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A educação de enfermagem: buscando a formação crítico-reflexiva e as competências profissionais

Resumos

O estudo descreve resultados de uma pesquisa que retrata mudanças que são percebidas nos estudantes durante a formação e que contribuem para a definição de um perfil profissional. Estudo descritivo-exploratório, com abordagem qualitativa, que se ancora na dialética como referencial teórico-metodológico. Os dados foram obtidos de análise documental e através da realização de grupos focais com docentes, estudantes e enfermeiros de serviço. Os resultados demonstram a posição do estudante como sujeito ativo no processo ensino-aprendizagem, a partir de um movimento de transformação das estruturas acadêmicas. Identificou-se correlação entre o movimento de busca de maior participação política, ativa e crítica dos estudantes como fator que determina e orienta um perfil do enfermeiro generalista e de maior inserção social. Conclui-se que, apesar dos esforços, a orientação da formação e a definição do perfil profissional nos cenários do estudo estão voltadas às exigências do mercado de trabalho, sendo incipiente a formação baseada em áreas de competências.

educação em enfermagem; competência profissional; aprendizagem baseada em problemas


The study describes changes that are noted in students during training and which contribute to define a professional profile. We carried out a descriptive-exploratory study with a qualitative approach, based on dialectics as a theoretical-methodological framework. The data was obtained from documented analysis and through focal groups with teachers, students and service nurses. The results show the student's position as an active subject in the teaching-learning process, through a movement of transformation of academic structures. A correlation was found between the movement that seeks students' greater political, active and critical participation as a way of determining and guiding the profile of the generalist nurse and greater social insertion. We conclude that, despite efforts, training guidelines and the definition of the professional profile in the study settings is directed at the demands of the labor market, and that competency-based training is still incipient.

education; nursing professional competence; problem-based learning


El estudio describe los cambios en los estudiantes durante la formación y que apuntan para la definición de un perfil profesional. Estudio descriptivo exploratorio con aproximación cualitativa, que utilizase la dialéctica como referencial teórico-metodológico. Los datos fueran obtenidos con documentación y grupos focales. Los resultados indican la posición del estudiante como sujeto activo en el proceso enseñanza-aprendizaje desde el movimiento de cambio de las estructuras académicas. Se identificó una correlación entre el movimiento de búsqueda de mayor participación política, activa y crítica de los estudiantes como factor que determina y orienta un perfil del enfermero generalista y de mayor inserción social. Se concluye que, no obstante los esfuerzos, la orientación de la formación y la definición del perfil profesional en los escenarios del estudio están dirigidas a las normas del mercado de trabajo, siendo insuficiente la formación baseada en competencias.

educación en enfermería; competencia profesional; aprendizaje basado en problemas


ARTIGO ORIGINAL

A educação de enfermagem: buscando a formação crítico-reflexiva e as competências profissionais

Kênia Lara SilvaI; Roseni Rosângela de SenaII

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, e-mail: kenialara17@yahoo.com.br

IIEnfermeira, Doutora em Enfermagem, Professora Adjunta Aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

O estudo descreve resultados de uma pesquisa que retrata mudanças que são percebidas nos estudantes durante a formação e que contribuem para a definição de um perfil profissional. Estudo descritivo-exploratório, com abordagem qualitativa, que se ancora na dialética como referencial teórico-metodológico. Os dados foram obtidos de análise documental e através da realização de grupos focais com docentes, estudantes e enfermeiros de serviço. Os resultados demonstram a posição do estudante como sujeito ativo no processo ensino-aprendizagem, a partir de um movimento de transformação das estruturas acadêmicas. Identificou-se correlação entre o movimento de busca de maior participação política, ativa e crítica dos estudantes como fator que determina e orienta um perfil do enfermeiro generalista e de maior inserção social. Conclui-se que, apesar dos esforços, a orientação da formação e a definição do perfil profissional nos cenários do estudo estão voltadas às exigências do mercado de trabalho, sendo incipiente a formação baseada em áreas de competências.

Descritores: educação em enfermagem; competência profissional; aprendizagem baseada em problemas

INTRODUÇÃO

As experiências de ensino-aprendizagem são determinadas pelo contexto político, social, cultural e econômico em que se inscrevem. No mundo moderno, há a exigência que os profissionais tenham formação polivalente e orientada para a visão globalizadora da realidade e a atitude contínua de aprender a aprender(1).

A desregulamentação das economias nacionais, ditada pela divisão internacional do trabalho, preconiza a adoção de programas de privatização do setor público, inclusive nas áreas de saúde e educação. Tais transformações alteram as relações de trabalho que, associadas às inovações tecnológicas, impõem novas relações no mundo do trabalho e, em conseqüência, novas exigências quanto ao perfil dos trabalhadores(2).

No setor saúde, as transformações ocorrem na organização do trabalho com repercussões na incorporação tecnológica, associada às alterações no perfil epidemiológico e no padrão demográfico da população brasileira. Nesse contexto, é importante reconhecer as modificações que decorrem da implantação de novos modelos tecnológicos e assistenciais, com exigências no perfil dos profissionais.

No Brasil, essas modificações ocorrem no bojo do processo de consolidação do Sistema Único de Saúde - SUS - com esforços para se concretizar os princípios éticos, doutrinários, organizacionais e operativos no que diz respeito à saúde, definindo-a como um direito de todos e um dever do Estado, cabendo a esse garantir políticas públicas sociais e econômicas que assegurem o bem-estar físico, mental e social da população.

As doutrinas e princípios que regem o SUS estão contemplados na Lei 8.080(3) e são destaques: a universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; a integralidade de assistência; a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; a igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; a descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo; a regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde; a capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência.

Na busca de consolidação do SUS, tem-se caminhado para a construção de um modelo que dê respostas sociais aos problemas e necessidades de saúde, considerando a heterogeneidade e diversidade política, econômica e cultural do nosso país.

A formação dos profissionais de saúde, inserida no contexto da formação dos demais profissionais, deve estar norteada pela definição de áreas de competências (conhecimentos, habilidades e atitudes) que possibilitem a atuação e a interação multiprofissional. As diretrizes gerais para a educação dos profissionais de saúde do século XXI descrevem que o desenvolvimento de competências deve estar dirigido à busca da integralidade da atenção à saúde, contribuindo para a formação de um profissional que agregue aptidões para tomada de decisões, comunicação, liderança, gerenciamento e educação permanente(4).

Para fazer frente às exigências que se apresentam e se modificam, rapidamente, na formação dos profissionais de saúde, é necessário que haja mudanças no processo ensino-aprendizagem, tornando-o adequado à contemporaneidade, à complexidade e à imprevisibilidade, características do processo de trabalho em saúde.

É importante indicar que a preparação para o mundo do trabalho requer o desenvolvimento de conhecimentos, idéias, habilidades e, também, de disposições, atitudes, interesses e pautas de comportamento. Essas devem se ajustar às possibilidades e exigências dos modos de trabalho e sua forma de organização(5).

Sob tal perspectiva, mobilizações significativas têm sido feitas no sentido de se empregar transformações nos modelos de formação dos profissionais, buscando integrar a universidade aos segmentos da sociedade civil e com as comunidades em uma parceria que potencialize as alternativas de mudanças pedagógicas, organizativas e de interações institucionais. Essa questão se faz necessária para que a academia demonstre sua relevância no contexto social e para permitir a formação dos estudantes a partir de problemas da realidade concreta.

Na busca da reversão dos modelos tradicionais de ensino, compreende-se que a definição do perfil profissional deve ser uma construção da qual participem diferentes atores: egressos, docentes, estudantes, profissionais de serviço, gestores dos serviços de saúde, membros das organizações representativas da profissão e da sociedade civil num movimento que oriente a formação e a definição do perfil profissional baseadas em áreas de competências.

Definir competências é uma tarefa difícil, destacando que é importante passar da análise das práticas a um inventário razoável das competências julgadas essenciais, constitutivas do corpo da profissão(6).

Define-se uma competência como aptidão para enfrentar uma família de situações análogas, mobilizando de forma correta, rápida, pertinente e criativa múltiplos recursos cognitivos: saberes, capacidades, microcompetências, informações, valores, atitudes, esquemas de percepção, de avaliação e de raciocínio(7).

No que se refere aos profissionais de saúde, deve-se agregar, a essa conceituação, a necessidade de incorporar uma análise prospectiva das práticas da profissão, em contextos de inovações tecnológicas, de mudanças nos serviços de saúde e no perfil epidemiológico e padrão demográfico da população.

No contexto dessas transformações, assinala-se que a emergência da noção de competência visa reordenar a compreensão da relação trabalho/educação, desviando o foco dos empregos e das tarefas para um referencial centrado na práxis humana, potencializando as ações emancipatórias dos trabalhadores(8-9).

A aplicação da noção de competência implica institucionalizar novas formas de educar/formar os trabalhadores e gerir internamente as organizações e o mercado de trabalho, considerando as mediações de ordem econômico-produtiva, sócio-histórica, cultural e política na determinação do processo ensino-aprendizagem(8-9).

Com essa compreensão, defende-se que o modelo de formação do enfermeiro deve estar ancorado no referencial da pedagogia crítico-reflexiva(1, 10-11), contribuindo para a construção de competências profissionais que possibilitem o agir centrado no cuidado integral.

METODOLOGIA

O presente estudo trata-se de um recorte dos resultados da pesquisa "Os Projetos UNI como cenário de novas experiências na transformação da educação de enfermagem"* * Projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG ,desenvolvido por pesquisadores do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Ensino e Prática de Enfermagem - NUPEPE, da Universidade Federal de Minas Gerais, no período de 2000 a 2003. Buscou-se, no âmbito da pesquisa, analisar o processo de mudança na educação de enfermagem, vivenciado pelos cursos de enfermagem das instituições brasileiras que desenvolveram o Projeto UNI.

O Projeto UNI - Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde, um programa político-pedagógico que, desde o início da década de 90, incentivou a construção de inovações na formação dos profissionais de saúde em parceria com os serviços de saúde e com a comunidade, foi desenvolvido, no Brasil, pelas seguintes instituições de ensino superior: Universidade Estadual de Londrina, Faculdade de Medicina de Marília, Universidade Federal da Bahia e Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

O Projeto trazia uma proposta para as instituições de ensino, de serviço e seus atores de abandonarem o paradigma existente na sociedade capitalista, no qual os profissionais são educados para atender as necessidades relativas ao lucro e à acumulação de capital, para priorizar o carenciamento humano, as necessidades de saúde da população e a melhoria dos ambientes sanitários, comprometendo-se a formar profissionais dispostos a zelar pela qualidade de vida em sua totalidade, não abandonando a valorização dada à construção dialética do processo saúde-doença(12).

Optou-se, aqui, por adotar uma abordagem qualitativa, ancorada no referencial teórico-metodológico da dialética(13), o que revela uma crença no processo de movimento que existe, permanentemente, na sociedade, bem como na construção histórica, cultural e social dos processos de educação dos profissionais de saúde, na capacidade de transformação e de superação das contradições através de novas práxis.

Para se captar a realidade, foram utilizados dados de fonte primária, coletados através da realização de um grupo focal(14) em cada cenário, com duração de três horas e participação, no total, de 27 docentes, 8 discentes, 8 profissionais do serviço. As falas foram gravadas, transcritas e posteriormente submetidas à Análise de Discurso(13,15). Os dados de fonte secundária foram obtidos de relatórios e documentos disponibilizados pelas instituições-cenário da pesquisa e que subsidiaram a compreensão do fenômeno da mudança na formação dos enfermeiros, em cada uma das quatro instituições. Na apresentação dos resultados, os discursos são identificados por uma letra C e um número (1, 2, 3 ou 4) que indica, aleatoriamente, os cenários da pesquisa.

Antes de se iniciar a coleta em campo, o projeto de pesquisa foi aprovado no Comitê de Ética e Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais - COEP/UFMG, seguindo a Resolução 196/96 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisas. Da mesma forma, as falas dos depoentes foram gravadas após a concordância e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O presente estudo descreve as mudanças que são manifestadas e/ou percebidas durante o processo de formação dos estudantes e que podem ser demonstradas como elementos que contribuem para a definição de um perfil profissional. Procurou-se descrever o movimento de mudança na formação dos enfermeiros, apontando os pontos comuns do pensamento e prática dos sujeitos em cada cenário e que subsidiaram a construção da categoria empírica: "Do estudante crítico ao enfermeiro generalista" e como este movimento tem contribuído para a definição da área de competência profissional.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os discursos dos participantes dos grupos focais nos quatro cenários permitem reconhecer, nessas instituições, a posição do estudante como sujeito ativo no processo ensino-aprendizagem que tem espaço para se colocar e propor mudanças. Essa condição tem sido facilitada pelas transformações nas estruturas acadêmicas, construção de um Projeto Político-pedagógico com base em referenciais críticos e reflexivos, adoção de metodologias ativas de ensino, ampliação e diversificação dos cenários de ensino-aprendizagem e tentativa de adoção de avaliação formativa.

Os participantes dos grupos focais assinalam que as mudanças no modelo de ensino contribuíram para a construção de um Projeto Político-pedagógico, no qual o estudante é considerado como um sujeito ativo na construção do seu próprio conhecimento (C1), tornando-se, portanto, um sujeito crítico, questionador, inovador e que tem postura de maior maturidade (C3).

Os participantes afirmam que se tem buscado, durante a formação, a construção do perfil de um profissional reflexivo, conhecedor dos determinantes ético, político, histórico, ideológico e cultural da profissão (C4) em consonância com as diretrizes para a educação de enfermagem, definidas pelo Ministério da Educação(4).

Nos discursos dos participantes dos quatro cenários, há citações que permitem relacionar o movimento de busca de maior participação política, ativa e crítica dos estudantes como fator que determina e orienta um perfil do enfermeiro como generalista e com maior inserção social.

Essa consideração parece marcante para a reorganização dos processos de ensino e de assistência à saúde, uma vez que a formação profissional repercute positivamente, com maior ou menor expressão, na prática dos serviços de saúde, em consonância com o processo ensino-aprendizagem estabelecido.

As mudanças descritas nos discursos sobre a atitude dos estudantes refletem as exigências do mercado de trabalho, que impulsiona a construção de um perfil dos futuros profissionais para atender à nova dinâmica no trabalho em saúde (C3), exigindo que o enfermeiro possa atuar na rede de cuidados progressivos em saúde, mobilizando os conhecimentos em ações preventivas e curativas, tanto individuais quanto coletivas, para garantir a qualidade da atenção à saúde (C4).

No cenário 1, os participantes assinalam que as mudança no ensino ocorrem para atender as necessidades da formação do enfermeiro para atuar no Programa de Saúde da Família. É constante, nos discursos dos sujeitos desse cenário, a preocupação de se inverter o modelo centrado no hospital e na doença, para construir um modelo da saúde tendo como referencial a produção social da saúde.

O Programa de Saúde da Família apresenta-se como estratégia de reorganização da atenção básica no Brasil, direcionando as ações para atender as necessidades das famílias no seu território, enquanto um espaço geopolítico, de forma contínua, personalizada e ativa; com ênfase nas ações de promoção da saúde e prevenção de agravos, mas sem descuidar do enfoque curativo-reabilitador, com alta resolutividade, com baixos custos diretos e indiretos, sejam econômicos, sejam sociais e articulando-se com outros setores que determinam a saúde.

No cenário 3, os participantes afirmam que a mudança no modelo de atenção, com a implantação do Programa de Saúde da Família, passou a exigir práticas pedagógicas que enfatizem a integralidade da atenção à saúde, o que influenciou a mudança no Projeto Político-pedagógico, incorporando novos conceitos e novas práticas de ensino para acompanhar essa tendência.

Os participantes do cenário 4 referem a preocupação em se implementar um processo formativo para contribuir com as mudanças sociais, em relação à educação e à inserção do enfermeiro no mercado de trabalho. Afirmam que, para acompanhar esse "patrão", que é o Programa de Saúde da Família, o curso tem tido como princípio introduzir o estudante nos cenários reais de prática dos modelos atuais de assistência, priorizando ações de vigilância à saúde.

A análise dos discursos permite apreender que a orientação da formação e a definição do perfil profissional nos cenários do estudo estão voltadas às exigências do mercado de trabalho sendo, ainda, incipiente a formação baseada nas áreas de competências que superem as exigências transitórias e momentâneas de um mercado para afirmar a construção de um conjunto de habilidades e atitudes que permitirá ao profissional atuar nas diversas e imprevisíveis situações do cotidiano do trabalho.

Indica-se, portanto, que o processo de formação do enfermeiro deverá se dar à luz da dinamicidade do contexto e de necessidades futuras, no campo de saúde e de educação, para as quais a formação profissional deve estar orientada por uma educação desenhada por áreas de competências, onde as demandas do mercado estejam consideradas. No entanto, esse fator não deve ser o único elemento a ser priorizado na definição do perfil profissional, preparando os profissionais de enfermagem não apenas para atender as demandas do mercado de trabalho, mas, sobretudo, para transformar as condições impostas por esse mercado.

Os participantes dos grupos focais citam que a formação profissional está privilegiando, demasiadamente, os conhecimentos das áreas sociais em detrimento de conhecimentos das áreas técnicas. Assinalam que o enfermeiro formado é um profissional que está muito crítico em relação aos problemas sociais, mas não domina os conhecimentos técnicos e os instrumentais necessários para desenvolver a prática de enfermagem (C3).

Essa constatação contradiz os pressupostos do modelo de formação, até então vigentes, no qual privilegiava-se a atuação curativa e individual, baseada no modelo biomédico hospitalocêntrico, fortemente marcado pela orientação tecnicista. Entretanto, os participantes percebem que está havendo ênfase nas questões sociais e políticas em detrimento do desenvolvimento das habilidades técnicas, da "clínica em saúde". Considera-se, portanto, que o modelo continua fragmentado, não permitindo ao estudante desenvolver-se, concomitantemente, nas áreas de competência técnico-científica e político-social, mobilizando-as para garantir a integralidade do seu processo formativo e da atenção à saúde.

Emerge, portanto, a necessidade de reestruturar o processo de formação, adotando uma visão integral do processo saúde-doença e do ser cuidado, superando, dessa forma, a fragmentação entre biologia/social, curativo/preventivo, clínico/epidemiológico, subjetividade/sociabilidade na construção de um processo ensino-aprendizagem que leve o futuro profissional a desenvolver a competência profissional específica, combinando tecnologias leve-duras, como a clínica, e tecnologias leves como vínculo, acolhida e responsabilização(16).

A análise dos documentos dos quatro cenários permite afirmar que o perfil profissional, explicitado no Projeto Político-pedagógico, foi desenhado a partir da análise do mercado de trabalho, das demandas e necessidades de saúde da população e de projeções futuras sobre a inserção dos enfermeiros em cenários de produção de serviços de saúde, orientado para a consolidação do Sistema Único de Saúde. Entretanto, as escolas continuam estruturando os currículos por conteúdos e por objetivos, característica dos modelos tradicionais de ensino. Essa diferença parece marcante na possibilidade de construção de propostas que vão além da compreensão de que é necessário atender ao mercado de trabalho e reforçar o modus operandi das escolas e das práticas pedagógicas sustentadas na concepção pedagógica da transmissão e do condicionamento.

Torna-se, portanto, necessário assumir o processo ensino-aprendizagem baseado numa concepção pedagógica crítico-reflexiva que orienta as opções metodológicas dirigidas para mudar o centralismo do processo de ensino-aprendizagem no professor, para transferi-lo, responsabilizá-lo e ressignificá-lo no aluno(11, 17).

A mudança e redefinição do perfil profissional do enfermeiro têm se estabelecido a partir das oportunidades oferecidas aos estudantes, durante o curso, de atuarem em atividades multiprofissionais, utilizando-se do enfoque interdisciplinar em equipes de trabalho em novos cenários de ensino-aprendizagem (C4).

No campo da educação de enfermagem, várias propostas estão sendo aplicadas tais como a integração curricular, a integração docente-assistencial, o currículo por competências, com o objetivo de formar um profissional comprometido com a política de saúde e desenvolver a competência específica e a capacidade de promover impacto(18).

Essas experiências têm sido fruto da insatisfação e também da fragilidade que os programas de educação de enfermagem gozam em todos os níveis. Essa fragilidade pode ser entendida como falta de base teórica do fazer, referendada pela tradição da falta de reflexão do por quê e para que, da obsessão da inovação pela inovação, enfim, de processos educativos pouco aderidos à realidade, onde a dicotomia teoria e prática ainda é marcante e onde perpetua a reprodução da concepção do processo saúde e doença, subordinado às ciências biológicas e à assistência individual(18).

Os participantes dos grupos focais manifestaram, ainda, que o apoio financeiro oferecido pelo Projeto UNI contribuiu para o exercício da metodologia da pesquisa entre os estudantes (C3). A análise dos documentos permite reconhecer, também, que o apoio foi dirigido a planos estratégico-institucionais construídos pela parceria ensino/serviço para desenhar os processos de mudança.

Os dados documentais dos quatro cenários permitem afirmar que a aproximação ensino-pesquisa faz parte dos mecanismos de tentativa de integração do ensino básico/ciclo profissional e da articulação teoria/prática, contribuindo para a definição de um perfil de profissional que integra os conhecimentos de várias disciplinas e que desestruture a dicotomia entre a prática de ensino e de atenção.

Corroborando com essa análise, a análise das práticas e a pesquisa constituem-se métodos de formação que permitem a construção do profissionalismo, através do desenvolvimento de uma metacompetência: o saber analisar(7).

Esse parece ser um elemento diferenciador quando se busca a formação crítico-reflexiva, na qual o aprender é o atributo fundamental nas relações entre os sujeitos envolvidos em interação no processo ensino-aprendizagem, através da participação ativa do estudante, da problematização da realidade e da articulação teoria/prática em permanente movimento de aprender a aprender.

Sob essa perspectiva, é possibilitada aos estudantes a construção do conhecimento pautado em problemas da realidade concreta, articulando os saberes de diversas áreas, baseada na interdisciplinaridade e na integração dos conteúdos e dos fazeres. Destaca-se que essa formação apresenta potencial para subsidiar um agir na complexidade e imprevisibilidade, características do cotidiano do trabalho em saúde.

A análise dos discursos dos participantes dos grupos focais revela que a relação ensino/trabalho é impulsionadora das transformações no ensino que são alimentadas pela reorganização do modelo de atenção à saúde em busca da integralidade da atenção. Os participantes revelaram que a relação entre ensino e serviço tem sido uma experiência positiva para todos os atores, permitindo a formação de profissionais contextualizados com a realidade dos serviços de saúde e com as demandas e necessidades de saúde da população, considerando a complexidade e as transformações do processo de trabalho em saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Aprendeu-se com os resultados da pesquisa, que a adoção do enfoque crítico-reflexivo no processo de formação pode repercutir no processo trabalho em saúde e de enfermagem com potencialidades na afirmação de um cuidar realizado por sujeitos com valores, cultura e ideologia comprometidos para solução dos problemas concretos de saúde da população e dos serviços de saúde. Para tanto, esse movimento deve pautar-se, não somente na racionalidade técnica e instrumental, mas, fundamentalmente, em novas possibilidades comunicativas, organizacionais, de relações de intersubjetividade e de cuidado.

Torna-se necessário, então, pensar formas de flexibilizar o sistema de ensino, construindo processos que ajudem a estruturar propostas mais adaptadas às exigências no mundo moderno e do futuro de incertezas, que se manifeste, também, com a introdução de novos conteúdos, mas, principalmente, que venha dar sentido ao estudante como sujeito que deve ser capaz de pensar com criatividade, que tenha auto-estima, que possa enfrentar mudanças profissionais e que construa sua própria rede de crenças e valores.

Assim, pode-se indicar a necessidade de reorientar a formação profissional de enfermagem para solução de problemas concretos e reais, como alternativa para desenvolver a capacidade de criar, recriar e projetar o novo na perspectiva de uma práxis criativa, permitindo o desenvolvimento do sujeito em sua multidimensionalidade: social, histórica, cultural e holística.

Dessa forma, vislumbra-se que a educação de enfermagem deve primar-se pela busca do cuidado integral, construído durante a formação a partir de referenciais crítico-reflexivos na definição da área de competências profissionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 2.2.2005

Aprovado em: 14.7.2006

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    Projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais - FAPEMIG
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006

    Histórico

    • Aceito
      12 Jul 2006
    • Recebido
      25 Nov 2004
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