelião organizada de uma classe que luta por uma emancipação integral?" Para ela é só com a superação da obediência e da servidão "[...] que a classe operária pode adquirir o sentido de uma nova disciplina, da autodisciplina livremente consentida pela social-democracia" (LUXEM-BURGO, 1979, p. 51). O grau de complexidade do problema de organizar para a libertação pode ser percebido nesta aproximação surpreendente, mas não inexplicável, entre Calvino e Rosa Luxemburgo, ambos às voltas com uma disciplina consentida. Calvino explicitamente buscando um suplemento de controle sobre o rebanho, e a militante polonesa com o propósito oposto, lutando para que a organização revolucionária não oprima seus próprios indivíduos. Rosa Luxemburgo tenta livrar-se da incômoda herança do pastorado. Muito cedo ela fez a denúncia deste legado e, talvez pela precocidade do momento, enfrentou o tema da disciplina sem conseguir superá-lo.

Neste debate sobre o grau da centralização e da democracia na organização revolucionária, e sobre quem comandaria o processo, uma preocupação parece dirigir o pensamento, principalmente, de Rosa Luxemburgo: Como combater por uma sociedade livre sem que o processo de luta implique em violentar a liberdade e reproduzir a dominação? Como forjar uma disciplina revolucionária que não conduza os militantes às armadilhas das relações de poder? É possível pensar a formação de uma vanguarda militante "consciente" e "conscientizadora" livre de práticas de controle e disciplina? Estes questionamentos reafirmam a necessidade de uma reflexão interna sobre a formação do militante. Isto nos parece relevante.

A questão que percorre o debate sobre a organização política de esquerda pode ainda ser traduzida da seguinte forma: como combater contra a opressão sem que o militante precise ser formado como um soldado que submete seu corpo às técnicas militares e aliena sua "alma" aos dogmas religiosos? Tudo se passa como se a procedência religiosa e militar da atividade militante moderna imprimisse inexoravelmente a marca da dominação às organizações políticas empenhadas em lutas emancipatórias. Mas esta inexorabilidade é algo definitivo demais para o ponto de vista marxista. Desta perspectiva muitos lançaram-se no desafio de criticar a burocratização da organização operária e de buscar a sua superação.

Alguns críticos da reprodução da dominação no interior do partido e do sindicato operário perceberam a necessidade de cortar os pontos de comunicação entre estas organizações e a herança das instituições católicas e militares. Que a igreja promova uma totalização ao inverter o conceito liberal de representação, isto é indispensável à sua sobrevivência. O silêncio e o consentimento indireto são mecanismos essenciais ao funcionamento desta instituição. Na organização operária, entretanto, não se deveria admitir a mesma prática (cf. GRAMSCI, 1984, p. 177-179), só a participação direta dos indivíduos, a multiplicidade conflitante de vozes poderia gerar uma consciência coletiva. A diversidade não deveria ser sufocada pois ela seria o ponto de partida para a formação de um organismo vivo. Ainda que a igreja pudesse servir de modelo de militância e, mais precisamente, de exemplo enquanto aparelho para a construção de uma hegemonia a partir da atividade cotidiana de "convencimento", "educação" e organização das massas, o percurso do partido operário deveria ser no rumo oposto ao da igreja, qual seja, o caminho contrário à totalização. O partido, e também o militante, não deveriam proclamar-se guias do rebanho. Ao contrário de um "centralismo burocrático", próprio da igreja, o centralismo do partido deveria ser, segundo Gramsci, um centralismo orgânico, um centralismo em movimento, envolvido em práticas democráticas e, como observa Macciocchi, incapaz de gerar no partido e nos seus intelectuais o falso sentimento de serem os portadores da "verdade revelada" (MACCIOCCHI, 1977, p. 174).

Gramsci também criticou com veemência a militarização do partido de massas. A construção da democracia, do autogoverno e da hegemonia operária, no seu entendimento, deveriam passar pela superação do controle militar das massas, onde impera a manipulação, a moralização e a sedução através de "mitos messiânicos" (GRAMSCI, 1984, p. 24).

V. ALTERNATIVAS PARA UMA ESQUERDA MILITANTE

A despeito da crítica de pensadores como Rosa Luxemburgo e Antônio Gramsci é fato de que grande parte dos organismos construídos com o fim de libertar o proletariado se transformaram, ao longo do nosso século, em instituições burocráticas e autocráticas, em cujos espaços se reproduziram a exploração e a dominação.

Não devemos, entretanto, buscar explicações para este fenômeno apenas nas limitações que teriam chegado do exterior às organizações ditas revolucionárias. Convém não ignorar que para as organizações operárias oprimirem, como vinham fazendo, foi necessário uma dose de "consentimento" dos militantes e da maioria dos membros da classe trabalhadora, foi preciso haver a constituição de um militante que se reconhecesse como sabedor do destino da história (cf. CASTORIADIS, 1985), porque não dizer, de um militante total, que se colocasse como guia do proletariado. Não se trata, portanto, de mero desvio, acidente, erro ou traição. É como se a indumentária do pastorado insistisse em vestir o corpo do moderno militante de esquerda. Tomando este caminho explicativo é possível sublinhar o papel que a prática militante, perpassada por ingredientes religiosos e possivelmente militares, teve no processo que Castoriadis caracteriza como de "degenerescência" da organização operária.

Devemos precisar um pouco mais este ponto. A idéia de consentimento não é a mais adequada para descrever o que se passa com o militante. Consentir supõe uma quase passividade, é o mesmo que tolerar por inércia acontecimentos cuja origem está alhures. Mesmo Castoriadis, que vê o militante como um sujeito no processo de autonomização, imputa não só à passividade do proletariado mas também à atividade de uma vanguarda militante a "responsabilidade" pelos obstáculos que paralisam a "caminhada rumo a libertação". A tese que apresenta o militante como um sujeito que vai sendo "aprisionado" pela sua própria atividade é algo que devemos reter, ainda que não seja o caso de atribuir responsabilidades ou tomar estas tensões como desvios de um percurso com destino certo. Sentir-se responsável ou responsabilizar o outro é uma técnica típica do militantismo pastoral e carregada de efeitos de sujeição. Tomar a história como um percurso ascendente rumo à liberdade é um dos mecanismos que promovem a totalização da organização militante12 12 Castoriadis, que não ignorava este problema, chegou a afirmar que o militante que se apresenta como o detentor do segredo da história, portanto como um "sujeito absoluto", tem o suporte teórico na concepção marxista da emergência de um homem total, capaz de suprimir o imponderável do social e dominar plenamente a sua própria história (cf. CASTORIADIS, 1982, p. 133-137). .

Enfim, não se deve supervalorizar as forças repressivas, externas, que oprimem "o militante", o alienam e o fazem dominado. Investigar os mecanismos positivos, também presentes, e que operam internamente na formação do militante é, como estamos percebendo, um recurso elucidativo.

A crítica ao militantismo de esquerda tem como alvo primeiro o seu caráter totalizante. O militante total não vê a associação como uma parte da sua vida. Ao contrário, os vários elementos que compõem a vida do militante - trabalho, lazer, família, relações afetivas - só ganham sentido a partir da organização. Esta absorve todo o tempo e o espaço do militante, toda a sua pessoa, incidindo totalmente sobre o seu corpo. Somado a este enquadramento material do indivíduo (onde a vida pública e privada se dissolvem uma na outra para dar lugar à vida da organização), temos um enquadramento espiritual, representado pela absorção de um quadro explicativo do mundo, o que podemos chamar, no sentido mais forte, de "visão de mundo". Duverger chega a classificar esta organização, que absorve totalmente não só as atividades do militante, mas também o conjunto do seu pensamento, de totalitária (DUVERGER, 1970, p. 152-159).

O discurso total representa um risco à democracia, até mesmo à precária democracia liberal. Sua realização se dá na identificação plena do Estado com a sociedade civil, ou melhor, no sufocamento deste segundo elemento pelo primeiro (cf. LEFORT, 1990). Na sociedade totalitária o Estado ocupa plenamente os espaços, e o processo de socialização resume-se em uniformizar a diversidade através de um modelo comum de submissão. A militância totalizante faz do partido de massa o órgão por excelência do totalitarismo. Não só o partido, mas também os sindicatos e as associações compõem uma rede totalitária, quando promovem uma espécie de inversão da noção de representação liberal e imprimem a marca do Estado em toda a rede social, produzindo uma "homogeneidade" do corpo político. A nomeação de um "fim único" a ser alcançado pela atividade militante injeta dinamismo nesta totalização e, no nosso entendimento, contribui para a sua reprodução13 13 O referencial aqui adotado não postula a democracia liberal como o sistema capaz de realizar a "liberdade". Todavia é preciso reconhecer que as contradições deste sistema não são superadas pelas sociedades totalitárias. As ações de poder se reproduzem com vigor tanto por processos totalizantes quanto por vias singulares, aliás, pela combinação de ambas. Não se trata de fazer comparações valorativas e sim de elucidar o jogo que opera a sujeição do militante de esquerda através de práticas totais somadas a ações precisas. Em nome do combate ao liberalismo não é cabível perpetuar procedimentos que sufocam a multiplicidade dos sujeitos e a diversidade das vontades. .

A engrenagem da totalização precisa de um agente apto a encarnar e reproduzir as práticas totalizadoras capazes de gerar um solo fértil para o totalitarismo14 14 Como é possível perceber a presente análise faz uma distinção entre totalização e totalitarismo. A prática da totalização tem o sentido aqui da atividade de supressão das diferenças e tensões entre as esferas do social, do político, do econômico, do afetivo, do familiar etc. Esta supressão se faz pela invasão de todos os espaços pela dimensão política (ou político-religiosa). Trata-se da dissolução do indivíduo no coletivo e do privado no público, é o sacrifício absoluto do "eu" em prol da organização e a fé na detenção da chave explicativa dos destinos da história. Enfim, no mundo totalizado o sujeito retira o sentido para sua vida exclusivamente da totalidade que ele ajudou a construir. Totalização não é o mesmo que totalitarismo, no sentido de poder centralizado, repressor e preocupado apenas em limitar a ação dos indivíduos. Mas, é forçoso reconhecer, o mundo totalizado pode constituir-se em alicerce sólido para práticas totalitárias. . Parecem úteis aqui as reflexões de Lefort, ainda que este pensador esteja empenhado em descrever os mecanismos da sociedade totalitária e, talvez por isso, coloque ênfase no papel do Estado e da ideologia na formação do militante. Segundo Lefort, a "ideologia totalitária" investe num sujeito determinado, ela forma "um tipo novo de agente social, o militante, em cuja figura se pode enxergar a inscrição do sujeito no discurso que se supõe falado por ele. O militante não está no partido como num meio determinado com fronteiras visíveis; ele é em si mesmo um representante do partido; bebe na fonte a possibilidade de liberar-se dos conflitos [...], a possibilidade de encarnar em sua pessoa a generalidade do social" (LEFORT, 1990, p. 327-329).

Este militante vestido de partido funciona como um intermediário que permite à instituição despejar sua verdade homogeneizadora sobre um social totalizado. Existe um poder e um saber que, de certo modo, envolvem, penetram e reproduzem este militante com uma incrível capacidade de institucionalizar os conflitos e normatizar o social. A eficácia do militante está na sua habilidade para imprimir os signos da totalidade na prática social. A racionalidade totalitária manifesta o desejo de nivelar o instituinte e o instituído. Ser militante, sob estas condições, implica em absorver a vontade de controlar o imprevisível e dominar o devir, o que, ressalta Lefort, implica em abolir o histórico na história (cf. LEFORT, 1990, p. 333).

É preciso acrescentar que este militante é formado à medida que vai realizando as virtualidades que a prática de guiar o rebanho lhe oferece. Um conjunto de ações singulares parecem combinarse com procedimentos totalizantes gerando a sujeição deste agente político. É no próprio movimento de instaurar os saberes e as práticas totalizantes que o militante se reproduz enquanto pastor e guia responsável pela caminhada. O saber sobre o rebanho se articula ao conhecimento dos caminhos da salvação constituindo um circuito de "verdades" que solidificam e reproduzem o engajamento e suas técnicas. Seu altruísmo extremo, sua aptidão para o engajamento absoluto, seu impulso em expor aos outros suas vontades e limites, sua disposição para a bem comportada auto-crítica, sua dedicação ao treinamento do corpo, são atributos que lhe chegam no dia-a-dia da luta que gradativamente anula sua individualidade. Os enfrentamentos cotidianos, as reuniões, os debates, os rituais da organização moldam sua alma plena de saberes e culpas tanto quanto treinam seu corpo para cobrar dos companheiros com a mesma intensidade que cobra de si mesmo uma postura correta diante do mundo e do devir.

Nos dias de hoje é perceptível o declínio dos movimentos sociais totais. As mobilizações políticas de minorias como: negros, feministas, homossexuais, ecologistas, defensores dos direitos humanos etc; explode a noção segundo a qual todas as lutas sociais evoluem politicamente à medida que integram suas reivindicações numa instituição comum e central. Ou seja, com a emergência dos "novos movimentos sociais" e a conseqüente dissimulação do político ao longo de diferentes práticas sociais impõe-se um declínio à crença (milenarista) na existência de um campo único gerador dos antagonismos sociais e que legitima as lutas da esquerda militante. Os "novos movimentos sociais" colocam em xeque o modelo total de sociedade, tendo em vista que os seus objetivos são singulares e abrangem relações sociais específicas que dispensam uma estratégia única e final de ação. Neste sentido os "novos movimentos sociais" apresentam um potencial radicalmente democrático na medida em que preservam a diversidade e não buscam uma identidade total e duradoura dos seus agentes através de categorias como o "trabalho" ou qualquer outra (cf. LACLAU, 1986, p. 46). Este novo contexto muda o perfil do intelectual ao mesmo tempo em que a reflexão crítica dos pensadores da prática política contribui para a transformação da atividade militante.

Neste contexto de emergência de um ator político "descentralizado" e "destotalizado", é correto apontar a igreja católica progressista do Brasil como um dos últimos redutos de congregação de movimentos sociais formados por uma militância totalizante. O percurso aqui executado permite entender melhor a força desta afinidade político-religiosa de esquerda. A atração entre dimensões que se colocaram em pontas opostas ao longo da modernidade se explicaria, ao menos em parte, pela permanência das práticas pastorais nas organizações políticas de esquerda15 15 Para uma análise mais detalhada deste ponto ver SOUZA, 1993 e 1994. . É pertinente a análise em termos de uma afinidade eletiva político-religiosa proporcionada pelo reencontro de certos procedimentos disciplinares num espaço ótimo para constituição de um sujeito militante. Este sujeito apresenta a peculiaridade de incorporar uma totalidade reforçada, de um lado, por impulsos oriundos do campo político e, de outro, por forças cuja origem está no espaço religioso. Ou seja, a afinidade político-religiosa própria da igreja católica progressista, combina mecanismos políticos e religiosos e potencializa o efeito totalizante. Neste ciclo produz-se uma totalização duplamente reforçada pelas energias das duas esferas que se combinam e dissolvem todas as diversidades, as diferenças, enfim, as múltiplas dimensões da sociedade. A soma de dois fins absolutos, salvação e transformação total da sociedade, leva à totalização e a um reinvestimento nos procedimentos pastorais e nas técnicas disciplinares de formação de um sujeito militante também total, enquadrado material e espiritualmente.

Acredito que seja possível afirmar que a igreja católica progressista ao promover esta socialização totalizadora estaria patrocinando, ainda que não intencionalmente, o retorno ao campo religioso de procedimentos pastorais que atravessaram a história política moderna. Depois do resgate do pastorado pelo catolicismo medieval, vimos ele ser requentado e temperado pelo calvinismo na sua frente política para, posteriormente, em meio a rupturas, ser recuperado com vigor pelas organizações da luta operária16 16 Foucault alertou sobre o papel do pastorado também na formação da governamentalidade moderna. A dominação se faz pela combinação dos procedimentos próprios à soberania do Estado com as práticas de poder pastoral, ou seja, as ações sobre a população, sem dispensar procedimentos microfísicos do poder (cf. FOUCAULT, 1988). . No caso do catolicismo progressista tudo se passa como se o encontro da esquerda de passado políticomilitar e da igreja de longa experiência disciplinar representasse o fechamento de um ciclo. O retorno do pastorado ao espaço do seu primeiro impulso parece proporcionar, no campo microfísico, o desenvolvimento radical das técnicas de controle do corpo militante e, na ordem macrohistórica, o revigoramento surpreendente do messianismo que agora soma salvação final com ação revolucionária terrena.

Mas, a ação política pastoral não se faz de forma tranqüila, nem mesmo nos movimentos ligados à igreja católica progressista. Ao longo da modernidade a militância totalizante apresentou também desequilíbrios e percalços. Como dissemos acima, o intelectual moderno nasceu sob o signo do compromisso, este gancho sem dúvida facilitou a sua interpelação pelas associações de esquerda. Mas, a prática militante moderna produziu não só a militância pastoral como também a resistência a estes procedimentos. Os confrontos, ocorridos ao longo do nosso século, entre intelectuais e artistas de esquerda de um lado e os dirigentes dos PCs europeus de outro, podem ilustrar este choque de forças tanto quanto as angústias, depressões e fugas vividas por militantes anônimos. A corporificação desta resistência nos chamados "novos movimentos sociais" (cujo maior exemplo foi o "maio de 68") colocou em xeque o militantismo pastoral, suas verdades e os procedimentos associados à produção destas verdades. O novo intelectual não mais se enquadrava na rígida hierarquia que determinava as prioridades e o caminho de um partido "pré-destinado" à vitória final. Livre do fantasma da culpa que solicitava um sacrifício de si, uma entrega total à causa, o intelectual, ou uma boa parte da intelectualidade de esquerda, despiu-se do seu antigo papel de consciência das massas em rebelião. A dúvida sobre o projeto único e final das esquerdas, as incertezas sobre o caminho definitivo para a revolução e a liberdade geral e a dureza do "socialismo real" levaram o intelectual engajado a desfazer-se da responsabilidade de guiar, de apontar o caminho e dizer a verdade da classe e do seu percurso na história17 17 Renato Janine Ribeiro faz um interessante paralelo entre a postura militante de Sartre e Foucault, mostrando como a biografia destes intelectuais está perpassada pelas questões abertas pela militância moderna e o seu declínio. Para este pensador as posturas militantes de Sartre e Foucault se opõem de início para depois se inverterem no final, como se cada um deles tivesse se deixado envolver pelas forças que mobilizavam o seu outro (cf. RIBEIRO, 1995). . Sob o risco do exagero é possível afirmar que trata-se da morte do intelectual como balizador da política. Os grandes nomes da academia não figuram mais como consciência moral pública sobre as lutas políticas.

Mas existe um novo papel para os intelectuais diante dos novos movimentos sociais? E estas novas brigadas urbanas podem provocar transformações significativas na sociedade a partir dos conflitos locais e dispersos?

A busca de resposta para estas questões é que tem animado boa parte do debate atual sobre o que alguns convencionaram chamar de modernidade e pós-modernidade. Não é necessário nos alongarmos aqui nesta polêmica nem sempre esclarecedora. É importante reconhecer, entretanto, que a análise dos novos movimentos sociais a partir dos paradigmas característicos das lutas políticas da modernidade não permitem apreender toda sua complexidade e potencialidade. Por outro lado, não é fácil determinar até que ponto as bandeiras típicas das lutas da era moderna devem ser descartadas pelos novos movimentos contestatórios. Como abandonar a luta pela liberdade, pela igualdade, enfim, pela emancipação plena se esta efetivamente não se realizou? Em que medida as ambigüidades insolúveis da democracia moderna não funcionam, por sua vez, como forças capazes de reproduzir a dominação mesmo dentro dos movimentos constestatórios?

A ausência de um terreno seguro que fundamente uma resposta definitiva para estas questões indica que devemos, ao menos por ora, buscar respostas parciais a partir das situações concretas de enfrentamento. A prática política contemporânea informa que o desafio atual do intelectual de esquerda é substituir por ações teóricas precisas a vontade de promover totalizações teóricas e o impulso de dizer o significado dos confrontos18 18 A trajetória intelectual e militante de Michel Foucault é bastante sugestiva quanto às novas estratégias de resistência. . O intelectual deve resistir à tentação de falar pelo outro. Em oposição ao "intelectual total" e sua prática globalizante é preciso valorizar o "militante singular", que participa de combates precisos contra as manifestações de poder que estão dispersas na sociedade.

Como bem denunciou Foucault, a totalização da luta contra o poder acaba por alimentar o jogo do poder à medida que reproduz procedimentos de exclusão e condenação de falas e atitudes de resistência que não se enquadram nas instituições "legítimas" de luta contra toda dominação. O exercício do poder tem a peculiaridade de produzir verdades, e aí deve se dar o combate do militante singular, é neste espaço que o intelectual tem um papel a desempenhar. Ele deve mostrar e questionar a racionalidade que envolve as relações de poder. Deve apontar o poder ali onde ele aparece sob outras formas, com outros nomes, e viabilizar a emergência na cena política de outros enunciados, opostos ao discurso de poder. O intelectual deve possibilitar a circulação das falas da resistência. Este seria o novo papel do intelectual no conjunto de reações às manifestações microfísicas do poder que constituem os "revides locais"19 19 A mobilização de massa se legitima na constatação de que a realização do poder da classe dominante se dá pela soberania localizada no aparelho de Estado. Como proceder quando se percebe que também existem práticas de poder dispersas na rede institucional da sociedade, que operam sem ter um sujeito (único e identificável) no seu comando e cujo alvo final é o corpo do indivíduo? Diante deste poder a melhor estratégia é a resistência ali onde ele se manifesta. Resistência que substitui a busca da vitória final pela surpresa da reação que exige desvios por parte do poder e provoca o rearranjo das forças no tabuleiro. Este conjunto de resistências descentralizadas e destotalizadas é bem retratada pela imagem dos "revides locais". .

Significa dizer que não é função do intelectual operar uma totalização entre a teoria e a prática, buscar o pleno sentido ou a orientação definitiva de uma na outra. A teoria não é a resposta refletida de uma determinada prática; a relação entre teoria e prática é muito mais parcial, uma relação mais de revezamentos do que de determinação. Os múltiplos enfrentamentos locais exigem teorias singulares que diante de obstáculos cedem lugar à prática; esta, por sua vez, não é a aplicação da teoria; ambas são na verdade ações distintas e combinadas. Sendo assim, os intelectuais, as supostas "vanguardas", não deveriam se colocar como representantes dos que lutam, como a consciência deles ou como portadores da sua verdade. Isto porque, como bem expõe Deleuze na sua conversa com Foucault, a palavra e a ação não precisam ser legitimadas por alguma entidade centralizadora e de vanguarda, as resistências locais constituem teorias específicas e atores múltiplos: "Não existe mais representação, só existe ação: ação de teoria, ação de prática em relações de revezamento ou em rede" (FOUCAULT e DELEUZE, 1988, p. 70).

Logo, o papel do intelectual não é revelar a verdade às massas como se elas fossem inconscientes, ou falar em seu nome. O intelectual deve contribuir para que o saber dos que lutam não seja barrado pelas práticas de poder. À teoria não se deve pedir que expresse ou traduza uma prática, ela é de saída uma prática, prática singular, local e não totalizadora (cf. FOUCAULT e DELEUZE, 1988).

Ao intelectual engajado não cabe produzir uma teoria sobre a luta, elaborada em nome de valores superiores e objetivos ideais. Muito ao contrário, sua tarefa consiste em, aproveitando-se da sua posição estratégica no aparelho de informação, permitir que o saber da luta, dos que vivem o exercício do poder, penetre neste sistema de informação. Uma teoria não deve pretender desmistificar o inconsciente, e sim vasculhar os segredos, denunciar as verdades, as racionalizações acopladas ao poder e que viabilizam o seu exercício.

A unidade das lutas locais, a ligação entre os ilegalismos regionais que resistem ao poder, não deve ser buscada numa totalização teórica. Não existe uma classe que, em função da sua "missão histórica", tenha uma posição privilegiada na luta contra o poder e que seja capaz de encampar as outras formas de resistência. Como explica Deleuze, "[diante da] política global do poder se fazem revides locais, contra-ataques, defesas ativas e às vezes preventivas. Nós não temos que totalizar o que apenas se totaliza do lado do poder e que só poderíamos totalizar restaurando formas representativas de centralismo e de hierarquia. Em contrapartida, o que temos que fazer é instaurar ligações laterais" (FOUCAULT e DELEUZE, 1988, p. 74).

A necessária unidade dos múltiplos revides locais deve ter, portanto, o caráter de uma fraternização, de uma vinculação transversal. Foucault complementa o raciocínio de Deleuze afirmando: "[...] a generalidade da luta certamente não se faz por meio da totalização de que você falava há pouco, por meio da totalização teórica, da 'verdade'. O que dá generalidade à luta é o próprio sistema do poder, todas as suas formas de exercício e aplicação" (FOUCAULT e DELEUZE, 1988, p. 78).

A generalidade da luta seria o resultado da própria dispersão das manifestações do poder. Mas os movimentos contemporâneos de resistência ao poder ainda estão diante do desafio de operacionalizar as alianças horizontais. O reconhecimento dos dilemas e armadilhas da prática política moderna não significa para a esquerda abortar em definitivo o desejo de transformações significativas na sociedade. A multiplicação das frentes de batalha pode enfraquecer a militância caso não se concretizem as alianças laterais não centralizadoras e tampouco hierarquizadas. À esquerda militante cabe implantar o diálogo entre os diferentes movimentos sociais e entre estes e o movimento operário, mas agora não com o intuito de realizar um projeto, o que fatalmente reproduz práticas pastorais com suas cadeias hierárquicas de submissão. O novo objetivo deve ser o de fortalecer os revides locais, multiplicar as estratégias singulares de resistência, provocar maiores revezes ao poder, solicitando novos desvios e rearranjos do jogo, o que, no final das contas, talvez possamos chamar de transformações.

É preciso pensar sobre o que na "velha" política não se deve repetir, enquanto se prepara novas ações políticas que reconstituam um espaço de significativas mudanças.

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Recebido para publicação em abril de 1998.

Nelson Rosário de Souza (ndsouza@coruja.humanas.ufpr.br) é Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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  • ______. 1994. A produção político-religiosa do militante católico progressista. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 3, p.103-119, jun.
  • WALZER, M. 1987. La revolution des saints Paris : Belin.
  • WEBER, M. 1967. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo : Pioneira.
  • 1
    É pouco recomendável o emprego do termo "modernidade" dada a sua ambigüidade. Insistiremos, entretanto, no seu uso, não para polemizar e sim para caracterizar este período que, por pura convenção, teria iniciado em 1789 e cujos princípios estariam em crise desde a segunda guerra. Modernidade significa a construção da idéia de razão como essência do homem e a penetração desta racionalidade nas diferentes instâncias sociais: econômica, política, cultural, religiosa etc. É o momento de valorização da história como processo temporal rumo à emancipação do homem e promessa de reencontro do homem consigo mesmo a partir do avanço da razão. Ao não realizar plenamente princípios como os de liberdade e igualdade, a modernidade revela-se tensa e contraditória. Flagrar e investigar estas contradições em diferentes momentos é tarefa da reflexão crítica. O presente artigo pretende analisar alguns aspectos da militância política de esquerda no contexto das contradições modernas.
  • 2
    É preciso acrescentar que percorrerei este caminho sob a luz de investigações anteriores que realizei sobre a igreja católica progressista no Brasil. Muito embora não pretenda abordar com profundidade este tema no presente artigo é legítimo afirmar que a reflexão produzida aqui ajuda a entender a força política dos católicos progressistas e faz emergir inquietantes dúvidas sobre as potencialidades "libertadoras", ou mesmo de resistência, dos movimentos sociais ligados à igreja católica progressista no Brasil. Para uma análise mais detalhada sobre os militantes católicos progressistas ver meus trabalhos anteriores (cf. SOUZA, 1993 e 1994).
  • 3
    Estes primeiros engajamentos produziram, via de regra, um desinteresse pelos aspectos terrenos da vida. Não se deve ignorar, entretanto, que o engajamento religioso trazia consigo desde cedo um enorme potencial de mobilização bélica de "soldados da fé".
  • 4
    Ao contrário do que possa parecer a intenção deste artigo não é demonstrar uma eterna repetição da história ou identificar personagens tão díspares quanto o "pastor" cristão da Idade Média e o moderno militante do partido operário. O objetivo aqui é o de perceber como certas técnicas e práticas surgiram associadas a determinadas questões e processos, e como foram readaptadas e reinvestidas ao longo da história em função de novos problemas e diferentes estratégias de poder. Deste modo talvez seja possível perceber como e porque certas ferramentas e procedimentos típicos das organizações políticas modernas acabam por reproduzir práticas de dominação ao invés de instaurar as promessas de rupturas emancipatórias e libertadoras. Neste sentido, as análises de Foucault parecem fornecer uma chave útil à elucidação dos dilemas que marcam o militantismo moderno.
  • 5
    Dentro dos limites deste trabalho privilegiou-se a análise da conexão político-religiosa, não iremos explorar aqui as possíveis relações político-militares.
  • 6
    É sabido que indivíduos com desejo de mudar ou negar o mundo à sua volta sempre existiram, em qualquer época, em qualquer lugar. Mas militantes tal como aqui entendemos, atuando numa organização racional, estes são típicos da modernidade e emergem com a ascensão da burguesia, na sua luta revolucionária. A rigor também seria possível identificar como militante aquele sujeito empenhado numa luta individual para realização de interesses pessoais. Contudo, as ações militantes coletivas patrocinadas por uma instituição, ou que rapidamente sofreram o seu investimento, e que têm a propriedade, ou a pretensão, de negar o mundo existente pela via revolucionária foram as que imprimiram a sua marca na história e é sobre elas que recairá nosso interesse. Não ignoramos que organizações conservadoras, reacionárias, enfim, de direita, também são capazes de mobilizar militantes. Nosso olhar se voltará, entretanto, para o militante forjado nas instituições revolucionárias, cujo princípio maior era a libertação dos oprimidos e a emancipação do homem, pois o desafio é tentar explicar como este militante, paradoxalmente, acabou, em muitos casos, por reproduzir práticas de dominação e procedimentos totalizantes.
  • 7
    O legado do pastorado à modernidade, é importante explicar, foi um estoque de técnicas e práticas de mobilização e controle coletivos porém com eficácia que desce até os indivíduos e seus corpos. Nas lutas e enfrentamentos modernos o baú do pastorado foi aberto muitas vezes.
  • 8
    Dados os limites deste artigo não faremos aqui uma digressão sobre a história da organização operária. Convém apenas registrar que a transferência da prática militante para as instituições socialistas se faz paralelamente ao afastamento da burguesia da ação revolucionária substituída pela atividade de ordenar a nova sociedade, agora capitalista.
  • 9
    Neste momento o intenso diálogo da intelectualidade de esquerda a propósito do militante envolveria outros nomes, como o de Kautsky. Mais uma vez este artigo privilegiará aspectos considerados essenciais para cumprir seus objetivos. Vale o registro, entretanto, de que a separação mais forte entre saber revolucionário e movimento operário foi formulada por Kautsky, antes mesmo de Lênin (cf. KAUTSKY, 1975). Neste sentido é preciso assinalar que a reflexão de Lênin configura-se, em alguns momentos, até mesmo como uma relativização da divisão entre vanguarda e massa operária presente em Kautsky.
  • 10
    Difícil aqui não comparar, sob certos aspectos, o militante descrito por Guevara, com o saint calvinista que experimentaria uma disciplina consentida. Mas a intenção, como já frisei, não é construir identidades entre atores tão díspares. O importante é perceber como mecanismos semelhantes de recrutamento, mobilização e disciplina operavam em contextos e organizações tão distintas. Este fato sugere uma sucessão de reinvestimentos e adaptações de determinadas técnicas e procedimentos muito úteis e eficientes na captação e redirecionamento de energias para o campo político ou político-religioso.
  • 11
    Empresto esta imagem da conversa entre Deleuze e Foucault sobre o caráter material do saber articulado aos procedimentos de poder disciplinar (cf. FOUCAULT e DELEUZE, 1988, p.70).
  • 12
    Castoriadis, que não ignorava este problema, chegou a afirmar que o militante que se apresenta como o detentor do segredo da história, portanto como um "sujeito absoluto", tem o suporte teórico na concepção marxista da emergência de um homem total, capaz de suprimir o imponderável do social e dominar plenamente a sua própria história (cf. CASTORIADIS, 1982, p. 133-137).
  • 13
    O referencial aqui adotado não postula a democracia liberal como o sistema capaz de realizar a "liberdade". Todavia é preciso reconhecer que as contradições deste sistema não são superadas pelas sociedades totalitárias. As ações de poder se reproduzem com vigor tanto por processos totalizantes quanto por vias singulares, aliás, pela combinação de ambas. Não se trata de fazer comparações valorativas e sim de elucidar o jogo que opera a sujeição do militante de esquerda através de práticas totais somadas a ações precisas. Em nome do combate ao liberalismo não é cabível perpetuar procedimentos que sufocam a multiplicidade dos sujeitos e a diversidade das vontades.
  • 14
    Como é possível perceber a presente análise faz uma distinção entre totalização e totalitarismo. A prática da totalização tem o sentido aqui da atividade de supressão das diferenças e tensões entre as esferas do social, do político, do econômico, do afetivo, do familiar etc. Esta supressão se faz pela invasão de todos os espaços pela dimensão política (ou político-religiosa). Trata-se da dissolução do indivíduo no coletivo e do privado no público, é o sacrifício absoluto do "eu" em prol da organização e a fé na detenção da chave explicativa dos destinos da história. Enfim, no mundo totalizado o sujeito retira o sentido para sua vida exclusivamente da totalidade que ele ajudou a construir. Totalização não é o mesmo que totalitarismo, no sentido de poder centralizado, repressor e preocupado apenas em limitar a ação dos indivíduos. Mas, é forçoso reconhecer, o mundo totalizado pode constituir-se em alicerce sólido para práticas totalitárias.
  • 15
    Para uma análise mais detalhada deste ponto ver SOUZA, 1993 e 1994.
  • 16
    Foucault alertou sobre o papel do pastorado também na formação da governamentalidade moderna. A dominação se faz pela combinação dos procedimentos próprios à soberania do Estado com as práticas de poder pastoral, ou seja, as ações sobre a população, sem dispensar procedimentos microfísicos do poder (cf. FOUCAULT, 1988).
  • 17
    Renato Janine Ribeiro faz um interessante paralelo entre a postura militante de Sartre e Foucault, mostrando como a biografia destes intelectuais está perpassada pelas questões abertas pela militância moderna e o seu declínio. Para este pensador as posturas militantes de Sartre e Foucault se opõem de início para depois se inverterem no final, como se cada um deles tivesse se deixado envolver pelas forças que mobilizavam o seu outro (cf. RIBEIRO, 1995).
  • 18
    A trajetória intelectual e militante de Michel Foucault é bastante sugestiva quanto às novas estratégias de resistência.
  • 19
    A mobilização de massa se legitima na constatação de que a realização do poder da classe dominante se dá pela soberania localizada no aparelho de Estado. Como proceder quando se percebe que também existem práticas de poder dispersas na rede institucional da sociedade, que operam sem ter um sujeito (único e identificável) no seu comando e cujo alvo final é o corpo do indivíduo? Diante deste poder a melhor estratégia é a resistência ali onde ele se manifesta. Resistência que substitui a busca da vitória final pela surpresa da reação que exige desvios por parte do poder e provoca o rearranjo das forças no tabuleiro. Este conjunto de resistências descentralizadas e destotalizadas é bem retratada pela imagem dos "revides locais".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Mar 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 1999

    Histórico

    • Recebido
      Abr 1998
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