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A inaceitável tragédia das mortes maternas associadas à COVID-19: (re)politização da saúde e dos direitos das mulheres e o posicionamento da enfermagem brasileira

No ano de 2020 - elencado como o ano “Internacional dos Profissionais de Enfermagem e Obstetrícia” - a estratégia Nursing Now(11 World Health Organization. Nursing Now Campaign[Internet]. 2018[cited 2020 Aug 30]. Available from: https://www.who.int/hrh/news/2018/nursing_now_campaign/en/
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) justifica ainda mais a re-existência da enfermagem, com estratégias, ações inovadoras e transformadoras no enfrentamento de novos desafios que se impõem, especialmente, a partir do contexto da pandemia de COVID-19.

No Brasil, as trabalhadoras da enfermagem - na linha de frente do cuidado, na pesquisa e na docência - têm envidado esforços na pela saúde da população brasileira e no fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Vale destacar que, no campo da saúde das mulheres, há cerca de 40 anos a enfermagem obstétrica vem se colocando, com outros atores(as), na linha de frente de atuação no movimento da humanização do parto e nascimento – que ganhou concretude, em um campo mais amplo, com a criação da ReHuNa (Rede pela Humanização do Parto e Nascimento), em 1993; e, no campo mais específico da enfermagem obstétrica, com a fundação da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiras Obstetras (ABENFO-Nacional), em 1992.

Desde então, a enfermagem e a enfermagem obstétrica vêm atuando em consonância com as ações e reivindicações do movimento de humanização do parto e do nascimento, no âmbito da prática e formação profissional, na docência e no campo da pesquisa, na transformação do modelo obstétrico biomédico, intervencionista e hierarquicamente verticalizado. Neste contexto, impulsionando, em conjuntos com outros atores/entidades, políticas públicas no campo do parto e nascimento, em alinhamento à Constituição Federal de 1988, às diretrizes do SUS e às políticas de saúde específicas de campos que se interseccionam como a saúde materna, saúde sexual e reprodutiva e saúde das mulheres.

Essas trajetórias colocam a enfermagem e a enfermagem obstétrica brasileira - força de trabalho da saúde composta por mais de 2,3 milhões de trabalhadoras(22 Associação Brasileira de Enfermagem. Manifesto aos brasileiros em defesa dos profissionais de Enfermagem em tempos de COVID-19: nota oficial da ABEn, FNE, ANATEn e ENEEnf[Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 30]. Available from: http://www.abennacional.org.br/site/wp-content/uploads/2020/05/cofen_Manifesto_ABEn_PDF.pdf
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) - majoritariamente formada por mulheres (85,1%), jovens (78% possuem entre 26 e 50 anos) e que se autodeclaram pretas ou pardas (53%)(33 Machado MH. Perfil da Enfermagem no Brasil: relatório Final: Brasil. Rio de Janeiro: NERHUS - DAPS - ENSP/Fiocruz; 2017. 748 p.) – em uma posição de fazer um chamado à (re)politização da saúde e aos direitos sexuais reprodutivos das mulheres (e homens), em um momento em que a pandemia de COVID-19 ameaça à saúde e aos direitos das mulheres.

O mundo vive um cenário desafiador que vem tomando conta do planeta desde que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, em 30 de janeiro de 2020, a emergência de saúde pública de importância internacional, devido ao surto da doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19), que foi reconhecida em 11 de março de 2020 como uma pandemia. Dados de 28 de agosto apontam que, até o momento, foram confirmados 24.316.245 casos de infecção pelo coronavírus, com incidência diária de aproximadamente 300.000 casos e mais de 800.000 mortes. A região das Américas concentra aproximadamente 50% dos casos confirmados (12.865.897) e mais da metade dos óbitos (454.786)(44 Organização Pan-Americana da Saúde. Organização Mundial da Saúde. Folha informativa COVID-19[Internet] - Escritório da OPAS e da OMS no Brasil. 2020[cited 2020 Aug 30]. Available from: https://www.paho.org/pt/covid19
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), com o Brasil despontando como o epicentro da pandemia.

Dentre todos os casos notificados nas Américas, o Brasil concentra aproximadamente um terço dos casos (3.761.391) e cerca de um quarto dos óbitos (118.649)(55 Ministério da Saúde (BR). Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). Secretaria de Vigilância em Saúde [homepage na internet]. Painel Coronavírus[Internet]. 2020[cited 2020 Aug 30]. Available from: https://covid.saude.gov.br/
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-66 Johns Hopkins University & Medicine. COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University (JHU) [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 30]. Available from: https://coronavirus.jhu.edu/map.html
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). O país ocupa o segundo lugar em número de casos, atrás apenas dos Estados Unidos, que detém 5.902.374 casos de coronavírus e 181.435 mortes(66 Johns Hopkins University & Medicine. COVID-19 Dashboard by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University (JHU) [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 30]. Available from: https://coronavirus.jhu.edu/map.html
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).

De fato, há um quadro dramático, porque a pandemia de COVID-19 atinge o país em um momento em que precisaríamos ter fortes sistemas de informação, comunicação, pesquisa, ciência e tecnologia de saúde e investimentos no trabalho em saúde, além das políticas sociais e políticas públicas de estado. Mas, ao contrário, o que se impôs para atender as medidas econômicas ultraliberais foi a aprovação do novo regime fiscal, com a criação da Emenda Constitucional nº 95 e das reformas trabalhista pela Lei nº 13.467, de 13 de Julho de 2017(77 Presidência da República (BR). Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1º de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Diário Oficial da União 14 jul 2017; 134:1.) e previdenciárias, pela Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019(88 Presidência da República (BR). Constituição (1988). Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019. Dá nova redação ao art. 60 da Constituição Federal, alterando o sistema de previdência social e estabelecendo regras de transição e disposições transitórias. nov 2019; 220:2019.), cujo resultado tem sido: altas taxas de desemprego, aumento da violência, especialmente contra as mulheres, com aumento da incidência de violência doméstica e familiar. Uma realidade que, por um lado, restringe direitos e, por outro, reproduz um processo de normalização das desigualdades e injustiças sociais que afetam, principalmente, os grupos sociais mais vulnerabilizados.

Além disso, essa disseminação do vírus segue no Brasil nos desafiando a superá-la no contexto surpreendente, como o fato de o Brasil se tornar caso único devido ao alto número de mortes maternas, nesse período de pandemia, chamando a atenção internacional.

Vale registrar que, no país, até 18 de junho de 2020, cerca de 978 gestantes e puérperas foram diagnosticados com a doença. Dessas, 124 (12,7%) foram a óbito, estimando-se um grande salto nas atuais taxas de mortalidade materna, já bastante elevadas antes da pandemia. Trata-se de uma doença com alta velocidade de disseminação e com evidências que apontam que este grupo populacional demanda uma atenção especial, por desenvolverem quadros de maior complicação, quando comparado ao grupo de mulheres não grávidas(99 Centers for Disease Control and Prevention. Investigating the Impact of COVID-19 during Pregnancy[Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 30]. Available from: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/cases-updates/special-populations/pregnancy-data-on-covid-19/what-cdc-is-doing.html
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).

Segundo a 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), a morte materna é definida como óbito durante a gestação ou até 42 dias após o término da gestação, e que independe da duração ou da localização da gravidez, devida a qualquer causa, seja ela relacionada ou agravada pela gestação ou ainda por medidas tomadas em relação a ela, não devida a causas acidentais ou incidentais(1010 World Heatlh Organization (WHO). International Classification of Diseases 10th Revision[Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 30]. Available from: https://icd.who.int/browse10/2019/en#/O95
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).

Ressalta-se que, no Brasil, persiste uma Razão de Morte Materna (RMM) de cerca de 59,1 por 100.000 nascidos vivos (n.v.), predominando as causas diretas, respectivamente, como hipertensão, hemorragia, infecção e complicações por aborto inseguro(1111 Ministério da Saúde (BR). Brasil reduziu 8,4% a razão de mortalidade materna e investe em ações com foco na saúde da mulher[Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 30]. Available from: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46970-brasil-reduziu-8-4-a-razao-de-mortalidade-materna-e-investe-em-acoes-com-foco-na-saude-da-mulher#:~:text=O%20Brasil%20conseguiu%20reduzir%20em,anterior%20era%20de%2064%2C5.
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).

Entende-se que, se em 2018 a Razão de Mortalidade Materna (RMM) estava muito aquém da meta de 35 mortes para cada 100 mil n.v, estabelecida em 2015 pela Organização das Nações Unidas (ONU), no momento atual de pandemia, a preocupação se eleva ainda mais. O impacto na morbimortalidade causado pelo novo coronavírus provocando mortes em grupos populacionais reconhecidos como de maior risco - como gestantes e puérperas - traz à tona questões que afetam a vida e a saúde das mulheres. Essa trágica realidade indica a necessidade de (re)politização da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos inscritos na Constituição brasileira e nos compromissos firmados pelo Brasil em tratados internacionais.

Diante deste contexto, pesquisadoras brasileiras em publicação internacional propalada no meio científico, na grande mídia e com efeito na Câmara dos Deputados, revelaram dados alarmantes sobre a (cruel) interseção de gênero, raça e classe social, que, ao se entrecruzarem, aprofundam ainda mais a tragédia das mortes maternas no país. Na população estudada, dentre os 207 (21,2%) casos internados nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), aproximadamente 35% (73 casos) resultaram em mortes maternas, 22,6% das mulheres não foram sequer admitidas em uma UTI e houve ausência de suporte ventilatório para 14,6% dessas mulheres(1212 Takemoto MLS, Menezes MO, Andreucci CB, Nakamura-Pereira M, Amorim MMR, Katz L, et al. The tragedy of COVID-19 in Brazil: 124 maternal deaths and counting. Int J Gynecol Obstet. 2020;0-3. doi: 10.1002/ijgo.13300
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).

O estudo em foco mostrou que a chance de gestantes negras morrerem correspondeu ao dobro das mulheres brancas, indicando disparidade étnico-raciais que reitera as raízes históricas de desigualdades sociais, bem como o racismo estrutural, que têm marcado a sociedade brasileira(1212 Takemoto MLS, Menezes MO, Andreucci CB, Nakamura-Pereira M, Amorim MMR, Katz L, et al. The tragedy of COVID-19 in Brazil: 124 maternal deaths and counting. Int J Gynecol Obstet. 2020;0-3. doi: 10.1002/ijgo.13300
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).

Diante desta realidade inaceitável de mortes maternas, as organizações nacionais da enfermagem, representadas pela Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn), ABENFO e pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEn), apoiadas pela International Confederation of Midwives, reconhecendo a sua corresponsabilidade na superação dos desafios da pandemia de COVID-19 para qualidade de vida e garantia de saúde para as mulheres, emitiram nota pública chamando à atenção das autoridades competentes para a adoção imediata de medidas de controle, detecção e tratamento precoce, oportuno das gestantes e puérperas, decorrentes da pandemia. Dentre elas: i) a responsabilidade das três esferas de governo na atenção à saúde das mulheres e à saúde materna, com a definição de medidas para o enfrentamento imediato da pandemia e pós-pandemia; ii) a investigação e análise dos óbitos de mulheres em idade fértil (MIF) e dos óbitos maternos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e COVID-19 em câmaras técnicas multiprofissionais e interinstitucionais; iii) a manutenção da rede de atenção à saúde organizada em seus diversos níveis, com garantia de acesso, integralidade e humanização do cuidado; iv) o descontingenciamento de recursos financeiros à priorização da linha de cuidado às mulheres; v) a inclusão obrigatória de enfermeiras obstetras ou obstetrizes em número adequado em todas as maternidades brasileiras, para atuarem na atenção ao parto humanizado e a participação de suas representações nas câmaras técnicas de monitoramento da morbimortalidade materna nos hospitais, municípios, estados e Ministério da Saúde(1313 Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (ABENFO). Associação Brasileira de Enfermagem (ABEN). Conselho Federal de Enfermagem (COFEN). Alerta às mortes maternas associadas à COVID-19 no Brasil: Nota Oficial da ABENFO, ABEn e COFEN[Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 30]. Available from: https://abenfo.wixsite.com/meusite/post/alerta-%C3%A1-mortes-maternas-associadas-%C3%A1-covid-19
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).

As razões pelas quais o país apresenta essas cifras alarmantes de mortes maternas por COVID-19 são complexas e multifatoriais. Evitáveis e preveníveis, essas mortes de mulheres, prematuras e injustificáveis, configuram-se como um grande problema de saúde pública e de violação de direitos – direitos sexuais e direitos reprodutivos - na medida em que escancaram desastrosas implicações das desigualdades sociais, de gênero, de raça/etnia, bem como do desempenho do sistema de saúde – ainda aquém de atender as necessidades das mulheres.

Infere-se, portanto, que todos fatores são relevantes para a conformação de um quadro aviltante e implacável de violação de direitos humanos, entre os quais o direito à saúde e à vida, recrudescidos com a pandemia de COVID-19. Urge, então, que as demandas das mulheres em termos de vida e saúde sexual e reprodutiva, inseparáveis de fundamentos ético, estético, e político, em vista à altura desses desafios, sejam respeitadas, potencializadas e concretizadas nas respostas do sistema de saúde, da Rede de Atenção à Saúde, dos serviços e das práticas assistenciais. Caso contrário, as mulheres, seus filhos, famílias e comunidades continuarão sob o infortúnio de riscos e de mortes desnecessárias e evitáveis. Por isso, nos convocam a incidência política, com destaque à (re)politização em termos concretos dos direitos sexuais e reprodutivos.

Nesse percurso, as autoridades do poder executivo e legislativo deverão viabilizar no orçamento da União financiamento suficiente para a saúde reprodutiva, tendo em vista a destinação de recursos para investimentos em pesquisa científica, produção de conhecimentos e inovação na prática; para a formação, educação permanente e condições de trabalho dos profissionais da enfermagem e dos demais profissionais da saúde. Além disso, no campo da obstetrícia, um enfoque baseado nos direitos humanos, sexuais e reprodutivos para o fortalecimento das políticas e ações em saúde em um enfoque de gênero, integralidade e promoção da saúde, é medida fundamental para garantir a ampliação do acesso a cuidados seguros, de qualidade e resolutivos para as mulheres.

Desse modo, a enfermagem brasileira conclama os formuladores de políticas públicas, governantes, demais entidades profissionais do campo da saúde e da enfermagem, gestores e profissionais da saúde, universidades e a sociedade civil organizada, entre outros, a necessária e premente (re)politização da saúde reprodutiva, ao reconhecer que as mulheres experimentam riscos associados à reprodução e à vivência de sua sexualidade, relacionados à forma como a sociedade cuida ou deixa de cuidar delas. Como exemplo, medidas restritivas à garantia de direitos reprodutivos das mulheres, especialmente ao grupo de mulheres que dependem exclusivamente do SUS, contrariando as políticas públicas, as diretrizes técnicas e a prática contumaz na atenção primária ou especializada e a regulação da enfermagem que garante a inserção de Dispositivo Intrauterino (DIU) por enfermeiras, enfermeiras obstétricas e/ou obstetrizes devidamente capacitados e treinados para tal(1414 Associação Brasileira de Enfermagem [homepage na internet]. Nota de Repúdio ao Ministério da Saúde: acesso ampliado ao planejamento familiar é um direito das mulheres à saúde [Internet]. 2020 [cited 2020 Aug 30]. Available from: http://www.abennacional.org.br/site/wp-content/uploads/2019/12/Nota_RepudioNT38_v2.pdf
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15 Conselho Federal de Enfermagem. Cofen se manifesta sobre a suspensão da inserção do DIU por Enfermeiros [Internet]. 2020[cited 2020 Aug 30]. Available from: http://www.cofen.gov.br/cofen-e-abenfo-se-manifestam-sobre-a-suspensao-da-insercao-do-diu-por-enfermeiros_76570.html
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-1616 Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. CNS recomenda que Ministério da Saúde revogue nota técnica que impede que enfermeiros (as) insiram DIU[Internet]. 2020[cited 2020 Aug 30]. Available from: http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/995-cns-recomenda-que-ministerio-da-saude-revogue-nota-tecnica-que-impede-que-enfermeiros-as-insiram-diu
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). Essas medidas, no mesmo compasso que obstaculizam a acessibilidade das mulheres a profissionais qualificados, vão contra o exercício legal das enfermeiras e obstetrizes. Na contramão do fortalecimento da saúde integral das mulheres (e homens), esse tipo de medida prejudica o trabalho em equipe multiprofissional, desorganiza os (ainda poucos) serviços que ofertam ações de planejamento reprodutivo com enfermeiras e obstetrizes atuando na linha de frente, fragilizando o cuidado integral à saúde das mulheres e a Rede de Atenção à Saúde.

Outra questão relevante, que se configura entre as principais causas de mortalidade materna no Brasil, é a atenção humanizada e segura às mulheres nos casos de abortos. Emblemático foi o caso de uma menina vítima de estupro que engravidou e teve a gravidez interrompida por decisão judicial, cuja família precisou entrar no Programa de Apoio e Proteção às Testemunhas, Vítimas e Familiares de Vítimas da Violência (Provita), instituído pela Lei nº 9.807/99. Essa situação, ao ganhar as redes sociais, chocou o país e acendeu o debate sobre os direitos das mulheres e meninas terem acesso à saúde sexual e reprodutiva segura e humanizada, incluindo o aborto legal(1717 Maia D. Menina que engravidou após estupro teve que sair do ES para fazer aborto legal[Internet]. Folha de São Paulo 2020 agosto 16[cited 2020 Aug 30]. Available from: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/08/menina-que-engravidou-apos-estupro-teve-que-sair-do-es-para-fazer-aborto-legal.shtml
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).

Por conseguinte, estudo recente revelou que persistem barreiras culturais e religiosas para a realização da interrupção voluntária da gravidez autorizada em lei, nos casos de estupro e quando há risco de morte para a mulher gestante, desde a década de 1940, e nos casos de anencefalia, tema debatido e referendado em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). As autoras enfatizam os necessários investimentos na formação dos profissionais de saúde desde a graduação e a capacitação continuada dos profissionais e a organização dos serviços e da rede de atenção(1818 Fonseca SC, Domingues RMSM, Leal M do C, Aquino EML, Menezes GMS. Aborto legal no Brasil: revisão sistemática da produção científica, 2008-2018. Cad Saude Publica. 2020;36(Suppl 1):e00189718. doi: 10.1590/0102-311x00189718
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). Nesse sentido, são estratégicos os hospitais de ensino e as universidades, mas, também, essencial o apoio das entidades profissionais e científicas a estas instituições. É um momento oportuno e necessário para se ampliarem os serviços de atenção às mulheres vítimas de violência sexual e de aborto legal, bem como a qualificação de profissionais para atuarem nestes serviços.

Nessa ótica, os desafios exigem ações ético-política, técnico-científica, potentes e ampliadas, em prol do fortalecimento do SUS e de sua força de trabalho em saúde, que tem na enfermagem e na enfermagem obstétrica pilares grandes e importantes.

Finalmente, nesse cenário de desafios em que se relacionam justiça social, saúde, direitos sexuais e reprodutivos, novos modos de engajamento e de incidência política, é importante reafirmar que nosso compromisso é com a promoção da equidade na saúde das mulheres, que requer o fortalecimento da atenção da atenção básica, cuidar e salvar vidas. Esse é um caminho desafiante à enfermagem brasileira e mundial.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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