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Demandas de usuários a um serviço de pronto atendimento e seu acolhimento ao sistema de saúde

Resumos

O estudo tem por objetivo identificar e analisar demandas de usuários a um Serviço de Pronto Atendimento e a organização desse serviço para o seu acolhimento ao Sistema de Saúde. Trata-se de um estudo de caso, com abordagem qualitativa. Os dados foram coletados por meio de observação livre. O foco de observação foi o atendimento prestado aos usuários que obtiveram algum tipo de atendimento no serviço, destacando suas demandas e seu acolhimento ao Sistema. Constatou-se que demandaram o serviço usuários com diferentes necessidades, desde as simples às mais complexas. O processo de trabalho estava organizado para atender a algumas dessas necessidades, respondendo, dentro de limites, à finalidade de tratar a queixa principal e seguir a hierarquia do Sistema. A integralidade do cuidado era dada pelo usuário, que percorria sozinho, a seu critério e risco, os diferentes serviços, quando esta seria uma responsabilidade do Sistema como um todo.

serviços de saúde; qualidade dos cuidados de saúde; conselho de saúde (SUS); serviços médicos de emergência


This study aims to identify and analyze users' demands to emergency services, as well as to examine the work organization to welcome them in the health system. We carried out a case study with a qualitative approach. Data were collected through free observation by time sampling. Observation focused on the organization of the work process and on the care given to users who received some kind of care at the emergency service, highlighting their demands and their acceptance in the system. Users who demanded health services displayed different needs, ranging from the simple to the more complexes level. The work process was organized to meet some of these needs, aiming, within certain limits, to treat the main complaint and follow the health system hierarchy. Healthcare users were responsible for obtaining integral care. They journeyed alone, at their own risk, through different services, with no guidance or help from the healthcare system, as would be expected.

health services; quality of health care; health councils (SUS); emergency medical services


Este estudio tiene por objetivo identificar y analizar las demandas de los usuarios a un servicio de urgencia y la organización del servicio para su acogida en el sistema de salud. Se trata de un estudio de caso, con aproximación cualitativa. La recopilación de datos se realizó a través de la observación libre por muestreo de tiempo. El foco de observación fue la atención prestada a los usuarios que recibieron alguna atención en el servicio, destacándose las demandas y su acogida en el Sistema. Se constató que demandaron el servicio usuarios con diferentes necesidades, desde las simples a las más complejas. El proceso de trabajo estaba organizado para atender algunas de esas necesidades, respondiendo, con límites, a la finalidad de tratar la molestia principal y seguir la jerarquía del sistema. La totalidad del cuidado fue dada por el usuario, que recorría solo, a su criterio y riesgo, los diferentes servicios, cuando esto sería una responsabilidad del sistema como un todo.

servicios de salud; calidad de la atención de salud; Conselhos de Saúde (SUS); servicios médicos de urgencia


ARTIGO ORIGINAL

Demandas de usuários a um serviço de pronto atendimento e seu acolhimento ao sistema de saúde1 1 Trabalho extraído da Dissertação de Mestrado

Giselda Quintana MarquesI; Maria Alice Dias da Silva LimaII

IDoutoranda em Enfermagem, Enfermeira da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre, e-mail: giselda@portoweb.com.br

IIDoutor em Enfermagem, Professor. Adjunto da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e-mail: malice@enf.ufrgs.br

RESUMO

O estudo tem por objetivo identificar e analisar demandas de usuários a um Serviço de Pronto Atendimento e a organização desse serviço para o seu acolhimento ao Sistema de Saúde. Trata-se de um estudo de caso, com abordagem qualitativa. Os dados foram coletados por meio de observação livre. O foco de observação foi o atendimento prestado aos usuários que obtiveram algum tipo de atendimento no serviço, destacando suas demandas e seu acolhimento ao Sistema. Constatou-se que demandaram o serviço usuários com diferentes necessidades, desde as simples às mais complexas. O processo de trabalho estava organizado para atender a algumas dessas necessidades, respondendo, dentro de limites, à finalidade de tratar a queixa principal e seguir a hierarquia do Sistema. A integralidade do cuidado era dada pelo usuário, que percorria sozinho, a seu critério e risco, os diferentes serviços, quando isso seria uma responsabilidade do Sistema como um todo.

Descritores: serviços de saúde; qualidade dos cuidados de saúde; conselhos de saúde (SUS); serviços médicos de emergência

INTRODUÇÃO

A demanda aos serviços de saúde pode ser entendida como um pedido explícito que expressa todas as necessidades do usuário. Ela pode se efetivar por meio de consulta, acesso a exames, consumo de medicamentos, realização de procedimentos, pois é essa a forma como os serviços organizam a sua oferta. Paradoxalmente, as necessidades de cada usuário podem ser outras. Elas podem ser a busca de respostas às questões socioeconômicas, às más condições de vida, à violência, à solidão, à necessidade de vínculo com um serviço/profissional, ou, ainda, o acesso a alguma tecnologia específica que lhe possa proporcionar qualidade de vida(1).

Em toda situação de atendimento prestado por profissionais de saúde, o acolhimento deve estar presente. Pressupõe atender a todos, ouvindo seus pedidos e assumindo uma postura capaz de dar respostas mais adequadas aos usuários, utilizando os recursos disponíveis para a resolução de problemas. Implicará prestar atendimentos com interesse e responsabilização, orientando, quando for o caso, e estabelecendo articulações com outros serviços, para a continuidade da assistência, garantindo, assim, a eficácia desses encaminhamentos(2-3).

A procura por serviços de saúde envolve fatores que, dependendo de como estão ordenados, definirão a escolha pelo usuário. Assim, são influentes a gravidade ou a urgência do problema/necessidade, a tecnologia disponível, a resolutividade da atenção, a acolhida, as condições de acesso (distância da moradia, as formas, o tempo e o custo de deslocamento), a agilidade no atendimento, as experiências vividas pelo paciente/familiar, a destreza na marcação de exames ou encaminhamento para outros serviços, bem como o vínculo estabelecido pelo usuário com profissionais, serviços e com o Sistema de Saúde(4-8).

O modelo piramidal de atenção à saúde adotado pelos municípios, na década de 90, ainda não conseguiu um resultado que satisfaça as necessidades da população, apesar de ter imprimido mudanças significativas na estrutura e nos processos de trabalho nos serviços de saúde. A produção de cuidados, a cobertura assistencial, assim como a complementaridade e integração das ações nas unidades de saúde e delas com o Sistema têm sido insuficientes. Existe, também, uma relação inadequada entre a oferta e a demanda de serviços.

A falta de definições políticas, a baixa resolutividade e qualidade oferecida nos serviços, aliada à dificuldade de mudança nos hábitos culturais e crenças da população têm levado o usuário a buscar a assistência médica onde exista a porta aberta.

A oferta restrita de serviços faz com que o público excedente procure atendimento em locais que concentrem maior possibilidade de portas de entrada, sendo que os pronto atendimentos e as emergências hospitalares correspondem ao perfil de atender às demandas de forma mais ágil e concentrada. Apesar de superlotados, impessoais e atuando sobre a queixa principal, esses locais reúnem um somatório de recursos, quais sejam consultas, remédios, procedimentos de enfermagem, exames laboratoriais e internações, enquanto as unidades de atenção básica oferecem apenas a consulta médica.

No Serviço de Pronto Atendimento de um Centro de Saúde de grande porte, observou-se que era freqüente a população usuária utilizar a porta da urgência não só para os casos agudos, mas também, de forma eletiva, para complementar os atendimentos das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e das Unidades Especializadas (UE). Também era freqüente, no discurso dos trabalhadores, que a utilização indevida, nos casos eletivos, descaracterizava a missão de atendimento de urgência, o que colocava o usuário em uma situação de ter que justificar a sua necessidade para a obtenção do atendimento.

Com base na situação descrita, tem-se como objetivo identificar e analisar demandas de usuários a um Serviço de Pronto Atendimento e a organização desse serviço para o acolhimento ao Sistema de Saúde.

METODOLOGIA

É uma pesquisa com abordagem qualitativa, que apreende a realidade e compreende os fenômenos e processos sociais que se manifestam no cotidiano do trabalho e que têm reflexo direto e indireto na vida das pessoas que buscam e que recebem atendimento em saúde. Favorece a observação de vários elementos, de forma simultânea, buscando entender e descrever o contexto em que o fenômeno ocorre (9).

O desenho metodológico da pesquisa é o estudo de caso, que permite um aprofundamento da unidade estudada, vista na sua singularidade(10).

A coleta de dados foi realizada por meio da observação livre, por amostragem de tempo(11), em um Serviço de Pronto Atendimento de um Centro de Saúde, gerenciado sob as diretrizes estratégicas da Secretaria Municipal da Saúde de Porto Alegre (SMS/POA). O foco de observação foi o atendimento prestado aos usuários, destacando suas demandas, assim como a organização do processo de trabalho, no período de agosto a dezembro de 2003.

A observação foi realizada na sala de espera, na recepção, no espaço da pré-consulta, no corredor de espera, em frente aos consultórios, na sala de observação e de procedimentos. A maior parte da observação se concentrou no espaço da pré-consulta e na sala de observação. Esses dois locais, por serem abertos e amplos, proporcionaram a visão de outros espaços de atendimento, sendo possível observar o seu funcionamento. Na sala de observação, eram realizados quase todos os procedimentos, tanto da enfermagem, quanto dos médicos. Os períodos de observação ocorreram em horários escalonados, de forma intencional, nos dias da semana e nos 3 turnos de trabalho.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da SMS/POA. Aos trabalhadores de saúde foi entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual garantia os aspectos éticos apontados pela resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde (12).

A análise dos dados foi realizada, seguindo as diretrizes do método qualitativo: ordenação dos dados, classificação em estruturas de relevância, síntese e interpretação dos dados(9).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Demandas a um Serviço de Pronto Atendimento

Foram identificadas como demandas ao Serviço de Pronto Atendimento (SPA): atendimentos nas situações graves e de risco para os pacientes, nas queixas agudas, nas necessidades pontuais caracterizadas como não urgentes e na busca de atendimentos complementares aos recebidos em outros serviços de saúde, assim como o vínculo com o pronto atendimento. Pode-se afirmar que os usuários procuraram esse serviço com a finalidade de solucionar suas necessidades, fossem elas urgentes ou não, algumas vezes expressas por meio da queixa, de forma inespecífica, que era a forma pela qual as portas do atendimento se abriam para eles.

Identificou-se que pacientes em situação de risco ou gravidade que estivessem próximos da área física da Unidade de Saúde eram trazidos para avaliação no SPA e, quando não resolvido o problema nesse local, eram transferidos para serviços de maior complexidade tecnológica. Faziam parte desses casos os pacientes com suspeita de Acidente Vascular Cerebral (AVC), problemas cardíacos, crises convulsivas, males súbitos, distúrbios psiquiátricos, entre outros.

Nessas situações, os pacientes recebiam o primeiro atendimento no SPA e eram transferidos para hospitais do município, para continuidade da assistência. Eles eram, na maior parte das vezes, encaminhados para serviços de emergência, sem comunicação prévia entre eles. Os médicos forneciam orientações aos familiares e encaminhavam o resumo do atendimento com a solicitação de avaliação mais detalhada do caso. Nas situações de maior gravidade, as emergências dos hospitais serviam como porta de entrada para os usuários que eram encaminhados para as unidades de internação ou para outros serviços, de acordo com o critério estabelecido pelo Hospital.

Os usuários que acessaram o SPA para a resolução de situações agudas apresentavam queixas relacionadas a crises hipertensivas, dor, disfunções respiratórias, diarréias e vômito. No setor da Pediatria, os problemas mais comuns para procura de atendimento foram os respiratórios, no inverno e as gastroenterites, nos meses mais quentes. Nessa especialidade, eram atendidas crianças até 12 anos; após essa idade, eram encaminhadas ao clínico, o que aumentava as demandas para esse profissional, pois abarcava todas as idades, a partir do início da adolescência. A pressão de demanda pediátrica era muito pequena, sendo que, no período de coleta de dados, poucos foram os pacientes acompanhados em sala de observação; a maioria dos atendimentos se deu pela consulta.

Nos adultos, os níveis tensionais elevados e a dor (abdominal, pélvica, torácica, e enxaqueca) eram as queixas mais freqüentes que motivaram a procura do pronto atendimento.

Um número significativo de pacientes adultos passava pela consulta ou era avaliado diretamente na sala de observação, eram atendidos no serviço e liberados ao domicílio. Esses pacientes tinham queixas agudas, que foram pinçadas e tratadas. O serviço tinha condições e capacidade de atendê-las; constatou-se que os cuidados prestados resolviam as necessidades do momento. Nas situações em que se fazia necessária a continuidade do atendimento, os pacientes eram orientados, verbalmente, a procurar os serviços de atenção básica, para a investigação e acompanhamento ou para acesso ao nível secundário. Não sendo esse acesso sempre fácil e, por vezes, demorado, os sintomas agudos faziam com que usuários buscassem os serviços onde existisse a porta aberta, que poderia ser a volta ao pronto atendimento, para tratamento da mesma queixa.

A agilidade na obtenção da consulta, que era conseguida para o mesmo dia da procura, trazia alguns usuários ao pronto atendimento para obter respostas a suas necessidades. Essa procura se dava independentemente do vínculo com o serviço e parecia ter relação com a resolução da queixa/necessidade.

Constatou-se que a preocupação com a espera pelo atendimento se iniciava muito antes de o usuário acessar os serviços de saúde. Ela começava em casa, desde o momento em que surgia a necessidade e que o sujeito imaginava a possibilidade do "não tem vaga". Essa fila de espera imaginária fica escondida, pela estruturação dos serviços, assim como nas vezes em que os trabalhadores pedem para o usuário voltar em outro dia para tentar a vaga. Essa espera, às vezes de muitos dias, em casa, representa a contradição do serviço no exercício dos princípios do SUS, assim como de sua efetivação(13).

Na prática, o trabalhador quando presta um atendimento, pouco consegue ver o antes e o depois do usuário, seu percurso pelo Sistema, as dificuldades pelas quais passou ou passará para obtenção da satisfação de suas necessidades. O usuário se submete, na maioria das vezes, ao que dizem ou fazem os trabalhadores, em nome do Sistema, dos saberes, das normas e das políticas institucionais.

Completando a idéia de que acessam o pronto atendimento pacientes que possuem vínculo com profissionais/serviços, observou-se que o fazem de forma complementar ao atendimento recebido na unidade de origem. Essa procura apresentou-se de três formas: em busca da prescrição de medicamentos para retirá-los na farmácia do SUS, para complementar o atendimento iniciado em outros serviços e para realização de procedimentos de enfermagem.

O fornecimento de medicações nas farmácias do SUS era efetivado somente mediante a receita médica, que deveria conter data, carimbo e assinatura do profissional. Após receber o carimbo e rubrica de fornecimento dos medicamentos pela farmácia, não era possível dispensá-los com a mesma receita, a não ser que o médico escrevesse na prescrição: uso contínuo. Quando a receita perdesse a validade, o usuário poderia: voltar ao seu médico e obter mais uma prescrição; peregrinar pelos serviços, tentando obter a prescrição e/ou não tomar a medicação, até obtê-la. Ele, ainda, dependendo do seu poder aquisitivo, poderia comprá-la, o que não era aplicável para um número significativo de usuários do SUS.

Foi possível identificar demandas de pacientes provenientes do próprio Centro de Saúde e de outros serviços da rede municipal, que, não alcançando a resolução de problemas de forma integral, procuraram o pronto atendimento para complementar o que já havia sido iniciado. Essas demandas foram constatadas, tanto para atendimentos médicos, quanto de enfermagem (glicemia capilar, nebulizações, aplicação de injetáveis e sondagens nasoenterais e vesicais).

A idéia de que os serviços ambulatoriais, sejam de atenção primária ou secundária, não estavam estruturados a prestar atendimentos nos casos agudos, encaminhando usuários para os de pronto atendimento, ficou reforçada pelo acima exposto. Também foi observado que, nos casos eletivos em que não era possível a consulta médica em curto prazo, o usuário preferia procurar o pronto atendimento a esperar na fila pelo agendamento, fato esse também descrito em artigo quando as autoras(4) referem que pacientes oriundos dos ambulatórios do hospital, Unidades Especializadas, buscavam a emergência para casos agudos, intercorrências e/ou internações. Também na atenção básica, a forma como estão organizados os serviços, onde a prioridade é dada ao que está agendado, faz com que usuários sejam encaminhados informalmente aos serviços de pronto atendimento/emergências, quando a demanda excede ao programado ou não corresponde ao que é ofertado pelo serviço(5, 6, 14).

A organização dos processos de trabalho, nas diferentes Unidades de Saúde, fazia com que os trabalhadores priorizassem os problemas a serem trabalhados, segundo um conjunto de saberes que determinavam uma dada organização dos serviços. Assim, para as unidades, básicas ou especializadas, a queixa aguda não era reconhecida como uma prioridade, porque o seu perfil era entendido como sendo de pronto atendimento. Por sua vez, no pronto atendimento, as queixas não urgentes, ditas eletivas, eram caracterizadas como do perfil das unidades ambulatoriais, sendo, então, para lá encaminhadas.

Esse fato, além de trazer insatisfação por parte de usuários que eram encaminhados de um lado para outro, sem respostas a suas necessidades, traziam ao trabalhador uma sensação de que os pacientes estavam no lugar errado e que vinham ao serviço para buscar atendimentos desnecessários, distorcendo a missão daquele serviço.

O usuário procura, nos serviços, a resolução de suas necessidades; não conseguindo, desloca-se de um serviço para outro até obtê-la. A manifestação de uma necessidade pelo usuário pode expressar a solução pensada, por ele, do que representa um problema. A definição do problema leva em conta o conceito de saúde-doença apreendido por ele nas relações sociais e no cotidiano. Cabe a nós, trabalhadores/gestores, a compreensão e caracterização desses problemas a fim de tornar o atendimento mais acolhedor, utilizando uma abordagem que leve à solução competente e que satisfaça o usuário.

A organização do serviço para o acolhimento de usuários ao sistema de saúde

O Serviço de Pronto Atendimento estava ligado administrativamente à UBS e realizava atendimentos referentes a Enfermagem, Pediatria e Clínica e de sala de observação e reanimação. Os procedimentos de enfermagem para aplicação de injetáveis, nebulizações e glicemia capilar eram realizados mediante a apresentação da prescrição médica. Os demais faziam parte da dinâmica de atendimento (pressão arterial, eletrocardiograma, oximetria de pulso, soroterapia, administração de medicamentos, sondagens vesicais e enterais, etc). Esse serviço oferecia atendimentos somente em dias úteis, sendo que os clínicos e os de enfermagem eram prestados das 7h às 20h, e o atendimento médico-pediátrico, no período das 7h às 18h.

A equipe do pronto atendimento era composta de vigilante, motorista, funcionária administrativa, que atendia no guichê de recepção, enfermeiras, auxiliares/técnicos de enfermagem, médicos clínicos, médicos pediatras, auxiliares de limpeza e a coordenadora do serviço, que fazia parte da escala de plantonistas médicos.

A área física era composta por uma sala de espera ampla para uso exclusivo dos usuários do SPA e seus acompanhantes; havia um aparelho de televisão nessa sala, banheiros, sendo um feminino e outro masculino, uma recepção, um espaço reservado para a pré-consulta, uma pequena sala de entrevistas, uma sala de observação com leitos para adultos e cadeiras acolchoadas com braçadeira, outra sala equipada para atendimento de urgência (reanimação), com entrada exclusiva, espaço para aplicação de injetáveis, adaptado junto à sala de reanimação, uma sala de nebulização, um banheiro interno para pacientes em atendimento, consultórios, um corredor interno em frente aos consultórios, com cadeiras para os pacientes que aguardavam pela consulta médica, cozinha equipada para refeições, sala de estar, depósito de roupas de uso, depósito de materiais, sala de coordenação, banheiros e vestiário para funcionários.

O serviço possuía equipamentos para o atendimento de urgências, com exceção de serviços de laboratório e radiologia, o que, em algumas situações, e de acordo com a gravidade dos casos, era um problema. O SPA também não contava com vínculos fortes de retaguarda para internações. Os pacientes graves eram encaminhados para os hospitais pelas emergências, tanto para investigação quanto para internação.

A organização do Sistema em forma de pirâmide hierarquizada, com acesso principal pela atenção básica, tinha colocado o SPA na condição de atender à queixa principal e devolver o usuário ao Sistema, sem a garantia do acesso à referência, fosse ela interna ou externa, mesmo nos casos agudos que necessitassem de reavaliação em um curto espaço de tempo, como, por exemplo, nas crises hipertensivas, ou de reajustes de medicação.

Acompanhou-se o atendimento de um paciente hipertenso que, pela segunda vez, fora encaminhado pelas auxiliares de enfermagem da UBS ao SPA para avaliação de crise hipertensiva. Ele foi medicado e ficou, pela segunda vez, algumas horas em sala de observação, até que a crise cedesse, tendo alta ao domicilio. Recebeu orientações verbais para alta, devendo agendar consulta na UBS para reavaliação.

O foco da atenção era a queixa principal, o que não estava desfocado da condição de pronto atendimento, mas que não garantia a seqüência da ação iniciada no serviço, sendo tarefa do usuário, lutar pela continuidade do atendimento, fosse ele, na UBS ou no Serviço Especializado. O tempo percorrido entre o atendimento de urgência e o agendamento da consulta eletiva pode ser longo, pois a noção de gravidade e de risco percebida pelos trabalhadores nem sempre é a mesma do usuário, a obtenção rápida desse atendimento nem sempre fica clara para ele, sem falar no desconhecimento que poderá ter dos caminhos/fluxos do Sistema.

O SUS instituiu políticas públicas que qualificaram as ações de saúde se comparadas às realizadas há 20 ou 30 anos atrás, mas ainda enfrenta fragmentação dos processos de trabalho e das relações entre profissionais, rede de serviços, além de burocratização e verticalização do Sistema(15). Ainda existe um baixo investimento na qualificação de trabalhadores no que diz respeito ao entendimento das diretrizes do SUS e no planejamento de ações que respondam às necessidades de saúde do usuário, tornando-o o centro da assistência, na qual será de responsabilidade de todos e do Sistema.

Uma paciente foi avaliada, pela auxiliar de enfermagem, na sala de pré-consulta; queixava-se de cefaléia intensa, tipo enxaqueca, já havia consultado um ginecologista que autorizou o uso de analgésico; como a dor não cedera, veio ao SPA. Na sala de pré-consulta lhe foi dito que no SPA só obteria o alívio da dor e que deveria agendar um clínico na UBS para a investigação do caso. Ela referiu que já obtivera informações para o agendamento da consulta, mas que era preciso chegar, na fila, muito cedo e que até o momento não tinha conseguido o agendamento. A auxiliar de enfermagem reforçou a necessidade desse agendamento. Ela aguardou no saguão pela consulta eletiva que foi marcada de forma seqüencial, por ordem de chegada, sendo quatro consultas por hora.

O SPA se organizou para atender às queixas pontuais e urgentes, não servindo como porta de entrada ao Sistema nas situações consideradas eletivas. A maioria das condutas lá tomadas reforçava a idéia de que, no pronto atendimento, só eram aliviados os sintomas, pois o "correto" para o início da investigação e do tratamento de casos eletivos seria na UBS.

Partindo do pressuposto que as UBS não conseguem abarcar todo o atendimento que lhes chega, tendo em vista a necessidade de realizarem ações continuadas e de vigilância, corrobora-se com a proposição de que a integralidade da atenção poderia ser conseguida por uma boa articulação entre serviços, cada um cumprindo a sua parte no atendimento(1). Um paciente hipertenso que tivesse vínculo com um serviço ambulatorial, quando atendido, na urgência, não poderia sair desse serviço sem orientação e sem a consulta agendada no serviço de origem, o mais breve possível.

O SPA contava com um instrumento de encaminhamento, onde informava ter sido o paciente atendido e a necessidade de reavaliação em um tempo que seria estabelecido pelo profissional, mas que não vinha sendo utilizado por ele, como recurso potente de garantia de acesso ao Sistema, tanto nos casos agudos quanto eletivos.

A demanda excedente e/ou a falta de resolutividade de alguns atendimentos prestados, em diferentes pontos do Sistema, fazia com que usuários tivessem que procurar outros serviços ou submeter-se a mais de um atendimento para obter a satisfação de suas necessidades. A procura pelo pronto atendimento poderia ser o meio, aparentemente, mais fácil e rápido de obter a resolução de problemas de saúde.

Uma usuária, com queixa de dores nas costas, problemas de coluna, procurou o SPA para conseguir avaliação médica, acesso a medicação analgésica injetável e a prescrição de uso continuado. Quando questionada se tinha vínculo com algum médico, ela referiu que sim, mas que, no inverno, com as dores e o frio, era difícil levantar cedo e permanecer na fila, sem a certeza de obter a consulta clínica na UBS de origem, principalmente, naquele momento, pois havia apenas um clínico na unidade.

Outra usuária veio ao serviço queixando-se de mal estar, fraqueza, e dificuldade respiratória. Ela relatou que já havia consultado na UBS, alguns dias atrás, e que o médico que a atendeu não a examinou, apenas se limitou a ouvir as suas queixas enquanto escrevia, e, sem olhá-la no rosto, solicitou exames. Insatisfeita, ela buscou outro serviço, agora, no pronto atendimento, na esperança de conseguir acesso rápido a uma avaliação criteriosa.

O número elevado de pacientes, a repetição de queixas, a rotina de atendimentos levam alguns profissionais, na UBS, serviços especializados e no pronto atendimento, a burocratizarem ações e procedimentos, perdendo a noção das necessidades da pessoa (cidadão), das potencialidades do Sistema e da possibilidade de formação de redes de atendimento.

A colocação em prática dos princípios do SUS, universalidade, eqüidade, acessibilidade e integralidade, de uma forma ou outra tem relação direta com as formas de acesso e acolhimento. Eles estarão presentes na disponibilidade do trabalhador para efetuar o atendimento. Essa disponibilidade pode ser expressa no ponto de início de uma conversa, no reconhecimento de um problema e na busca de soluções criativas para as necessidades alheias.

O usuário procura, na relação com o trabalhador, uma acolhida que seja capaz de interferir no seu problema; não conseguindo, buscará ultrapassar os obstáculos que lhe são impostos, tanto na recepção quanto na assistência, na tentativa de resolver as suas necessidades(3).

Usuários se deslocavam de regiões distantes para a realização de procedimentos de enfermagem, como, por exemplo, colocação de sondas, somente pela garantia do acesso que nem sempre era conseguido nas unidades próximas do domicílio. Após a troca da sonda vesical, a enfermeira informava ao paciente que ele não precisava atravessar a cidade para trocar a sonda, pois existiam serviços mais próximos da sua residência que poderiam fazê-lo. Ele insistiu que já havia tentado diferentes locais e que ninguém trocara a sonda. A enfermeira conversou com os familiares, orientou os cuidados e insistiu que deveriam ir mais perto de sua casa. Eles reforçaram a idéia de retornar, dizendo que preferiam a segurança daquele local a ter que peregrinar pelas unidades.

Assim, identifica-se que os usuários procuravam os serviços, não apenas pela localização geográfica, mas pela qualidade do serviço, a garantia e agilidade no acesso, por experiências positivas, bem como pelo acolhimento prestado. Esses aspectos também foram verificados por outras autoras (4-7).

Constatou-se que a prestação dos serviços no SPA, na maioria das vezes, era direcionada e focalizada ao ato a ser executado, não abrindo muito espaço para a ampliação do foco de atendimento para além da queixa principal e da execução da prescrição médica. A porta de entrada para o Sistema era obtida nos casos graves, sendo os pacientes encaminhados para internação nas emergências hospitalares; nos demais atendimentos, eram os usuários que lutavam pela integralidade das ações e serviços.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As principais demandas ao SPA foram as situações graves e de risco para os pacientes, as queixas agudas que envolviam desconforto físico e emocional, as necessidades pontuais caracterizadas como não urgentes, a busca de atendimento complementar ao recebido em outros serviços de saúde e o vínculo com o pronto atendimento.

Acessavam o SPA usuários com diferentes necessidades, desde as simples às mais complexas. O vínculo com diferentes serviços de saúde também foi constatado, tanto na atenção básica, quanto nas especialidades de nível secundário, utilizando o pronto atendimento de forma complementar, de forma pontual ou continuada.

O SPA, na maioria das vezes, era resolutivo às necessidades do usuário, principalmente nas queixas agudas e graves, proporcionando-lhe alívio de sintomas, conforto e acesso a diferentes tecnologias, no próprio serviço ou fora dele, como no caso das internações hospitalares. Assim sendo, o serviço atendia às necessidades dessa população, que não encontrava resposta rápida nos demais serviços ambulatoriais.

Para as queixas eletivas e complementares às ações iniciadas em outros serviços, a sua resolutividade ficava na dependência da satisfação do usuário, pois sendo uma busca espontânea, o compromisso com a cura ficava expresso no limite da sua expectativa, muito pouco com a do Sistema.

O SPA demonstrou que estava de portas abertas para as demandas que lhe chegassem e que respondia, dentro de limites, a sua finalidade, que era atender à queixa principal, encaminhando informalmente, na maioria das vezes, o usuário para as referências, nos diferentes níveis de complexidade normatizados nas políticas governamentais (modelo de pirâmide).

As queixas trazidas pelos usuários vinham moldadas segundo as possibilidades por eles apreendidas nas relações sociais, o que significa que as suas necessidades também eram construídas social e historicamente. O usuário buscava o pronto atendimento para resolução de necessidades agudas ou não, mas que, no momento, lhe traziam dificuldades e desconforto.

O fato de esse serviço não fornecer documentos de referência aos serviços ambulatoriais de atenção primária e secundária fazia com que o usuário tivesse que se submeter à hierarquia do Sistema, mesmo naqueles casos em que já tivesse recebido um diagnóstico no pronto atendimento, ou seja, o atendimento lá prestado de pouco tinha servido para o acesso direto a outros pontos do Sistema que não fosse o da atenção básica ou a internação hospitalar, cabendo ao usuário a prerrogativa de lutar sozinho pelo atendimento, o que deveria ser uma garantia do Sistema como um todo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 13.10.2005

Aprovado em: 3.8.2006

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  • 1
    Trabalho extraído da Dissertação de Mestrado
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Mar 2007
    • Data do Fascículo
      Fev 2007

    Histórico

    • Aceito
      03 Ago 2006
    • Recebido
      13 Out 2005
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