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O pensamento intelectual e sua preservação: uma análise a partir do Fundo Waldisa Rússio Camargo Guarnieri

Intellectual thought and its preservation: an analysis based on the Waldisa Rússio Camargo Guarnieri Fund

RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir a utilização de documentos presentes no Fundo Waldisa Rússio Camargo Guarnieri, salvaguardado no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), na tentativa de retomada do pensamento da professora e museóloga brasileira Waldisa Rússio, com a apresentação de análise de documentos feitos fora de uma lógica de produção teórica e que, portanto, não foram pensados por sua produtora como forma de síntese de seu pensamento.

PALAVRAS-CHAVE
A rquivos pessoais; museologia; preservação patrimonial; Waldisa Rússio Camargo Guarnieri

ABSTRACT

This article aims to discuss the use of documents present in the Waldisa Rússio Camargo Guarnieri Fund, safeguarded in the Archive of the Institute of Brazilian Studies of University of Sao Paulo (IEB/USP), in an attempt to resume the thought of the Brazilian teacher and museologist Waldisa Rússio, with a presentation of analysis of documents made out of a t heoretical production logic, and that, therefore, were not thought by their producer as a form of synthesis of their thought.

KEYWORDS
Personal papers;; museology; patrimonial preservation; Waldisa Rússio Camargo Guarnieri

Este artigo, fruto da pesquisa de mestrado “Preservação patrimonial” na teoria e na prática: uma análise a partir do Fundo Waldisa Rússio, tem como objetivo discutir a utilização de documentos presentes no Fundo Waldisa Rússio Camargo Guarnieri, salvaguardado no Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), na tentativa de retomada do pensamento da professora e museóloga brasileira Waldisa Rússio.

Rússio, que se inseriu no campo da museologia na década de 1970, permanecendo nele até seu falecimento em 1990, é uma figura-chave para compreender as discussões e mudanças presentes nos campos da museologia e da preservação do patrimônio por ter se articulado com outros teóricos do campo museológico ao mesmo tempo que se fez presente no dia a dia de instituições de memória e cultura em cargos técnicos e/ou administrativos, ficando claro que “ela e a [sua] formação pós-graduada da FESP não refutavam o conhecimento técnico que decorre da necessidade de lidar com a materialidade do acervo [museológico]” (GOUVEIA, 2018GOUVEIA, Inês. Waldisa Rússio e a política museológica. In: ENCONTRO PAULISTA DE MUSEUS, 10., São Paulo, Memorial da América Latina, 2018., p. 7).

Essa dupla atuação da museóloga permite que se busque entender como pressupostos teóricos elaborados por Waldisa eram colocados em prática, ao mesmo tempo que o dia a dia das instituições de memória colaboravam para a formulação de seu pensamento teórico em um processo de caráter dialético que se reflete no acúmulo da documentação presente em seu fundo pessoal.

Atualmente, o Fundo Waldisa Rússio se encontra em processo de tratamento documental feito a partir do projeto Jovem Pesquisador Fapesp “O legado teórico de Waldisa Rússio para a museologia internacional”, coordenado pela professora Viviane Panelli Sarraf, que conta com a criação (em andamento) de um instrumento de pesquisa para o fundo3 3 Segundo o Dicionário brasileiro de terminologia arquivística (2005, p. 108), o instrumento de pesquisa é um: “Meio que permite a identificação, localização ou consulta a documentos ou a informações neles contidas”. , o que facilitará o acesso a ele e dará uma melhor compreensão de sua documentação como um todo. Levando em conta a necessidade de entender o documento de arquivo no interior de seu contexto de produção, visto que em um arquivo pessoal “os documentos do titular compõem-se de inúmeros registros acumulados, cuja função se descola, muitas vezes, dos aspectos informativos imediatos” (LOPEZ, 2003LOPEZ, André Porto Ancona. Arquivos pessoais e as fronteiras da arquivologia. Gragoatá – Revista dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF, Niterói, v. 8, n. 15, p. 69-82, 2. sem. 2003., p. 76), é possível investigar diferentes níveis de informação presentes no documento a partir de uma compreensão do conjunto se nos atentarmos para o seu contexto junto à massa documental, o que faz com que seja essencial analisá-lo sempre em relação ao restante da documentação acumulada pelo seu titular.

Ao mesmo tempo, é importante que se perceba que a documentação foi acumulada por uma pessoa específica, dentro de um contexto específico, entendendo que é “a pessoa, a partir de seus critérios e interesses, que funciona como eixo de sentido no processo de constituição do arquivo” (HEYMANN, 1997HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 19, jul. 1997, p. 41-60. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2041/1180>. Acesso em: 25 set. 2019.
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, p. 42), o que algumas vezes significa a seleção e mesmo a remoção intencional de documentação por parte do titular do fundo, mas ao mesmo tempo pode corroborar a ideia de que um fundo é um tipo de reflexo de seu acumulador, sendo possível, através dele, depreender um recorte específico da vida ou da obra de seu titular, como, por exemplo, o processo de formação do pensamento na formulação de um tema.

No caso de Waldisa Rússio, que, infelizmente, faleceu precocemente, não foi possível uma revisão do fundo por parte de sua titular antes de sua doação ao IEB, ao mesmo tempo que ela não pôde revisar e compilar sua obra, sendo seu fundo pessoal uma das maneiras mais viáveis de para ter acesso a suas proposições teóricas, como as que estão colocadas nos documentos apresentados a seguir.

O primeiro documento selecionado é uma anotação que faz parte de um conjunto de anotações curtas que versam, em geral, sobre museus e preservação. Ela apresenta um esquema com palavras-chave como “objeto”, “classificar”, “catalogar”, “numerar” e “etiquetar”.

Figura 1
Anotação com desenhos esquemáticos e palavras-chave.

O esquema, quando analisado em relação ao seu conjunto e pensado em um possível contexto de produção, é uma representação do processo de identificação de um bem a partir de sua entrada em uma instituição de memória. Ele contempla as partes subjetivas e técnicas de identificação de um objeto – sua classificação e sua catalogação – e as partes materiais de identificação – numeração e etiquetação –, que, na prática, são elementos que configuram o processo de musealização de um objeto.

A discussão sobre a questão da musealização perpassa os documentos do Fundo, estando presente, por exemplo, em texto de comunicação apresentada por Rússio no Simpósio sobre Memória e Patrimônio Cultural, realizado em Mogi das Cruzes em 1986:

Figura 2
Primeira página da comunicação “Conceitos e limites da preservação: uma visão museológica”.

Com a proposta de reunião de funcionários públicos municipais de diversas cidades da grande São Paulo para a discussão sobre preservação da memória, o Simpósio foi voltado para a formulação de propostas de trabalho delineadas para cada município participante, e contou ainda com comunicações de dois tipos: estudos de caso e as que apresentavam propostas teóricas referentes a atividades realizadas em bibliotecas, arquivos e museus; dentre as falas apresentadas, Waldisa apresentou a intitulada “Conceitos e limites da preservação: uma visão museológica”. No trecho reproduzido, Waldisa apresenta seus argumentos sobre o sentido da musealização, apontando-a como forma de preservar o testemunho do homem e sua relação com a realidade. A identificação (classificação, catalogação, numeração e etiquetação) e a incorporação dos objetos (e cenários e paisagens) às instituições de memória passam, portanto, pela compreensão dos traços de significação atribuídos a esses objetos.

A questão da atribuição de significado aos objetos reconhecidos como patrimônio será abordada ainda em outro texto de Rússio, encontrado junto à correspondência trocada com o então presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat), Antonio Augusto Arantes, escrito para o Seminário: Cultura, Patrimônio e Preservação, onde ela aponta:

Nós temos feito muito uma exploração que me parece um pouco superficial da questão “patrimônio”, colocando simplesmente que o patrimônio é um conjunto de bens, e o patrimônio cultural é um conjunto de bens culturais, esquecendo que eles são bens na medida em que o homem atribuiu a eles significados. E a atribuição de significados é um dado estritamente cultural. A partir daí, acho que há toda uma outra gama, além do reconhecimento de objetos (ou seja, de elementos naturais existentes fora do homem) aos quais o homem pode atribuir função, e no atribuir função ele pode inclusive intervir sobre esse dado natural e construir o artefato.

(Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, código WR-PT-0030, p. 4).

Rússio se coloca em contraponto à visão estabelecida em órgãos oficiais de preservação, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), onde a “falsa noção de critério seletivo do tempo sacralizou o monumental, o senhorial e o raro, o excepcional, em detrimento do documental, do social, do testemunhal” (Arquivo IEB/USP, Fundo Waldisa Rússio, código WR-DOC-0168, p. 25), como apontado por ela em fala em reunião sobre legislação patrimonial. A compreensão de que é a atribuição cultural dada aos objetos que constitui o patrimônio cultural é uma questão-chave para o entendimento do que é patrimônio e, consequentemente, dos pressupostos e das consequências relativos à sua preservação. Assim, pode-se entender que o objeto é preservado e musealizado a partir de prerrogativas estabelecidas pela sociedade à qual ele pertence como bem cultural.

Essa “narrativa conceitual”, feita a partir de documentos que apresentam uma síntese teórica, mas que estavam inseridos em um contexto de produção de nível prático para a profissão, e que mostram Rússio inserida em diferentes espaços, como simpósios para a discussão de legislação cultural, ou de capacitação de funcionários públicos, ou em diálogos com instituições como o Condephaat, permite observar possíveis caminhos de pesquisa que retomem a formulação de um pensamento, a partir da utilização de arquivos pessoais, compreendendo que estes se apresentam como parte do processo de produção de ideias.

  • 3
    Segundo o Dicionário brasileiro de terminologia arquivística (2005, p. 108)DICIONÁRIO brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. Disponível em: <http://www.arquivonacional.gov.br/images/pdf/Dicion_Term_Arquiv.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2019.
    http://www.arquivonacional.gov.br/images...
    , o instrumento de pesquisa é um: “Meio que permite a identificação, localização ou consulta a documentos ou a informações neles contidas”.
  • SARRAF, Viviane Panelli; BORGES, Karoliny Aparecida de Lima. O pensamento intelectual e sua preservação: uma análise a partir do Fundo Waldisa Rússio Camargo Guarnieri. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 74, p. 345-350, dez. 2019.

REFERÊNCIAS

  • DICIONÁRIO brasileiro de terminologia arquivística Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. Disponível em: <http://www.arquivonacional.gov.br/images/pdf/Dicion_Term_Arquiv.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2019.
    » http://www.arquivonacional.gov.br/images/pdf/Dicion_Term_Arquiv.pdf
  • GOUVEIA, Inês. Waldisa Rússio e a política museológica. In: ENCONTRO PAULISTA DE MUSEUS, 10., São Paulo, Memorial da América Latina, 2018.
  • HEYMANN, Luciana Quillet. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 10, n. 19, jul. 1997, p. 41-60. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2041/1180>. Acesso em: 25 set. 2019.
    » http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2041/1180
  • LOPEZ, André Porto Ancona. Arquivos pessoais e as fronteiras da arquivologia. Gragoatá – Revista dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras da UFF, Niterói, v. 8, n. 15, p. 69-82, 2. sem. 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2019
  • Aceito
    07 Nov 2019
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